domingo, 21 de maio de 2023

Dêem-lhes comprimidos vermelhos

Fotogramas retirados do filme Matrix

As sessões da comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP lembram aquela cena do filme Matrix em que Morpheus dá a escolher a Neo como é que ele quer que viver o resto da sua vida.

Para quem não é iniciado nesta filmografia, o comprimido azul faria Neo esquecer esta opção, continuando a viver num mundo artificial que apenas existe na sua cabeça, através da plataforma (Matrix), enquanto na realidade o seu corpo está em coma, a produzir energia para um universo de máquinas; se Neo tomar o comprimido vermelho, o seu corpo liberta-se desse mundo artificial e essa nova consciência obrigá-lo-á a lutar por outra vida, real e dura, mas autónoma, num mundo de escravos libertados.

Este limiar da consciência emancipadora é uma metáfora daqueles momentos em que a História parece evoluir por saltos: uns que contribuem para essa progressiva emancipação da vida dos explorados, mas que não evitam - antes justificam - movimentos subsequentes de recuo. No caso pequeno de Portugal, já aqui se lembrou um desses momentos.

A forma como a CPI se está a processar parece ser outra metáfora desses momentos. Primeiro, porque não se debruça sobre tudo o que correu mal no processo privatizador da TAP e no consequente processo nacionalizador. Bruno Dias, do PCP lembrou-o (ver aqui):
"Em 2000, a TAP também ia falir se não fosse privatizada. Afinal faliu a empresa que a ia comprar, a Swissair, e a Sabena que esta já havia adquirido! Em 2012, também era inevitável privatizar a TAP ou falia. A venda foi travada no último momento, e quem já faliu foi a Avianca, que ia comprar a TAP. E em 2015, era inevitável privatizar a TAP pois tinha capitais negativos de 500 milhões de euros. Esses capitais eram 200 milhões de euros mais negativos em 2019, depois de 4 anos de gestão privada. E quando chegou a pandemia, os privados meteram-se ao fresco, e nós tivemos de ir tapar os buracos que a gestão privada abrira, mais os buracos das várias tentativas de privatização." Ou seja, (...) a TAP sobreviveu exactamente porque não foi privatizada e, quando o foi, sobreviveu porque foi renacionalizada. (...) Há mais de 30 anos que a política de liberalização do sector aéreo tem como objectivo destruir as soberanias nacionais e concentrar o sector aéreo em 2 ou 3 empresas de escala europeia, apoiadas nos Estados centrais da UE, a Alemanha e a França (e o Reino Unido enquanto por cá andou). Não por acaso são três as companhias aéreas bandeira da UE autorizadas a conservar a sua dimensão nacional: a Lufthansa, a KLM/Air France e a British/Ibéria, que têm vindo a absorver outras companhias e que agora querem absorver a TAP, deixando-a subordinada à estratégia dessas companhias, colocando o hub de Lisboa como subsidiário do de Frankfurt, Londres, Paris ou Madrid, liquidando a soberania nacional em mais um sector estratégico.
Em segundo lugar, porque a CPI orienta-se, sim, para fragilizar - ainda mais! - um governo que perdeu o seu norte reformador (desde que pôs fim à aliança à esquerda) e que só se concentra no ilusório status quo de que, agora que o BCE retirou o açaime aos mercados financeiros, a contenção da intervenção pública oferece mais garantias de que os donos dos mercados não ataquem a dívida pública portuguesa.

Muito por responsabilidade do Governo, a extrema-direita cavalga, impante, os trabalhos da CPI , alargando - sem mandado - o âmbito da sua intervenção e impondo o carreamento de cada vez mais elementos que municiam um ataque político, orientado para o empolamento pela comunicação social (já a funcionar em manada), sem outra meta que não a queda sucessiva de membros do Governo até atingir o primeiro-ministro (está quase!). Os dois partidos de extrema-direita quase parecem putos de escola, à frente de uma silenciosa cãmara de televisão, a gritar: "Tenha coragem", "apareça se é homem", "não és homem nem és nada se não vieres à CPI" discutir quem deu mais murros no ministério.

Em 2010/2014, o discurso "temos de fazer o que os mercados quiserem" serviu para realizar uma agenda de desmantelamento do Estado Social e das relações laborais. Hoje, o mesmo discurso não terá um resultado diferente.

O Governo e o PS que tomem, pois, rapidamente um compromido vermelho porque, muito em breve - caso nada seja feito - quem está por detrás do financiamento da extrema-direita prepara-se para impor uma agenda bem mais radical de desmantelamento do que resta do Estado Social: menores receitas fiscais, apropriação da principal instituição financeira nacional (CGD) e e privatização da Protecção Social, a par da continuação da delapidação da Saúde e Educação públicas. Já nem falo do escândalo que se passa na Habitação...

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