quinta-feira, 30 de abril de 2020

Do Estado multibanco


No último texto, o Nuno Serra falou do Estado multibanco no contexto da posição dos capitalistas na TAP. Estes gostariam de socializar o risco, retendo o monopólio da gestão.

A CIP vem agora tentar propor a generalização desta lógica, com jornalistas entusiasmados, papagueando a nova linha patronal para estes tempos. A CIP quer que o Estado crie um fundo que ajude as empresas, entrando e saindo do capital em função das conveniências patronais:

 “o Estado garanta posições de entrada e saída e um custo gerível para as empresas, sem interferir na gestão, e que as empresas garantam que não pagam dividendos e haja bons critérios de escolha”.

Sem interferir na gestão é realmente todo um programa, todo um imenso topete, toda uma aspiração a um multibanco para acalmar os nervos patronais em contexto de incerteza. É a tal volátil aspiração à liquidez, que de resto refuta sempre a fantasia económica convencional acerca da neutralidade da moeda numa economia monetária de produção.

Afinal de contas, quando as coisas apertam só o soberano pode agir, enfrentando, como nos ensinou Keynes, as forças obscuras do tempo. O problema é que este Estado não é monetariamente soberano. Terá de voltar a sê-lo, claro, uma coisa de cada vez.

Entretanto, o Estado empreendedor tem mesmo de nacionalizar e de gerir um conjunto de sectores. Com a entrada no capital, vem alteração das relações de poder, que dependem sempre, mas sempre, das regras fixadas pelo Estado. Este poder deve ser redistribuído dentro das empresas parcial ou totalmente nacionalizadas.

Há muito conhecimento válido por mobilizar dentro de tantas empresas e muito conhecimento que pode ser trazido de fora. Se o capital é uma relação social, então o capital de todos tem de implicar novas relações sociais. Isto realmente não pode ser um Estado multibanco.

Privados e «Estado multibanco»

«Estes momentos são muito importantes para perceber quem é que nós representamos. Vou-lhe dizer uma coisa: eu cá não represento nenhum acionista privado. Eu, no meu trabalho, defendo é o povo português, o dinheiro do povo português. Defendo as empresas do povo português, defendo aquilo que é do povo português. É o que me interessa. É assim que eu quero estar na vida política.
O senhor deputado diz que não tem preconceitos com acionistas privados, mas pelos vistos tem preconceitos com a participação do Estado nas empresas. E eu diria que aquilo que temos que fazer é tentar partir para isto sem esses preconceitos que o senhor tem em relação ao Estado. (...) Aliás, percebi que acredita muito mais na boa gestão desta Comissão Executiva do que eu próprio - e percebe-se, pois foi um Governo do CDS e do PSD que lhes vendeu a empresa. Eu tenho uma apreciação diferente. (...) O senhor deputado diz que os problemas que a TAP tem não foram motivados pela má gestão, mas sim pela situação difícil que atinge todas as companhias do mundo. Eu faço uma apreciação negativa dos resultados que a empresa TAP vinha apresentando antes da Covid.
(...) Sabe qual é a dívida da TAP? 800 milhões de euros. E o que o senhor deputado está aqui a dizer é que uma empresa altamente endividada - com cerca de 800 milhões de dívida, com a atividade toda parada, sem perspetiva de recuperação - com um empréstimo de 350 milhões de euros, diz o senhor deputado, "garantido" pelo povo português, vai resolver o problema da empresa... Já perdeu algum tempo para avaliar e analisar a TAP? Sabe se os 350 milhões de euros de dívida, a somar aos 800, vão resolver o problema da TAP? Quem é que vamos atravessar? Vamos atravessar o povo português... É que tem também que dizer a verdade toda. "Ah não, o empréstimo é privado, o empréstimo é privado...". E se a empresa não puder pagar? O empréstimo é de quem? Não precisa responder, eu digo-lhe: é o povo português que paga. E se é o povo português que paga é bom que seja o povo português a mandar. Ou acha que não, que deve ser o povo português a pagar mas deve ser o acionista privado a fazer o que quer com o dinheiro do povo português? (...)
O senhor defende um empréstimo, está a defender a proposta do privado. Eu nem sequer disse nada sobre isso. Eu disse que nós estamos a avaliar a proposta do privado, entre outras alternativas, (....) não excluímos nenhuma. O senhor é que já excluiu uma, excluiu a nacionalização. (...) Eu vou fazer a minha leitura do que o CDS nos está a dizer: o Estado deve intervencionar a TAP de acordo com a necessidade, mas nunca deve ter mais que 50%. Ou, se for possível, até se deve desfazer dos 50%»

Excertos da resposta de Pedro Nuno Santos ao deputado do CDS-PP, João Gonçalves Pereira (a ver na íntegra aqui), que quis saber porque é que o apoio público não se fica pela concessão das garantias estatais pedidas pela Comissão Executiva da TAP. Vá-se lá saber por quê, lembrei-me daquela lógica de «Estado multibanco», assinalada por José Reis há uns anos atrás para ilustrar o modo como tantas vezes se encara o papel do Estado.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

A música tem mesmo de ser outra


Qualquer intervenção do Estado na TAP implicará que o Estado acompanhe todas as decisões que são tomadas com impacto na vida da empresa (...) A música agora é outra na TAP (...) É bom que estejamos conscientes que a missão é salvar a TAP e não nenhum acionista em particular (...) Estamos interessados que parceiros nos acompanhem na intervenção na empresa. Se não acompanharem, o Estado não deixará cair a empresa. Mas isso terá consequências na relação societária (...) O Estado está a acompanhar a situação tremendamente difícil da TAP e a estudar diferentes alternativas de intervenção e a discutir o seu futuro de acordo com interesse nacional, e não de qualquer interesse particular. A TAP sem intervenção pública não tem qualquer possibilidade de sobreviver.

Se um dos fundadores não vem ao blogue, vamos nós até Pedro Santos.

Entretanto, os trabalhadores da aviação exigem o controlo público da TAP.

Como por aqui se tem defendido, a reconstrução de um sector empresarial público robusto, capaz de ser instrumento de um Estado estratega, é uma necessidade imposta pela realidade: da TAP à banca.

No fundo, trata-se de alargar o espírito de umas oficinas da CP ou de um laboratório militar do Estado, sendo que quantidade tem de ser alteração qualitativa, reconstrução a sério de um Estado soberano, capaz de planear e de pilotar a economia para fora de uma crise sem paralelo.

Como dizia a outra senhora, não há alternativa. Ou melhor há, mas é mesmo cada vez mais bárbara.

Outra política de habitação é possível

Portugal tem um problema grave de habitação. Não é nenhuma novidade. A atual crise pandémica apenas tornou mais evidente as suas causas e consequências. Mas também trouxe algo de novo. Trouxe a redescoberta da dimensão coletiva das nossas vidas e a necessidade de nos organizarmos em torno de uma economia do cuidado, orientada para a saúde e para outros bens comuns.

 É sabido que o problema da habitação português resulta da ausência de uma oferta pública capaz de disponibilizar um volume significativo de alojamentos familiares com rendas acessíveis. Dos alojamentos disponíveis, apenas 2% são de oferta pública, o que contrasta com oferta de dois dígitos em muitos países europeus. Este problema agravou-se com a especulação imobiliária dos últimos anos, que transformou a habitação num ativo financeiro, isto é, um bem produzido para a captação rápida de mais-valias, e não para satisfazer uma necessidade humana básica. A habitação tornou-se, por isso, cada vez mais inacessível perante a escalada dos preços e das rendas, tornando-se, além do mais, um fator de insegurança com a liberalização do mercado de arrendamento, que facilitou e acelerou o fim dos contratos de arrendamento.

A crise pandémica tornou claríssimo que a habitação é um bem de saúde pública, um bem necessário para garantir o bem-estar individual e comunitário. E, uma vez mais, verificamos como este bem se distribui de uma forma tão desigual. Não só há muitos cidadãos que não têm condições de cumprir de forma adequada a recomendação de ficar em casa, porque não a têm, como a disparidade das condições de habitabilidade tornaram este confinamento uma experiência muito variada. As redes sociais mostram como o confinamento das estrelas mediáticas mais parecem férias de luxo para a maioria da população. Mesmo os apontamentos televisivos acerca do modo como as classes médias se ocupam durante o confinamento deixam boa parte da população de fora, designadamente aqueles que não conseguem sequer aceder ao confinamento. Até parece que já não há um problema de habitação.

O resto do meu artigo pode ser lido no Público.

Ler e ouvir João Ferreira do Amaral

O Tratado da União Europeia constituiu, no domínio económico, um verdadeiro golpe de Estado, ao impor concepções e instituições ultra-liberais aos cidadãos europeus apanhados desprevenidos. E, nem o facto deste golpe ter sido depois legitimado pelas ratificações parlamentares e por alguns referendos, pode esconder a realidade do erro histórico que se cometeu, só possível devido ao défice democrático na Europa. A parte económica do Tratado constituirá uma amarga experiência para os europeus que constatarão mais uma vez, à sua custa, que subordinar a concertação de interesses nacionais às abstracções ideológicas é a via mais rápida para o desastre. [1995]

O euro não auxilia a maioria dos Estados europeus a adaptarem-se à globalização, até os prejudica. Isso sucede porque não é possível uma mesma moeda contemplar os interesses de Estados tão diversos. O euro também não serve Portugal, pois não só agravou a actual crise, como torna muito mais difícil ultrapassá-la. Devemos pois abandonar este projecto utópico. [2012]

Dezassete anos separam estas duas reflexões de João Ferreira do Amaral sobre a natureza da integração europeia após Maastricht, ilustrando alguns dos elementos centrais e constantes de um presciente trabalho crítico, que sempre desafiou a sabedoria convencional nestas matérias e em relação ao qual acumulámos uma imensa dívida intelectual.

Assim começa um artigo que o Ricardo Paes Mamede e eu escrevemos em homenagem a João Ferreira do Amaral há uns anos atrás.

Já andava com saudades de o ler. Chamaram-me a atenção para as suas intervenções, com registo escrito, na Rádio Renascença. É o que dá ouvir pouca rádio.

Bom, ide ler a sua crítica às declarações na melhor das hipóteses infelizes do advogado de negócios, perdão, do Ministro da Economia, Siza Vieira. E, já que estais lá, a sua defesa da independência nacional é sempre útil. Depois é só ligar as duas coisas, exercício de resto cada vez mais fácil.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Como se fosse coisa pouca

«O Parlamento fez uma homenagem ao 25 de Abril que consistiu em explicar porque é que estava a fazer uma homenagem ao 25 de Abril», diz João Miguel Tavares (o «Éder» de um certo 10 de junho, que editaria para a posteridade o discurso desse dia).

Como qualquer um, Tavares tem todo o direito a dizer o que entender sobre o que entender (também por isso, coisa simples, se fez Abril). A mim, por exemplo, parece-me indisfarçável o recurso do cronista, uma vez mais, à fórmula fácil e populista do «nós e eles», na sua apreciação da sessão comemorativa do 25 de Abril. Com o detalhe, delicioso, de cuidar de retirar o Presidente Marcelo («treinador» do tal «Éder») da amálgama interesseira que faz com os diferentes discursos proferidos no Parlamento. Se os ouvisse com maior predisposição talvez percebesse porque é que se homenageia Abril explicando a importância de homenagear Abril.

A austeridade vai ser necessária?

Nos últimos dias, têm-se multiplicado as notícias e os artigos de opinião onde se discute a resposta económica à recessão que se aproxima. Boa parte dos comentadores concorda que o regresso à austeridade será necessário para suportar os custos da resposta à pandemia; alguns dizem mesmo que este é inevitável, dada a necessidade de reequilibrar as contas públicas. No entanto, a austeridade é uma ideia que tem tanto de intuitivo quanto de errado.

É isso que recorda o historiador económico Adam Tooze, autor de um dos melhores livros sobre a última crise financeira, num artigo publicado no The Guardian: a austeridade como resposta ao endividamento é uma estratégia errada, contraproducente e, acima de tudo, evitável.

Errada porque os gastos de uns são os rendimentos de outros. Numa recessão de dimensões inéditas, a restrição da despesa pública agrava a espiral recessiva de quebra da atividade económica, aumento das falências e do desemprego, quebra do consumo, e assim sucessivamente. Além disso, os cortes nos serviços públicos reduzem a sua capacidade de resposta a crises como a que atravessamos - no início do surto de coronavírus, a análise ao número de camas hospitalares em cada país mostrava como os que desinvestiram nos serviços de saúde se encontravam em piores condições. Neste contexto, a austeridade é a garantia de uma crise acentuada.

Contraproducente porque, ao limitar a despesa e o investimento necessários para responder à recessão, tem um efeito negativo no crescimento económico, dificultando por sua vez a diminuição do rácio da dívida pública no PIB. No fim de contas, a austeridade tem o efeito oposto ao que dizem ser o objetivo (reduzir o endividamento dos países), além de piorar as condições que cada país tem de cumprir as suas obrigações (por limitar o crescimento da economia).

Evitável porque, na prática, os bancos centrais podem financiar diretamente a despesa pública. Esta solução, que tem vindo a ganhar apoio entre os economistas convencionais, consiste na atuação do banco central como fonte de financiamento principal dos governos e tem o mérito de evitar que os países fiquem reféns dos mercados financeiros para se financiarem. A crítica mais comum é a de que esta medida, que se baseia na criação de moeda pelo banco central, pode levar a uma subida generalizada dos preços; no entanto, no atual contexto recessivo, o único risco verdadeiramente existente é o de deflação, devido à interrupção da produção e das vendas. Além disso, alguma inflação seria útil como forma de diminuir o valor real das dívidas.

A austeridade está, por isso, longe de ser inevitável. Como defende Tooze, "possuímos as instituições e os instrumentos necessários para neutralizar o problema da dívida relacionada com o coronavírus. Utilizá-los é algo que devemos a nós próprios." Não é compreensível que, pouco mais de uma década depois da última crise, se repitam os mesmos erros.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Ela sabe do que fala


Paulo Portas é Vice-Presidente da Confederação de Comércio e Indústria de Portugal, para além de Presidente do Conselho Estratégico da Mota Engil para a América Latina. Desempenha também cargos de administração no board internacional de Petroleos de Mexico (Pemex) e faz ainda consultoria estratégica internacional de negócios, sendo para efeito founding partner da Vinciamo Consulting. Dá aulas de mestrado Geo Economics and International Relations na Universidade Nova e na Emirates Diplomatic Academy; dirige seminários sobre internacionalização e risco político para quadros de companhias multinacionais e é ainda presença frequente na televisão em comentários de política internacional e speaker da Thinking Heads em conferências. Foi ministro da Defesa, ministro dos Negócios Estrangeiros e Vice-Primeiro Ministro de Portugal.

Apresentação do “experto” Paulo Portas no sítio da Llorente&Cuenca, “a consultora líder na Gestão de Reputação, Comunicação e Assuntos Públicos em Portugal, Espanha e na América Latina”.

O pluralismo é inexistente na opinião em canal aberto, para milhões, onde a direita da facilitação de negócios domina, de Paulo Portas a Marques Mendes. E é tão desavergonhado esse domínio nos canais ditos privados. Algum pluralismo sobrevive envergonhadamente, para milhares, no cabo. E ninguém faz nada.

Enfim, aí vale sempre a pena atentar na opinião de Ana Gomes, aos domingos na SIC-N. Naturalmente, nem sempre estou de acordo com ela, em particular com o seu voluntarismo europeísta paralisante, mas valorizo uma coragem e frontalidade democráticas notáveis e que vêm de longe.

Ontem, questionada pelo jornalista sobre os apoios à comunicação social, escolheu, sobretudo, valorizar o serviço público, dando o exemplo da nossa excelente telescola, e denunciar o que apodou de lavagem de Paulo Portas, feita todos os dias na máquina da TVI.

Ela sabe do que fala.

27 a 29 de abril: Conferência online «Vencer a Crise»


Com transmissão em direto através da página do facebook do Esquerda.net, realiza-se hoje, a partir das 21h, o primeiro ciclo de painéis da Conferência «Vencer a Crise», que prosseguirá amanhã e quarta-feira, dia 29, com início à mesma hora.

Com cerca de 90 oradores, oriundos de diversas sensibilidades à esquerda, a Conferência desdobra-se em sete painéis:
- Solidariedade internacional para responder à crise (com Idoia Villanueva Ruiz, João Cravinho, João Ferreira do Amaral, José Manuel Rosendo, José Reis, Manon Aubry, Marcos Faria Ferreira, Miguel Duarte, Sandra Monteiro, Shahd Wadi e Susana Peralta);
- A economia ao serviço das pessoas (com Alexandre Abreu, Ana Cordeiro Santos, Ana Costa, Francisco Louçã, João Bau, João Camargo, Luísa Schmidt, Miguel Heleno, Pedro Lains, Ricardo Vicente e Viriato Soromenho Marques);
- Salvar o SNS (com Alexandre Lourenço, Ana Matos Pires, António Rodrigues, Célia Rodrigues, Diana Pereira, Henrique Barros e Sofia Crisóstomo);
- O papel da Escola pública na resposta à crise (com Alberto Teixeira, Cláudia Braga, David Rodrigues, Francisco Teixeira, João Jaime Pires, Jorge Humberto, José Costa, José Paiva, Licínio Lima, Luís Valente, Lurdes Figueiral, Maria Emília Brederode Santos e Teresa Vasconcelos);
- Apoiar a cultura, investir na ciência (com Adolfo Luxúria Canibal, Boaventura de Sousa Santos, Cláudio Torres, Elisabete Paiva, Jacinta Bugalhão, Pedro Magalhães, Sara Barros Leitão, Teresa Summavielle e Zia Soares);
- Habitar as cidades, garantir direitos (com Ana Cristina Santos, Bruno Gonçalves, Bruno Sena Martins, Conceição Gomes, Cyntia de Paula, Elisabete Brasil, Fabíola Cardoso, Joana Tavares, Jorge Falcato, Nuno Travassos, Ricardo Fuertes, Ricardo Loureiro e Simone Tulumello);
- Proteger os empregos, defender os salários (com Amelia Martinez Lobo, António Mariano, Carvalho da Silva, Daniel Carapau, João Leal Amado, Maria da Paz Campos Lima, Renato Carmo, Rita Garcia Pereira e Tânia Ramos).

domingo, 26 de abril de 2020

Como lidar com a infecção no Norte

"O nosso ordenamento jurídico já permite a adoção de algumas soluções que podem contribuir para mitigar ou diminuir o risco de contrair a COVID-19. No entanto, para que tal efetivamente suceda, há que dinamizar e reforçar os mecanismos existentes, nomeadamente através da atribuição de maiores competências e meios aos representantes dos trabalhadores nestas áreas, ao mesmo tempo que se deve coordenar esse reforço com uma fiscalização atenta e eficaz, por parte dos órgãos da administração na área do trabalho".
Este fim de semana foi divulgado um estudo do Colabor, Laboratório Participativo para o Trabalho, Emprego e Protecção Social, assinado por José Castro Caldas, Filipe Lamelas e Pedro Estêvão, sobre como será possível o regresso ao trabalho.

Talvez - espera-se - um regresso que torne as coisas diferentes do que têm sido.  

Não deixam a caixa ser banco público


Desde 2011 que Bruxelas quer privatizar a Caixa e continua a querer. Em 2011, Teixeira dos Santos resistiu e a contrapartida foi a venda da Fidelidade [ao grupo chinês Fosun], que era da CGD. E lembro que no quadro das negociações que em 2016 levaram ao aumento de capital da Caixa, Bruxelas condicionou a aprovação a que o grupo não possa fazer política pública. O Governo comprometeu-se mesmo a garantir que a Caixa funcionaria como banco privado.

Até podíamos ser nós, embora não usemos a palavra negociação, mas é António Nogueira Leite, em entrevista ao Público de hoje, ou seja, um dos economistas que roda há muito por uma multiplicidade de conselhos de administração de grandes empresas com poder político e que, quando as coisas apertarem, já está pronto para ir à televisão com o façam força que eu gemo, porque não há alternativa que não passe por obedecer ao eixo Bruxelas-Frankfurt.

Foi este tipo de economista que aliás justificou a seu tempo a bondade deste tipo de dependência. E como tem sido boa a banca privada, como tem sido óptimo o euro e maravilhosa a circulação internacional de capitais, tara que se mantém, reparem, mesmo quando as pessoas não podem circular.

E este tipo de economista tem sempre palco por toda a comunicação social. É uma versão ideológica dos círculos viciosos discutidos na economia do desenvolvimento. Já agora que refiro o palco, reparem em Paulo Portas, a versão todos os negócios são estrangeiros disto, todos os dias na TVI, em horário nobre, a perorar sem contraditório sobre uma mixórdia de temáticas pandémicas, com José Alberto Carvalho a assessorar. Uma vergonha ético-política.

Bom, continuando: Nogueira Leite até concede a necessidade de uma certa flexibilização do brutal condicionamento de Bruxelas à acção da CGD, em resposta a uma questão muito atenta de Cristina Ferreira. E até consegue dizer, vejam lá, o nosso SNS; se dependesse dele, aposto, o nosso SNS já tinha desaparecido há muito. Afinal de contas, este tipo de economista nasceu academicamente nos EUA dos anos oitenta e intelectualmente tenho a impressão que nunca saiu de lá.

Naturalmente, o morto-vivo consenso de Bruxelas-Frankfurt, o mais próximo do Consenso de Washington de má memória, continua na prática a ser aceite, na ausência da oportunamente nebulosa solidariedade europeia. Pudera. Ele não se engana. Quem se engana e muito são os idiotas úteis que se dizem de esquerda, isto para usar um tipo de linguagem algo próxima da que é habitual em Nogueira Leite. Enfim, temos de aprender com quem ganha.

Pedalada jacobina


Uma vez mais, se Nuno Teles não vem ao blogue, o blogue vai até ao Professor da Universidade Federal da Bahia, desta vez em co-autoria com Catarina Príncipe na indispensável Jacobin (e houve um jornal dito de referência que não publicou uma versão portuguesa de parte deste artigo...): se os neoliberais nunca desperdiçaram uma crise, saibamos nós também fazê-lo, contestando as ideias zumbi com alternativas.

Covid19 industrial?

Ao cuidado dos jornalistas:

Por que razão a região do Norte, com apenas mais 25% do que a população da região de Lisboa e Vale do Tejo, tem 3 vezes mais de pessoas infectadas e de óbitos com o Covid19? Aqui é tudo ainda mais visual.

Será que é porque o Norte tem quase mais 5 vezes trabalhadores nas indústrias do que Lisboa, o dobro do pessoal na construção e apenas 75% do pessoal de Lisboa nos serviços que foram encerrados?

(ver Quadros de Pessoal de 2018, INE)

E não se trata apenas de contactos com feiras internacionais, mas de que forma é que foram concedidas condições sanitárias a quem continuou a trabalhar?  Houve alteração ou continuou a ser business as usual?

Será que tem a ver também, embora em menor escala, com haver muitíssima gente emigrada (na Suiça, em França) e que não trabalham propriamente em Universidades e que vieram para cá fazer a quarentena...? Veja-se as cadeias de contágio no boletim da DGS acima referenciado.


Tempo de se fazer reportagens às condições de trabalho dos trabalhadores do Norte - os tais heróis - que continuam a produzir.  

PS: Depois de publicado, foi-me sugerida a leitura de um artigo de João Ferrão no jornal Público, do qual retiro a seguinte citação: 

"Deste ponto de vista, a região Norte é particularmente interessante, já que os resultados globalmente elevados apenas são compreensíveis se considerarmos que existem vários Nortes particularmente expostos e suscetíveis: a área metropolitana, com as suas franjas suburbanas mais pobres; as áreas de industrialização difusa, sobretudo do Vale do Ave; as cidades médias (Viana do Castelo, Braga, Guimarães, Vila Real, Bragança); os concelhos junto à Galiza, o troço da fronteira luso-espanhola com uma dinâmica transfronteiriça mais intensa; e Trás-os-Montes, com uma forte relação com comunidades emigrantes de vários países europeus (desde o regresso de portugueses despedidos recentemente ao vaivém de trabalhadores da construção civil). Dizer que a região Norte tem valores mais elevados porque “por acaso” alguém veio infetado de uma feira no Piemonte, a região italiana com maior incidência da covid-19, é não entender que estes vários Nortes conciliam, ainda que em graus diferenciados, uma forte exposição externa e uma suscetibilidade local elevada, ou seja, um significativo potencial de vulnerabilidade em relação a esta ou a qualquer outra doença infecciosa" 

Abril não é neutro


No Movimento das Forças Armadas havia revolucionários e golpistas. Os primeiros seriam em maior número do que os segundos. Mas quando Marcello Caetano se rendeu no Carmo nada estava decidido. O golpe foi revolução pelos populares que logo naquele dia afluíram às ruas, pelo mar de gente que inundou o país no 1º de Maio, pelos milhares que levantaram barricadas no 28 de setembro e pelo ativismo incansável pela alfabetização, pela educação, pela saúde e pela educação. Foi essa movimentação cívica e política que forjou a constituição de 76 e que, pese embora os atropelos das revisões constitucionais, permanece até hoje.

Vem isto a propósito daqueles que nesta data gostam de evocar Abril como uma data neutra. Uma data onde uns militares fizeram uma coisa lá pela madrugada e a partir daí o pessoal passou a poder votar e expressar-se livremente. Nesses momentos, convém recordar que as revoluções são descontinuidades, é certo, mas que não se resumem ao dia em que sucedem. Estendem-se num longo processo de disputa que tendem a desembocar num novo momento refundacional. Para o caso português, os termos dessa refundação foram fixados na Constituição de 1976. Vale de pouco discutir quem ganhou e quem perdeu. Mas ganharam por certo aqueles que conseguiram incluir o repúdio desassombrado do fascismo (por oposição a transições ambígua, como o modelo espanhol) e que conseguiram tirar a Educação e a Saúde ao mercado, deles fazendo eixos fundamentais para a democracia que se pretendia construir. E mais: que todo este processo de disputa e participação democrática profundamente livre começou logo a 26 de abril de 74 e não em novembro de 75.

Quem forjou a revolução foi o povo, o verdadeiro sujeito histórico da data que se comemora. A 26 de Abril nada estava decidido. Tivéssemos ficado à mercê do golpismo do Spínola e do Jaime Neves e não seria para aqui que tínhamos caminhado. Não lhes devemos nada.

Não puxem o coelho pelas orelhas


Caros camaradas jornalistas do Correio da Manhã,

O título da notícia que foi publicada na vossa newsletter não é verdadeiro.

Se consultarem o diploma que regula lay-off simplificado, no seu artigo sobre o financiamento, verificarão que as despesas com esse dispositivo é coberto pelo Orçamento de Estado - e não pelo Orçamento da Segurança Social. O lay-off pode ser criticado por muitas coisas - desvalorizar o trabalho, repartir desigualmente o esforço da crise (cortando nos rendimenros do trabalho e criando poupanças nas empresas), dar dinheiro público a donos de empresas que não precisam, pode ser ineficaz em manter o emprego - mas nunca por fazer perigar as pensões (reformas).

Por outro lado, a dimensão do desemprego não é - ainda - de dimensão para afetar perigosamente as pensões.

Em terceiro lugar, a Segurança Social dispõe de um muito apetecível fundo de estabilização financeira, dotado de várias milhares de milhões de euros para fazer face a emergências.

Portanto, a que se deve esta manchete?

Se o argumento é ter sido o director de fecho a fazê-la para puxar as vendas do jornal, pois têm muito bom remédio. Protestem. Porque é o vosso nome de autores da notícia - que aliás está lá bem visível no topo da notícia colocada às 1h - que vai estar em causa.

sábado, 25 de abril de 2020

Palavras certas

«Mesmo num contexto de Estado de Emergência, a Democracia não está suspensa. Todas as semanas temos aqui estado a trabalhar, por mandato do Povo, para aprovar leis e para fiscalizar o Governo»
Ana Catarina Mendes (Partido Socialista)

«Se há momento em que 25 de Abril não pode ser apagado, é este»
Jerónimo de Sousa (Partido Comunista Português)

«É em períodos excepcionais que mais se justifica a invocação de momentos que marcaram a nossa História»
José Luís Ferreira (Partido Ecologista 'Os Verdes')

«O que seria verdadeiramente incompreensível e civicamente vergonhoso era haver todo um país a viver este tempo de sacrifício e de entrega e a Assembleia da República demitir-se de exercer todos os seus poderes numa situação em que eles eram e são mais do que nunca imprescindíveis»
Marcelo Rebelo de Sousa (Presidente da República)

«Abril é que combate a epidemia, não é a epidemia que combate Abril. A pandemia não descontinuou a Constituição nem 'cerra as portas que Abril abriu'»
Moisés Ferreira (Bloco de Esquerda)

«Portugal não tem a democracia suspensa, tem a democracia bem presente, ao demonstrar que ela encerra, em si mesma, mecanismos de funcionamento capazes de responder com eficácia a uma circunstância única e absolutamente excepcional»
Rui Rio (Partido Social Democrata)

(via José Gusmão, com foto roubada ao José Manuel Pureza)

25 de Abril: A poesia está nas ruas


Às 15h de hoje, levamos a "Grândola" às janelas. Mesmo em tempos de confinamento, a poesia não deixou de estar nas ruas.

Evocações de Abril



sexta-feira, 24 de abril de 2020

De Espanha pelo menos vem um plano


Já passaram quatro dias desde que se tornou pública a proposta de Espanha para financiar o chamado Fundo de Recuperação Europeu, proposta apresentada na cimeira do Conselho Europeu de ontem, 23 de abril.

Em traços muito gerais, o referido fundo, num montante entre 1 e 1,5 biliões de euros (entre 6 e 9% do PIB da União Europeia em 2019), seria financiado através da emissão de dívida perpétua, cujos juros seriam pagos por novos impostos europeus e/ou por lucros do BCE. 

Adicionalmente, este fundo seria assumido diretamente pela União Europeia que o utilizaria para subsidiar os estados membros, não com crédito, mas com subvenções a fundo perdido.

Esta proposta de financiamento, assumindo a forma de subsídios e não de empréstimos, vai no sentido do que tem sido defendido um pouco por todo lado e também neste blogue - financiamento que não implique dívida – e acerca dela deixo um par, ou assim, de notas.

Primeiro, loas para a coligação que governa Espanha que, embora tarde, lá decidiu deixar de ignorar o enorme paquiderme que se passeava na sala.

Segundo, embora a proposta tenha um sentido correto, financiar sem sobrecarregar com nova dívida, é ainda assim uma proposta que mantém o tabu. Não há qualquer razão económica, muito pelo contrário, para não ser o banco central a financiar este fundo. Também porque não faz qualquer sentido usar crédito perpétuo de financiadores privados oferecendo-lhes assim uma renda em juros igualmente perpétua. O financiamento deve ser monetarizado pelo banco central.

Terceiro, a União Europeia demorou, mais uma vez, uma eternidade a iniciar a discussão acerca de um assunto que não podia deixar de discutir. Não é ainda totalmente claro qual será o destino da proposta espanhola. O meu palpite é que, na melhor das hipóteses, os países do centro/norte da UE acabem a impor um modelo de financiamento assente sobretudo no crédito, mas incluindo umas migalhas de subvenção. Se o palpite se concretizar, teremos a repetição da tragédia de há uma década: atraso, insuficiência e orientação errada, à luz de certos valores e interesses, da política económica. Com os custos que isto significou, e voltará a significar, para a periferia.

Quarto, de nada nos valeu ter o Ronaldo das finanças a “liderar” o chamado eurogrupo. Enquanto este se mantinha diligentemente no quadro imposto pela Holanda e pela Alemanha, os nossos interesses estavam a ser defendidos pelos espanhóis. Está a valer-nos o facto de, neste assunto, termos interesses convergentes. Contudo, se ao governo faltou coragem política, não lhe falta instinto de sobrevivência.

Quinto, tentar lucrar politicamente com a proposta do governo espanhol, como está a fazer o Bloco, reivindicando para si a paternidade da ideia, pode até trazer dividendos eleitorais, mas a verdade é que a sua proposta incluía mais endividamento. Com juros irrisórios e capital a pagar a oitenta anos, é certo, mas dívida. Um erro que podia ter sido evitado. Custa-me muito porque tenho a minha militância aqui empenhada.

Sexto, se parte da esquerda portuguesa está assim resignada ao que é permitido pelo ordenamento europeu e a direita está ainda e sempre inebriada com a austeridade e alheada do interesse do país, o que esperar?

Alvo: Segurança Social

"Como o Estado não pode injectar dinheiro a fundo perdido nas empresas - nem sei se isso seria desejável, pelo menos para a minha mentalidade mais liberal - acho que alternativa é abdicar de receitas, de custos significativos para as empresas. (...) Eu penso que seria desejável, do ponto de vista de colecta de impostos, nomeadamente pagamentos especiais por conta, ou de contribuições para a Segurança Social – a Taxa Social Única (TSU) - que é, aliás uma medida que está directamente relacionada ao emprego, que o Estado abdicasse de receber essas receitas durante determinados meses."

Quem tão despudoradamente defende esta aspiração dos dinheiros da Segurança Social - um projecto aliás tão liberal - é aquele que foi entrevistado na Grande Entrevista da RTP, apresentado como "gestor e antigo ministro da Economia". Mas na realidade António Pires de Lima é muito mais ex-presidente do Conselho Nacional do CDS de 2007 a 2014, ex-ministro da Economia do Governo Passos Coelho/Portas desde 23/7/2013, um dos fiéis “soldados” que se dispôs a aplicar um programa para “além da troica".

Em Setembro de 2012, o Governo Passos Coelho /Portas quis pôr os trabalhadores a pagar as empresas, reduzindo a TSU das empresas e aumentando a dos trabalhadores, ideia que Pires de Lima - tal como o CDS (ver programa eleitoral na pag.27) - sancionou, depois deu por "mal entendida", acabou por repudiá-la e concordar com o enorme aumento de impostos sobretudo sobre os assalariados do setor privado. Oito anos depois, defende-se agora que seja a Segurança Social a pagar TODAS as empresas do sector privado, durante pelo menos três meses, e sabe-se lá quanto tempo mais, já que a retoma será algo lento. Sem garantias, nem dívidas. E, por certo, não faltarão ameaças do presidente da CIP de que, senão pagarem sob a forma de lay-off, o setor público pagará sobre a forma de subsídios de desemprego, aliás, ameaças que já foram feitas.

Pires de Lima esquece-se de um problema: a TSU não é uma receita do Estado, mas da Segurança Social, a qual é um activo dos trabalhadores, montado para dar cobertura a diversas eventualidades que lhes possam acontecer. Não é para financiar empresa, como quer Pires de Lima. Aliás, o lay-off simplificado - ao contrário do lay-off clássico marginalmente usado até esta crise - vai ser pago pelo Estado e, por isso, é o Estado que está a financiar as empresas a fundo perdido. A Segurança Social – ao contrário da sua ideia – não é saco azul do Estado. E não deveria competir ao Estado decidir o que fazer desses dinheiros.

Este despudor - que perpassa até no tom e na atitude de Pires de Lima, como se tivesse iniciado a tentativa de retrocesso histórico a 2011 - parece ser apenas possível pela forma como este governo deu luz verde ao ministro da Economia Siza Vieira, o qual abriu as portas a um completo e opaco programa de financiamento empresarial através do Estado e da Segurança Social, do qual estão a beneficiar a maioria das grandes empresas.

A entrevista é, aliás, sintomática em três aspectos: primeiro, no toca a trabalhar para toda a população portuguesa, mesmo que as empresas não tenham condições sanitárias; segundo: por abrir caminho a que se discuta publicamente o alargamento do lay-off simplificado a todas as empresas; e terceiro pela ideia de que isso pode ser feito - sem que a direita faça um mea culpa, sem que perca a cara porque - alega-se - a crise actual tem características diferentes da de 2008/2011, quando apenas se está a discutir terapias para atacar uma recessão. É sintomático que Pires de Lima omita as consequências do seu programa de privilégio das empresas e que atirou 25% da população activa portuguesa para o desemprego e mais umas centenas de milhar para a emigração. E ainda venha dizer na entrevista que "a austeridade não é uma escolha; é uma cconsequência". Toda a entrevista de Pires de Lima está carregada desta arrogância de quem está à frente de empresas e que, por isso, sabe melhor o que é melhor para o país.

Por partes: Primeiro, é a ideia do toca a trabalhar e toca a consumir, porque já foi tempo demais em casa. A forma como o ex-dirigente do CDS desdramatiza a pandemia é sintomática (1m55):

"é um vírus muito incomodativo e - quando não existe uma capacidade de resposta dos serviços de saúde - com uma letalidade muito elevada, mas que em Portugal (...) não houve ninguém que tivesse morrido com menos de 40 anos. E mesmo a taxa de mortalidade até aos 60 anos é muito marginal". 

Abril para os mais pequenos



Em cerca de um minuto, o 25 de Abril explicado a ladrões de triciclos (e não só).

Acordai


Neste contexto, quero daqui saudar Ferro Rodrigues pelo seu empenho e bom senso democráticos, merecendo críticas de alguns complacentes que se dizem de esquerda e sobretudo de uma direita dita conservadora-liberal. Basta raspar um pouco e revela-se o eterno ódio desta última à revolução democrática e nacional. É um combate pela memória que se trava, com implicações óbvias em tempos perigosos.

Quando as coisas apertam, esta direita já simpatizou com soluções autoritárias, do tipo suspensão da democracia, proposta por uma Ferreira Leite agora só aparentemente ensandecida. E quiseram mobilizar a Igreja Católica, vejam lá o despudor, à boleia de comparações com a Páscoa. Felizmente, a nossa democracia nunca teve uma questão religiosa. E a Assembleia da República (AR) não foi encerrada no estado em que nos encontramos, o que diz bem de nós. Era o que mais faltava que o fosse no seu dia inicial.

Como também denunciou Vítor Dias, depois do 25 de Abril, voltam-se agora para o 1º de Maio. Sabem que a revolução democrática foi feita também pela mobilização laboral, à qual devotam um ódio sem quartel. A democracia que suportam até ver é para ficar à porta do local onde se trabalha.

Este ódio tem agora um lugar cada vez mais proeminente na imprensa dita de referência, com toda a mentira associada ao tipo de mobilização desde o início planeada pela CGTP. Sim, estamos a falar de gente como Maria João Marques, ou seja, da observadorização em curso na opinião do Público, já que ela veio desse e de outros blogues da direita pura e dura. 

Se acham que isto é um exagero, acordai, porque o que aí vem não autoriza sonos da razão. É bom saber que, na AR, há democratas que não dormem no exercício das suas funções.

25 de Abril sempre, fascismo nunca mais: na AR e, às 15h, nas janelas de todo o país.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Pedalar


Se quisermos prevenir novas pandemias, estar melhor preparados para as combater e dispor dos instrumentos necessários para os desafios da recuperação económica, temos de ser capazes de garantir a nossa segurança económica e social. Esta vai desde a segurança alimentar à proteção dos nossos Serviço Nacional de Saúde, passando pela preservação e promoção de setores estratégicos de produção industrial nacional. Em suma, precisamos de recusar os ditames dos mercados internacionais e encetar um processo de desglobalização parcial, promovendo, na medida do possível e do desejável, a produção local, o emprego de qualidade e os serviços públicos. Para isso os Estados, enquanto instituições que refletem a vontade democrática, têm de recuperar e repensar os instrumentos de planeamento económico que regeram, de forma bem-sucedida, os destinos da economia internacional a seguir à Segunda Guerra Mundial. Só com política comercial, política industrial, soberania monetária, controlos de capitais e, sobretudo, um sistema de crédito público ao serviço do progresso social, podemos democraticamente prevenir futuras catástrofes e responder aos enormes desafios que agora se levantam, sem esquecer outras emergências, como o combate às alterações climáticas.

Se Nuno Teles não vem ao blogue, o blogue vai até ao Professor de Economia da Universidade Federal da Bahia: realmente, teremos uma, precisamos de uma, economia menos globalizada.

Capas sintomáticas


A primeira, é para as edições asiáticas. A segunda, para as edições norte-americana e britânica.
As capas são bastante sintomáticas, mas ainda mais sintomática a distinção e a orientação da distinção.  

Lenine por Minh


Após a Primeira Guerra Mundial, eu levava a minha vida em Paris, ora como retocador de fotografias, ora como pintor de “antiguidades chinesas” (feitas em França!). Também distribuía panfletos denunciando os crimes cometidos pelos colonizadores franceses no Vietname. 

Naquele tempo, eu apoiava a Revolução de Outubro apenas por intuição, não tendo em mente ainda toda a sua importância histórica. Eu amava e admirava Lenine porque ele era um grande patriota que libertara os seus compatriotas; até então, eu não havia lido nenhum dos seus livros.

A razão para eu ter aderido ao Partido Socialista Francês foi porque essas “damas e cavalheiros” – como eu chamava aos meus camaradas na época – demonstraram a sua simpatia por mim, pela luta dos povos oprimidos. Mas eu não entendia o que era um partido, um sindicato, nem mesmo o socialismo ou o comunismo.

Discussões acaloradas aconteciam nos comités do Partido Socialista sobre a dúvida de se deveríamos continuar na Segunda Internacional, se deveria ser fundada uma Segunda Internacional e Meia ou se o Partido deveria juntar-se à Terceira Internacional de Lenine. Eu comparecia aos encontros com frequência, duas ou três vezes por semana, e ouvia atentamente a discussão. No início, eu não conseguia entender o assunto por completo. Por que os debates eram tão acalorados? Seja com a Segunda, a Segunda e Meia ou a Terceira Internacional, a revolução poderia ser alcançada. Qual o objetivo de discutir sobre isso? E a Primeira Internacional, o que aconteceu com ela?

O que eu mais queria saber – e o que justamente não era debatido nos encontros – era: qual Internacional está do lado dos povos das colónias? Eu levantei essa dúvida – a mais importante em minha opinião – no encontro. Alguns camaradas responderam: é a Terceira Internacional, não a Segunda. E um camarada deu-me para ler a “Teses sobre a questão nacional e colonial” de Lenine, publicadas pelo L’Humanité.

Havia termos políticos difíceis de entender nessas teses. Mas por meio do esforço de lê-la e relê-la pude finalmente apreender a maior parte deles. Que emoção, entusiasmo, esclarecimento e confiança essa obra provocou em mim! Eu me regozijava em lágrimas. Embora estivesse sentado sozinho no meu quarto, eu gritei fortemente, como se me dirigisse a grandes multidões: “Caros mártires compatriotas! É disso que precisamos, este é o caminho para nossa libertação”! A partir dali, tive plena confiança em Lenine e na Terceira Internacional.

No seguimento do que escrevi ontem, lembrei-me hoje deste texto memorável. A memória tem destas coisas. Antes de ser Ho Chi Minh, assinalando assim os 90 anos do nascimento de Lenine, nasceu com o nome de Nguyễn Sinh Cun.

Como relata David Priestland em A Bandeira Vermelha, uma equilibrada história do comunismo, este vietnamita tentou chegar à fala com o presidente norte-americano Woodrow Wilson em 1919, na altura da Conferência Internacional de Paris, em nome do povo da Indochina, inspirado pela ideia da autodeterminação nacional a que Wilson tinha dado aparentemente fôlego. Não foi recebido por Wilson. Terá confirmado que o nacionalismo liberal ainda era basicamente para ocidentais (e como soará hoje estranha a junção destas duas palavras, nacionalista e liberal, para tantos ideólogos que andam por aí...). Para o resto do mundo, era mesmo imperialismo. Por isso, tenho defendido, contra uma certa visão liberal da história, mais Lenine e menos Wilson.

Afinal de contas, quem escreveu memoravelmente sobre imperialismo, em plena barbárie da Primeira Guerra Mundial, aprendendo tudo com a melhor economia política social-liberal britânica, com John Hobson, entre outros? Só partindo das formas de imperialismo se podia, e se pode, colocar universalmente as formas da decisiva questão nacional.

Profundamente influenciado pela leitura histórico-filosófica de Domenico Losurdo, valorizo hoje mais o marxismo dito oriental, o que colocou as questões da construção do Estado, da inserção internacional, da combinação de mecanismos de coordenação económica do que um certo marxismo dito ocidental, o que acabou na crítica politicamente impotente, relativizando, por exemplo, a importância da igualização das relações humanas representada pelo levantamento anti-colonial e seus efeitos de longo prazo.

Enfim, lembrei-me do líder da independência de um povo que derrotou os impérios japonês e francês e, já depois da sua morte, o império norte-americano e que hoje é reconhecidamente um exemplo no combate ao Covid-19.

Adenda. Mudando de geografia, mas não de abordagem, regressando ao rectângulo, gostei de ler o artigo de João Ferreira sobre a União Europeia nos 150 anos de Lenine.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Lenine


Todos concordarão em que seria insensata e até criminosa a conduta de um exército que não esteja preparado para dominar todos os tipos de armas, todos os meios e processos de luta que o inimigo possui ou possa possuir. Mas isto diz ainda mais respeito à política do que à arte militar. Em política é ainda menos fácil saber antecipadamente que meio de luta será aplicável e vantajoso para nós em tais ou tais condições futuras. Sem dominar todos os meios de luta podemos sofrer uma derrota enorme - por vezes mesmo decisiva -, se mudanças independentes da nossa vontade na situação das outras classes põem na ordem do dia uma forma de acção na qual somos particularmente fracos. 
1920

Mas o que significa a palavra transição? Não significará, aplicada à economia, que no regime actual existem elementos, partículas, pedaços de capitalismo e de socialismo? Todos reconhecem que sim. Mas nem todos, ao reconhecerem isto, reflectem sobre precisamente que elementos das diferentes estruturas económicas e sociais existem na Rússia. E nisto está toda a essência da questão (...) O capitalismo é um mal em relação ao socialismo. O capitalismo é um bem em relação ao medievalismo, em relação à pequena produção, em relação ao burocratismo ligado à dispersão dos pequenos produtores. Uma vez que ainda não temos forças para realizar a passagem directa da pequena produção ao socialismo, o capitalismo é em certa medida inevitável, como produto espontâneo da pequena produção e da troca, e portanto devemos aproveitar o capitalismo (principalmente dirigindo-o para a via do capitalismo de Estado) como elo intermédio entre a pequena produção e o socialismo, como meio, via, processo ou método de elevação das forças produtivas.
1921

Vladimir Ilyich Ulianov, conhecido por Lenine, nasceu a 22 de Abril de 1870, há precisamente 150 anos. Do Brasil ao Vietname, passando por Portugal ou pela Índia, os comunistas assinalam naturalmente o aniversário, a data redonda.

Junto-me a eles, não sem antes dizer que já defendi a necessidade de dizer adeus a Lenine, mas há uns anos constatei que essa despedida tinha sido precipitada.

Reaprender com alguns aspectos da vida e obra de Lenine é capaz de não ser má ideia, dada a situação mundial: organização consequente dos subalternos; análise concreta da situação concreta, partindo das peculiaridades da formação social onde se intervém; avaliação da correlação de forças, o que alguém designou por “filosofia da conjuntura”; identificação dos elos mais fracos de uma cadeia imperialista em mutação; articulação entre classe e nação, entre libertação social e nacional; prontidão para aceder ao poder e aí implementar novas políticas económicas, resultado de uma aprendizagem permanente, pugnando por uma complexa e exigente transição socialista que pelo menos terá de ser igual a sovietes, hoje metáfora para uma democracia avançada que mude as relações sociais, mais electrificação de todo o país, hoje com base em renováveis. Não é pouco.

O Estado de que Lenine foi um dos fundadores desapareceu há quase trinta anos. A experiência soviética fracassou, foi derrotada. O mundo não melhorou por causa disso, antes pelo contrário. É preciso continuar a tentar, sem fórmulas e sem garantias, procurando aprender sempre, mas sempre, com os grandes acertos e sobretudo com os grandes erros.

Proposta para uma primeira pergunta

Agora que o senhor Presidente da República se manifesta interessado sobre o que pensam os dirigentes das empresas cotadas, sugere-se tanto ao senhor Presidente, como aos jornalistas que cobrem a sua atividade, que os questionem se consideram socialmente aceitável que as maiores empresas portuguesas que compõem o índice da Bolsa de Valores de Lisboa tenham decidido não contribuir para o Orçamento de Estado, através da tributação sobre o seu rendimento, como acontece com o comum dos mortais neste território à beira-mar plantado; porque preferiram fazer voar as sedes das suas empresas para um qualquer paraíso fiscal.

Algo que os tais comuns dos mortais nacionais não podem fazer. Nem querem!

terça-feira, 21 de abril de 2020

Nem papão, nem modelo


Vítor Dias teve toda a razão: “Esta capa podia ter sido feita por Trump”. Tudo isto já tem algumas semanas, mas permanece obviamente actual. E de resto não é nada que surpreenda, dado o lixo editorial que se tem encontrado regularmente no Expresso em tantas áreas.

Nesta imprensa, a abordagem dominante às relações internacionais faz o debate económico parecer pura sensibilidade e bom senso. Os neo-conservadores rondam por aí, em busca de inimigos para justificarem a anacrónica OTAN, os estatocídios ou o apetrechamento militar da Alemanha, perdão, da UE.

Para os que falam como se estivessem em Washington ou em Bruxelas, a sinofobia é uma das versões hoje possível de um mal disfarçado racismo nas relações internacionais, na tradição do ainda hoje incensado Wilson e dos seus aliados ocidentais, os que, por exemplo, recusaram a proposta japonesa para que Conferência de Paris de 1919 e a futura Sociedade das Nações reconhecessem a igualdade entre os povos.

Para os que pugnam por um mundo multipolar, onde a China não é papão, nem modelo, esta república é responsável por uma igualização nas relações internacionais que é bem-vinda. Tem de terminar o tempo da arrogância ocidental. Afinal de contas, estamos a viver o que alguns historiadores globais, dados a grandes narrativas, já chamaram o fim da época de Colombo.

Para este rectângulo no apêndice ocidental da grande massa euro-asiática, a China permite uma saudável diversificação de relações, base potencial de uma maior autonomia, sendo que nada justifica que não nos comportemos como os chineses no controlo dos nossos recursos estratégicos. E recusar firmemente modelos não quer dizer que não se aprendam duas ou três coisas com um país que sempre recusou o Consenso de Washington na política económica (e este Consenso está vivo-morto em Bruxelas).

Em primeiro lugar, aprende-se a necessidade de controlar sectores estratégicos, veículos do planeamento necessário e possível. Em segundo lugar, a necessidade de controlar a entrada e a saída de capitais, por forma a controlar a instabilidade financeira e a manter uma taxa de câmbio adequada ao desenvolvimento, entendido como expansão das potencialidades produtivas. Em terceiro lugar, a necessidade de controlar o sistema financeiro nacional, através de uma participação pública decisiva, com um Banco Central capaz no pináculo, financiando o investimento necessário.

A esquerda comete portanto um erro se reduzir a China ao autoritarismo político ou aos efeitos concorrenciais negativos, sentidos por cá, da chamada expansão da força de trabalho global. Estes efeitos foram exponenciados pela ausência de instrumentos de política, trancados que fomos numa moeda demasiado forte e num mercado único que impediu a política industrial.

Seja como for, recusemos primeiramente ser envolvidos em novas guerras frias.

Adenda. Para contrariar a versão trumpista dos recentes acontecimentos, vale a pena ler a série de três artigos, que creio compatíveis com a OMS, que Vijay Prashad escreveu em co-autoria sobre a resposta chinesa ao Covid-19. Prashad é um historiador indiano, tendo escrito a melhor história que conheço sobre o projecto político do Terceiro Mundo, infelizmente ainda por traduzir, como de resto grande parte do que contraria um certa versão dos acontecimentos do século passado.

Cassete

Sente-se que há algo de trágico quando o presente é uma reencarnação multiplicada de tantos passados idênticos.

Foi do que lembrei quando reparei nestas primeiras imagens com 40 anos de idade. Para lá da idade escandalosamente jovem daquele viria a ser um dos dirigentes mais conhecido dos empresários nacionais, se nota já a pressão para o desmantelamento do papel do Estado, em proveito de um papel mais vigoroso da iniciativa privada supostamente no desenvolvimento do país. 



E destas outras com 26 anos de idade. Em que o mesmo dirigente, um pouco mais velho mas com a mesma frontal e sincera convicção, exerce a natural pressão da iniciativa privada para obter uns favores do Estado - flexibilidade na legislação laboral e participação nos impostos - que compensem os aumentos dos salários da sua mão-de-obra. De outra forma, que interesse teria a iniciativa privada em partilhar os rendimentos gerados na actividade?


Por certo, conhecemos declarações mais recentes em que esta cassete tem sido proferida e até com bons resultados. Por isso tem sido repetida ao longo de 40 anos.

Mas voltando à primeira gravação, é caricato ouvir hoje as queixas dos mesmos empresários a um sistema financeiro privado que, afinal, não os apoia e nem investe neles e que beneficia dos apoios do BCE, mas que não os transfere para a esfera produtiva. E podemos nos questionar como foi que esta iniciativa privada contribuiu para o desenvolvimento do país quando as mesmas questões são suscitadas década após década e, afinal, nos encontramos - 40 anos depois - numa situação de grande melindre do ponto de vista da estratégia produtiva nacional, na qual reinam os baixos rendimentos salariais e que se arriscam a assim permanecerem quando se avizinha uma subida rápida do desemprego que essa mesma estratégia nacional serve, afinal, para a agravar.

Para que serviu todo este discurso feito desde há mais de 40 anos?

(Pode encontrar aqui muitas mais imagens de Pedro Ferraz da Costa)

Mau serviço jornalístico

Alguém me explique esta entrevista.

Por que foi que o jornal pediu uma entrevista numa altura em que o presidente do Eurogrupo não pode dizer nada antes do Conselho Europeu de 5ªf? Como é que o jornal escolhe, numa altura destas, uma entrevista com uma jornalista como a Teresa de Sousa - uma eterna defensora do projecto europeu, dê ele as cambalhotas que der - que rapidamente se deixa enredar num bruxelense de presidente do Eurogrupo?

Exemplo: um SURE de 100 mil milhões para financiar um lay-off na Europa - "o nosso lay-off simplificado, o Kurzarbeit alemão, o chomage partiel francês, entre outros, têm todos os mesmos objectivos: proteger o emprego"? Primeiro: tal como está, o lay-off, não será um dispositivo de dádiva de dinheiro às empresas, com uma vaga promessa de não despedimento imediato? Há garantia de que terminado o lay-off o desemprego não suba? Os dados de Março parecem revelar o início de uma subida a prazo. E se não há garantia, este era o melhor mecanismo para o assegurar? Quanto custa? Mil milhões/mês. E desses quanto vai para as grandes empresas? E que garantias há que não se transformem em dividendos? Mesmo que sejam recursos desbaratados, valem a pena do ponto de vista macroeconómico? E no final, esses montantes transformam-se em dívida dos Estados. E o que vai acontecer caso se tenha de aplicar o Tratado Orçamental? E como se financiarão os Estado do Sul, com a degradação das notações? Como evitar uma repetição das más respostas dadas há dez anos? E os efeitos do desemprego a prazo? E como fazer com uma recessão que se aproxima de todos os lados?

Bastava perguntas como estas para permitir discutir mais aprofundadamente o plano de recuperação. Mas não. Ficou-se por coisas redondas. Por que não foi a esta entrevista alguém da secção de economia do jornal? O jornalista Sérgio Aníbal - que tem escrito a maioria dos artigos do jornal sobre este assunto - não foi convidado para o encontro. Se tivesse ido, sempre era capaz de falar mais de política económica. E ser jornalista.

Desperdiçou-se uma oportunidade de falar com o presidente do Eurogrupo e prestou-se a um exercício político, ainda por cima mau, porque mal se percebe alguma coisa. Além do título, claro.

O território conta

«É, sem dúvida, importante divulgar informação regionalizada e apontar potenciais causas para os resultados diferenciados observados nas diversas regiões. Mas convém enquadrar estes resultados numa visão mais ampla, quer do ponto de vista conceptual, quer no que se refere ao conhecimento do território de Portugal continental. A primeira distinção a fazer é entre exposição, suscetibilidade e vulnerabilidade. Sendo a origem do coronavírus externa ao país, o conceito de exposição define-se, numa primeira fase, em função do grau de abertura de cada território ao exterior. Por exemplo, as áreas metropolitanas, as regiões exportadoras, as regiões com dinâmicas transfronteiriças mais intensas ou as áreas que mantêm uma circulação regular de pessoas com comunidades emigrantes (neste caso, da Europa) estão mais expostas à possibilidade de importação de vírus. Mas as características de cada um desses tipos de territórios são diferenciadas sob muitos pontos de vista. (...) A vulnerabilidade de cada região – neste caso, medida através da incidência de casos de infeção e da sua gravidade – são o resultado do jogo de duas componentes – exposição e suscetibilidade – que pode variar ao longo do ciclo epidemiológico, sobretudo à medida que a exposição externa vai sendo mais controlada. (...) Numa segunda fase da pandemia, a exposição passa a definir-se sobretudo em função de focos internos através de dois tipos de difusão, uma por contiguidade física e outra por interação funcional. A primeira ocorre a partir da expansão em mancha de óleo dos focos preexistentes em direção a áreas e concelhos vizinhos, baseada em movimentos pendulares casa-trabalho, cadeias de abastecimento, enfim, todo o leque de interações físicas que famílias, empresas e outras entidades com uma localização relativa próxima mantêm entre si. (...) A segunda, difusão por interação funcional, envolve as cidades de média dimensão (em geral, capitais de distrito). Estas aglomerações urbanas, pelo tipo de serviços especializados que possuem (universidades e politécnicos, hospitais regionais, equipamentos públicos de nível supramunicipal, etc.) e pelos grupos sociais que aí residem (com maior mobilidade), mantêm uma relação significativa quer com as áreas mais expostas internacionalmente (e que estiveram na primeira linha da importação de casos infetados), quer com concelhos das áreas rurais.»

Do recente artigo de João Ferrão, «A geografia da covid-19: algumas precisões», de leitura imprescindível para ir além de análises simplistas e mostrar que a textura do território é essencial para compreender a evolução e expressão espacial de uma epidemia como a que estamos a viver, nos tempos em que a estamos a viver. O mapa ali em cima, aliás, permite perceber por que razão se devem relativizar - e muito - as ponderações desabridas de casos registados e vítimas mortais pela população de um dado país. Basta imaginar os resultados muito distintos que se obteriam (nas comparações com Espanha), se a área de Portugal correspondesse apenas à faixa litoral ou ao território a sul do Tejo.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Chantagem

Denúncia sindical

O estado de emergência está a dar nisto. Os trabalhadores inseridos em «grupos de risco para a COVID-19» estão sujeitos a chantagem por parte de muitas administrações de empresas, em particular multinacionais, que lhes exigem: «Ou trabalhas à tua responsabilidade ou vais para casa com falta justificada».

Esses grupos - previsto no decreto-lei n.º 2-B, de 20 de Abril (prorrogação do estado de emergência), artigo 4º, como «sujeitas a um dever especial de protecção» - incluem pessoas com mais de 70 anos, ou com doenças crónicas (doença cardíaca, pulmonar, diabetes, neoplasias, hiper­tensão arterial, entre outras); ou com compromisso do sistema imunitário (a fazer tratamentos de quimioterapia, tratamentos para doenças auto-imunes, como artrite reumatóide, lúpus, esclerose múltipla ou algumas doenças inflamatórias do intestino), infecção VIH/sida ou doentes transplantados.

Vem mesmo de dentro


Chamaram-me a atenção para a mais recente mensagem política na publicidade do Pingo Doce: “compre produtos nacionais, porque a nossa força vem de dentro”. É mesmo caso para dizer, meio a brincar, meio a sério, que o Pingo Doce dá uma linha política mais acertada do que os que andam por aí à procura da força que viria de fora. De fora, da UE, só vem constrangimento. O melhor que se pode pedir é mesmo que não atrapalhe.

É claro que a soberania não está no consumidor e que o Pingo Doce deverá ser obrigado a dizer: pague impostos nacionais e salários decentes aos de dentro, precisamente para que a nossa força venha daí.

A força vem realmente de dentro, ou seja, do povo. E isto só pode significar que a solução está cá dentro. Se queremos estimular a produção nacional, garantindo uma maior auto-suficiência nacional, o que é e será cada vez mais reconhecidamente necessário, até por razões de segurança e ambientais, temos de recuperar instrumentos de política cambial e comercial, substituindo importações e só importando o que podemos “pagar” com as nossas exportações.

Viver dentro das nossas possibilidades, com uma balança corrente equilibrada, num contexto em que se almeja o pleno emprego, é uma aprendizagem colectiva que pode ser bem sucedida se tivermos instrumentos para gerir o constrangimento externo decentemente; neste momento, não temos.

E, claro, é preciso controlar capitais para travar as chantagens dos pingos doces desta vida e a instabilidade financeira que vem de fora, parte da reabilitação da ideia económica de fronteira, sem a qual não existe comunidade com capacidade de se autodeterminar politicamente. Em questões macroeconómicas, a distinção entre moralismo e moralidade está na acção colectiva e no manejo nacional de instrumentos de política económica.

É preciso também insistir, junto dos que ainda confundem integração neoliberal com internacionalismo, que esta capacidade nacional deve ser reconhecida aos outros povos, como de resto indica a nossa Constituição no artigo sobre relações internacionais, o que clama contra os imperialismos e reconhece o direito universal à autodeterminação.

 Já agora, pergunto: que forças têm por cá insistido na produção nacional, na ancoragem material da soberania democrática, na força que vem de dentro?

domingo, 19 de abril de 2020

Dividendos proibidos em lay-off... mas pouco?

Choca que diversas grandes empresas planeiem pagar dividendos vultuosos aos seus accionistas, nesta recessão em que milhares de cidadãos caíram no desemprego e centenas de milhar estão com os seus rendimentos cortados. Quase 700 milhões de euros de dividendos distribuídos pela EDP parece uma exaltação provocatória do capitalismo selvagem, egoísta e socialmente irresponsável.

Mas se estas empresas o fazem é porque podem. Nada as impede, na lei, apesar de se ter aprovado um estado de emergência. Parece que a emergência recai sobre uns, mas não impede outros de viver o seu mundo inalterado. 

Mais chocante ainda seria o caso de empresas, recorrendo ao lay-off (como estas, por exemplo), supostamente para fazer face a dificuldades de mercado, estejam a planear pagar dividendos aos seus accionistas. Neste caso, tornava-se evidente que o Estado estaria a financiar - e não é pouco! - os salários de trabalhadores dessas empresas, para essa poupança ser distribuída aos seus accionistas.

Está a acontecer? Não se sabe porque a informação distribuída pelo Ministério do Trabalho - que contém informações úteis - não revela todavia quais foram as empresas que recorreram ao lay-off, qual a sua distribuição por dimensão, qual o número de trabalhadores envolvidos, quais os montantes em questão.

Mas é possível essas empresas distribuírem dividendos? As disposições legais impedem-nas de o fazer, mas parecem pouco eficazes.