1. Não são muitos os países europeus que registaram um agravamento significativo da situação pandémica no Natal. Tomando como referência a UE15, destacam-se com um aumento de casos superior a 40%, entre 20 de dezembro e 15 de janeiro, a Irlanda, Portugal, o Reino Unido e a Suécia (a Espanha registaria um aumento significativo de casos um pouco mais tarde, com o pico no final de janeiro).
2. Uma das explicações em voga para o agravar da situação em Portugal no final do ano (quando se inverte o período de declínio iniciado a 19 de novembro), é a de que o aumento explosivo de novos casos decorre do facto de não terem sido adotadas medidas de confinamento no outono, ao contrário do que fizeram outros países, como a Alemanha. Nesta linha, Manuel Carmo Gomes, por exemplo,
defende que teriam sido «
preferíveis medidas drásticas de 15 dias do que aquilo que nos está acontecer agora, em que vamos levar muito mais tempo a sair deste estado».
3. A relação de causalidade entre o aumento de casos em dezembro e a ausência de confinamento no outono, que tende a relativizar a descida ocorrida desde meados de novembro (e o próprio impacto do Natal), não chega a ser explicitada e demonstrada. Mas não parece ser difícil intuir a lógica subjacente: tendo confinado em outubro ou novembro chegar-se-ia ao Natal com a situação pandémica mais controlada e, assim sendo, a escalada de novos casos não atingiria as proporções que atingiu.
4. A Alemanha pode ser de facto tomada como um bom suporte desta tese. No outono não atinge sequer os 250 casos por milhão de habitantes (em Portugal chegou-se a ultrapassar os 600) e foi um dos países que adotou medidas muito restritivas nesse período. E não regista, com efeito, um aumento relevante de casos depois do Natal. O problema é que o mesmo não sucede, por exemplo, com a Irlanda, que também adotou medidas muito restritivas no outono (incluindo o fecho de escolas), registando um volume de casos inferior ao da Alemanha (em regra abaixo dos 100 por milhão de habitantes). Mas que, tal como no caso português, assiste a uma «explosão» pandémica no Natal.
5. Sublinhe-se, aliás, que não só a evolução da situação irlandesa depois do Natal se assemelha à portuguesa (e não à alemã), chegando a assumir um pico de casos mais elevado em janeiro, como o «ponto de partida» para o Natal, nos três países, é muito mais próximo do que se poderia supor. De facto, a 25 de dezembro Portugal registava um valor médio de cerca de 350 novos casos por milhão de habitantes, a Alemanha rondava os 250 (apenas menos 100) e a Irlanda cerca de 170. Ou seja, deste ponto de vista, as diferenças registadas no outono estavam então esbatidas.
6. Isto não significa, evidentemente, que quando em Portugal se atingiu, entre finais de outubro e meados de novembro, uma média diária de novos casos a rondar os 4 mil, não pudessem ou não devessem ter sido adotadas mais medidas. É legítimo considerar que deveria ter havido um reforço de restrições (como sucedeu noutros países), para reduzir os valores de então. Mas isso não permite afirmar - sem a devida demonstração de causalidade - que a «explosão» do Natal se deve ao facto de essas restrições não terem sido adotadas (tanto mais quanto, depois da vaga do outono, se seguiu uma fase de clara melhoria da situação).
7. Afigura-se portanto mais plausível atribuir a «explosão» de novos casos depois do Natal ao próprio Natal e, nomeadamente, ao claro relaxamento das restrições e medidas de contenção, que ocorreu tanto em Portugal (ver
aqui e
aqui) como na Irlanda (ver
aqui e
aqui). Em ambos os casos, para lá de uma perceção de melhoria da situação pandémica (mais justificada na Irlanda), estamos perante dois países católicos (mesmo que o Natal já seja uma festa laica), não devendo também menosprezar-se o otimismo gerado com o anúncio da distribuição, para breve, da vacina.
8. Acresce, pelo menos no caso português, o impacto que as
temperaturas anormalmente baixas terão tido no aumento dos níveis de contágio (de forma direta ou pela maior vulnerabilidade ao vírus), estimando-se que o frio possa ter sido responsável por cerca de 24% dos óbitos em excesso ocorridos no mês de janeiro. Bem como, e também para lá das celebrações do Natal, o início da presença entre nós de novas variantes do vírus, mais agressivas (e em particular, já nesse período, da
variante britânica).
9. Por que razão é importante assumir que a vaga de janeiro (que o súbito aumento e redução de casos aliás sugere, em Portugal como na Irlanda) resulta da combinação excecional das celebrações do Natal, frio extremo e novas variantes, e não de um suposto efeito do não confinamento no outono? Porque isso significa que temos estado sobretudo a «absorver» os efeitos do Natal e não a lidar com uma espécie de fio endémico da pandemia (que levou erradamente a tomar como decisivo o
fecho das escolas para a recente descida do número de casos). Ou seja, que em vez de um elevado risco latente, teremos sobretudo que gerir, nos próximos tempos, as novas variantes do vírus.
10. É essencial, de facto, evitar que se instale entre nós uma cultura perigosa e facilitista de confinamento cego e prolongado, que tende a desvalorizar os impactos sociais e económicos que essa opção comporta. E para tal exige-se uma avaliação cuidada do que explica a evolução da pandemia em cada momento, considerando a sua complexidade e incerteza, e evitando interpretações simplistas, tantas vezes produzidas no universo fechado de algumas correntes da epidemiologia e da
modelização matemática.