«A tese de que precisamos crescer antes de distribuir, essa sim, não faz qualquer sentido. Primeiro, porque, como vimos, as variações na desigualdade dependem muito mais de variações na distribuição dos rendimentos, as quais, por sua vez, dependem sobretudo mais de escolhas políticas, do que de variações no crescimento. (...) Segundo, porque a redução da desigualdade é ela própria um mecanismo potenciador do crescimento. Ao contrário da austeridade, que não promove o crescimento económico mas garante o aumento das desigualdades sociais, políticas de igualdade poderiam ser não só mais justas mas também mais eficazes na promoção daquele crescimento. (...) O problema deve pois ser enfrentado antes, no plano das regras económicas da distribuição, evitando o crescimento primário das desigualdades e a maior necessidade de redistribuição através do sistema fiscal. Por exemplo, reforçando o papel da negociação coletiva ou eliminando as formas mais abusivas e generalizadas de precarização do emprego. (...) Não há razões sociais, económicas ou morais que justifiquem o crescimento exponencial dos rendimentos individuais sem um correspondente aumento da progressividade dos impostos sobre esses rendimentos, ou de medidas que desincentivem tal crescimento para além de limites aceitáveis.»
Excerto do artigo de Rui Pena Pires («O impacto das políticas na desigualdade») no Público de terça-feira passada, que merece ser lido na íntegra. De facto, e ao contrário do que muitas vezes se quer fazer crer, é sobretudo ao nível da distribuição dos rendimentos privados (salários e rendimentos de capital, etc.) que se desenha o essencial das desigualdades, sendo o impacto dessa distribuição mais relevante que o das contribuições e transferências sociais e da própria fiscalidade (impostos diretos). Esta é, de resto, uma das principais conclusões do recente estudo «Desigualdade de Rendimento e Pobreza em Portugal», de Carlos Farinha Rodrigues, Rita Felgueiras e Vítor Junqueira (no âmbito de uma parceria entre a FFMS, o Expresso e a SIC).
Esqueça-se pois, de uma vez por todas, a «economia do pingo», como sugeria Pedro Lains já em agosto de 2014. Isto é, a ideia de que «os grandes devem ter tudo pois, ao terem tudo, deixam pingar recursos para baixo, para o resto da economia». Uma formulação, acrescentava Lains, «com tudo de falso» e que esteve «nas mentes da troika e do governo por ela assessorado» e que teve (e tem ainda) «muitos apoiantes entre jornalistas, "economistas" (...) e fazedores de opinião». Aliás, como bem sabemos, não é, Dr. César das Neves?
«Para que o sistema fiscal promova mais igualdade, é fundamental que o esforço de consolidação orçamental seja repartido por todos os contribuintes. E incida sobre todo o tipo de rendimentos, abrangendo com especial ênfase os rendimentos do capital e as casas com valor igual ou superior a um milhão de euros. Não podem ser sempre os mesmos, os trabalhadores por conta de outrém e os pensionistas, a suportar os encargos fiscais»
Paulo Núncio em Outubro de 2012 (quatro anos antes do «Imposto Mortágua»)
Declarações recuperadas pela Geringonça, serviço público de televisão, que comprovam a sintonia e o empenho da maioria revolucionária de direita no processo de «sovietização», combatendo sem cessar as forças da reação.
Dando continuidade às «Universidades de Verão», organizadas pela Manifesto ao longo dos anos, o Fórum de Outono pretende constituir-se como um espaço de formação, consciencialização, debate e mobilização. A edição de 2016 centra-se nos desafios que se colocam às esquerdas num período marcado por grandes incertezas. Participam no fórum diversos convidados nacionais e internacionais, que enquadram a reflexão e os debates sobre a Europa e da democracia, as transformações político-partidárias em curso no continente europeu, o balanço da Geringonça, o refluxo das esquerdas na América Latina, os problemas do sistema financeiro e as lógicas mercantis na provisão de serviços públicos em Portugal. É já nos próximos dias 7 e 8 de Outubro, na Pousada da Juventude do Parque das Nações, em Lisboa. A entrada é livre e as inscrições podem ser feitas aqui.
No contexto de profundo desequilíbrio a que chegaram as relações laborais nas empresas em desfavor dos trabalhadores, a solução mais moderada e estabilizadora é precisamente a reposição do princípio do tratamento mais favorável, limitando qualquer possibilidade de a negociação colectiva afastar regras legais de protecção mínima. O papel da negociação colectiva não é esse: é o de, tomando como ponto de partida o quadro legal, introduzir por via da regulação conjunta patamares mais elevados de progresso social. Foi esta a influência da negociação colectiva na construção do modelo social europeu. Ao mesmo tempo que é imperioso e prioritário reverter as medidas com incidência na negociação colectiva tomadas no período de intervenção da troika para impedir que o desequilíbrio e a desregulação do “estado de excepção” se transformem na “nova norma”, a reposição do principio do tratamento mais favorável contribuiria para reconstruir na base de fundações sólidas as condições de uma negociação colectiva mais equilibrada.
A negociação colectiva é um dos esteios centrais da economia política do Estado social. Quanto mais centralizada for, melhor funciona como freio e contrapeso ao poder patronal, articulando-se com outras instituições complementares: por exemplo, serviços públicos e prestações sociais universais, financiados por impostos progressivos, e política económica orientada para o pleno emprego. Ainda não se inventou nada melhor para distribuir de cima para baixo no capitalismo.
Tudo começa pela força do trabalho que se organiza para recusar a redução ao estatuto de mercadoria descartável, tendência forte do capitalismo sem freios. Por isso, a negociação colectiva sempre foi um dos alvos dos que querem reduzir o salário directo e indirecto, dos que querem distribuir de baixo para cima, pulverizando as solidariedades colectivas que reduzem as desigualdades entre trabalho e capital e dentro do mundo do trabalho. A mudança da natureza da política económica num sentido pós-democrático, indissociável da UEM, é uma grande arma para alcançar tal objectivo regressivo no continente. De resto, não é por acaso que a negociação colectiva foi um dos alvos da troika e não é por acaso que continua a ser um dos alvos da integração europeia realmente existente e das forças sociais que politicamente ganham com as suas pressões selectivas.
«Os partidos fazem as notícias, quase as lêem e comentam-nas. Um pequeno partido de menos de 10% comanda canais e serviços de notícias. A concepção do pluralismo é de uma total indigência: se uma notícia for comentada por cinco ou seis representantes dos partidos, há pluralismo! O mesmo pode repetir-se três ou quatro vezes no mesmo serviço de notícias! É o pluralismo dos papagaios no seu melhor! Uma consolação: nisto, governos e partidos parecem-se uns com os outros. Como os canais de televisão.»
É impossível, no essencial, não estar de acordo com a parte inicial do retrato que António Barreto faz dos espaços noticiosos nas televisões, nomeadamente quando refere a «banalidade que reina» e o «lugar-comum que impera», os diretos por tudo e por nada, as «cenas pungentes» e a ausência de «decoro e pudor» ou a «linguagem automática» e a «preguiça que é virtude». Tudo isto é certo e constitui um problema sério e complexo, não sendo neste plano, de facto, que o artigo de opinião no DN suscita reservas e perplexidade.
O que custa perceber e aceitar como válido não é só a ideia, defendida por Barreto, de que são os governos, os ministros e os partidos a preencher os espaços de informação e debate (até porque é justamente a esse nível que tem sido garantido - apesar de tudo - o contraditório e o pluralismo de opinião). O que custa perceber e aceitar - e essa é a maior perplexidade - é que o sociólogo não dedique uma única palavra ao monolitismo de opinião que há muito reina no espaço informativo das televisões, e através do qual analistas e comentadores (normalmente apresentados com a aura de especialistas, política e partidariamente neutros) continuam a debitar o mantra da austeridade e dos sacrifícios, nos seus diversos matizes. Isto é, como se a tese do «não há alternativa» permanecesse intacta e não fosse hoje, no mínimo, vivamente interpelada pela própria realidade. Aqui sim, estamos perante o pluralismo dos papagaios de que fala o sociólogo, com comentadores que se parecem uns aos outros, falando a uma só voz e sem contraditório.
Mesmo que António Barreto seja, desde a primeira hora, um fervoroso adepto da austeridade, o lastro de destruição, desigualdade e sofrimento inútil que a sua imposição deixou no país deveria bastar para o fazer parar e pensar. Mas não, quase fica a sensação de que fazer incidir as baterias no debate partidário é apenas a forma encontrada para desviar o olhar, parecendo ao mesmo tempo que se está a apontar para aquilo que justamente se pretende esconder ou ignorar.
Faz precisamente este mês sete anos de vigência do regime fiscal dos residentes não habituais.
Segundo dados oficiais remetidos ao Ladrões de Bicicletas, o regime conta com 4765 pessoas. Houve 7921 pedidos, foram deferidos 5653 e estão em análise 1754, supondo-se que 888 pessoas tenham abandonado o regime e que 514 tenham sido recusados. Mas o Ministério das Finanças não facultou o valor da “despesa fiscal”, ou seja, quanto é que o Estado está a dar de “benefício fiscal” a essas pessoas.
Ora, o regime foi criado em 2009 (decreto-lei 249/2009) como "um novo espírito de competitividade da economia portuguesa", um "factor de atracção da localização dos factores de produção, da iniciativa empresarial e da capacidade produtiva no espaço português". Pretendia-se incentivar a residência em Portugal profissões de “elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico”, de investidores e também de pensionistas.
O incentivo fiscal corresponde a uma taxa de IRS de 20%, independentemente do valor do rendimento, aplicável durante 10 anos e renováveis a partir daí, ou seja, eternamente. As profissões abrangidas foram fixadas pela portaria 12/2010. Era o caso dos arquitectos, engenheiros, artistas plásticos, actores e músicos, auditores, médicos e dentistas, professores, psicólogos, profissões liberais várias – como arqueólogos, consultores e programadores informáticos, jornalistas – mas também investidores, administradores e gestores.
Mas, após sete anos, o regime não parece que seja um sucesso. Sobretudo, quando este regime foi invocado pelos opositores a um agravamento da tributação sobre imóveis acima de elevado montante, como sendo contraditória com o espírito deste regime. O número de aderentes está bem longe de ser uma “deslocação maciça de novos residentes para Portugal”. Ou um paraíso para ricos que afluíram a esta parte graças à redução no IRS. Ou um forte “um forte íman de atracção a Portugal” de profissionais qualificados. O número de aderentes está longe do objectivo e longe ainda de ser a prova de que um agravamento da tributação do imobiliário pode constituir a razão para uma fuga de cérebros que degrade as condições competitivas do país.
É verdade que Carvalho Marques até concorda que «a tributação sobre os rendimentos do trabalho em Portugal passou há muito os limites do razoável», tratando contudo de propor, logo a seguir, uma eliminação definitiva da sobretaxa de IRS «em todos os escalões». Tal como é verdade que o autor reconhece que «um "trade off"» entre a tributação do rendimento e do património «poderá conduzir a um maior equilíbrio entre contribuintes», tratando contudo de alertar, logo a seguir, para os perigos de mexer nestas coisas.
Partindo dessa linha de prudência, Carvalho Marques considera que o fundamental é que o legislador - antes de proceder a quaisquer alterações na tributação sobre o património - compare «os impostos aplicados ao imobiliário nos países que connosco competem», como «a Espanha e Grécia, mas também a Croácia ou Chipre». Boa ideia, comparemos então:
Pois é. Como o Tiago Antunes já tinha demonstrado aqui, em termos de tributação do imobiliário Portugal não só se encontra abaixo da média dos países da UE considerados como é o «mais competitivo» no conjunto de países com que deve, segundo Carvalho Marques, comparar-se (e que, por acaso, até se situam acima da média). Ou seja, em matéria de fiscalidade comparativa, há bastante margem de manobra e não corremos por isso o risco de afugentar o investimento estrangeiro no setor imobiliário português.
Carvalho Marques não o refere, mas há ainda um outro aspeto que poderia dissuadir «o legislador» de aumentar a tributação sobre o património, nos moldes genéricos em que esse aumento tem sido discutido. De facto, a ideia de que a carga fiscal é determinante nas opções dos investidores é manifestamente redutora. Um país até pode ter um nível de tributação muito elevado, mas se os preços das casas forem competitivos, esse nível de tributação torna-se ainda mais irrelevante. Dito isto, como se posiciona Portugal no mercado em que se movem os seus concorrentes? Ora vejamos:
Mais uma vez, as preocupações carecem de fundamento. No conjunto de países considerados, de acordo com a Global Property Guide, Portugal é o segundo com valores mais baixos em termos de preço de casas por metro quadrado, assumindo os seus «concorrentes» diretos valores mais elevados. Pelo que não estranha que a imprensa internacional sinalize Portugal como um dos países mais apetecíveis para investir e comprar casa. E isto sem falar das singularidades e fatores imateriais comparativos (como o clima, a gastronomia, as praias ou a segurança), que tendem a não encaixar bem nos cálculos das folha de excel.
Estes dois elementos - nível de fiscalidade e preço das habitações - ajudam portanto a esvaziar o alvoroçoartificial a que temos assistido nos últimos dias. Um alvoroço que faz lembrar, pelo seu défice de realidade e bom senso, a histeria em torno dos contratos de associação. Não por acaso, aliás - e o João Rodrigues já o disse aqui - ouviram-se novamente referências a um novo PREC, a um radicalismo de esquerda desenfreado, a uma sovietização em curso e demais epítetos que se usam quando outros argumentos, minimamente sustentáveis, escasseiam.
«Ricos e desafogados usam a classe média como camuflagem para defenderem os seus próprios interesses, prejudicando a maioria da classe média, sem voz na comunicação social. A quase totalidade da classe média não é afetada quando se taxa património imobiliário de um, dois e três milhões de euros, como já fizera o governo anterior, apresentando a medida como "social-democrata". (...) A quase totalidade da classe média não é afetada quando se quer cobrar mais aos 1% mais ricos (e foi isso, e apenas isso, que Mariana Mortágua defendeu). Podem dizer que precisamos dos ricos e que por isso não os devemos incomodar com mais impostos e devemos manter um sistema fiscal injusto, baseado quase exclusivamente nos rendimentos do trabalho e no esforço de trabalhadores por conta de outrem com rendimentos próximos da média nacional. Só não pretendam que as dores de muito poucos sejam sentidas por todos.»
«Um jornalista radical, Serge Halimi, escreveu um dia que desde que os jornalistas começaram a viver com os salários das classes altas, nos bairros das classes altas, a ir aos restaurantes das classes altas, começaram instintivamente a defender os interesses das classes altas, dos banqueiros, dos grandes empresários, e a ignorar os trabalhadores comuns que sobreviviam com dificuldades. Num passado remoto, o jornalista era um operário como os outros. Depois dos anos 80, as coisas mudaram. (...) O facto de o país comentador ter vindo abaixo com o anúncio de um novo imposto para o património mais elevado, que vai substituir o imposto de selo criado pelo governo Passos/Portas, prova que quem tem acesso à televisão não conhece o país em que vive, onde o salário médio é de 800 euros e a acumulação de património com valor tributário de 500 mil euros é uma raridade.»
«Muitas das pessoas que apregoaram o fim da classe média, no caso das tais propostas fiscais irem por diante, situam-se na parte mais próxima do topo da pirâmide dos rendimentos, mas não conseguem olhar para o país de cima para baixo. Olham para o lado e deparam-se com uma classe (a sua) que agora consideram estar em risco de minguar. Chega quase a ser anedótico, mas tudo isto é sintomático de como a desigualdade se entranhou e se naturalizou na vida social e económica deste país. Cabe à política quebrar o ciclo e repor alguma justiça na distribuição de rendimentos entre as efetivas classes sociais. Talvez desta maneira o topo perceba que se encontra, de facto, no topo e que, em termos patrimoniais e de rendimento, a sua situação está a milhas da média.»
«Numa famosa entrevista na televisão no final do ano passado, o ex-diretor-geral da Autoridade Tributária José Azevedo Pereira revelou que as 900 famílias mais ricas de Portugal, com património superior a 25 milhões de euros ou rendimento médio anual acima de 5 milhões, representavam uma percentagem irrisória da receita de IRS, da ordem dos 0,5 por cento, quando seria de esperar, de acordo com a lei, que pagassem 50 vezes mais. (...) Esta sensação de que existem na sociedade portuguesa dois grupos de pessoas, umas que tudo podem mas que nada devem e outras que pouco podem mas que devem tudo, a sensação de viver numa sociedade não só injusta mas profundamente corrompida, a sensação de impotência perante este estado de coisas, desacredita a democracia, destrói a participação cívica e corrói a sociedade. (...) Os ricos que paguem a crise? Não. Os ricos que paguem o que devem. Apenas isso.»
«Faz ou não faz sentido, perante os valores da social-democracia, que aqueles que têm rendimentos mais elevados tenham que ter - em cima de todos os impostos que já pagam, nomeadamente no IRS - uma taxa de solidariedade adicional? Eu acho que faz sentido. Como faz sentido aqueles que tinham ativos imobiliários - acima de um milhão de euros - que têm uma tributação agravada por causa disso... É ou não é um bom princípio social-democrata dizer a todos os portugueses que pudemos isentar, ou que pudemos aliviar o esforço que poderia ser pedido àqueles que têm menos, pedindo um contributo adicional àqueles que têm mais? Eu orgulho-me disso.»
Pedro Passos Coelho em 2013 (três anos antes do «Imposto Mortágua»)
Serviço público em formato vídeo prestado uma vez mais pela Geringonça, que em boa hora recuperou esta declaração de Pedro Passos Coelho, perfeitamente alinhada com a «tentativa em curso de sovietização do país», segundo o deputado do PSD Duarte Marques. O que nos vale a todos é que a «resistência» está no ativo e vigilante: dificilmente veremos um canal de televisão reproduzir estas imagens e estas declarações do ex-primeiro ministro, apesar das horas a fio dedicadas ao rasgar de vestes por causa do «novo imposto» (e mesmo quando ainda nem estão devidamente estabelecidos os contornos e o alcance da medida).
Tenho lido muito o seguinte: “do que se sabe do novo imposto”. A solução governativa opera num terreno minado por uma comunicação social condicionada e pretende aumentar a justiça fiscal, atingindo alguns dos interesses mais poderosos na sociedade portuguesa. Por isso, o sucesso político exige disciplina e nervos de aço. Quando se lança a discussão de uma alteração fiscal com óbvio conteúdo de classe convém que a posição esteja já definida e acordada a três. Caso contrário, é tudo ainda mais difícil.
Dito isto, um novo imposto sobre o património, imobiliário e eventualmente mobiliário, por exemplo para valores acima de 500 mil euros, pode ser mais um meio de combinar eficiência e justiça fiscal, onerando uma pequena minoria, aproximando-nos de um mais do que necessário imposto sobre as fortunas. E isto num país onde o valor médio dos imóveis é de cerca de 64 mil euros, como se assinala no útil Economia e Finanças.
Obviamente, não estamos perante medidas anti-capitalistas, mas sim perante moderada política social-democrata, atenta às desigualdades patrimoniais mais gritantes, em modo Thomas Piketty. Vão dizer isso à malta da grande advocacia fiscal, que cada vez mais escreve no Público: “Portugal não pode deixar-se condicionar por modelos sociais e de crescimento assentes nos velhos modelos soviéticos dos sofkhozes e kolkhozes, inspirados no medo, na inveja, e na delação ao partido de quem se atreva a destacar-se.”
Não gosto de subestimar o adversário, mas tal como já aconteceu na questão da limitação dos contratos de associação, onde a União Soviética de Estaline veio à baila, eu tomo esta retórica como um sinal de desorientação. E tal como na limitação dos abusos nos contratos de associação, há um brutal desfasamento entre a bolha, onde também grande parte dos editorialistas vive, e a vida da esmagadora maioria dos cidadãos. É que estes até conhecem a posição social, dos rendimentos ao património, que ocupam num país tão desigual como o nosso.
Parece que o livro de Stiglitz mexeu com o conformismo dos media. Foi preciso esperar mais de três anos, desde o Prós e
Contras de 15 Abril de 2013, para que novamente se tenha discutido o euro num programa de televisão. Esperemos que tenha chegado ao fim o tabu.
O Público também nos deu a conhecer a opinião de José Soares da Fonseca (JSF), professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, sobre o mesmo livro (A saída do euro: e se o divórcio amigável não for opção?). Dado que o artigo sistematiza vários argumentos para, discordando de Stiglitz, sustentar que Portugal não tem condições para sair do euro, contraponho aqui o meu ponto de vista sobre um dos mencionados custos da saída. Para não me alongar, guardo para mais tarde a discussão de outros argumentos do artigo.
Quando JSF aborda as limitações de uma política monetária soberana, diz o seguinte:
uma pequena economia aberta ao exterior tem muito pouca autonomia para levar a cabo uma política monetária independente. Isto porque, neste tipo de economia, o crescimento significativo da massa monetária leva facilmente ao aumento de importações de bens e serviços e à saída de capitais, das quais resultam subidas das taxas de juro que afectam negativamente o investimento. O desemprego gerado pela redução do investimento e de outra despesa privada interna, poderia então anular ou suplantar o emprego entretanto criado pelo aumento da despesa pública.
Esta afirmação assenta num pressuposto: o país manteria a livre circulação de capitais. Ora os recentes casos da Islândia, Grécia e Chipre recordam-nos que, num contexto de grave crise financeira, é imperativo instituir um controlo dos movimentos de capitais. O que significa que, mesmo num cenário de “divórcio amigável”, o banco central do país terá de adoptar um sistema de controlo que trave a fuga do capital especulativo. Ou seja, adoptaria um novo instrumento de política que até o FMI já se viu obrigado a legitimar em certas circunstâncias.
Por conseguinte, a saída do euro não exigiria aumentos da taxa de juro para travar a fuga de capitais e, assim
sendo, não afectaria negativamente o investimento e o emprego. Bem pelo contrário, fora do euro e controlando os movimentos de capital especulativo, e apenas estes, a política monetária pode fixar o nível da taxa de juro mais adequado às condições de uma economia estagnada e longe do pleno emprego. Dessa forma, é possível usar a política monetária para apoiar uma política orçamental expansionista.
Sabemos que há diferentes formas de exercer o controlo dos movimentos de capitais e que a sua eficácia não está garantida à partida. Há países que foram muito bem sucedidos, outros nem por isso. Daí que, tendo-se alcançado a desejável estabilidade financeira, convenha introduzir alguma flexibilização nos controles e passar a um regime de taxas de câmbio flexíveis. A transição terá de ser cautelosa e, acima de tudo, integrada numa estratégia de desenvolvimento do país que minimize as pressões do capital financeiro (ver aqui e aqui).
Deste modo, dispondo de uma taxa de câmbio ajustável à dinâmica comercial do país, no contexto de uma política cambial articulada com outras políticas, Portugal teria condições para evitar a recaída no gravíssimo endividamento externo em que a entrada na moeda única o lançou. Em síntese, o aumento do desemprego, como um custo da saída do euro, é um argumento que não tem fundamento.
Note-se que a impossibilidade da desvalorização cambial foi a principal causa do endividamento externo dos países da periferia da zona euro. Sem a restrição das reservas cambiais, e sem a supervisão de um banco central digno desse nome, o sistema bancário europeu financiou (e lucrou com) os défices externos destes países até ao dia em que, como em qualquer bolha especulativa, o pânico se instalou e os Estados socializaram as perdas dos seus bancos (ver aqui).
Hoje, ouvimos todos os dias os comissários europeus (e os seus megafones em Portugal) falar de “reformas estruturais” e
“flexibilidade laboral” para obter ganhos de competitividade-preço que substituam a desvalorização cambial. Foi precisamente com esta política económica que os governos enfrentaram inicialmente a crise financeira de 1929 num regime de câmbios fixos e livre circulação do capital, como era o padrão-ouro. Os economistas têm a obrigação de saber que essa política acabou por converter uma grande crise financeira numa Grande Depressão. Por isso, quanto mais depressa a zona euro for desmantelada, mais depressa a Europa sairá da gravíssima crise em que mergulhou.
Os capitalistas, individualmente inquiridos, declaram ao INE que a principal razão para a falta de investimento é a falta de vendas, a tal procura duradouramente estagnada, como os jornalistas económicos competentes assinalam. É preciso sempre lembrar que o investimento, em percentagem do PIB, caiu para metade desde que temos o Euro, tornando Portugal num indicador avançado do espectro da estagnação secular.
No entanto, quando passamos do individual para o associativo, passamos da procura para a política de classe: algumas associações patronais acham que a culpa é da solução governativa, do medo que comunistas e bloquistas metem aos frágeis capitalistas, gente dada a crises de nervos quando decide investir. Com a degradação de uma frente externa que não controlamos, gostaria de saber o que estaria a acontecer à parca procura interna sem a devolução de rendimentos ou sem o aumento do salário mínimo. E se não há investimento público, a responsabilidade é do garrote europeu.
Entretanto, um dos dramas de uma economia estagnada é que o jogo tende a ser de soma nula, o que uns ganham os outros perdem, sabendo nós quem tende a ganhar e a perder e quem quer reverter um pouco este padrão, até porque isso pode começar a mudar a natureza do jogo.
Historicamente, no capitalismo com assomos democráticos, a esquerda social-democrata dependeu da mobilização de instrumentos de política económica na escala onde está a democracia para resolver problemas de acção colectiva a certos sectores da burguesia, garantido, em modo de jogo de soma positiva, de redistribuição eficiente, a sua aquiescência pragmática com reformas estruturais favoráveis ao empoderamento dos de baixo.
Praticamente sem instrumentos de política, numa semicolónia, é tudo infinitamente mais difícil. Nunca se desiste, até porque isto ainda pode vir a ser um país. Aliás, tentar garantir tal feito pode ser o cimento político de que precisamos num tempo de identidades pulverizadas. Por isso, é preciso continuar a insistir na importância socioeconómica de investimentos culturais e políticos na questão da nacionalidade.
Em Portugal, esta respeitável senhora é uma das vozes do neoliberalismo com mais tempo de antena.
O Conselho Superior de Finanças Públicas foi criado e mantido pelo sistema político que nos tem governado para cobrir com um véu de neutralidade (pseudo) técnica as políticas impostas pela UE. O voto do povo pode eleger outro tipo de políticas, mas o Conselho só
aprovará as políticas de austeridade que, nos anos 30 do século passado, levaram o mundo à Grande Depressão e deram o poder aos Fascismos e ao Nazismo.
Esta economista e seus colaboradores justificam o que dizem com recurso à teoria da "austeridade expansionista", como se não soubessem que ela já está no caixote do lixo dos economistas intelectualmente honestos. Mas é para isto que lhes pagam, para exercer pressão política sobre o governo do dia.
Para quem quiser saber mais sobre "austeridade expansionista" ver aqui.
«Durante os últimos 4 anos, os que mais podiam eram pensionistas com pensões acima dos 1100 euros, funcionários públicos que ganhassem mais de 1100 euros, trabalhadores do público e do privado que viram o seu IRS disparar, desempregados e os mais pobres dos pobres que recebem o CSI, RSI ou complementos de dependência. Os mesmos senhores que diziam estas barbaridades querem convencer o país que, agora, quem tem património imobiliário superior a 500 mil euros é da classe média.»
Lembra ainda o Rui Cerdeira Branco que «cada imóvel urbano em Portugal vale, em média, 64 mil euros», muito abaixo, portanto, dos 500 mil euros referidos por José Gomes Ferreira para sugerir estar em curso um ataque à classe média. E por falar em «classe média», recorde-se aqui a aproximação ao conceito por Diogo Leite Campos, um destacado elemento do PSD. No fundo, é tudo uma questão de justiça fiscal... E de luta de classes, já agora.
Este é um livro de história da economia política portuguesa nos vários sentidos que a economia política pode ter: história das ideias e dos interesses e história dos seus encontros e desencontros nas instituições de que são feitas as economias. Que “economia nova” é esta e quem é que a queria? Corporativismo e Salazar é uma resposta provisória. Este livro também é sobre a economia política do corporativismo no fascismo português.
Contra uma certa banalização ahistórica e com óbvios intuitos políticos do conceito de corporativismo, Álvaro Garrido indica ao que vem: “Pensar historicamente o corporativismo implica evocá-lo na sua própria historicidade, enquanto ideia em movimento no contexto de superação autoritária da crise do sistema liberal que atravessou o período entre as duas guerras mundiais, um tempo de múltiplas crises.”
Ao longo do livro, Garrido sublinha pelo menos dois pontos, ambos de resto assinalados por Fernando Rosas na justa introdução a esta obra. O primeiro ponto consiste na distinção entre corporativismo, enquanto “utopia”, uma espécie de terceira via ideológica, e “enquanto regime historicamente realizado”, ou seja, enquanto “expediente” estadual violento para acentuar a subordinação do trabalho ao capital numa época de crise, para usar os termos de Rosas. O segundo ponto é o da ligação intima entre a construção dos Estados fascistas, incluindo o Estado Novo, e a construção dessa pretensa economia nova, um capitalismo com regulação autoritária, lançando luz sobre uma fase da economia política nacional que em parte também foi europeia, aspeto que sempre me pareceu menos sublinhado por cá.
E tal como hoje se fala de variedades de capitalismo, também se pode falar de variedades de corporativismo fascista, e até, sombriamente, das novas e variadas vias autoritárias para perpetuar o capitalismo no seu “outono”, quando a “primavera dos povos” é esmagada na periferia europeia e mais a sul, digo eu, mobilizando os sugestivos termos de outra leitura recente.
Em suma, e na linha de anteriores trabalhos, esta versão desenvolvida das suas provas de agregação indica-nos, voltando ao início, que tal como a economia política tem de estar atenta à história, também a história tem de estar atenta à economia política: “ideias em movimento”, boas e más, no fundo.
«Chumbo do OE, sanções, corte de fundos e agora... o segundo resgate. É uma pergunta repetida mas, mesmo assim, como é que "eles" conseguem? Como é que conseguem pôr toda a gente a falar do que lhes interessa. Fazem reuniões? Trocam emails? É por osmose? Há clubes secretos? É no café? Um fenómeno. Só não sei se antropológico, sociológico ou de outro tipo. Merece estudo.»
«O que mais custa à oposição é que o atual executivo e maioria parlamentar estejam a mostrar ao país que era possível governar com sucesso, sem esmagar os salários e as pensões e sem comprimir o emprego e os direitos sociais. (...) Enquanto a direita tem como projeto o desmantelamento progressivo do Estado Social, nós defendemo-lo como instrumento essencial para construir um país de cidadãos livres e iguais. É para assegurar a liberdade de todos que devemos defender e aprofundar o Estado Social. Sim, a liberdade. A liberdade de um trabalhador projetar a sua vida no futuro sem depender da arbitrariedade dos seus patrões. A liberdade para na doença um trabalhador não ficar privado de tratamento ou de rendimento. A liberdade para na velhice não depender da caridade ou da estabilidade dos mercados financeiros. A liberdade para no desemprego não cair na pobreza. A liberdade para, com a formação garantida pela escola pública, poder optar na construção da sua vida profissional. Liberdade. Conseguida sem rendas nem favores pagos a negócios privados. Sem Estado Social só alguns, poucos, conseguiriam ser verdadeiramente livres.»
Da declaração política de Pedro Nuno Santos na sessão da Comissão Permanente da Assembleia da República, no final da semana passada. A ver na íntegra.
Aqui fica o artigo que escrevi para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa: As preferências mudam.
Na sua crítica ao utilitarismo, essa filosofia espontânea da economia convencional, Amartya Sen, Prémio «em memória de Alfred Nobel» de Economia, chamou a atenção para o fenómeno das preferências adaptativas, ignorado por uma abordagem de avaliação social, centrada no somatório das preferências individuais: «As pessoas carenciadas tendem a acomodar-se às suas privações por causa da mera necessidade de sobrevivência e podem, como resultado, não ter a coragem de exigir qualquer mudança radical e ajustar mesmo os seus desejos e expectativas ao que, sem ambições, vêem como alcançável» [1].
As preferências adaptativas, indissociáveis das relações de poder, estão presentes nas áreas e escalas que constituem a economia política. Por exemplo, no campo da economia política internacional, a acomodação desta periferia às privações geradas pelas estruturas da integração europeia, o ajustamento das expectativas e dos desejos políticos há muito tempo em curso no nosso país, seriam uma expressão colectiva do fenómeno das preferências adaptativas.
A excelente ilustração de André Carrilho para o DN de hoje, quinze anos após o 11 de Setembro de 2001, o dia em que verdadeiramente começa o Século XXI.
Em breve vão tocar os sinos para nos pedir que defendamos a democracia. Pois ela estaria mais bem segura se populações inteiras não a vissem como um ornamento ao serviço dos privilegiados que as desprezam.
Serge Halimi, Desarranjos políticos, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Setembro.
Entretanto, deixo aqui o resumo de um número com muito para ler: 'Neste mês de Setembro propomos vários destaques na componente nacional do jornal: a miséria do jornalismo económico sobre a crise, de 2010 a 2016, é o tema de "O cão que corre atrás da própria cauda" (João Ramos de Almeida); o filme "Cartas da Guerra", de Ivo Ferreira, é analisado na perspectiva das memórias coloniais (Miguel Cardina) e no contexto do cinema português (Tiago Baptista); o ensino especializado da Música é tratado a partir dos problemas, laborais e outros, que nele persistem (Diana Luís Antunes e Rita Namorado); e a abstenção eleitoral é abordada a partir dos modos sociais da sua produção (Bruno Monteiro).
No internacional, chamamos a atenção para a urgência de transformar os dados pessoais numa questão política; para o facto de estarem a ser criados, em Washington, Moscovo e Pequim, os cenários de um conflito de grande dimensão; para as eleições presidenciais nos Estados Unidos, entre "um multimilionário de colarinho azul" e uma "santa virtuosa"; para a
história e as linhas de evolução do islão mais velho da Europa, nos Balcãs; para o (pouco) que resta do sandinismo na Nicarágua; para os conflitos regionais no Corno de África, de onde vêm parte importante dos refugiados em Portugal; para a street arte entre subversão e recuperação, a "encantar a realidade vulgar"... e para muito mais.'
Que medidas alternativas concretas teria Assunção Cristas em mente, quando referiu que «a classe média está a ser altamente penalizada com uma austeridade à esquerda», nos «mais 500 milhões de euros retirados aos bolsos dos portugueses através dos impostos indirectos, nomeadamente o gasóleo e a gasolina»? Deveria o governo, segundo Cristas, estar a preparar um programa de cortes nos rendimentos e nas pensões, a tentar agravar a TSU para os trabalhadores, a flexibilizar a legislação laboral e a estabelecer um novo quadro de «poupanças adicionais» na educação, saúde e prestações sociais, como fez o anterior executivo? Ou estará a presidente do CDS-PP, como sugere o Rui Tavares, a preparar-se «para fazer à classe média o mesmo que o CDS de Paulo Portas fez aos pensionistas»? Não o diz, não se sabe.
E como justifica Assunção Cristas, em termos orçamentais, a sua proposta de criação de um crédito fiscal reforçado, assente na redução da taxa efetiva de IRC de 21% para 5,5% em empresas que fizerem investimento produtivo? Uma proposta que até o insuspeito presidente da CIP, António Saraiva, qualificou de «excessiva» (pedindo «realismo» na apresentação de soluções para animar a economia portuguesa)? Qual seria a estratégia orçamental cumpridora do défice que o CDS-PP assumiria para 2017, se fosse governo? Não o dizem, não se sabe.
E o PSD de Passos Coelho? Voltará a colocar-se à margem da discussão do Orçamento do Estado e dispensar-se de apresentar propostas para o exercício de 2017, com o argumento de que «nem vale a pena estar a perder tempo» com esse debate (e aconselhando quem esteja com «a expectativa de embrulhar o PSD na responsabilização orçamental» a «tirar o cavalinho da chuva»)? Bastará ao maior partido da oposição anunciar a chegada do diabo em Setembro? Repete-se a questão: qual seria a estratégia orçamental do PSD para 2017, cumpridora do défice, se este partido fosse governo? Não o dizem, não se sabe.
Ou melhor, até se sabe. Sabe-se muito bem. Pacheco Pereira disse-o ontem, na Quadratura do Círculo: «a gente percebe o que é que eles querem fazer. É o mesmo que havia antes». Não podendo dizer que regressariam à receita do empobrecimento competitivo, os partidos da PàF limitam-se a permanecer sentados e silenciosos, à espera que alguma coisa acabe por acontecer. Aliás, Nuno Melo confessou-o há dias, com particular clareza: «se as contas públicas confluírem para um colapso, os eleitores saberão dar a resposta nas urnas». A fé no fracasso é a estratégia da direita.
No telejornal da RTP de ontem, José Rodrigues dos Santos - naquela sua forma empolada - trouxe a ideia de que o consumo privado estava a crescer a metade do ritmo esperado pelo Governo.
É dito que a televisão não é a melhor forma de analisar acontecimentos. As mensagens têm de passar em meia dúzia de frases. E assuntos complexos tornam-se difíceis de tratar. É verdade. Mas a questão essencial está nas poucas frases que se escolhe. E aí começa o problema, porque isso requer mais trabalho e... não há tempo para isso. Salvo se alguém o fizer pelos jornalistas. Geralmente, pega-se na síntese feita pelo INE, que sublinha os últimos meses, e pronto!
Afinal, a desconfiança dos consumidores portugueses - medida pelos saldos de respostas positivas e negativas - anda a par da desconfiança dos consumidores da zona euro. Tanto em Portugal como na zona euro, há mais quem esteja pessimista do que optimista.
Mas o que é isso tem a ver com o governo português e com as metas traçadas? Nada e tudo.
Claro que as metas oficiais poderão estar em causa se esta tendência não foi a traçada pelo governo quando elaborou o Orçamento de Estado. E nesse caso, o governo - e nós! - estará em maus lençóis. Até porque isso dará margem às instâncias comunitárias para pressionar o governo para que reverta a estratégia traçada. E sabe-se lá mais o quê...
Mas fica um pouco longe aquela ideia que passa, subliminarmente, de que o povo português está a virar costas ao governo de esquerda ou que o governo de esquerda não está a resolver os nós górdios deixados pelo governo de direita. Afinal, a fazer fé no gráfico, até se poderia extrapolar - se calhar, um pouco abusivamente - de que toda a ideia de Europa é que estará em causa, ou que se trata apenas de uma desfavorável conjuntura... europeia! E aí a margem europeia para pressionar se reduziria. Em princípio.
Não é todos os dias que aparece um economista com o estatuto de Joseph Stiglitz a afirmar com toda a clareza que Portugal deve sair do euro. A Antena 1 resolveu entrevistá-lo (ouvir aqui) e as televisões tiveram de ir atrás.
Porém, o comentador de economia da SIC Notícias, José Gomes Ferreira, não gostou mesmo nada do que disse Stiglitz e, assumindo que não percebe nada de economia, resolveu desancar no economista norte-americano (ver aqui). Desde logo, exactamente por ser norte-americano pois, insinuou, os economistas norte-americanos têm um inconfessado interesse geoestratégico no fracasso do euro. Ora vejam lá, uma moeda cujo peso nos pagamentos internacionais não foi além do que representavam as anteriores moedas seria uma ameaça ao dólar, o que motivaria as análises críticas destes economistas.
A ideia da conspiração dos EUA contra a UE é uma fábula muito frequente nos círculos europeístas. Porém, a fábula não resiste a um mínimo de investigação histórica. Jean Monet e os restantes pais fundadores da UE eram íntimos dos círculos do poder nos EUA e sempre contaram com o seu generoso apoio através da CIA. Sem o assentimento dos EUA, a UE nunca teria existido e Maastricht não foi um obstáculo à continuidade dessa parceria.
O facto é que, desde sempre, houve economistas dos dois lados do Atlântico que sabiam que o euro é uma aberração histórica (recordo Nicholas Kaldor, um precursor), que uma moeda europeia sem um Estado europeu seria, por natureza, uma construção política condenada ao fracasso. O valor de uma moeda é determinado pela garantia de que o Estado que essa moeda serve, dotado de um banco que cria a moeda necessária, paga sempre as suas dívidas. Isto não existe na UE-Zona Euro e essa é uma razão fundamental para a crise em que está mergulhada.
Ao tentar desvalorizar Stiglitz, JGF caiu no ridículo. Procurando amedrontar os portugueses, disse as maiores barbaridades sobre as implicações de uma saída de Portugal da zona euro. Chegou ao ponto de afirmar que o país iria regredir décadas. Afirmações destinadas a meter medo aos telespectadores que, como é sabido, não têm acesso a opiniões diferentes. Com este tipo de comentadores, a SIC Notícias e os restantes canais de televisão estão transformados em canais de propaganda do sistema vigente com o objectivo de anestesiar o povo.
Vejamos um dos disparates de JGF: "as dívidas ficam em euros". Precisamente o contrário. A esmagadora maioria das empresas e famílias portuguesas tem dívidas com contratos regidos pelo direito português. Todos esses contratos serão redenominados automaticamente com a saída do euro. Portanto, as dívidas das famílias e das empresas convertem-se na nova moeda. Os salários de uma família e a sua dívida ao banco, em termos relativos, ficam na mesma.
Segundo a jurisprudência internacional (lex monetae), também a dívida pública emitida sob legislação nacional, mesmo que esteja na posse de estrangeiros, é convertida na nova moeda. É a isto que se referem os operadores financeiros quando falam do 'risco de redenominação' (ver aqui).
Claro que isto traz problemas à banca no que toca às dívidas que tenha contraído no estrangeiro. Por isso mesmo alguns bancos poderão ter dificuldade em pagar as suas dívidas em euros a bancos estrangeiros, e terão de ser recapitalizados (e nacionalizados) com o apoio do banco central, do Banco de Portugal. Note-se que, num país com moeda própria, as dívidas do Estado ao respectivo banco central são dívidas do Estado ao próprio Estado.O Estado tem uma dívida à troika que, pela jurisdição em que foi contraída, permanece em euros. Por isso, terá de ser renegociada, mas agora em posição de força porque o Estado português já não precisará dos seus empréstimos para se financiar.
Quanto à perda do poder de compra dos salários, JGF talvez não saiba que a taxa de desvalorização da nova moeda não se traduz em inflação do mesmo nível. Talvez não saiba que o conteúdo em importações do cabaz de bens de consumo de uma família anda pelos 25%, o que significa que uma desvalorização de 50% no imediato (mas que não se repete) se traduziria numa subida de preços de 50%x25%= 12,5%. É uma subida de preços pontual que tende a esbater-se nos anos seguintes. Não é inflação, no sentido de subida permanente dos preços a essa taxa. Claro que a inflação no país será maior fora do euro, mas isso vem acompanhado de um nível de desemprego muito mais baixo, como acontece em todos os países em desenvolvimento. Só num país em grave estagnação, caso da Zona Euro, é que os preços não sobem mais do que 1% ao ano e não há teoria económica que justifique um nível de inflação perto dos 2%, o mandato do BCE. A Rússia e a Islândia fizeram desvalorizações maiores e não consta que tenham regredido décadas, bem pelo contrário. A Islândia até alcançou o pleno emprego.
Ou seja, para defender a manutenção de Portugal nesta crise sem fim, JGF vê-se forçado a exagerar os custos da saída do euro pintando um cenário de calamidade. Mas não devemos estranhar porque, à medida que o fracasso do euro se vai tornando evidente para o comum dos cidadãos, maior será a histeria dos avençados do sistema. Nos próximos tempos até poderemos ver um ou outro 'virar a casaca' com o maior descaramento.
Seremos nós capazes de criar formas de comunicação alternativa para que o povo tenha acesso ao contraditório que os media lhe negam?
Pedro Passos Coelho anunciava as alterações à TSU como "contributo equitativo" (9'50''): aumentava a dos trabalhadores de 11 para 18% e reduzia a das empresas de 23,75 para 18% (10'34''). Era uma medida para combater o desemprego (!). Sim, porque nessa altura - aliás, tal como hoje, embora envergonhadamente - Passos Coelho achava que a subida do desemprego não se estava a dever à "austeridade dita excessiva"... mas apenas à falta de financiamento à economia (5'50'') e à "reestruturação da economia que está a ter lugar". Na sua opinião, tudo estava a mudar para melhor. Se havia desemprego e se subia tão rapidamente, isso devia-se ao facto de, no passado, a economia ter assente em sectores que "cresceram em condições e expectativas desajustadas da realidade do país e que sofrem agora uma retracção súbita" (6'22''). Ou seja, o desemprego era um sinal positivo da mudança.
É bom, de ora em quando, reviver o passado. E agora ouvir Passos Coelho, exigir a António Costa emprego sustentado...
Entre amanhã e sexta-feira realiza-se no ISEG a sétima conferência anual da International Initiative for Promoting Political Economy, uma associação internacional de economistas políticos de orientação predominantemente marxista. Centenas de investigadores de todo o mundo discutirão a economia política, prestando atenção às “tendências internacionais e às diferenças nacionais”. Muitos dos painéis serão sobre financeirização, sobre a sua expressão político-ideológica, o neoliberalismo, e sobre declinações nacionais, incluindo a portuguesa, destes dois processos. Note-se que o estudo da financeirização, do neoliberalismo, do desenvolvimento desigual ou da estagnação secular, para dar alguns exemplos, foi durante muito tempo apanágio da economia política crítica e agora é ver alguns economistas e outros cientistas sociais convencionais, os que ainda se preocupam com o que se passa realmente nos processos de provisão, a usar tais análises. Sinais.
Entre 11 e 14 de Setembro realiza-se no CES-Lisboa uma Escola de Verão sobre a evolução recente do capitalismo em Portugal: “[P]ropõe, através da abordagem de economia política, analisar a evolução recente do capitalismo em Portugal, focando em especial o crescente peso da finança na economia e sociedade. Desafia abertamente a sabedoria económica convencional, que durante muito tempo ofuscou os efeitos perniciosos deste processo, descrevendo-o em termos apologéticos, como se de uma mera «modernização financeira» se tratasse no quadro de um ideal de economia de mercado dita livre e eficiente.” Falar de capitalismo, das suas fases históricas e das peculiaridades geográficas, é todo um programa de economia política, claro.
António Vitorino aproveitou a sua ida à universidade de verão do CDS para atacar as esquerdas radicais, a "esquerda internacionalista". E mal o disse, exaltou-se, avivou-se-lhe a voz, parecia que tudo vinha do fundo de si. E arrancou uma entusiasmada salva de palmas aos jovens de direita.
Conseguiu-o criticando essas "esquerdas" que estão contra a globalização e apenas querem o proteccionismo, quando apenas a globalização - que é imparável - retira as populações da pobreza. E que a esquerda, em vez de zangada com isso, deveria ficar contente. Ora, Vitorino sabe muito bem que o argumento nem é esse. Trata-se apenas de: 1) um problema de desenvolvimento económico e de depradação, porque dificilmente um país cria a sua base económica sem protecção; 2) um problema de repartição dos ganhos da globalização. No fundo, essas "esquerdas" querem impedir que o planeta se torne numa imensa zona comercial em que é possível pagar custos de produção ao preço das zonas mais pobres, para depois cobrar pelas mercadorias preços ao nível das zonas mais ricas (que entretanto perderam essas actividades e empregos), sendo os lucros assim conseguidos remetidos - via preços de transferência - para uma conta bancária em zona fiscalmente "privilegiada". Nem de propósito, o José Vitor Malheiros fala hoje sobre isso com o exemplo do Pingo Doce.
Estas ideias fazem-me lembrar o que ando a ler nos transportes. Uma cronologia que o meu pai fez nos anos 80: "Portugal e a escravatura em África". Trata-se de uma compilação de informações, retiradas de uma ainda mais vasta colecção de informações compiladas como "Cronologia do Colonialismo Português em África", extraídas de uma vasta bibliografia de quase cem páginas.
Vou transcrever apenas três para se ver como a globalização sempre foi "vendida" como algo de bom para todos os povos, quando o que está por detrás é uma simples aritmética de lucros à custa de uns sacrificados. E que pelo caminho fica apenas a devastação de um inteiro continente.
Aproveitando o lançamento do seu último livro – The Euro: How a Common Currency Threatens the Future of Europe (O euro: como a moeda única ameaça o futuro da Europa) –, que ainda não tive a oportunidade de ler, o jornalista Frederico Pinheiro da Antena 1 entrevistou o economista Joseph Stiglitz, um Prémio “em memória de Alfred Nobel” que usa instrumentos convencionais para chegar a conclusões que ainda não são convencionais:
“Então Portugal deve ter um plano para sair do euro? Sim, acho que a Europa como um todo devia começar a pensar num divórcio amigável com alguns países, pensar em formas para lidarem com a saída. Não será um processo imune a dificuldades, mas temos de reconhecer que o atual sistema é extraordinariamente prejudicial. Portugal sabe isso, claro, foi uma década perdida e no caso da Grécia estamos a falar de um quarto de século perdido, no mínimo. Os custos foram enormes. Emigração. Tenho amigos em Portugal que viram os filhos irem para a Austrália, Canadá, EUA e estão infelizes porque não veem os filhos. O que isto faz às famílias, à economia... Significa que o crescimento futuro de Portugal está em risco, não estamos apenas a falar de hoje, mas também de amanhã e no longo prazo. Por isso, as escolhas não são agradáveis, mas se reconhecermos o custo de continuar neste pântano, o risco de uma saída de Portugal do euro pode ser mais baixo do que ficar.”
A economia portuguesa é sempre afectada pela evolução da economia internacional. Assim, a persistência de factores como a fragilidade do sistema financeiro internacional, os elevados níveis de endividamento privado e público, e o fraco crescimento da procura mundial – que têm originado revisões sucessivas de previsões das instituições internacionais para o crescimento económico global em 2016 – não poderiam deixar de influenciar negativamente o que por cá se passa.
No entanto, há alguns factores que afectam de modo particularmente relevante a economia portuguesa. Eis cinco factores que me parecem fundamentais ter em conta:
1. Petróleo
A redução das exportações do petróleo ao longo do primeiro semestre deste ano são responsáveis por quase o dobro da queda das exportações de bens em valor. Há três factores principais que explicam esta quebra: i) a redução da procura e do preço internacional do petróleo (de uma média de 58 dólares para 40 dólares por barril), devida à redução da actividade económica e do comércio internacional (principalmente nos países asiáticos) e ii) a paralisação temporária da refinaria da GALP em Sines.
As questões relacionadas com o petróleo têm um impacto negativo relevante no total das exportações nacionais, mas também nas importações (não só pela redução do preço, mas também porque parte do petróleo bruto importado é exportado depois de refinado). No entanto, o seu impacto no emprego, no investimento e nas contas públicas é reduzido, uma vez que o número de postos de trabalho envolvidos é diminuto e porque o impacto directo das exportações na receita fiscal é marginal.
2. Angola
O segundo factor decisivo para a redução das exportações foi a crise da economia angolana: a queda das exportações para Angola (sem incluir o petróleo refinado) foi superior à diminuição total do valor das exportações (ver o mesmo gráfico). Sem Angola e sem petróleo o valor das exportações teria crescido 3,3% (a preços correntes), em vez de ter caído 1,8%. As exportações para a UE cresceram uns expressivos 6,7% no período.
A crise da economia angolana tem um impacto significativo nas exportações, mas um impacto modesto no investimento e no emprego (as exportações para Angola representam apenas cerca de 1% do PIB português). O impacto nas contas públicas é marginal (pelas razões referidas no ponto 1).
3. Investimento público
A queda do investimento é essencialmente explicada pelo recuo na construção (cuja queda em termos reais mais do que explica o recuo do investimento total no 1º trimestre e é responsável por 2/3 da queda no 2º trimestre). Para a queda da construção foi fundamental a redução do investimento público. A Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) pelo Estado caiu 25% no 1º trimestre (os dados para o 2º trimestre ainda não estão disponíveis), explicando quase o dobro da queda da FBCF. No mesmo período o investimento empresarial cresceu 2,5% em valor (os dados em volume não estão disponíveis).
A queda do investimento público contribui para conter as despesas públicas, mas penaliza a retoma do investimento global e do emprego.
4. Compra de automóveis
No primeiro semestre de 2016 compraram-se em Portugal cerca de 100 mil automóveis ligeiros de passageiros, um aumento de 18% face ao mesmo semestre do ano anterior (esta taxa de crescimento é, por sinal, idêntica ao crescimento das importações de material de transporte). Ou seja, apesar do aumento do Imposto do Selo no crédito ao consumo e do Imposto sobre Veículos para carros mais poluentes, a compra de automóveis não só não diminuiu, como aumentou, reflectindo-se no crescimento das importações.
De facto, se não fosse a queda das importações de petróleo (nomeadamente devido à paragem da refinaria de Sines) o crescimento das importações teria sido bem superior aos valores registados – com reflexos negativos no PIB (note-se que as importações contam negativamente para o PIB) e nas contas externas do país. Pelo contrário, maiores vendas de automóveis implicam maiores receitas fiscais (ainda mais tendo em conta o
agravamento da fiscalidade associada).
5. Incerteza política e financeira
O quinto e último factor-chave para compreender a evolução recente da economia portuguesa diz respeito à tensão política (a incerteza na formação do governo no final de 2015, a negociação do OE2016 com a Comissão Europeia em Fevereiro, a ameaça de sanções em Junho) e à instabilidade financeira (casos BANIF, Novo Banco e CGD, nomeadamente) que afectou o país desde final de 2015.
É difícil aferir quantitativamente o impacto dos factores de incerteza política e financeira sobre a economia real. A situação frágil do sistema bancário português terá provavelmente afectado o financiamento à economia, e forçado um ajustamento mais acelerado das empresas mais expostas à dinâmica da banca (como accionistas, credores ou devedores), com impactos negativos no investimento e na criação de emprego (por exemplo, no sector da construção).
Por sua vez, a dramatização mediática da incerteza política, nomeadamente nos momentos mais tensos da relação com as instituições europeias, poderão ter tido um impacto relevante nas decisões de consumo, como sugere a evolução do indicador de confiança dos consumidores ao longo do último ano (ver gráfico). De facto, este indicador diminuiu, apesar da melhoria da situação financeira dos agregados familiares, sugerindo que o clima de dramatização mediática em momentos críticos tem um efeito real nas decisões dos consumidores.
Conclusão
O aumento das exportações para a UE, do emprego e do investimento empresarial sugere que há dinâmica de crescimento na economia nacional, apesar do contexto internacional adverso e das fontes políticas e financeiras de incerteza. Com a excepção do ponto 5, as evoluções acima descritas têm impactos reduzidos ou até positivos nas contas públicas, o que permite reduzir os receios relativos ao cumprimento das metas orçamentais. Por sua vez, o desanuviamento das relações com a UE e a perspectiva de resolução (ainda que progressiva e incompleta) da situação da banca poderá reduzir o nível de incerteza que tem marcado os últimos meses.
No entanto, os dados apresentados contêm dois alertas claros, que poderão ser decisivos para a evolução da economia portuguesa até ao final do ano:
i) a retoma do investimento público será decisiva para a dinamização do investimento e do emprego, num contexto em que o investimento empresarial continuará condicionado pelos diversos factores atrás referidos (nomeadamente, o endividamento das empresas e a fraca procura internacional);
ii) a estratégia do governo para conter o aumento das importações em resultado do aumento de rendimentos está a ter efeitos limitados; a continuação do crescimento das vendas de automóveis, já depois das novas regras fiscais entrarem em vigor, são disso sintoma claro; sem uma política mais aguerrida de contenção da procura de importações a tentativa de dinamizar a economia nacional por via do aumento dos rendimentos poderá ser posta em causa.
A estratégia originalmente anunciada não corresponde à que foi implementada: o estímulo à procura interna ficou parcialmente comprometido em Fevereiro, como resultado das negociações com a Comissão em torno do OE2016. Ainda assim, o consumo foi a única componente da procura final que cresceu mais em Portugal do que na UE no primeiro trimestre, o que sugere que o efeito existe (vamos ver o que se passou em termos comparados no segundo trimestre). Quem diz que a 'estratégia falhou' aponta também a fraca evolução das exportações líquidas e do investimento. Quanto às exportações líquidas, há três efeitos que têm de ser considerados na análise do primeiro semestre: 1) a queda das exportações para Angola (que ultrapassam o valor total da quebra das exportações; as exportações para a Europa aumentaram 4%); 2) a paragem da refinaria da Galp; e 3) a antecipação de compra de automóveis por questões fiscais. Os dois primeiros factores nada têm a ver com o “modelo” em causa. O terceiro deverá ser um efeito temporário, como sugerem os indicadores da ACAP sobre vendas mensais de automóveis. Quanto ao investimento, o pior que se pode dizer é que a 'estratégia' deveria ir muito mais longe, pois parece que o investimento público está a ser contido para cumprir metas orçamentais (o que pode ser ultrapassado se o Portugal 2020 arrancar em força, com taxas de co-financiamento europeu elevadas).
Para lá da consolidação da tendência de crescimento (pelo quarto mês consecutivo o número de visualizações foi superior a 100 mil), o Ladrões atingiu um novo recorde, superando pela primeira vez a centena de milhar de visitas em Agosto, um mês particularmente crítico para a blogosfera. Mais uma razão, portanto, para que não deixemos de pedalar.
A Grécia exige à Alemanha €279 mil milhões, incluindo €10.3 mil milhões relativos a empréstimos forçados, por reparações de Guerra pela ocupação nazi, de acordo com os cálculos do General Accounting Office, o equivalente ao Tribunal de Contas português. A notícia, que não é de agora, foi avançada pelo primeiro ministro em Abril de 2015 quando foi criado um comité especial para avaliar este assunto.
Como é sabido, o Acordo de Londres de 1953 adiou para o futuro, pós-unificacão das Alemanhas, a realização de uma conferência que encerrasse a questão das reparações de guerra, empréstimos e contribuições forçadas impostas aos territórios ocupados, embora tenha havido um pagamento inicial de DM115 milhões em 1960 destinado a compensações individuais, faltando por isso o custo da reposição das infraestruturas destruídas, os crimes de guerra e o empréstimo forçado.
Depois da unificação, em Setembro de 1990, foi assinado o Acordo 2+4 entre a Alemanha e os países aliados – EUA, Reino Unido, França e União Soviética - no qual estes países renunciavam a quaisquer reivindicações sobre as reparações de Guerra. Porém, a Grécia ficou de fora deste acordo, tendo sido inclusive o único país a formalizar queixas contra a Alemanha, acções individuais nos tribunais alemães, e uma acção colectiva no tribunal grego de primeira instância de Livadia, confirmado por decisão do Supremo Tribunal grego. Embora para a Alemanha aquele acordo de 1990 encerre o assunto, o mesmo não se passa com o povo Grego que foi profundamente humilhado e devastado durante a 2a Grande Guerra e com o governo Grego.
No passado dia 18 de Agosto este assunto voltou a ser debatido na RT Internacional num debate que reuniu Eike Hamer, comentador politico alemão e Marina Prentoulis, membro do Syriza (vídeo acima).
Agora que se avizinha a Cimeira de Líderes do Sul, que reúne, no próximo dia 9 de Setembro, Portugal, Espanha, França, Itália, Chipre e Malta em Atenas a convite do primeiro ministro grego para debater a forma como os países do Sul podem ganhar poder de influência numa Europa dominada pelos interesses dos países do centro, este debate é interessante na medida em que é revelador da atitude da Alemanha perante a zona Euro, o papel que se autoatribui, bem como o desafio que é colocado aos líderes do Sul na criação de uma Europa justa e solidária.
Assim, na perspectiva da Alemanha:
a) A atitude da Grécia é insana e completamente despropositada dado que houve um pagamento em 1960 e a Alemanha unilateralmente encerrou o assunto em 1990 com o Acordo 2+4. Mais ainda,
b) A atitude grega constituí uma ameaça à paz na Europa ao reabrir um dossier que tem mais de 70 anos, sendo vital que a paz na Europa não seja ameaçada em tempos tão conturbados;
c) A Alemanha é vítima de grande injustiça porque é ela o maior contribuidor líquido para a União Europeia, em geral, e para o resgate Grego em particular;
d) O problema é a Grécia, isto é, não é um problema de dinheiro mas de má política, maus governantes e uma elite corrupta que desvia o dinheiro pago pela Alemanha para o exterior, especificamente para a city em Londres (desta vez a preguiça do povo grego não foi mencionada).
Esta análise apresenta graves equívocos quanto à Grécia, nomeadamente:
1.relativamente às reparações de guerra,
a) que os crimes contra a humanidade nunca prescrevem;
b) que a Grécia nunca assinou nenhum acordo no qual abdicava das reparações de guerra, existindo uma nota verbal da embaixada alemã em Atenas, de 31 de Março de 1967, que se refere ao pagamento de DM115 milhões por compensações individuais adiantando que o “governo federal nunca assumiu que o governo Grego tinha intenções de formalmente abdicar dos seus direitos legais relativos à ocupação durante a 2a Grande Guerra”;
c) que o supremo tribunal grego reconheceu recentemente a obrigatoriedade da Alemanha pagar €28.6 milhões à pequena vila de Distomo que perdeu 218 concidadãos em virtude da ocupação nazi, no massacre de 10 Junho de 1944, permitindo o arresto de bens, o qual requer a autorização do governo;
2. relativamente ao destino dos pagamentos feitos pela Alemanha
a) que estes tiveram por contrapartida da emissão de dívida bilateral e dívida multilateral intermediada pelas autoridades europeias, a qual é remunerada com o pagamento de juro e deverá ser paga mediante um calendário de amortizações;
b) que esta nova dívida, apresentada como uma injeção de liquidez para resgatar a Grécia mais não foi que uma forma encapotada de resgatar os investidores financeiros privados alemães e franceses;
c) que a restruturação de dívida que se seguiu foi muito superior e mais penalizadora para os investidores gregos residuais por culpa da falta de reconhecimento da insolvência Grega e das medidas de austeridade impostas pelos credores oficiais;
d) que a nova dívida emitida não se destinou aos gregos e a recuperar o país. Na verdade, de acordo com o Comité para a Absolvição da Dívida do terceiro mundo (CADPM), dos €330 milhões recebidos ao longos dos 3 resgates, mais de metade destinou-se ao pagamento do serviço da dívida anterior, €173.5 milhões; mais de um quinto, €73.5 milhões foi para resgatar a banca; 10% para a restruturação de 2012 e apenas 7%, 24.6 milhões para cobrir o défice orçamental;
3. relativamente à eleição do Syriza, que representa uma quebra de estrutura, especialmente porque este partido e o seu governo não se identificam, e combatem, as elites corruptas gregas.
Esta análise ignora também a questão da superestrutura económica, especificamente as graves implicações intrínsecas à arquitetura institucional do Euro, o papel das autoridades europeias na proteção dos interesses do sector financeiro e dos países do centro no formato escolhido para a resolução da crise financeira de 2007-2010, desresponsabilizando a Alemanha pelas suas políticas neo-mercantilistas que em muito tem contribuído para os graves desequilíbrios macroeconómicos da zona Euro que culminaram na crise de dívida soberana.
Porém, ela representa, acima de tudo, uma total falta de solidariedade por parte da Alemanha que beneficiou de uma generosa restruturação em 1953 na qual, não só se reduziu o capital em dívida em mais de 50% (entre 50-65%, em rigor); os juros tiveram um período de carência de 5 anos, enquanto que o juro atrasado teve uma taxa simbólica de 1%; o serviço da dívida estava condicionado à evolução do comércio externo, não devendo ultrapassar 5% da balança de transações correntes; mas acima de tudo, deixando espaço para a monitorização do desempenho do país e para a revisão dos termos do acordo caso estes se revelassem excessivos para o justo desempenho económico.
Em suma, a Cimeira dos Líderes do Sul, de 9 de Setembro, é um acontecimento fundamental para o futuro da Europa. Espera-se que seja um primeiro passo para a resolução do problema da dívida no âmbito de uma conferência multilateral à escala Europeia.