Esta receita é especificamente italiana, mas conta com ingredientes externos, do espeto de euros forte para uma economia desfeita ao euro-liberalismo, com os seus sabores a austeridade, liberalização e privatização, que ademais lhe conferem uma dimensão cosmopolita irresistível.
sexta-feira, 30 de setembro de 2022
Receita italiana
Esta receita é especificamente italiana, mas conta com ingredientes externos, do espeto de euros forte para uma economia desfeita ao euro-liberalismo, com os seus sabores a austeridade, liberalização e privatização, que ademais lhe conferem uma dimensão cosmopolita irresistível.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Comprar obrigações do tesouro na 'escala que for necessária' - Momento AIG (III)
Tempo de vendilhões
Dominado há décadas por iniciativas liberais, este é um tempo em que tudo se compra e tudo se vende, um tempo marcado pelo nexo-dinheiro. Por isso, comentadores ditos liberais como João Miguel Tavares não têm qualquer autoridade para falar de limites ético-políticos aos mercados sem fim.
Francisco tem avançado e muito no esclarecimento das implicações anti-liberais da Doutrina Social da Igreja, mas na Universidade Católica Portuguesa, objecto de todas as benesses públicas, promovem o consumo conspícuo mais desbragado, as ideologias do individualismo mais possessivo ou a venda de lugares em cursos, como Medicina, naturalmente muito procurados.
O merecimento, a necessidade, a dádiva da gratuitidade requerem um quadro institucional contrário ao que é promovido pelos novos vendilhões do templo.
quarta-feira, 28 de setembro de 2022
Sabotagens sempre houve muitas
Errar é humano, insistir no erro é ... jornalismo económico
A subida das taxas de juro dos títulos de dívida pública nos mercados financeiros - deixadas à solta pelo Banco Central Europeu (BCE) depois de abandonar a política pouco neoliberal de controlo dos mercados durante 10 anos - tem uma finalidade primeira pouco abonatória. E com consequências gravosas para todos. Mas esta nova realidade começa a ter bizarras ressonâncias no jornalisno económico.
Os jornalistas económicos poderiam realçar o que está na calha: criar mais dificuldades aos Estados europeus - sem resolver o problema da inflação - que supostamente serão colmatadas com os novos mecanismos previstos, mas que, na verdade, serão acompanhadas pela imposição de novas condicções à execução das políticas públicas nacionais. Ou seja, novas medidas de austeridade. E tudo pode ser agravado com o facto de as empresas de energia terem andado a especular e de se encontrarem sem liquidez suficiente, o que já levou à sua nacionalização em diversos países e que pode transbordar - e é mais uma ressonância presente vinda do passado - para o sector financeiro, o que acabará - como é previsível - por obrigar os Estados a ter de segurar a banca (ler aqui e aqui). Nem se sabe se em Portugal se passa o mesmo...
Mas sobre isto o jornalismo económico nada diz! Silêncio total. Ignorância, cegueira ou... censura?
Tanto, pois, que o jornalismo económico poderia dizer. Mas não. Ainda hoje, José Gomes Ferreira, um dos directores da Sic Notícias, disse em estúdio que a austeridade, como política económica, não é uma opção dos Governos de "fazer mal" aos cidadãos, mas "uma necessidade". Face à subida dos encargos com a dívida, os Estados vão ter de "poupar", ou seja, cortar na despesa pública (leia-se, nos ordenados, nos serviços públicos, nas pensões, etc). Por outras palavras: "não há alternativa". É o velho dito: "Amochem porque nos estão a mandar amochar".
Ora, esquece-se, primeiro, que a política de austeridade sempre foi criticada como sendo a única alternativa. E ainda por cima com alternativas bem mais eficazes. Depois, a História comprovou os maus resultados gerados pela aplicação militante do Governo de direita de Passos Coelho/Portas/Montenegro/Moedas: uma recessão nunca antes vista, um desemprego que subiu em flecha chegando aos valores infernais de 25% da população activa (cerca de 1,5 milhões de pessoas), uma emigração histórica e sobretudo de trabalhadores qualificados, empresas a fechar portas, corte nas despesas públicas que atingiu e empobreceu os portugueses e cujas repercussões ainda são sentidas. Recorde-se - e é mais uma ressonância presente vinda do passado - que parte do corte previsto era nas pensões (ver aqui o barómetro nº5). Finalmente e por isso mesmo, ficou mostrado que a austeridade necesssita de cortar mais do que o previsto para atingir os objectivos orçamentais traçados (ver aqui o barómetro nº7).
Em três anos – 2011, 2012 e 2013 – a ideia era cortar à despesa pública 10 mil milhões de euros e aumentar a receita em outros 10 mil milhões. Ou seja, um esforço de "consolidação" de 20 mil milhões. Só que o resultado foi uma redução do défice de apenas 6 mil milhões de euros: de 15,8 mil milhões (9,1% do PIB) em 2010, para 9,8 mil milhões (5,9% do PIB) em 2013. As previsões falharam porque os orçamentos tiveram um enorme efeito recessivo não antecipado.
O próprio jornalismo económico que inicialmente abraçou, de forma militante, a política de austeridade e o Memorando de Entendimento com a troika, acabou por queimar na praça pública o governo de direita. (ver aqui o Caderno nº7 do Observatório sobre Crises e Alternativas). O próprio José Gomes Ferreira - como é visível no filme em cima - que defendeu os cortes e mais cortes, acabou a fustigar o ministro Vítor Gaspar... Já nem se percebia o que estava a passar-se. No final do filme, Pedro Santos Guerreiro, face ao jornalista estrangeiro atónito sobre como foi possível o povo ter aceite tanta austeridade, tem a estranha explicação de que o povo aceitou bem a austeridade porque foi entendido que era a única forma de acabar com... a austeridade! Faz isto sentido?
Ora, dez anos depois, eis que tudo volta à primeira forma. É mesmo caso para dizer que errar é humano, mas insistir no erro é... jornalismo económico.
Haja paciência!
Iniciativas liberais
Nasceu no Porto a 20 de janeiro de 1971 e, por opção própria - alheia a qualquer tipo de dificuldades financeiras - deixou de estudar, e entrou no "mundo dos negócios muito cedo". Aos 19 anos já fazia parte do Conselho de Administração da holding familiar.
terça-feira, 27 de setembro de 2022
Contra o défice de pluralismo
Foi há pouco mais de um ano que surgiu o Setenta e Quatro, «um projeto digital de jornalismo de investigação que acredita que apenas com acesso a informação livre e credível é possível defender a democracia e aprofundar os princípios da igualdade e da liberdade».
Tal como outras publicações que recusam a ampla trincheira do discurso dominante (sobretudo nas televisões), contribuindo para uma maior diversidade de perspetivas e o pluralismo no debate, o Setenta e Quatro, cujos conteúdos são de livre acesso, depende das contribuições de quem o lê para ser financeiramente sustentável. E por isso necessita, para poder prosseguir para lá de 2022, de 361 subscritores até dezembro. Assinem, é jornalismo de qualidade contra o défice de pluralismo.
Receita italiana: um ingrediente adicional
Esqueci-me ontem de colocar a indicação de um ingrediente que melhora a receita italiana: três pitadas de soberanismo de esquerda, dividido num cemitério de siglas ou de nomes que às vezes confunde os que tentam a receita pela primeira vez: União Popular, Italexit e Itália Soberana e Popular.
segunda-feira, 26 de setembro de 2022
A UE contra a democracia
A Itália confirma o que tenho vindo a dizer: é o calcanhar de Aquiles da UE. Ainda assim, não creio que esteja para breve uma crise fatal para a UE. As diferenças e rivalidades no seio da coligação de direita que ontem ganhou as eleições podem, com o tempo, produzir uma ruptura e obrigar a novas eleições. É a Itália.
Esta evolução negativa vai continuar, ou mesmo agravar-se, na sequência da crise político-militar, económica, financeira, social e ambiental que estamos a viver. Na falta de uma alternativa de esquerda para estas políticas - e ela não é possível no quadro dos Tratados - o descontentamento popular que se traduz em xenofobia e discurso de ódio será capitalizado pela extrema-direita. De nada adianta fazer apelos emocionados para que os partidos neo-fascistas não sejam "normalizados". A manutenção das políticas instituídas na UE farão o seu trabalho de sapa das democracias.
Uma frente política de esquerda que esteja preparada para organizar a retoma da economia no pós-euro, se e quando este implodir, seria um primeiro passo para podermos alimentar a esperança em melhores dias. Por agora, o horizonte é sombrio.
Sobre a Itália, seguir no Twitter o economista Philipp Heimberger a quem roubei o gráfico sobre a evolução das diferenças no PIB/hab da Itália relativamente à Zona Euro, à França e à Alemanha.
A imprescindível flexibilidade de um camaleão de ferro
A propósito da facilidade com que os jornalistas tratam os fascistas de "radicais moderados" ou de "direita radical" ou de "populistas de direita" - como algo aceitável, uma alternativa necessária - convém recuar cem anos até ao advento do fascismo na Europa. E pensar que os fascistas não surgem e ressurgem do nada.
Têm uma natureza de classe e uma inerente traição de classe. O fascismo nasce das políticas que conduziram ao desemprego e ao empobrecimento, à falta de perspectivas das sociedades bloqueadas, e que geram o pânico de inúmeras camadas sociais entre as massas proletarizadas e a alta burguesia dona disto tudo, ao sentirem o verdadeiro risco de engrossarem o campo dos pobres de quem se julgam diferentes. O fascismo nasce da zanga desses extractos, mas morre quando percebem que as forças políticas que julgavam ser a sua salvação, afinal, se aproveitaram do seu descontentamento e entregaram o poder, de novo, aos mais poderosos. Só que nessa altura já é tarde demais. E o preço pago foi enorme.
Sobre as causas desse bloqueio social, tanto hoje como há cem anos, muito haveria a comentar. Nomeadamente das políticas económicas que tolhem o desenvolvimento dos países. Mas igualmente da responsabilidade social-democrata ou socialista, da sua cegueira ou incapacidade de rasgar as camisas de 11 varas políticas, verdadeiros ovos da serpente.
Foi a propósito dessas similitudes, mas sobretudo do discurso camaleónico como os fascistas de ontem e de hoje aliciam as camadas em pânico - antes para mudar o mundo, hoje para o manter - que escrevi um texto para o Caderno Vermelho, publicação do Sector Intelectual de Lisboa do PCP, dirigida por Manuel Gusmão. Deixo-o aqui como contributo para que se fale mais sobre das causas do fascismo.
O camaleão fascista
“Nada se parece mais com um camaleão do que a ideologia fascista. Não penseis na ideologia fascista sem ver o objectivo que o fascismo se propõe atingir num momento determinado”.
Não é já possível ouvir a voz destas palavras.
Palmiro Togliatti, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano (PCI), estava em Moscovo como membro do executivo da Internacional Comunista (IC) desde a ilegalização do PCI em 1926. E, de Janeiro a Abril de 1935, deu uma série de cursos sobre o fascismo a jovens operários italianos exilados, vindos das prisões fascistas. As notas então tomadas por um dos presentes seriam publicadas em 1970 com o título Lições sobre Fascismo.
O curso de Togliatti revela já o corolário das longas discussões havidas no movimento comunista desde o início dos anos 20, sobre os movimentos fascistas no mundo e sobre a sua natureza de classe. Se eram simples “agentes” do capital monopolista ou um real movimento da pequena burguesia a abrir caminho entre os velhos partidos burgueses e os operários, em protesto contra o seu esmagamento pela “grande riqueza” que a proletarizava, embora no final se tornasse no “criado do capital e dos agrários” (Gramsci) ou “representante dos interesses do grande capital” (Trotsky).
Estes debates ficariam muito marcados pelo que se passou então na Alemanha.
Em finais de 1932, cinco milhões de desempregados oficiais eram a face do empobrecimento do povo que já atingia as camadas da pequena burguesia, esmifradas pela grande distribuição e monopólios empresariais, mas também pelas políticas de austeridade (aumentos de impostos, cortes no subsídio de desemprego, etc.). A crise social provocara uma guinada política à direita e sucediam-se as eleições. A propaganda nazi atingia proporções nunca vistas, com novos métodos, multiplicação de escândalos, cartazes, filmes, aviões, meios infindos. Sem soluções, o partido nazi tinha um discurso de promessas e ódios bem sucedido. Mas não totalmente. Depois de um segundo lugar no Reichtag (parlamento) em Março de 1932, as eleições seguintes mostraram que os nazis não chegariam ao poder democraticamente.
Receita italiana
sábado, 24 de setembro de 2022
Notícias que quebram
Li agora um texto que o economista Paulo Coimbra publicou num blogue [Ladrões de Bicicletas é um nome fácil de escrever...] cujo título é: “O que sabe o ministro da Economia que nós não sabemos?”.
sexta-feira, 23 de setembro de 2022
Paz, classe
Se, em vez de “ceder às exigências da Rússia”, tivessem escrito “aceitar exigências da Rússia”, teríamos sido mais de um terço. De resto, confirma-se que a luta pela paz tem uma dimensão de classe.
Pluralismo no debate?
Diz que é um Crossfire, no prime time da CNN. E o incauto cidadão poderá pensar que se trata de um espaço de contraditório, em que se esgrimem argumentos e se confrontam diferentes pontos de vista. Mas vai-se ver e é apenas mais um caso de redundância de opinião, que agrava o défice de pluralismo e o enviesamento do debate.
Ou seja, estamos perante mais um exemplo de Dupond et Dupont no debate político-económico oferecido pelas televisões, juntando desta vez Miguel Relvas e Álvaro Beleza. Cereja em cima do bolo: um dos temas abordados foi a sustentabilidade da Segurança Social, uma questão que divide abissalmente os dois comentadores, não é, senhor presidente da Sedes? Vejam se puderem, a partir do minuto 6. Ilustra bem o persistente declínio editorial em que estamos mergulhados.
quinta-feira, 22 de setembro de 2022
A IL é o sistema e é financiada por ele
Segunda a edição desta semana da Revista Sábado, a Iniciativa Liberal recebeu generosos donativos do CEO da EDP e do maior acionista do jornal online Observador.
O Observador foi e é um órgão de comunicação vital para a legitimação do discurso da direita radical da IL no espaço público. A EDP foi beneficiária direta de posições deste partido na Assembleia da República, designadamente na recusa de taxar os lucros excessivos do monopólio das energéticas na atual crise.
Imaginem só o que a IL diria se o dono de um jornal financiasse o PCP ou o BE. Ou se esses partidos fossem financiados por entidades com fins lucrativos, cujo voto na AR as favorece. Estão a imaginar, não estão?
A IL não é contra o sistema. É a garantia da reprodução do sistema e é financiada por este. Porque o sistema é neoliberal. O papel da IL é aprofundar a sua natureza, garantindo que todos os elementos socializantes que ainda subsistem são eliminados. Só considera que vivemos num país socialista quem tem grave incompreensão conceptual ou mente deliberadamente.
O empobrecimento é a cura para a inflação?
Toda a economia é política
Encontram mais informações no site da Associação. Já agora, mais uma chamada, desta vez para uma conferência sobre planeamento público e democrático.
quarta-feira, 21 de setembro de 2022
O que sabe o Ministro da Economia que nós não sabemos? (Momento AIG II)
Países mais altos
Até uma das referências dos liberais supera o Governo português em matéria de justiça social e fiscal nestes tempos que não estão para liberalismos: os Países Baixos decidiram aumentar o salário mínimo em 10% e taxar os lucros extra e ordinários.
Por cá, o Governo da Troika acentua a sua hegemonia: os salários são sempre a variável de ajustamento na periferia sem instrumentos de política, agora em nome de espirais inflacionárias imaginárias.
terça-feira, 20 de setembro de 2022
Notícias do roteiro de coincidências
Nada de social-democrata
O mesmo Governo que promove uma transferência de rendimentos do trabalho para o capital superior à registada no tempo do Governo da Troika, veio, pela voz do seu Ministro da Economia, defender um corte transversal no IRC, isto quando se sabe que “não há evidência empírica que nos permita afirmar que esses cortes promovem o crescimento económico”.
Sem qualquer pudor, defendeu ainda que os grandes grupos económicos “não estão preparados” para um imposto sobre os lucros extra e ordinários registados.
O mesmo Governo que tem alinhado com o plano europeu, combinando escalada sancionatória inflacionária com subida da taxa de juro recessiva pelo BCE, aposta num corte permanente das pensões, ou seja, do salário indirecto, à boleia de previsões rigorosamente erradas por definição, até dada a incerteza radical.
Vale tudo para comprimir o mercado interno, de que a queda do investimento também fará parte, na medida em que se investe em função da expectativa de vendas.
A maioria absoluta revela que de social-democrata este PS de Costa não tem nada, sobretudo ali onde se decide tudo, a sorte de tantos, ou seja, na política económica.
Sábado, em Vila Real
Com moderação de Luísa Schmidt (Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa), participam nesta sessão Cidália Silva (Escola de Arquitetura, Arte e Design da Universidade do Minho), José Carlos Mota (Universidade de Aveiro) e Nuno Serra (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra).
Assumindo os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, este seminário procura, num contexto interdisciplinar, «discutir a sustentabilidade ambiental, económica, e social, no percurso do ambiente construído», tendo em vista «lançar o mote para imprimir na consciência coletiva a urgente necessidade de repensar as práticas do setor da construção e instigar uma análise futurológica do European Green Deal, que permita refletir sobre o território após o cumprimento das metas de 2050». Contribuindo, deste modo, para «pensar as realidades que poderemos ter em 2051 e os passos que a elas nos conduzirão». A participação em todas as atividades dos diferentes painéis é livre, apenas requerendo a respetiva inscrição prévia.
segunda-feira, 19 de setembro de 2022
A crise energética veio para ficar
A crise energética promete não dar tréguas no próximo inverno. No discurso sobre o estado da União, Ursula von der Leyen asseverou que as sanções contra a Rússia “vieram para ficar”. Perspetiva-se, assim, um agravamento da crise energética, já que a ameaça de rutura total do fornecimento de gás natural tem sido o principal instrumento de retaliação por parte de Vladimir Putin.
Embora rejeite um apaziguamento do conflito, a Comissão Europeia (CE) acredita que será possível atravessar o inverno sem impor racionamentos e, simultaneamente, minimizar a dependência energética em relação à Rússia, mediante a diversificação de fornecedores e do reforço das reservas estratégicas de gás natural. No entanto, estas fontes de abastecimento alternativas, nomeadamente o gás natural liquefeito proveniente dos Estados Unidos da América e do Qatar, são bastante mais caras e estão sujeitas a uma forte concorrência entre compradores no mercado internacional. Por conseguinte, os Estados europeus mais dependentes destas supostas alternativas, como a Alemanha, para lá do contínuo encarecimento do gás natural, poderão também vir a enfrentar falhas de abastecimento.
A crise energética avança a passos largos, prenunciando uma deterioração das condições socioeconómicas ao longo do inverno: as faturas da energia disparam um pouco por toda a Europa, e a carestia de vida, impulsionada pelo aumento dos custos, adensa as incertezas de famílias e pequenas e médias empresas em relação ao futuro. Perante este cenário, a CE delineou um pacote de medidas temporárias e de emergência para mitigar a escalada de preços da energia, instando, igualmente, à redução coordenada da procura de gás natural e de eletricidade.
Uma das propostas apresentadas pela Presidente da CE consiste na fixação de um teto para os lucros extraordinários das empresas de energia. Evocando os valores da economia social de mercado (uma contradição nos termos) em que supostamente assenta a União Europeia, a CE defende a obrigatoriedade de um limite máximo para as receitas das empresas que produzem eletricidade a baixo custo (hídrica, eólica, solar ou nuclear), salvaguardando, porém, que “o lucro é algo positivo”. A estratégia passa por não hostilizar as grandes empresas energéticas, apelando antes à sua responsabilidade social e à partilha e canalização dessas receitas “para quem mais precisa”. A CE confia, porventura, que este discurso moralizador será suficiente para que os cidadãos não se sintam injustiçados, evitando, assim, a instabilidade social e a precipitação de crises políticas.
Contudo, esta medida não reúne consenso no seio dos 27 Estados-membros e terá de ser discutida e aprovada numa reunião posterior. O Governo português, por exemplo, tem rejeitado sucessivamente a hipótese de taxar devidamente os lucros extraordinários das empresas de energia que operam em Portugal.
Já as grandes empresas petrolíferas, de gás natural e de carvão, ou seja, os principais motores do capitalismo fóssil, terão de pagar uma contribuição de crise, embora não tenham sido divulgados detalhes acerca da operacionalização desta proposta. Nada como um singelo gesto solidário num momento crítico para camuflar o papel destas empresas na crise ecológica, permitindo que prossigam tranquilamente com a sua atividade.
A atual crise energética expõe, uma vez mais, as limitações flagrantes dos mercados liberalizados e a sua incapacidade para garantir justiça e segurança sociais. O controlo do setor energético, pela sua importância estratégica, deve estar sob a alçada dos Estados nacionais, a quem cumpre assegurar a universalidade do direito à energia. Fica patente, deste modo, a urgência em romper definitivamente com os combustíveis fósseis – que, para além das consequências ambientais nefastas, colocam os Estados à mercê do xadrez geopolítico –, concretizando transições energéticas justas e democráticas, assentes em fontes renováveis, na propriedade pública dos principais centros electroprodutores e na autossuficiência.
Crónica no setenta e quatro.
domingo, 18 de setembro de 2022
Momento AIG da zona euro?
Se os preços da energia estão em alta e as empresas que a comercializam estão a realizar lucros de tal monta que justificam impostos extraordinários, porque razão as duas maiores empresas de energia da Alemanha estão em dificuldades financeiras tais que um governo ordoliberal se prepara para as nacionalizar?
A resposta é simples embora não imediatamente evidente. Muitos e poderosos interesses trabalham afincadamente para manter um véu de opacidade sobre a gigantesca operação de socialização de prejuízos privados que aí vem.
A resposta: porque estas empresas vendem energia usando contratos com os compradores que fixam um preço no futuro (e por isso se fazem remunerar principesca e especulativamente) e se obrigaram a fornecer garantias (colateral) por forma a mostrar que serão capazes de honrar esse preço. É a obrigação de fornecer esse colateral que está a criar problemas insuperáveis de liquidez - e não de rendibilidade - a estas empresas.
Por agora, o BCE recusa-se a fornecer estes montantes astronómicos de liquidez a estas empresas sujeitas a margin calls - o palavrão para o momento em que a obrigação de fornecer activos de garantia se materializa -, colocando em causa todo este esquema altamente financeirizado e especulativo; recusando-se, o BCE está a fazer o contrário do que a Reserva Federal Americana fez, depois de confrontada com o estrago - com precedentes apenas na crise de financeira de 1929 - provocado pela sua decisão de deixar falir a Lehman Brothers, quando a AIG, com milhões e milhões de Credit Default Swaps no seu balanço (um instrumento financeiro em tudo semelhante aos contratos em Futuros agora em causa, ou seja, contratos financeiros derivados, desligados da esfera real, cujo activo subjacente é o preço futuro da energia), enfrentou um problema semelhante de incapacidade de honrar as tais margin calls e fornecer o tal colateral.
Veremos o resultado. Não é preciso consultar a bola de cristal para saber que não vai ser bonito. Assim como assim, sem ou com apoio do BCE, com ou sem nacionalização, estas garantias acabarão a ser fornecidas por todos nós, aqueles que não tomaram parte nestes contratos, e pesarão nas contas públicas já oneradas pelo erro histórico de subir a taxa de juro e pelo abrandamento económico que se seguirá. Pagaremos com desequilíbrio das finanças públicas, falências privadas, habitações hipotecadas tomadas pelos bancos, desemprego e fatias de rendimento progressivamente menores para quem trabalha.
O conflito de classes agudizou-se e a classe trabalhadora está a perder. Até quando?
A pobreza da política económica
sábado, 17 de setembro de 2022
O fantástico poder da propaganda [Lido e acrescentado]
Sobre as grandes questões do universo político-financeiro - temas tão candentes como combate à inflação, subida de taxas de juro, perda brutal do poder de compra, ameaça de recessão económica, falências, desemprego, crise social generalizada - mau grado o ruído, não existe propriamente informação. A qual exige rigor, enquadramento, explicação adequada. Tudo o que há é propaganda. Ou o eco de um 'spin', em tudo idêntico à propaganda da guerra, que se multiplica e invade todo o espaço mediático. O conteúdo do 'spin' e o seu suposto fundamento não é sequer analisado, muito menos debatido. O 'spin' torna-se 'mainstream' e arrasa tudo na sua torrente. Sem sombra de contraditório. Último exemplo: o BCE lançou - timidamente e após longa hesitação - a ideia de que pode atacar a inflação e "arrefecer a procura" (sic) nos mercados mediante subidas de taxas de juro.
Momento de arte socialista
sexta-feira, 16 de setembro de 2022
Segurança Social: da questão demográfica ao oportunismo da Sedes
Em matéria de Segurança Social, o recente relatório da Sedes (a que o João Rodrigues e o João Ramos de Almeida já se referiram, aqui e aqui), está em perfeita sintonia com a marca neoliberal que o ensopa, patente na promessa de «duplicar o PIB em 20 anos», brindando as empresas com um «choque fiscal» e reservando os «sacrifícios» para os do costume, na melhor esteira da PAF e da economia-do-pingo-que-não-pinga.
De facto, também nesta matéria a receita é velha e relha, recorrendo-se uma vez mais a uma retórica com décadas: a) temos um problema de envelhecimento demográfico; b) esse problema torna o sistema de pensões insustentável; c) é preciso substituir o atual modelo de repartição (solidário e intergeracional) pela capitalização (em que cada um trata da sua própria reforma, entregando-se a gestão das contribuições ao mercado).
A questão demográfica é irrefutável: existe um problema de envelhecimento, que se acentuará pelo menos a médio prazo. De facto, e de acordo com o INE, se em 1960 o segmento das crianças e jovens representava cerca de 30% da população total, em 2020 representa menos de metade desse valor (13%). E, em sentido inverso, se a população idosa representava cerca de 8% em 1960, hoje representa quase o triplo (22%).
Só que o corolário de tudo isto não é - como a direita e a Sedes ardentemente desejam - a inevitável transição para um sistema de capitalização, gerido por privados nos mercados bolsistas, com os riscos e desastres que se conhecem, e sem que se explique de que forma esse modelo garante a redistribuição e as pensões que o sistema público, comum e solidário, assegura. Porque a questão da sustentabilidade da Segurança Social é, na verdade, uma questão de «sustentabilidade demográfica» da Segurança Social, e não da sua filosofia redistributiva e solidária.
A direita esquece-se, aliás, do importante contributo do emprego e dos rendimentos para a melhoria da sustentabilidade do sistema, como ficou bem demonstrado no tempo da Geringonça. A recuperação do emprego, entre 2015 e 2019 (depois de o desemprego ter atingido máximos históricos), permitiu adiar em 9 anos a data prevista para o surgimento dos primeiros saldos negativos do FEFSS e em 19 anos a data prevista para o seu esgotamento (como mostra o gráfico lá em cima). É que não é por acaso que a direita aparentemente tão preocupada com a sustentabilidade da Segurança Social é a mesma direita que despreza o pleno emprego e a melhoria dos salários.
Não é mesmo um slogan
O livro foi lançado em Maio. Saiu em Setembro a segunda edição de O Neoliberalismo não é um slogan – Uma história de ideias poderosas. Já me perguntaram se escrevi mais, porque a segunda edição é mais volumosa. Não trabalhei mais, a gramagem do papel é que é diferente.
Nas concorridas feira do livro de Lisboa e festa do livro do Avante tive excelentes trocas de ideias com Mariana Mortágua, cujo estimulante livro recensearei em breve, e com Vasco Cardoso.
Obrigado aos leitores generosos.
quinta-feira, 15 de setembro de 2022
Foi hoje...
Ficou marcada uma manifestação, convocada pela organização "Que se lixe a troica!".
Mas ao contrário de muitas outras, e porque o descontentamento era já explosivo e quase todos abrangeu (incluindo jornalistas) em virtude da aplicação militante das políticas (neo)liberais abraçadas pelo Governo Passos Coelho/Paulo Portas/Moedas/Montenegro, a manifestação tornou-se mesmo notícia. E acabou por ser inevitável o seu acompanhamento pelos meios de comunicação social.
Mais: as próprias televisões tornaram-se meios de mobilização social. A SIC Notícias ia dando, hora a hora, o número de adesões à manifestação na página do Facebook da organização. E os números iam crescendo. E à medida que cresciam iam fazendo mais pessoas estar dispostas a vir para as ruas, em todo o país. Foi um momento alto de condicionamento social invertido, face ao papel conservador que as televisões costumam ter relativamente à realidade social do país.
Recorde-se que o chispa para esta manifestação de 15/9/2012 foi o anúncio cerca de uma semana antes (a 7/9/2012) da ideia mirambolante de fazer subir a taxa social única (TSU) dos trabalhadores de 11% para 18% dos salários, ao mesmo que se baixava a das empresas de 23,75 para 18%. Ou seja, os trabalhadores perdiam - de um golpe - 7% dos seus salários e ordenados que, na sua maior parte (5,75 pontos percentuais) eram directamente transferidos para os donos das empresas. E lucravam mais as empresas que mais trabalhadores tivessem.
Esta medida surgiu depois de ter caído por terra em Julho de 2011 uma outra medida semelhante que visava fazer crescer a actividade económica, ao reduzir a TSU das empresas, sendo o "buraco" nas contas da Segurança Social coberto por receitas do IVA (desvalorização fiscal). Porém, todos os quadros técnicos envolvidos no estudo dessa medida - do Ministério das Finanças e do Trabalho, Banco de Portugal, etc. - questionaram a sua eficácia e a possibilidade financeira de ceder receitas fiscais do IVA. O tempo foi passando e o Governo ficava sem alternativas de política económica que, no quadro do pensamento teórico (neo)liberal, pudessem fazer crescer a economia. Recorde-se que haveria outras medidas - que até as confederações empresariais e patronais iam sugerindo na concertação social (procure-se aqui o caderno nº9 - mas que o Governo recusava por não se enquadrar no seu pensamento. Esta dessintonia entre uma visão (neo)liberal e empresários atingiu um climax quando António Borges, conselheiro do Governo, se mostrou agastado com os empresários, aliás num remake crítico que já havia acontecido com Cavaco Silva nos anos 90, e que é referido nas suas memórias, quando se declarou muito decepcionado com os empresários e grupos nacionais por quem ele tinha feito tanto, nomeadamente através do programa de privatizações...
Mas voltemos a Setembro de 2012. Ao dia do anúncio da medida.
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