domingo, 5 de abril de 2020
Imaginem um director de jornal português a escrever um editorial destes
Estava precisamente a traduzir o editorial do Financial Times (FT) da última sexta-feira (ver abaixo) quando o Ricardo Paes Mamede aqui colocou um excerto, acompanhado de pertinente comentário. Coincidências num blogue que também “vive em tempos financeiros”, slogan do FT, mas onde se quer colocar trela curta à finança, socializando-a, para que os tempos sejam mesmo outros.
O que pode explicar tal editorial? Deixo quatro hipóteses adicionais.
Em primeiro lugar, o Reino Unido é um Estado soberano, com instrumentos de política e disponibilidade para os usar. Hobbes nasceu por lá. Os grandes líderes, de resto, são aqueles que sabem manter ou reconquistar margem de manobra.
Em segundo lugar, a burguesia britânica tem confiança nas suas capacidades de adaptação, dados os precedentes históricos que pode convocar.
Em terceiro lugar, o Reino Unido teve Corbyn, mas já não tem essa ameaça para o establishment; os sectores conservadores estão sozinhos (a eleição de Keith Starmer, o ideólogo do segundo referendo, como líder “trabalhista” é uma nova prenda para Boris Johnson). Os conservadores podem assim fazer com mais à vontade o que sempre fizeram ao longo da sua já longa história: roubar partes do programa aos adversários, anteriormente considerados radicais, parte da tal adaptação.
Em quarto lugar, no centro do sistema mundial, e em alturas de crise, os liberais podem tornar-se social-democratas, enquanto que na periferia mais facilmente se transformam em fascistas. É tudo uma questão de cultura política e de grau de segurança material. Sim, as crises também são assimétricas nos seus efeitos político-ideológicos.
Bom, deixemo-nos de conversas. Tem a palavra o FT.
A existir um raio de esperança no Covid-19, este é a injecção de um propósito comum em sociedades polarizadas. Mas o vírus e o confinamento económico necessário para o combater, também lançaram uma luz horripilante nas desigualdades existentes, para lá de terem criado novas desigualdades. Para lá de derrotar a doença, o grande teste que todos os países enfrentarão em breve consiste em saber se os actuais sentimentos de propósito comum moldarão a sociedade a seguir à crise. Como os líderes ocidentais aprenderam na Grande Depressão e depois da Segunda Guerra Mundial, a exigência de um sacrifício colectivo implica oferecer um novo contrato social que a todos beneficie.
A crise actual expôs a forma como tantas sociedades ricas estão aquém deste ideal. A luta para conter a pandemia expôs a falta de preparação dos sistemas de saúde ou a fragilidade de muitas economias nacionais, à medida que os governos correm para evitar falências em catadupa e para enfrentar o desemprego de massas. Apesar de apelos inspirados à mobilização nacional, não estamos realmente todos nisto.
Os confinamentos económicos estão a impor um custo acrescido aos que estavam já em pior situação. De um dia para outro, milhões de postos de trabalho e de sustentos foram perdidos nos sectores da hotelaria, lazer e quejandos, enquanto que os trabalhadores melhor remunerados enfrentam o incómodo de trabalhar a partir de casa. Pior ainda, todos os que têm empregos mal remunerados e que ainda conseguem trabalhar estão tantas vezes a arriscar as suas vidas – como cuidadores e auxiliares de saúde, mas também como repositores de prateleiras nos supermercados, condutores ou empregados de limpeza.
Os extraordinários apoios orçamentais à economia por parte dos governos, embora necessários, piorarão as coisas de várias formas. Os países que permitiram a emergência de um mercado de trabalho marcado pela precariedade e pela informalidade estão a encontrar grandes dificuldades em canalizar ajuda financeira para os trabalhadores com empregos inseguros. Entretanto, o alívio monetário por parte dos bancos centrais ajudará os ricos, que detêm activos. Por detrás disto tudo, os subfinanciados serviços públicos está a ceder, sob pressão das políticas de combate à crise em vigor.
A forma como travamos a guerra contra o vírus beneficiará alguns em detrimento de outros. As vítimas do Covid-19 serão sobretudo os mais velhos. Mas a maiores vítimas dos encerramentos serão os mais novos e activos, a quem é pedido que suspendam a formação e que prescindam de rendimento precioso. Os sacrifícios são inevitáveis, mas todas as sociedades terão de demonstrar como gerar formas de restituição aos que tiveram de arcar com os maiores fardos dos esforços nacionais.
Será necessário pôr em cima da mesa reformas radicais - invertendo a orientação política prevalecente nas últimas quatro décadas. Os Estados terão de ter um papel mais activo na economia. Devem encarar os serviços públicos como investimentos e não como um peso, e procurar formas de tornar os mercados de trabalho menos inseguros. A redistribuição estará novamente na ordem do dia; os privilégios dos mais velhos e dos mais ricos serão postos em causa. Políticas consideradas excêntricas como um rendimento garantido e impostos sobre a riqueza terão de fazer parte do menu.
As medidas que os governos têm tomado para apoiar as empresas e os rendimentos estão a quebrar tabus e são correctamente comparadas com o tipo de economia de guerra que os países ocidentais não conheceram nas últimas sete décadas. A analogia pode ir mais longe.
Os líderes que ganharam a guerra não esperaram pela vitória para planear o que se seguiria. Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill estabeleceram a Carta do Atlântico, que culminaria nas Nações Unidas, em 1941. O Reino Unido publicou o relatório Beveridge em 1942. Em 1944, a conferência de Bretton Woods forjou a arquitectura financeira do pós-guerra. O mesmo tipo de visão é necessária hoje em dia. Para da guerra de saúde pública, os verdadeiros líderes mobilizarão agora para ganhar a paz.
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7 comentários:
Quando tantas excelências andam pelas horas da morte, já só falta tratar senhorialmente como excelência mais esta praga que por aí anda a matar.
«Os privilégios dos mais velhos...»
Que privilégios?
José Dimas, os das pensões douraas tãão próximas das dos CEO, Desportistas & Banksteres Associados.
Temos um belo naipe nesta Dinamarclusa.
O neoliberalismo sempre usou as contradições entre a teoria e a prática a seu favor.
No cerne do problema está a crescente disparidade entre os objetivos declarados - o bem-estar de todos - e as suas verdadeiras consequências - a recuperação do poder de classe social das elites (texto traduzido do livro A brief history of neoliberalism" de David Harvey.
O que se está a passar é a chamada dos estados para fazerem o corporate welfare.
A consequência será a austeridade para a "mercadoria" trabalhadores.
Só que a "mercadoria" vai ser alargada ainda mais desta vez.
Sempre as crises trazem os arautos das mudanças radicais.
O mais imediato é dizer-se que em tempos normais se haveria de ter atuado como de uma crise se tratasse.
O ridículo da coisa é que se assim se tivesse feito boa parte das consequências da crise se configurariam como dados de um tempo de normalidade.
A mensagem que subjaz à doutrina socialista dá nisso mesmo, embora nos queiram dizer que nos levaria ao usufruto das melhores consequências de uma sociedade capitalista.
A escolha é simples: tomar medidas de excepção e voltar a acreditar no crescimento económico e progresso tecnológico ou implementar a crise larvar, de baixa liberdade e baixas expectativas.
Corbyn nunca representou uma ameaça porque sempre se revelou pouco inteligente. Usou de cinismo e de reserva mental ao não defender a posição oficial do seu Partido no referendo de 2016, participando em 10 (!) acções de campanha, esperando provavelmente que o Brexit representasse a morte de Cameron e a divisão dos Tories, quando o eleitorado do Labour era o mais heterogéneo de todos e os seus membros os mais europeístas. Claro que seria o Partido mais vulnerável ao Brexit, só que ele não percebeu isto...
E o João Rodrigues ainda não percebeu que quando os eleitores de um Partido numa Democracia não gostam do seu programa, vão votar noutros Partidos. A boutade de Mandelson, de que os eleitores da Red-Wall não tinham para onde ir não se aplicava nem as estes, nem ao eleitorado pró-europeísta (que é maioritário note-se, Corbyn seria PM num sistema eleitoral proporcional).
Ou melhor, sabe isto muito bem, mas dá-lhe jeito culpar outros pela azelhice leninista de Corbyn (Cummings nessa matéria leva-lhe a palma em termos de estratégia)...
Os colunistas do FT são pragmáticos, como diz. Sabem o desastre económico que se avizinha e estão dispostos a aceitar a intervenção do Estado para se salvarem até porque ao volante estarão os Tories, uma espécie de 'safe pair of hands', embora convenhamos que a gestão da actual crise por Johnson leva a crer que o RU enfrentará um desastre humano com as proporções da Itália ou pior.
Tudo por causa, note-se, do orgulho nacionalista dos ingleses e da vontade de fazer diferente... Ora, esta notória cegueira não augura nada de bom para o que se passará a seguir...
Quanto à conversão à redução de desigualdades, revela igualmente um mero sentido de sobrevivência... Se os Tories ouvirão tais conselhos é que se me afigura difícil...
A demonização dos liberais que faz, esquecendo as credenciais liberais de um Keynes ou Beveridge entende-se (se calhar mete-os na mesma gaveta dos colunistas do FT, mau grado as loas que lhes tece). Se por cá serão fascistas, torna-se legítimo usar de todos os meios para os combater, não é?
Só que, como de costume, faltam-lhe a si os meios e a estratégia. Como bem diz acima, isto é mesmo, contrariamente ao dito editorial, só conversa, nem vale a pena perder tempo com isso... Conversa e fel (estava à espera que ganhasse Long-Bailey?).
E se a História nos serve de guia (um mau guia como sempre) a UE acabará provavelmente por se sair bem melhor que o RU. É que aquilo que se apregoa por lá por estes dias faz lembrar o discurso de Harold Wilson sobre uma nova Grã-Bretanha forjada no calor branco da revolução tecnológica.
Não correu muito bem e o resultado foi a adesão à CEE que apresentava índices mais elevados de crescimento económico (Thatcher soube depois construir e aproveitar-se bem do Mercado Único para recuperar o tempo perdido).
Só não se entende muito bem como é que com estes egrégios (maus) exemplos Mitterrand se foi depois meter a fazer o mesmo... Com o mesmo resultado, claro...
Quando o FT ensaia uma viragem à esquerda, vem aí bala de canhão... Ou bomba atómica!
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