terça-feira, 8 de novembro de 2022

Da cidade como produto financeiro


«Em resposta aos efeitos da crise financeira de 2007-2008, a Reserva Federal Americana, o Banco de Inglaterra e, mais tarde, o Banco Central Europeu, despoletaram um vasto programa monetário de “expansão quantitativa”. A margem de liquidez introduzida no sistema bancário por acção desta política, associada à instabilidade pressentida pelos vários agentes do sistema financeiro durante a década que se seguiu, favoreceram a compra de activos seguros por parte de grandes fundos de investimento. Deste modo, aquele capital criado pelos bancos centrais e injectado directamente na banca com o intuito de incentivar a retoma do crédito e do investimento foi antes aplicado na aquisição, em grande escala, de bens imóveis.
É isto que ajuda a explicar como, a partir de 2009 e na sequência de uma crise que atingiu profundamente o sistema de crédito, a cidade de Londres tenha assistido a uma extraordinária sobrevalorização do seu parque imobiliário. No meio de uma profunda crise de austeridade, tal fenómeno não traduziu uma verdadeira dinâmica de investimento, mas antes um processo de parqueamento de capitais perante o cenário de instabilidade mundial que então se verificava. Com a inflação rápida nas cidades de primeira linha, os fundos gestores partiram naturalmente à procura de outras oportunidades de investimento. É fácil constatar que Lisboa foi uma dessas cidades de segunda linha: uma economia frágil, com um parque imobiliário em desvalorização, mas também com políticas fiscais amigáveis ao investimento estrangeiro e que oferecia boas perspectivas de estabilização económica
».

Daniel Carrapa, A cidade como produto financeiro

Assinalou-se no passado dia 31 de outubro mais um Dia Mundial das Cidades. A este propósito - e sobretudo a propósito da crise de habitação que atravessa a Europa (e não só) - lembrei-me deste texto de Daniel Carrapa, que vale a pena ler na íntegra, partilhado num comentário a este post.

A habitação é hoje, indiscutivelmente, um dos maiores problemas com que se confrontam as cidades (sobretudo as grandes cidades), obrigando a que se tenha noção clara dos impactos de dinâmicas recentes, como as associadas à diversificação e internacionalização da procura (sobretudo a turística) e à intensificação de investimentos imobiliários que encaram a habitação como um ativo financeiro. Isto é, um conjunto de processos que escapam a certos liberais (ver aqui, a partir do minuto 5' 20''), que acham que «o mercado de habitação não mudou nos últimos dez anos».

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma "expansão quantitativa" de moeda... que afinal vira "capital criado"... antes mesmo de ser crédito... para se tornar crédito... e que depois se aplica - suspense, incredulidade - em aquisição.

Mas, como se está a falar da "aquisição, em grande escala, de bens imoóooveeis", bem... o "capital criado" - chegamos ao ápice - se transformam em "parqueamento de capitais". Não poderia encontrar expressão mais contraditória do que... "parqueamento de capitais".

Alguém entenda...

Pior, só mesmo o deputado do IL. Embora haja um aspecto real (e não pseudoconceitual) a reter do que ele disse em relação a tudo o que Daniel Carrapa escreveu: a diminuição significativa da construção na última década (e que o levou ao 'achismo' já referido).

Melhor teve o ministro, que se aproximou mais do real: os preços direcionam-se para a procura internacional (embora o País tenha capacidade de fazer francamente melhor).

Um problema que Paulo Coimbra já havia levantado, excelentemente.