segunda-feira, 30 de setembro de 2019
Sair deste buraco negro
«Chegámos até aqui porque, na década de 1980, o capitalismo enveredou pelo regresso aos mitos neoliberais do século XIX, que conduziram à segunda guerra dos trinta anos (1914-1945), com a grande depressão de permeio. Trocámos a prudência de Keynes pelo deslumbramento ideológico de Hayek. Retirámos dos sistemas políticos os estadistas que poderiam conduzir os mercados numa agenda estratégica de interesse público - como Roosevelt fez com o New Deal e a draconiana viragem da economia de guerra nos EUA em 1942 - para lá colocarmos os facilitadores e homens de mão dos interesses instalados.
Se quisermos sair deste buraco negro teremos de romper com esta "economia que mata", citando o Papa Francisco, ancorada numa nomenclatura política que não se limita a deixar passar impune a "maior falha de mercado" (como o economista N. Stern designou as alterações climáticas em 2006), como a estimula, protege e dela se alimenta. Se deixarmos a economia entregue à lógica do "governo sombra" que manda de facto no mundo, estaremos perdidos. Mas a falha de mercado só ocorreu pela corrosão da política que transformou a representação em venalidade. Urge uma revolução democrática para resgatar o futuro.»
Viriato Soromenho Marques, Dentro do buraco negro
domingo, 29 de setembro de 2019
Mais avisos e alternativas
Continuam a avolumar-se os receios sobre a próxima crise financeira: desta vez, é o relatório "Trade and Development 2019", publicado pela UNCTAD nesta semana, a dar conta dos riscos causados pela crescente tensão comercial entre potências ou pela possibilidade de um Brexit sem acordo num período em que o endividamento privado e público assume proporções preocupantes.
Reconhecendo as previsões negativas sobre o crescimento económico mundial, o relatório das Nações Unidas argumenta que "o desaceleramento registado em todas as grandes economias desenvolvidas, incluindo os EUA, confirma que confiar apenas em políticas monetárias de estímulo e no aumento dos preços dos ativos produz, na melhor das hipóteses, crescimento efémero, ao passo que os cortes de impostos para as empresas e para os indivíduos mais ricos falham no objetivo de promover o investimento produtivo."
Por oposição ao recurso exclusivo à política monetária expansionista aliada à liberalização comercial - "as políticas de eleição" para a ortodoxia - a UNCTAD defende que o caminho passa pelo reforço do emprego, dos salários e do investimento público no combate às alterações climáticas para contrariar as tendências recessivas e corresponder aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável definidos pelas Nações Unidas. Entre as instituições convencionais, começa a ganhar força a ideia de que travar o caminho para o abismo implica enfrentar a hegemonia neoliberal das últimas décadas. Resta saber se será suficiente para mudar de rumo.
sábado, 28 de setembro de 2019
20 anos de euro
Finalmente está disponível o livro electrónico Ética, Economia e Sociedade - Questões cruzadas, onde há um capítulo que escrevi com o seguinte título: Ascensão e Queda da UE: uma Avaliação Negativa dos 20 anos do Euro (clicar na imagem do PDF aqui; começa na página 303).
Foi escrito para que um não-economista possa perceber o buraco em que estamos metidos. Quando acabar de o ler, acredito que se vai sentir melhor informado, embora talvez mais preocupado. Mas foi mesmo essa a minha intenção, a de contribuir para que os meus concidadãos se interessem pelo bem-comum e tomem decisões informadas. Boa leitura.
sexta-feira, 27 de setembro de 2019
Manipulação eleitoral - o intervencionismo da Iniciativa Liberal
Reparei que muitas pessoas estão a partilhar os resultados de um questionário eleitoral designado “bússola política”. À primeira vista, assemelha-se a projetos semelhantes já feitos no passado. O inquirido responde a um conjunto de questões e, no fim do questionário, o teste revela qual é o partido do qual o inquirido está mais próximo politicamente, tendo por base os valores e preferências reveladas pelo inquirido em áreas como a política económica, social, cultural ou migratória. Estes inquéritos costumam ser feitos por centros de investigação em ciência política, que se pautam por critérios de independência na sua construção. Ainda que os pressupostos utilizados tenham sempre um forte elemento subjetivo e devam ser escrutinados com sentido crítico, o facto de serem realizados por uma instituição que se pauta por critérios académicos de intervenção na sociedade garante um patamar mínimo de independência.
Ora, não é isso que ocorre com esta bússola política que se encontra agora a ser partilhada. Se olharem com atenção, no final do site pode verificar-se que a bússola foi criada pelo “Instituto Mises Portugal”, o representante nacional de uma instituição reconhecida internacionalmente por promover os valores da economia austríaca e do neoliberalismo.
Houve dois elementos que me intrigaram de imediato, por serem demasiado imprecisos e indefensáveis. Em primeiro lugar, o PNR (partido de extrema-direita) está num eixo categorizado como “economia socialista”. Eu percebo a ideia subjacente: o que eles pretendem sinalizar é que se trata um partido que defende o intervencionismo do estado na economia. Mas nunca um projeto feito por uma instituição fiável poderia chamar a isso “economia socialista”. É um erro grosseiro que me levou de imediato a suspeitar. O outro exemplo refere-se ao posicionamento da Iniciativa Liberal: é o único partido que está no quadrante economia de mercado/libertário. Com efeito, qualquer cidadão nessa área será facilmente enquadrado nesse partido e não noutros possíveis nesse domínio ideológico, como o PSD ou mesmo o CDS. Trata-se de um enviesamento muito conveniente: a maioria dos elementos do instituto Mises está envolvido ou é apoiante da Iniciativa Liberal.
Este inquérito, em resumo, não é mais do que um exercício de manipulação eleitoral conduzido por pessoas próximas da candidatura da Iniciativa Liberal. Não ajudem à sua divulgação.
Pintar o clima
Recorrendo a dados do Berkeley Earth para a maior parte dos países, Ed Hawkins (Centro Nacional de Ciência Atmosférica da Universidade de Reading) construiu gráficos coloridos para melhor ilustrar a variação da temperatura média entre 1850 e 2018, com os anos a azul a registar os valores mais baixos e a vermelho os mais elevados.
Um dos aspetos que mais sobressai deste exercício é a constatação de que o aquecimento à escala global se intensificou apenas num tempo recente (desde finais dos anos oitenta) e, portanto, com um padrão e um ritmo dificilmente conciliáveis com a ideia de estarmos perante um fenómeno gradual, alheio à ação humana, que apenas reflete os longos ciclos naturais de aumento e redução da temperatura do planeta.
De facto, o acumular de sinais e alertas que apontam, de modo cada vez mais consistente, para o risco de uma catástrofe sem precedentes - levando hoje para as ruas milhares de jovens em todo o mundo - não só esvazia os argumentos dos que negam as alterações climáticas (ou o papel da ação humana nesse processo) como obriga a reconhecer as implicações profundas do seu combate. Isto é, como aqui assinalou o João Rodrigues, a necessidade de «uma nova política económica», que valorize o bem comum, reduza as desigualdades e mobilize «formas de planificação exigentes» (que assegurem o «controlo público das redes, da banca e das grandes alavancas de investimento»), sem dispensar uma certa «desglobalização dos circuitos económicos».
Um dos aspetos que mais sobressai deste exercício é a constatação de que o aquecimento à escala global se intensificou apenas num tempo recente (desde finais dos anos oitenta) e, portanto, com um padrão e um ritmo dificilmente conciliáveis com a ideia de estarmos perante um fenómeno gradual, alheio à ação humana, que apenas reflete os longos ciclos naturais de aumento e redução da temperatura do planeta.
De facto, o acumular de sinais e alertas que apontam, de modo cada vez mais consistente, para o risco de uma catástrofe sem precedentes - levando hoje para as ruas milhares de jovens em todo o mundo - não só esvazia os argumentos dos que negam as alterações climáticas (ou o papel da ação humana nesse processo) como obriga a reconhecer as implicações profundas do seu combate. Isto é, como aqui assinalou o João Rodrigues, a necessidade de «uma nova política económica», que valorize o bem comum, reduza as desigualdades e mobilize «formas de planificação exigentes» (que assegurem o «controlo público das redes, da banca e das grandes alavancas de investimento»), sem dispensar uma certa «desglobalização dos circuitos económicos».
Limites e restos
No dia de uma grande acção de massas do movimento ecologista, recupero uma sugestiva formulação de George Monbiot: “Não é inteiramente verdade que por detrás de uma grande fortuna esteja um grande crime (…) mas parece ser universalmente verdadeiro que à frente de uma grande fortuna está um grande crime”. Isto é assim, dado que “a riqueza imensa se traduz automaticamente em impactos ambientais imensos, independentemente das intenções dos seus possuidores”.
A evidência empírica de que “os mais ricos estão a cometer ecocídio” acumula-se tão ou mais rapidamente do que a concentração de riqueza. Monbiot faz um bom trabalho a sistematizá-la. Realmente, não é possível começar a resolver a questão ambiental sem limitar o rendimento e a riqueza que é possível acumular: do consumo conspícuo ao bloqueio de soluções cooperativas. Quando pensamos em limites, pensamos pelo menos para lá do capitalismo neoliberal.
A questão social e a questão ambiental estão profundamente articuladas, como também nos indica o Papa Francisco. Os neoliberais sabem que cada vez mais verão as coisas por este prisma e daí o seu ódio de morte aos mensageiros da catástrofe ambiental iminente. A crónica vil de João Miguel Tavares sobre Greta Thumberg é só um exemplo do estado a que chegou o neoliberalismo realmente existente. Um jornal que publica coisas destas pode ser tudo menos referência para o que quer que seja de civilizado. No Público é aliás assim: Manuel Carvalho diz matem e João Miguel Tavares diz esfolem os aprendizes de Lenine. Não resta mais nada aos autointitulados liberais.
A evidência empírica de que “os mais ricos estão a cometer ecocídio” acumula-se tão ou mais rapidamente do que a concentração de riqueza. Monbiot faz um bom trabalho a sistematizá-la. Realmente, não é possível começar a resolver a questão ambiental sem limitar o rendimento e a riqueza que é possível acumular: do consumo conspícuo ao bloqueio de soluções cooperativas. Quando pensamos em limites, pensamos pelo menos para lá do capitalismo neoliberal.
A questão social e a questão ambiental estão profundamente articuladas, como também nos indica o Papa Francisco. Os neoliberais sabem que cada vez mais verão as coisas por este prisma e daí o seu ódio de morte aos mensageiros da catástrofe ambiental iminente. A crónica vil de João Miguel Tavares sobre Greta Thumberg é só um exemplo do estado a que chegou o neoliberalismo realmente existente. Um jornal que publica coisas destas pode ser tudo menos referência para o que quer que seja de civilizado. No Público é aliás assim: Manuel Carvalho diz matem e João Miguel Tavares diz esfolem os aprendizes de Lenine. Não resta mais nada aos autointitulados liberais.
quinta-feira, 26 de setembro de 2019
Sábado, em Sines: apresentação do nº 3 da Manifesto
De novo a sul, em Sines, apresentação do número 3 da revista Manifesto, sobre os processos de crise da política, da democracia e das diversas estruturas de mediação (comunicação social, sindicatos, partidos, etc.), indissociáveis dos sinais de ressurgimento da extrema-direita. É já no próximo sábado, dia 28, a partir das 16h00, na Livraria «A das Artes» (Av. 25 de Abril, nº 8, Loja C), com a participação de Ana Drago. Estão todos convidados, apareçam.
A «economia do pingo» em versão empresa
A propósito das diversas propostas para combater o fosso salarial obsceno em muitas empresas, o Expresso desafiou o sociólogo Renato Carmo e o economista Pedro Martins (ex-secretário de Estado da Economia na anterior maioria de direita), a responder à seguinte questão: «Deve o Estado penalizar grandes diferenças salariais nas empresas?».
Não resistindo a um truque clássico, que consiste em colocar os termos do debate ao nível do absurdo para que possa não parecer absurdo o que se defende, Pedro Martins começa a sua resposta por questionar «porque é que as empresas não pagam o mesmo salário a todos os trabalhadores». Isto é, desviando-se do que o Expresso perguntou - pelas «grandes diferenças salariais» - para poder defender a ausência de penalizações às empresas que as pratiquem.
Embora se desconheça a verdadeira dimensão do problema, uma vez que não existe informação publicada sobre quantas vezes o rendimento nos níveis de topo supera o salário médio na generalidade das empresas em Portugal (um dos países mais desiguais da Europa, como bem lembra Renato Carmo), vale a pena recuperar o que se passa no universo das grandes empresas cotadas no PSI-20 (com dados trabalhados a partir daqui e daqui).
De facto, nas 17 empresas consideradas a média do diferencial entre o rendimento do dirigente máximo (CEO) e o salário médio dos trabalhadores é de 32 vezes mais em 2018, estando este rácio a acentuar-se desde 2014 e a retomar a dinâmica registada até 2013, tornando evidente a tendência de maior crescimento dos salários de topo face à média salarial. Mais concretamente, verifica-se que entre 2010 e 2017 «os presidentes-executivos (CEO) das empresas cotadas do PSI-20 ultrapassaram o período do resgate da troika com um aumento salarial de 49,7%», enquanto «os trabalhadores perderam 6,2%» do seu rendimento. Por outro lado, as discrepâncias observadas entre as diferentes empresas são abissais, posicionando num extremo a Jerónimo Martins (com um rendimento do CEO 160 vezes superior à média dos salários dos trabalhadores) e a Ramada (em que esse diferencial é de apenas 4 vezes mais).
Ou seja, dados que obrigam a questionar, entre outros, o argumento (esgrimido por Pedro Martins) de que «a distribuição de salários dentro de uma empresa reflete, em grande medida, as competências dos seus trabalhadores». De facto, como explicar que tal justifique diferenças tão abissais entre empresas e entre salários? E como explicar alterações expressivas desse diferencial ao longo do tempo numa mesma empresa? Como garantir que se está apenas perante o angélico jogo de oferta e procura, excluindo o efeito de práticas deliberadas de dispersão salarial obscena, ao arrepio até dos níveis de qualificação? Como justificar, em suma, que o rendimento de um CEO possa ser em média 32 vezes superior - sublinhe-se, 32 vezes superior - ao salário médio praticado numa empresa?
Talvez a questão seja de facto outra, significando a rejeição de qualquer mecanismo de penalização das situações de disparidade salarial excessiva uma espécie de defesa da «economia do pingo» à escala da empresa, mimetizando a política de baixos salários e do «empobrecimento competitivo». Isto é, a lógica imposta, em diversas frentes, pelo anterior governo de direita, de que Pedro Martins fez parte.
Não resistindo a um truque clássico, que consiste em colocar os termos do debate ao nível do absurdo para que possa não parecer absurdo o que se defende, Pedro Martins começa a sua resposta por questionar «porque é que as empresas não pagam o mesmo salário a todos os trabalhadores». Isto é, desviando-se do que o Expresso perguntou - pelas «grandes diferenças salariais» - para poder defender a ausência de penalizações às empresas que as pratiquem.
Embora se desconheça a verdadeira dimensão do problema, uma vez que não existe informação publicada sobre quantas vezes o rendimento nos níveis de topo supera o salário médio na generalidade das empresas em Portugal (um dos países mais desiguais da Europa, como bem lembra Renato Carmo), vale a pena recuperar o que se passa no universo das grandes empresas cotadas no PSI-20 (com dados trabalhados a partir daqui e daqui).
De facto, nas 17 empresas consideradas a média do diferencial entre o rendimento do dirigente máximo (CEO) e o salário médio dos trabalhadores é de 32 vezes mais em 2018, estando este rácio a acentuar-se desde 2014 e a retomar a dinâmica registada até 2013, tornando evidente a tendência de maior crescimento dos salários de topo face à média salarial. Mais concretamente, verifica-se que entre 2010 e 2017 «os presidentes-executivos (CEO) das empresas cotadas do PSI-20 ultrapassaram o período do resgate da troika com um aumento salarial de 49,7%», enquanto «os trabalhadores perderam 6,2%» do seu rendimento. Por outro lado, as discrepâncias observadas entre as diferentes empresas são abissais, posicionando num extremo a Jerónimo Martins (com um rendimento do CEO 160 vezes superior à média dos salários dos trabalhadores) e a Ramada (em que esse diferencial é de apenas 4 vezes mais).
Ou seja, dados que obrigam a questionar, entre outros, o argumento (esgrimido por Pedro Martins) de que «a distribuição de salários dentro de uma empresa reflete, em grande medida, as competências dos seus trabalhadores». De facto, como explicar que tal justifique diferenças tão abissais entre empresas e entre salários? E como explicar alterações expressivas desse diferencial ao longo do tempo numa mesma empresa? Como garantir que se está apenas perante o angélico jogo de oferta e procura, excluindo o efeito de práticas deliberadas de dispersão salarial obscena, ao arrepio até dos níveis de qualificação? Como justificar, em suma, que o rendimento de um CEO possa ser em média 32 vezes superior - sublinhe-se, 32 vezes superior - ao salário médio praticado numa empresa?
Talvez a questão seja de facto outra, significando a rejeição de qualquer mecanismo de penalização das situações de disparidade salarial excessiva uma espécie de defesa da «economia do pingo» à escala da empresa, mimetizando a política de baixos salários e do «empobrecimento competitivo». Isto é, a lógica imposta, em diversas frentes, pelo anterior governo de direita, de que Pedro Martins fez parte.
quarta-feira, 25 de setembro de 2019
Um discurso para a História
«A minha mensagem é: estaremos de olho em vocês. Está tudo errado. Eu não deveria estar aqui. Eu devia estar na escola, do outro lado do oceano. Porém, recorrem a nós, os jovens, para terem esperança. Como se atrevem? Roubaram os meus sonhos, a minha infância, com as vossas palavras ocas e eu sou uma das privilegiadas.
As pessoas estão a sofrer, as pessoas estão a morrer. Ecossistemas inteiros estão a colapsar. Estamos no início de uma extinção em massa e só falam de dinheiro e contos de fadas de crescimento económico sem fim. Como se atrevem?
Ao longo de mais de trinta anos a ciência tem sido de uma clareza cristalina. Como se atrevem a continuar a ignorá-la? Vir aqui dizer que estão a fazer o suficiente, quando as políticas e as soluções necessárias não estão sequer à vista. Dizem que nos ouvem e que compreendem a urgência, mas não interessa o quão triste ou zangada eu esteja. Eu não quero acreditar nisso. Porque se realmente compreendessem a situação e continuassem a falhar no agir, então seriam cruéis e eu recuso-me a acreditar nisso.
A ideia hoje em voga, de cortar as nossas emissões para metade, nos próximos dez anos, só nos dá uma probabilidade de 50% de ficar abaixo de 1,5Cº e o risco de reações em cadeia irreversíveis, para lá do controlo humano. Talvez 50% sejam aceitáveis para vocês. Mas esses valores não incluem pontos de rutura, efeitos de retroação, o aquecimento adicional que a poluição do ar esconde ou os aspetos da justiça e equidade climática. Efeitos que contam com a minha geração a absorver da atmosfera centenas de milhares de milhões de toneladas do vosso dióxido de carbono, com tecnologias praticamente inexistentes. Portanto, um risco de 50% é simplesmente inaceitável para nós, que temos que viver com as consequências. Ter 67% de probabilidade de ficar abaixo de 1,5Cº de aumento global da temperatura - o melhor cenário do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas - em que o mundo só tinha mais 420 gigatoneladas de dióxido de carbono para emitir no passado dia 1 de janeiro de 2018 e hoje esse valor já caiu para menos de 350 gigatoneladas. Como se atrevem a fingir que isso pode ser resolvido com business as usual e algumas soluções técnicas?
Com os atuais níveis de emissões, esse "orçamento" de dióxido de carbono que resta desaparecerá em menos de oito anos e meio. Não vão surgir hoje aqui soluções nem planos apresentados com base nesses números, porque eles são demasiado desconfortáveis e vocês ainda não amadureceram o suficiente para dizer a verdade.
Vocês estão a falhar-nos. Mas os jovens estão a começar a compreender a vossa traição. Os olhos de todas as gerações futuras estão em vocês. E se escolherem falhar-nos eu digo: nunca vos vamos perdoar. Não vos deixaremos ficar impunes. É aqui e agora que traçamos o limite. O mundo está a acordar e a mudança está a chegar, quer queiram quer não. Obrigada.»
A pungente e poderosa intervenção de Greta Thunberg na Cimeira do Clima, a 23 de setembro de 2019.
Aprendizes de Lenine?
Aparentemente, anda um espectro de novo a pairar por aí: o do revolucionamento que será necessário no modo de produção para enfrentar a catástrofe ambiental iminente. Um economista convencional um dia definiu-a como a maior falha do mercado da história da humanidade. As soluções económicas convencionais – andar a brincar aos mercados de emissões ou às taxas e taxinhas – ou não funcionam ou estão longe de chegar.
Neste contexto, a jovem Greta Thumberg fez um discurso pungente na cimeira sobre a acção climática das Nações Unidas. Apreciei particularmente a sua denúncia do dinheiro como um dos obstáculos à tal mudança. Afinal de contas, lembrem-se dos efeitos do nexo-dinheiro, expostos brilhantemente num Manifesto espectral de 1848.
Num editorial com laivos do habitual anticomunismo primário, talvez com efeitos contrários às intenções do seu autor, Manuel Carvalho até confessava ontem no Público ter levado também “um murro no estômago” de Thumberg. Mas a sua “pose e insolência”, o seu radicalismo, fê-lo lembrar, vejam lá do que esta gente se lembra, um “qualquer aprendiz de Lenine do século passado”. Esta gente ainda teme “o radicalismo jacobino”.
No fim do arrazoado, Carvalho até acaba a reconhecer que sem este radicalismo, ao qual só falta enfatizar mais a classe e menos a geração, “as soluções equilibradas” não serão possíveis. O medo, sempre o medo da revolução, está na base de uma certa política económica. Irá um dia este neoliberal converter-se ao Green New Deal, um plano que nestes tempos sombrios ainda parece uma utopia de um punhado, ainda que crescentemente influente, de democratas socialistas na América?
Entretanto, aprender com alguns aspectos da vida e obra de Lenine é capaz de não ser mesmo má ideia: organização consequente, análise concreta da situação concreta, avaliação precisa da correlação de forças, valorização da política de classe, identificação dos elos mais fracos da cadeia imperialista, prontidão para aceder ao poder, pugnando por um socialismo que terá de ser igual a sovietes, uma democracia avançada, mais electrificação de todo o país, agora com base em renováveis.
Ou alguém pensa que será possível enfrentar a catástrofe iminente sem uma valorização do comum, sem muito menos desigualdade, sem formas de planificação exigentes, e que implicam controlo público das redes, da banca, das grandes alavancas de investimento, sem uma certa desglobalização dos circuitos económicos, enfim, sem uma nova política económica?
Neste contexto, a jovem Greta Thumberg fez um discurso pungente na cimeira sobre a acção climática das Nações Unidas. Apreciei particularmente a sua denúncia do dinheiro como um dos obstáculos à tal mudança. Afinal de contas, lembrem-se dos efeitos do nexo-dinheiro, expostos brilhantemente num Manifesto espectral de 1848.
Num editorial com laivos do habitual anticomunismo primário, talvez com efeitos contrários às intenções do seu autor, Manuel Carvalho até confessava ontem no Público ter levado também “um murro no estômago” de Thumberg. Mas a sua “pose e insolência”, o seu radicalismo, fê-lo lembrar, vejam lá do que esta gente se lembra, um “qualquer aprendiz de Lenine do século passado”. Esta gente ainda teme “o radicalismo jacobino”.
No fim do arrazoado, Carvalho até acaba a reconhecer que sem este radicalismo, ao qual só falta enfatizar mais a classe e menos a geração, “as soluções equilibradas” não serão possíveis. O medo, sempre o medo da revolução, está na base de uma certa política económica. Irá um dia este neoliberal converter-se ao Green New Deal, um plano que nestes tempos sombrios ainda parece uma utopia de um punhado, ainda que crescentemente influente, de democratas socialistas na América?
Entretanto, aprender com alguns aspectos da vida e obra de Lenine é capaz de não ser mesmo má ideia: organização consequente, análise concreta da situação concreta, avaliação precisa da correlação de forças, valorização da política de classe, identificação dos elos mais fracos da cadeia imperialista, prontidão para aceder ao poder, pugnando por um socialismo que terá de ser igual a sovietes, uma democracia avançada, mais electrificação de todo o país, agora com base em renováveis.
Ou alguém pensa que será possível enfrentar a catástrofe iminente sem uma valorização do comum, sem muito menos desigualdade, sem formas de planificação exigentes, e que implicam controlo público das redes, da banca, das grandes alavancas de investimento, sem uma certa desglobalização dos circuitos económicos, enfim, sem uma nova política económica?
terça-feira, 24 de setembro de 2019
Duas conferências de Walden Bello em Lisboa
Walden Bello, activista e teórico da desglobalização e da dependência, professor de sociologia na State University of New York e fundador do Focus on the Global South, estará no ISEG nesta 5ª feira para uma conferência e lançamento do seu mais recente livro "Counter revolution: the global rise of the far right". É na 5ª feira, às 18h, no Auditório 3 do Edifício do Quelhas.
Na 6ª feira, também às 18h, mas desta feita no ISCTE (Auditório Silva Leal, Ala Autónoma), proferirá outra conferência com o título "The political economy of deglobalization".
Estão tod@s convidad@s para os dois eventos.
Do lado da oferta ou da procura?
O economista norte-americano Nouriel Roubini é por vezes apelidado de Dr. Doom (“Dr. Desgraça”) por ter antevisto a crise financeira internacional do final da década passada e a Grande Recessão que se seguiu. Recentemente, tem prestado uma série de declarações, incluindo num artigo publicado em Agosto pelo Project Syndicate, em que alerta para a possível iminência de uma nova recessão global. Tendo em conta os sinais de desaceleração ou mesmo entrada em recessão que começam a acumular-se em diversas economias, este alerta não é em si mesmo inesperado, mas o que é mais original na visão de Roubini é o tipo de recessão que considera estar a caminho.
Ao contrário da Grande Recessão de 2008-2009, que foi um choque negativo do lado da procura que deprimiu tanto o produto como o nível de preços, Roubini antecipa agora uma recessão com origem do lado da oferta, com contração do produto a par do aumento do nível de preços. No fundo, algo mais parecido com a crise da década de 1970 do que com as dos anos 1930 ou 2000. Para Roubini, os fatores que tendem a conjugar-se neste sentido são a atual guerra comercial, cambial e tecnológica entre os EUA e a China e o risco de aumento do preço do petróleo devido à tensão entre os EUA e o Irão. Em conjunto, tenderão a provocar um aumento permanente dos custos de produção com redução do crescimento potencial. Roubini alerta que, perante uma recessão deste tipo, a tentativa de estímulo contracíclico da procura por via monetária e orçamental será em grande medida ineficaz, gerando principalmente mais inflação.
O cenário é plausível, mas parece-me pouco provável. Pelo menos visto da Europa, o problema é há largos anos inflação a menos, não inflação a mais, até porque mais inflação ajudaria à diminuição do fardo real da dívida acumulada e estimularia o crescimento potencial. Numa economia mundial caracterizada por níveis sem precedentes de endividamento público e privado, o risco maior continua a ser o de uma nova crise do lado da procura associado a um novo episódio de deflação descoordenada do endividamento, semelhante ao que aconteceu em 2007-2008. O elo mais fraco pode agora ser outro que não o mercado da habitação e os empréstimos sub-prime, mas a próxima recessão poderá não ser assim tão diferente da última em termos da sua natureza.
(publicado originalmente no Expresso de 21/09/2019)
segunda-feira, 23 de setembro de 2019
O espectro da americanização
Recentemente, ficámos a saber que se está a investigar o consumo de analgésicos opioides em Portugal por via do SNS, já que este mais do que duplicou nos últimos oito anos. Realmente, parece ser uma tendência preocupante. O espectro da chamada epidemia norte-americana, induzida pela indústria farmacêutica, parte do mais vasto capitalismo da doença, paira sobre esta sociedade desigual?
Felizmente, Portugal ainda tem precisamente o SNS como uma barreira entre a civilização e a barbárie do império norte-americano. A investigação é oportuna. Já nos EUA, o descontrolado consumo de opioides é parte do letal cocktail das chamadas mortes por desespero. Um fenómeno social que diz tudo sobre a economia política desse país, que tantos economistas por cá incensaram durante tanto tempo. Que dizer portanto da taxa de mortalidade crescente, da queda da esperança de vida entre segmentos importantes da população dos EUA ou da diferença de quinze anos entre a longevidade de um cidadão pertencente aos 1% mais ricos e a de um cidadão pertencente aos 1% mais pobres?
Como já se argumentou por aqui há mais de uma década, divulgando resultados da área dos determinantes socioeconómicos da saúde, que entretanto tem coligido evidência empírica cada vez mais avassaladora, a injustiça social mata.
Felizmente, Portugal ainda tem precisamente o SNS como uma barreira entre a civilização e a barbárie do império norte-americano. A investigação é oportuna. Já nos EUA, o descontrolado consumo de opioides é parte do letal cocktail das chamadas mortes por desespero. Um fenómeno social que diz tudo sobre a economia política desse país, que tantos economistas por cá incensaram durante tanto tempo. Que dizer portanto da taxa de mortalidade crescente, da queda da esperança de vida entre segmentos importantes da população dos EUA ou da diferença de quinze anos entre a longevidade de um cidadão pertencente aos 1% mais ricos e a de um cidadão pertencente aos 1% mais pobres?
Como já se argumentou por aqui há mais de uma década, divulgando resultados da área dos determinantes socioeconómicos da saúde, que entretanto tem coligido evidência empírica cada vez mais avassaladora, a injustiça social mata.
domingo, 22 de setembro de 2019
A coligação de que o país não precisa
Um dos mecanismos básicos da economia política do emprego e desemprego determina que quanto maior é o desemprego, menor é a força negocial dos trabalhadores, pelo que a parte dos salários no produto tende a diminuir. Quando, pelo contrário, nos aproximamos do pleno emprego, o poder negocial fica mais do lado dos trabalhadores do que dos patrões, permitindo o crescimento da parte dos rendimentos do trabalho no rendimento nacional. Este padrão é aliás o tema central de um artigo de 1943 do economista Michal Kalecki, em que este explica porque é que os empregadores têm todos os motivos para não quererem que se alcance o pleno emprego e no limite farão o que for preciso para evitá-lo, já que a prazo não podem dispensar este mecanismo disciplinador da força de trabalho.
À luz disto mesmo, é de esperar que a evolução da parte dos salários no rendimento das economias concretas esteja relacionada inversamente com a taxa de desemprego, e efectivamente é isso que verificamos na maioria dos casos. Em Portugal, o período de máximo histórico da taxa de desemprego no contexto da crise e da política de austeridade em 2011-2013 correspondeu também a uma queda sem precedentes da parte dos salários no rendimento nacional: só entre 2010 e 2015, segundo a AMECO, a percentagem dos salários no PIB a custo de factores caiu mais de quatro pontos percentuais, de 63,9% para 59,5%. Nesse período, a desvalorização dos salários ocorreu por esta via indirecta da pressão do desemprego mas também por múltiplas formas directas, incluindo o corte de dias de férias, a eliminação de feriados e o regime de remuneração das horas extraordinárias.
Com a fortíssima redução da taxa de desemprego de 2013 (16,2%) e especialmente de 2015 (12,4%) até à actualidade (6,7%), esta mesma lógica permitiria prever um aumento robusto da parte dos salários no rendimento nacional, que eventualmente reestabelecesse a repartição trabalho-capital nos níveis anteriores à crise. Ora, isso está muito longe de ter acontecido: ainda segundo os dados da AMECO, a recuperação da parte dos salários de 2015 em diante foi mínima, de 59,5% para 61,1%, e está muito longe de ter correspondido a uma recuperação para os níveis pré-crise.
Esta anomalia à luz da economia política do desemprego é tanto mais estranha quanto o período de 2015 em diante incluiu o aumento do salário mínimo nacional num total acumulado próximo de 20%, após anos de congelamento pela direita. Como é então possível que num contexto de forte quebra do desemprego, em que o salário mínimo aumentou mais do que o produto, a parte dos salários no rendimento tenha permanecido praticamente estagnada?
sábado, 21 de setembro de 2019
Pink Floyd - Alan's psychedelic breakfast
Com duas sugestões de leitura (os artigos de Paulo Canaveira e de Eduardo de Oliveira e Sousa), a acompanhar.
sexta-feira, 20 de setembro de 2019
O velho programa
Os comentadores gostaram do desempenho de Rui Rio no debate televisivo com António Costa. Mas quando se tenta perceber porquê, encontra-se apenas... a atitude.
Não é que Rui Rio tenha um programa viável, eficaz, uma outra visão para o país. Não é que as suas propostas tenham melhores resultados para a vida dos portugueses. Quem quer discutir isso?
Foi simplesmente porque Rui Rio se mostrou combativo e trouxe números para ripostar.
Por exemplo, escreveu Manuel Carvalho no jornal Público:
No fundo e bem esmiuçado e apesar da atitude bem diferente de Rui Rio, não difere assim tanto dos pressupostos enunciados e aplicados por Passos Coelho e Paulo Portas. Aliás, os comentários dos comentadores são mesmo semelhantes aos proferidos quando a troica desembarcou em Portugal e foi encharcada pelas ideias do PSD, transmitidas pela equipa liderada por Eduardo Catroga (ainda se lembram?), como ele próprio o admitiu em conferência de imprensa logo em Maio de 2011. Nessa altura, os mesmos comentadores elogiavam a forma sistematizada e calendarizada com que a troica apresentou o seu programa.
O problema é que esses comentadores parecem já se ter esquecido do descalabro que foi a sua aplicação em 2011/2013 e parecem estar prontos a defender tudo outra vez, apesar de o povo parecer ainda lembrar-se muito bem disso, a ponto de deixar a direita a viver tempos de crise...
Não é que Rui Rio tenha um programa viável, eficaz, uma outra visão para o país. Não é que as suas propostas tenham melhores resultados para a vida dos portugueses. Quem quer discutir isso?
Foi simplesmente porque Rui Rio se mostrou combativo e trouxe números para ripostar.
Por exemplo, escreveu Manuel Carvalho no jornal Público:
"O debate desta segunda-feira não servirá para que a imagem de António Costa se esvazie, servirá apenas para que a de Rui Rio se revitalize. (...) o frente-a-frente foi excelente para reavivar a política, animar a discussão e dar vida à campanha". Diz ele ainda: "Face às expectativas iniciais do debate, Rui Rio ganhou. Ganhou pela diferença mínima não porque fosse mais claro, mais contundente, mais preparado ou mais astuto a aproveitar as falhas do adversário. Ganhou porque provou aos que tinham dúvidas que é dono de um conhecimento sólido sobre os principais assuntos do Estado e de um programa para o país que, não estando nos antípodas do que Costa defende, é ainda assim mais próximo dos velhos pergaminhos do PSD: uma visão mais liberal da sociedade e uma série de propostas políticas mais próxima das empresas".Assim, sem tirar nem pôr. Mas que programa é esse de que tanto parece gostar Manuel Carvalho?
No fundo e bem esmiuçado e apesar da atitude bem diferente de Rui Rio, não difere assim tanto dos pressupostos enunciados e aplicados por Passos Coelho e Paulo Portas. Aliás, os comentários dos comentadores são mesmo semelhantes aos proferidos quando a troica desembarcou em Portugal e foi encharcada pelas ideias do PSD, transmitidas pela equipa liderada por Eduardo Catroga (ainda se lembram?), como ele próprio o admitiu em conferência de imprensa logo em Maio de 2011. Nessa altura, os mesmos comentadores elogiavam a forma sistematizada e calendarizada com que a troica apresentou o seu programa.
O problema é que esses comentadores parecem já se ter esquecido do descalabro que foi a sua aplicação em 2011/2013 e parecem estar prontos a defender tudo outra vez, apesar de o povo parecer ainda lembrar-se muito bem disso, a ponto de deixar a direita a viver tempos de crise...
Da americanização
As mais prestigiadas universidades do planeta transformaram-se em hedge funds com lindas academias em anexo (as dez universidades de topo dos EUA combinadas detêm 200 mil milhões de dólares de fundos). Elas acumularam muita desta riqueza sendo simpáticas para com os milionários, alguns dos quais as usaram para lavar a sua reputação. Se aconteceu no MIT [com Epstein, por exemplo], então pode acontecer em qualquer sítio.
Boa síntese. Num mundo em que tudo se compra e em que tudo se vende, a venalidade não tem ficado às portas das universidades, como se vê por aí. Não é aliás por acaso que se fala cada vez mais de capitalismo académico, da ciência reduzida a uma nexo de contratos até à graxa que se tem de dar aos ricos e poderosos, integrando-os, por exemplo, nos órgãos universitários para ver se pinga algum.
Por aqui tenho falado de um porno-riquismo que também é académico. Na realidade, o porno-riquismo vai para lá do social e ambientalmente insustentável consumo conspícuo dos mais ricos, numa era de desigualdades pornográficas, abarcando a corrosão institucional e, de forma mais literal, os comportamentos predadores de todos os que têm o poder desmedido que o dinheiro confere neste tipo de sociedade capitalista.
Pode de facto argumentar-se que Epstein foi o rosto de uma certa classe. Este tipo de caso nos EUA é um aviso para os que por cá, também na academia, gostam da americanização de tudo, da mercadorização de tudo.
E, sim, a europeização acabou por se revelar uma poderosa via para a americanização.
quinta-feira, 19 de setembro de 2019
Da representação democrática (III)
É hoje amplamente reconhecida a existência de problemas de proporcionalidade (e portanto de representação democrática), no atual sistema de círculos eleitorais de base distrital. Com efeito, na ausência de um «círculo nacional de compensação», é muito significativo o volume de votos que acabam por não ser tidos em conta para o apuramento da distribuição de assentos na Assembleia da República.
Nas Legislativas de 2015, por exemplo, a soma da votação - em cada círculo eleitoral - em partidos que não elegem deputados traduz-se, à escala do continente, num valor próximo de 10% do total de votos expressos (cerca de 470 mil votos num total de 5 milhões, excluindo brancos e nulos). Isto é, o contributo de 1 em cada 10 eleitores do continente não conta para a eleição de deputados, num quadro de discrepâncias muito significativas entre os dezoito distritos.
É manifesta, de facto, a tendência para um menor «desperdício» de opções de voto nos maiores círculos eleitorais (onde os partidos mais pequenos têm mais possibilidade de eleger), face aos círculos de menor dimensão (onde essa possibilidade claramente diminui). Nos casos de Portalegre e Castelo Branco, por exemplo, situa-se acima de 22,5% a proporção de votos em partidos que não elegem nenhum deputado (27% e 23%, respetivamente), sendo igualmente significativo (acima de 15%) o «desperdício» registado nos distritos de Viana do Castelo, Viseu, Guarda e Beja. Em sentido inverso, ou seja, com menor percentagem de votação em partidos que não elegem deputados no círculo, surgem os casos de Lisboa, Santarém, Porto e Braga (com valores abaixo de 7,5% e a oscilar entre 6 e 7%).
Os enviesamentos que decorrem da inexistência de um «círculo nacional de compensação» não se restringem à questão das diferenciações regionais. Com efeito, a soma de votos «desperdiçados» em todos os distritos (isto é, das votações em partidos que não elegem, por círculo, nenhum deputado), apontam para perdas relevantes em alguns casos. Nos partidos com representação parlamentar, essas perdas são de 13 e 18% para o BE e o PCP-PEV, e de 68% para o PAN. E no caso de partidos sem representação parlamentar, as perdas do PDR e PCTP/MRPP situam-se em valores acima dos 10% do total de votos «desperdiçados» (ou seja, em partidos que não elegem, por círculo eleitoral).
No debate sobre a introdução de alterações ao atual sistema eleitoral, a criação de um «círculo nacional de compensação» (ou, pelo menos, a revisão das delimitações dos atuais círculos distritais) é hoje muito mais premente e relevante que a criação de círculos uninominais (e que suscita, além disso, outro tipo de problemas).
Nas Legislativas de 2015, por exemplo, a soma da votação - em cada círculo eleitoral - em partidos que não elegem deputados traduz-se, à escala do continente, num valor próximo de 10% do total de votos expressos (cerca de 470 mil votos num total de 5 milhões, excluindo brancos e nulos). Isto é, o contributo de 1 em cada 10 eleitores do continente não conta para a eleição de deputados, num quadro de discrepâncias muito significativas entre os dezoito distritos.
É manifesta, de facto, a tendência para um menor «desperdício» de opções de voto nos maiores círculos eleitorais (onde os partidos mais pequenos têm mais possibilidade de eleger), face aos círculos de menor dimensão (onde essa possibilidade claramente diminui). Nos casos de Portalegre e Castelo Branco, por exemplo, situa-se acima de 22,5% a proporção de votos em partidos que não elegem nenhum deputado (27% e 23%, respetivamente), sendo igualmente significativo (acima de 15%) o «desperdício» registado nos distritos de Viana do Castelo, Viseu, Guarda e Beja. Em sentido inverso, ou seja, com menor percentagem de votação em partidos que não elegem deputados no círculo, surgem os casos de Lisboa, Santarém, Porto e Braga (com valores abaixo de 7,5% e a oscilar entre 6 e 7%).
Os enviesamentos que decorrem da inexistência de um «círculo nacional de compensação» não se restringem à questão das diferenciações regionais. Com efeito, a soma de votos «desperdiçados» em todos os distritos (isto é, das votações em partidos que não elegem, por círculo, nenhum deputado), apontam para perdas relevantes em alguns casos. Nos partidos com representação parlamentar, essas perdas são de 13 e 18% para o BE e o PCP-PEV, e de 68% para o PAN. E no caso de partidos sem representação parlamentar, as perdas do PDR e PCTP/MRPP situam-se em valores acima dos 10% do total de votos «desperdiçados» (ou seja, em partidos que não elegem, por círculo eleitoral).
No debate sobre a introdução de alterações ao atual sistema eleitoral, a criação de um «círculo nacional de compensação» (ou, pelo menos, a revisão das delimitações dos atuais círculos distritais) é hoje muito mais premente e relevante que a criação de círculos uninominais (e que suscita, além disso, outro tipo de problemas).
quarta-feira, 18 de setembro de 2019
Preocupações
Em 2016, mal tinha aquecido a cadeira, o primeiro-ministro já deixava cair uma das suas mais arrojadas promessas eleitorais: um imposto sobre heranças superiores a um milhão de euros. Pouco tempo depois travou o imposto sobre fortunas reclamado pelos parceiros à esquerda e reciclou-o num (mais inócuo) imposto sobre o grande património imobiliário (AIMI). Inviabilizou medidas mais musculadas contra o negócio do trabalho temporário. Convidou destacados empresários da praça a proporem um cardápio de instrumentos de ajuda à capitalização e financiamento das empresas, o que lhe valeu a tal menção honrosa da Comissão Europeia, que ontem exibiu no debate. Não beliscou o regime de residentes não habituais (o que pretende transformar Portugal na Florida da Europa), apesar dos embaraços diplomáticos e de pressões dentro do seu próprio Governo. Desbloqueou o impasse dos ativos por impostos diferidos na banca. E ainda deu corpo a uma promessa de Passos Coelho e lançou as SIGI, um novo tipo de sociedades imobiliárias pelas quais o mercado há muito suspirava. Com tamanho curriculum não admira o rasgado elogio que em janeiro a presidente da bolsa de Lisboa lhe fez aqui no Expresso ao dizer que “desde que Miguel Cadilhe foi ministro das Finanças nunca tivemos um Governo com uma iniciativa tão estruturada relativamente ao mercado”. Nem espanta que os empresários se acotovelem para ouvi-lo e lhe façam juras de fidelidade.
Elisabete Miranda, no Expresso Curto de ontem, resume algumas das apostas de António Costa, “um socialista com preocupações capitalistas”.
Na realidade, António Costa é um produto da famigerada terceira via dos anos noventa, ou seja, não é socialista: de Guterres a Sócrates, tratou-se por cá de aceitar a herança do cavaquismo, com algumas, cada vez menos, notas de rodapé dissonantes. Só a viragem para a direita no panorama nacional, favorecida pela integração europeia realmente existente, incluindo a decisiva intervenção da troika, pode tornado este passado recente mais turvo. Lembrem-se da agenda para a década e do programa macroeconómico de Centeno, que depois tomou conta do sininho no chamado Eurogrupo: trata-se sempre de adaptar a economia política nacional às exigências da forma mais intensa de globalização que dá pelo nome de integração europeia.
Já agora, as concessões que a esquerda conseguiu obter nesta solução governativa travaram e até reverteram alguns aspectos conjunturais desta política, mas, dada a relação de forças interna e externa e a falta de instrumentos de política, não conseguiram ainda operar viragens importantes na economia política. As coisas são como foram politicamente feitas nos períodos de furto supranacional de instrumentos de política.
Por sua vez, as preocupações capitalistas de António Costa são as de um tempo e de um lugar em que o capitalismo assume formas cada vez menos sustentáveis. Nesta periferia do euro, o extrovertido nexo finança-imobiliário-turismo, a base material do porno-riquismo, resume toda uma bem sórdida dependência nacional. O chamado modelo Flórida tem sido consolidado. Foi teorizado, entre outros, por Olivier Blanchard, num estudo para o Ministério das Finanças de Teixeira dos Santos, ainda antes de ser economista-chefe do FMI. Ninguém pode por isso ficar por surpreendido pelos baixos salários, pela precariedade, pela medíocre evolução da produtividade ou pela maior exposição à instabilidade internacional, para já não falar da transformação do governo numa claque da Ryanair.
terça-feira, 17 de setembro de 2019
Tarefas para a esquerda após as eleições
"A governação é decisiva, mas a política não se resume à governação. Para quem tem convicções fortes sobre o modo como as sociedades devem ser organizadas, um objectivo primordial é atrair cada vez mais cidadãos para essa visão. Tão ou mais importante do aquilo que um governo faz em cada contexto é conquistar maiorias sociais sobre o que deve e o que não deve ser feito, e sobre como o fazer.
Conquistar maiorias sociais para uma dada visão de desenvolvimento colectivo é um trabalho incessante, que tem de ser desenvolvido e actualizado a cada momento, nas mais diversas esferas da sociedade.
Qualquer que seja o resultado das eleições de Outubro, os cidadãos e as cidadãs de esquerda terão sempre muito que fazer."
(Excerto do meu texto de hoje no DN).
Conquistar maiorias sociais para uma dada visão de desenvolvimento colectivo é um trabalho incessante, que tem de ser desenvolvido e actualizado a cada momento, nas mais diversas esferas da sociedade.
Qualquer que seja o resultado das eleições de Outubro, os cidadãos e as cidadãs de esquerda terão sempre muito que fazer."
(Excerto do meu texto de hoje no DN).
Maus "pais", padrastos e enteados
Fonte: DGO, Tribunal de Contas, valores declarados ontem por Rui Rio e não desmentidos por António Costa |
Não custa nada ser pai. O mais difícil é cuidar de um filho.
O Partido Socialista tem querido, nesta campanha eleitoral, mostrar-se como o pai do Serviço Nacional de Saúde (SNS). António Costa afirmou mesmo que se trata de "uma conquista que honra profundamente a história do PS e aqueles que já governaram em nosso nome e que, infelizmente, já nos deixaram”. Evocava assim o nome de Mário Soares e António Arnaut como “o pai e a mãe do Serviço Nacional de Saúde”. Parece que mais ninguém lutou no sector pela criação de um serviço público gratuito em prol de toda a população.
O Partido Social-Democrata - mesmo sabendo-se que votou no Parlamento contra a criação do SNS (tal como o CDS) - considera-o já uma conquista da Democracia e puxa dos galões para acusar o PS de ter "degradado brutalmente o SNS". Marcelo Rebelo de Sousa - que no momento da criação do SNS andava a leste do assunto (ver aqui); que no momento da discussão da recém aprovada Lei de Bases da Saúde quis forçar o PS a negociar com um PSD que mais defende o sector privado do que o público (ver aqui) - até já se afirmou irmão do SNS, tudo porque, na sua opinião, o seu pai - o de Marcelo - terá sido percursor do SNS e Marcelo - à laia de António Damásio... - diz ter "uma razão afectiva" pelo SNS (ver aqui).
Mas quando se olha para os montantes que têm sido despendidos no SNS, verifica-se que, na prática, a teoria é outra.
Fonte: Tribunal de Contas |
Quando actualizadas a preços de 2018, verifica-se que as verbas orçamentais distribuídas ao Ministério da Saúde não se alteraram substancialmente de 2004 a 2017. O investimento no SNS recuperou nos últimos anos, mas está mesmo assim abaixo - é metade! - do verificado em 1999.
E isso apesar de ser consensual que a população está a envelhecer, que a pressão sobre o SNS é cada vez maior, que os custos com medicamentos e exames é tendencialmente crescente. Apesar disso, os governos socialistas e social-democratas pouco fizeram. Mantiveram. E ao manter, degradaram.
Durante esse período, passaram-se governos do Partido Social-Democrata e do Partido Socialista, chefiados por Durão Barroso, Santana Lopes, António Guterres, José Sócrates, Passos Coelho/Paulo Portas e, agora, António Costa. E revela-se que, apesar de António Costa se revelar impante com o SNS, na verdade o seu ministro das Finanças Mário Centeno parece ter menos afeição - neste caso uma razão menos afectiva - por aquela que o actual primeiro-ministro diz ser - agora! - a prioridade para a próxima legislatura.
Escrevi propositadamente por extenso o nome desses dois partidos. Assim, parece tornar-se ainda mais descarada a distância que vai entre as designações programáticas dos partidos, as afirmações fáceis de campanha e aquilo que, na realidade, se passa no terreno.
segunda-feira, 16 de setembro de 2019
A Amazónia continua a arder
As notícias foram-se tornando cada vez mais escassas, mas a Amazónia não parou de arder. Poderá continuar a dizer-se que estamos na «época de fogos» (84% da área ardida anual concentra-se, em média, entre julho e dezembro), mas os dados não deixam de reforçar para a hipótese, cada vez mais consistente, de estar em curso uma inversão da tendência de declínio dos valores de desflorestação e área ardida, registada nos últimos anos.
De facto, é preciso recuar até 2008 para encontrar níveis de desmatamento acima dos 10,2 mil Km2 estimados para 2019 (sendo a média dos anos intermédios é de 6,5 mil Km2), e até 2010 para obter um número de focos de incêndio superior aos 48 mil registados até agosto (com a média homóloga dos anos intermédios a rondar os 28 mil). Em termos de área ardida, por sua vez, é preciso recuar até 2005 para encontrar valores acima dos 58 mil Km2 registados entre janeiro a agosto de 2019, situando-se a média dos anos intermédios em cerca de 29 mil.
O dado mais impressivo, contudo - e que pode muito bem ser a metáfora perfeita da negligência induzida - diz respeito à média de área ardida por foco de incêndio, que atinge os 1,2 Km2 em 2019 (entre janeiro e agosto). Isto é, um valor sem precedentes desde 2003, com a média do período a rondar os 0,8 Km2 e nunca tendo este indicador sequer ultrapassado os cerca de 0,95 Km2 em nenhum ano da série.
De acordo com Ane Alencar, a explicação para estes valores bem acima da média dos últimos anos não deve ser procurada no clima. De facto, não se regista em 2019 «seca extrema, como em 2015 e 2016» (tendo-se verificado, além disso, «um período chuvoso suficiente» em 2017 e 2018), nem «eventos climáticos [anómalos] que afetam as secas, como o El Niño». Já no plano político - e não sendo de agora a pressão sobre a Amazónia, em termos de desmatamento e queimadas (apesar da sua redução progressiva desde o início dos anos 2000) - não é difícil identificar as evidências materiais da fúria destruidora do governo de Bolsonaro no que toca à defesa do ambiente, nem as suas ligações às mineradoras e ao agronegócio, com as respetivas ramificações no quadro do comércio global.
De facto, é preciso recuar até 2008 para encontrar níveis de desmatamento acima dos 10,2 mil Km2 estimados para 2019 (sendo a média dos anos intermédios é de 6,5 mil Km2), e até 2010 para obter um número de focos de incêndio superior aos 48 mil registados até agosto (com a média homóloga dos anos intermédios a rondar os 28 mil). Em termos de área ardida, por sua vez, é preciso recuar até 2005 para encontrar valores acima dos 58 mil Km2 registados entre janeiro a agosto de 2019, situando-se a média dos anos intermédios em cerca de 29 mil.
O dado mais impressivo, contudo - e que pode muito bem ser a metáfora perfeita da negligência induzida - diz respeito à média de área ardida por foco de incêndio, que atinge os 1,2 Km2 em 2019 (entre janeiro e agosto). Isto é, um valor sem precedentes desde 2003, com a média do período a rondar os 0,8 Km2 e nunca tendo este indicador sequer ultrapassado os cerca de 0,95 Km2 em nenhum ano da série.
De acordo com Ane Alencar, a explicação para estes valores bem acima da média dos últimos anos não deve ser procurada no clima. De facto, não se regista em 2019 «seca extrema, como em 2015 e 2016» (tendo-se verificado, além disso, «um período chuvoso suficiente» em 2017 e 2018), nem «eventos climáticos [anómalos] que afetam as secas, como o El Niño». Já no plano político - e não sendo de agora a pressão sobre a Amazónia, em termos de desmatamento e queimadas (apesar da sua redução progressiva desde o início dos anos 2000) - não é difícil identificar as evidências materiais da fúria destruidora do governo de Bolsonaro no que toca à defesa do ambiente, nem as suas ligações às mineradoras e ao agronegócio, com as respetivas ramificações no quadro do comércio global.
domingo, 15 de setembro de 2019
Citação da noite
Esta noite, no telejornal, o pivot José Rodrigues dos Santos deu largas às suas ideias - que ele julga serem as do liberalismo, do neo-liberalismo, da social-democracia ou do liberalismo capitalista - e atirou-se do precipício:
Agora, imagine-se a responder a esta pergunta."Apesar das sondagens darem esta vitória clara à area socialista, nós vemos os partidos da área socialista a abraçarem algumas bandeiras tradicionais (...) da área liberal que é as contas certas. Vemos até o próprio Bloco de Esquerda a falar de social-democracia, abraçando a economia de mercado que é típica do liberalismo capitalista. Isto não constitui - por ironia - uma certa vitória do liberalismo?"
Lembrar
«Como escreveu António Arnaut no livro "Salvar o SNS", e passo a citar, "a lei 48/90 visou essecialmente a descaraterização constitucional do SNS e reduzi-lo ao objetivo de um serviço público de índole caritativa para os mais pobres. Ora, num momento em que o SNS está prestes a completar quarenta anos, e deu já tantas provas de fazer parte da nossa identidade como país, importa corrigir aquela descaraterização e aquele reducionismo".
Não tenho dúvidas que esta casa conhece bem o texto da Lei de Bases da Saúde atualmente em vigor. Mas saberão os portugueses, lá em casa, que nela se escreve que "é apoiado o desenvolvimento do setor privado da saúde, em concorrência com o setor público"? E que a política de recursos humanos para a saúde visa "facilitar a mobilidade de profissionais entre o setor público e o setor privado"?
(...) Importa não esquecer a história. Não para remexer nas feridas ou para colher louros, mas para evitar erros. Com a oposição do PSD, CDS e deputados independentes social-democratas, que então declararam lamentar "esta doença infantil da nossa democracia", foram os votos do PS e do PCP que permitiram aprovar, na Assembleia da República, a lei do SNS. Com a oposição do PS e do PCP, foram o PSD e o CDS que, em 1990, aprovaram uma Lei de Bases que o então ministro da Saúde, Dr. Arlindo de Carvalho, apresentou, referindo como tendo o intuito específico de "revogar esse verdadeiro subproduto de um falso romantismo iluminado, que é a lei de Dr. Arnaut". Estou certa, senhores deputados e senhoras deputadas, que esta câmara saberá, agora, colocar-se do lado certo da história.»
Marta Temido, ministra da Saúde, na discussão das propostas de revisão da Lei de Bases do setor.
sábado, 14 de setembro de 2019
Com toda a abertura
O capitalismo é um sistema socioeconómico e de poder; um sistema diversificado ao longo e em cada momento da sua história; um sistema em transformação nos seus quadros institucionais e nas suas escalas. Estudar criticamente o capitalismo é o principal objetivo do doutoramento interdisciplinar em Economia Política, em linha com uma relevante tendência internacional nas ciências sociais. Este programa valoriza particularmente a criação de conhecimento sobre o capitalismo em Portugal e sua evolução, inserindo-o nos contextos europeu e global que moldaram e moldam as suas trajetórias de convergência e de divergência. O doutoramento em Economia Política tomou forma a partir de projetos de investigação, de publicações relevantes, de experiência de formação avançada e de um longo percurso de trabalho conjunto desenvolvido em diversos planos.
O Doutoramento em Economia Política, cuja primeira edição tem início neste ano lectivo, realiza uma conferência de abertura na próxima segunda-feira aberta a todos os interessados. Mais informações sobre um programa que conseguiu atrair muita e boa gente para a sua primeira edição podem ser obtidas no seu sítio.
sexta-feira, 13 de setembro de 2019
A banca não vai lá com multas
Anda por aí um grande contentamento com a multa que a autoridade da concorrência impôs à banca por conspirar contra o público, para retomar os termos de Adam Smith: um cartel é realmente um dos resultados expectáveis das reuniões entre homens do mesmo negócio, já denunciadas a seu tempo por um filósofo moral algo desconfiado da finança.
O problema é que demasiada gente, em linha com a tal autoridade liberal, parece ter a concorrência por norma a institucionalizar através de uma espécie de polícia de um mercado sempre mitificado. É preciso então reafirmar que na banca não temos de estar entre a parede do cartel e a espada da concorrência. Aliás, em tempos bem mais tranquilos nesta área não estivemos. É então talvez útil repetir neste contexto três parágrafos escritos noutro:
A alternativa a este estado de coisas passa por reconhecer as especificidades de um sector estratégico com poderes exorbitantes. Em primeiro lugar, o poder de criar e de destruir moeda através do crédito, um verdadeiro bem público numa economia monetária de produção orientada para o investimento, mas um bem que pode transformar-se num mal em mãos tão gananciosas quanto pouco escrupulosas. Em segundo lugar, o poder de lidar com o futuro, ou seja, com a incerteza, concentrando muita da melhor informação disponível sobre a actividade económica geral, cujo andamento passa pelas decisões tomadas nos bancos. Em terceiro lugar, o poder de não poder verdadeiramente falir, dado o caos que tal gera num sector que lida com a confiança, porque lida com a moeda e com o futuro. Juntos, estes poderes fazem com que a sacrossanta concorrência de mercado seja na banca uma fonte de falhas ou de ficções constantes.
A concorrência gerada pelas estruturas neoliberais criadas nas últimas três décadas é indissociável do aumento do número e da violência das crises bancárias à escala internacional, cujos custos são e serão sempre socializados, dada a natureza do sector. Esta situação contrasta com o período entre a Segunda Guerra Mundial e os anos oitenta, quando as crises bancárias eram bem menos frequentes, devido à chamada repressão financeira: banca pública com lógica pública, controlos de capitais e regulamentação precisamente desconfiada da concorrência.
A concorrência é uma fonte de ficções, porque as crises evidenciam as especificidades deste sector, mostrando que é em última instância o poder público, e não os mercados, que tem de o gerir, a começar pelo banco dos bancos, ou seja, pelo banco central, que lhes cede a liquidez de que depende a sua sobrevivência. A questão é então se o poder público gere o sector para beneficio público ou de privados.
Em suma, a banca não vai ao sítio com multas e muito menos com mais concorrência.
quinta-feira, 12 de setembro de 2019
O debate
Promovido pela Associação Fórum Manifesto, com a colaboração da Casa Mídia Ninja, o debate junta Ana Drago, Manuel Carvalho da Silva, Ricardo Paes Mamede e José Vítor Malheiros (moderação), numa reflexão sobre os desafios programáticos que se colocam às esquerdas, num cenário de reedição dos entendimentos para uma solução política após as legislativas. É já na próxima terça-feira, 17 de setembro, na Casa Mídia Ninja (Av. Duque de Loulé, 72, em Lisboa), a partir das 18h30m . Apareçam, a entrada é livre e estão todos convidados.
quarta-feira, 11 de setembro de 2019
Também não somos imparciais
O documentário do sempre genialmente parcial Nanni Moretti estreia entre nós hoje, dia 11 de Setembro, quarenta e seis anos depois do golpe fascista. Allende vive:
Trabalhadores de minha Pátria, tenho fé no Chile e seu destino. Superarão outros homens este momento cinzento e amargo em que a traição pretende impor-se. Saibam que, antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a perfídia, a covardia e a traição.
Trabalhadores de minha Pátria, tenho fé no Chile e seu destino. Superarão outros homens este momento cinzento e amargo em que a traição pretende impor-se. Saibam que, antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a perfídia, a covardia e a traição.
Os lugares contam
O projeto começou por ser conhecido como «Museu Salazar», a instalar na terra natal do ditador. Mas na sequência da controvérsia que se gerou, a equipa de consultores nomeada pelo município assegurou não se tratar de «um museu nem de uma casa-museu Salazar», mas antes de «um Centro Interpretativo do Estado Novo».
É natural que o autarca de um interior em declínio, com uma população envelhecida e uma economia local difícil de suster e perspetivar, não despreze o potencial turístico-económico decorrente do facto de o seu concelho estar associado a uma figura relevante da História recente do país. Mesmo quando se trata de um ditador e mesmo quando o autarca em causa não terá a intenção de alimentar saudosismos e romarias ou, menos ainda, de contribuir para qualquer espécie de revitalização da extrema-direita portuguesa.
Faz também por isso sentido que em vez do «museu» dedicado a um culto paroquial do ditador, o conceito seja o de criar um centro interpretativo do regime que se lhe associa, com o necessário rigor científico e mobilizando para o projeto diferentes ângulos de análise e perspetiva, como é suposto que se faça em democracia. Isto é, dando conta, entre outros aspetos, do «regime que assassinou, torturou, mentiu e empobreceu os bolsos e os espíritos dos portugueses e de todos os povos de que os portugueses tiveram a ilusão de ser proprietários». Permitindo, como assinalava há dias Abílio Hernandez, «que a nossa história [não] seja ocultada», mas antes «ensinada para evitar novos crimes contra a liberdade e a democracia», preservando a memória e compreendendo os acontecimentos e o seu rumo, para que o passado não se volte a repetir.
Acautelada a devida coordenação científica do projeto, a cargo de investigadores como Reis Torgal e Avelãs Nunes (CEIS20), e sendo importante, para a própria democracia, a criação de espaços desta natureza, poderá remover-se do debate a ideia insalubre de um museu biográfico e laudatório dedicado a Salazar. O problema é que subsiste a questão do lugar, que não é de menor importância. Como lembra Miguel Cardina, a «relação entre memória, património e território» implica «integrar a dimensão contextual na análise de memoriais, museus, monumentos ou centros interpretativos». De facto, não se «interpreta» uma ditadura a partir da terra natal do ditador, nos seus espaços, mobilizando o seu «espólio» e com o respetivo «centro» - como bem sublinha Pedro Adão e Silva - «sintomaticamente a situar na cantina-escola Salazar, convenientemente sediada na avenida dr. António de Oliveira Salazar». Se não é intenção recordar, in loco, este «filho da terra», deve reconhecer-se que o lugar de Vimieiro está impregnado de uma ambiguidade política, histórica e emocional que o torna inelegível para acolher o projeto proposto.
É natural que o autarca de um interior em declínio, com uma população envelhecida e uma economia local difícil de suster e perspetivar, não despreze o potencial turístico-económico decorrente do facto de o seu concelho estar associado a uma figura relevante da História recente do país. Mesmo quando se trata de um ditador e mesmo quando o autarca em causa não terá a intenção de alimentar saudosismos e romarias ou, menos ainda, de contribuir para qualquer espécie de revitalização da extrema-direita portuguesa.
Faz também por isso sentido que em vez do «museu» dedicado a um culto paroquial do ditador, o conceito seja o de criar um centro interpretativo do regime que se lhe associa, com o necessário rigor científico e mobilizando para o projeto diferentes ângulos de análise e perspetiva, como é suposto que se faça em democracia. Isto é, dando conta, entre outros aspetos, do «regime que assassinou, torturou, mentiu e empobreceu os bolsos e os espíritos dos portugueses e de todos os povos de que os portugueses tiveram a ilusão de ser proprietários». Permitindo, como assinalava há dias Abílio Hernandez, «que a nossa história [não] seja ocultada», mas antes «ensinada para evitar novos crimes contra a liberdade e a democracia», preservando a memória e compreendendo os acontecimentos e o seu rumo, para que o passado não se volte a repetir.
Acautelada a devida coordenação científica do projeto, a cargo de investigadores como Reis Torgal e Avelãs Nunes (CEIS20), e sendo importante, para a própria democracia, a criação de espaços desta natureza, poderá remover-se do debate a ideia insalubre de um museu biográfico e laudatório dedicado a Salazar. O problema é que subsiste a questão do lugar, que não é de menor importância. Como lembra Miguel Cardina, a «relação entre memória, património e território» implica «integrar a dimensão contextual na análise de memoriais, museus, monumentos ou centros interpretativos». De facto, não se «interpreta» uma ditadura a partir da terra natal do ditador, nos seus espaços, mobilizando o seu «espólio» e com o respetivo «centro» - como bem sublinha Pedro Adão e Silva - «sintomaticamente a situar na cantina-escola Salazar, convenientemente sediada na avenida dr. António de Oliveira Salazar». Se não é intenção recordar, in loco, este «filho da terra», deve reconhecer-se que o lugar de Vimieiro está impregnado de uma ambiguidade política, histórica e emocional que o torna inelegível para acolher o projeto proposto.
terça-feira, 10 de setembro de 2019
Os equívocos de João Miguel Tavares sobre a social-democracia
"Ao contrário do que JMT sugere, não é uma suposta convergência dos partidos em torno de um programa social-democrata que afasta os eleitores da política e cria condições para o surgimento de movimentos que querem romper com a democracia dita liberal. O que a história recente nos mostra é o contrário: foi nos países em que os partidos socialistas e social-democratas mais se afastaram da sua tradição doutrinária (e onde os partidos da esquerda anti-capitalista são menos expressivos) que a confiança na democracia mais se degradou e onde a crise política é maior. A preservação da diversidade ideológica no sistema político português - tendo por base comum o respeito pela democracia representativa e a defesa da justiça social - é provavelmente o principal factor de estabilidade democrática em Portugal."
O resto do meu texto de hoje no DN pode ser lido no site do jornal.
O resto do meu texto de hoje no DN pode ser lido no site do jornal.
Recordar é combater as distopias
Estávamos em 1999 e a revista mensal tinha o sintomático nome de Economia Pura. Custava 750$00. No seu número 14, saudava, nesse ano de perda de soberania monetária, os processos de desregulamentação, privatização e liberalização, que teriam conduzido ao que aí se designava por década dourada da economia portuguesa. Tinha passado uma década desde o proclamado fim da história, em 1989, e o futuro só podia viver à sombra estatística deste passado recente mais ou menos inventado.
Porque recordo este momento da história recente da economia política nacional? Porque encontrei hoje uma revista empoeirada destas numa estante da minha faculdade, que a estava a oferecer e não sei onde tenho o meu exemplar, que eu comprava estas coisas. Mas sobretudo porque um dos sintomas da falência e da corrupção actual do liberalismo económico, em Portugal e não só, é o fingimento de que nunca existiu realmente por aqui. Quem leia, por exemplo, João Miguel Tavares sabe que não papagueia outra coisa. É um ideólogo em segunda mão, afinal de contas. Como Karl Polanyi já tinha notado em 1944, o liberalismo é uma utopia que produz resultados distópicos, furtando-se por sistema à confrontação com as consequências reais da sua institucionalização naturalmente parcial.
Quem fale da versão lusa do neoliberalismo em Portugal tem, entre outras instituições, de falar de um Banco que já na altura não era de Portugal. O seu vice-governador era, em 1999, Luís Campos e Cunha, que ainda anda por aí a dizer vulgaridades. Na altura, deu uma entrevista à revista que é todo um sumário das ideias que nos conduziram até aqui. Minhas senhoras e meus senhores, vamos recuar duas décadas:
“No novo regime [do Euro] a situação é bastante diferente. Neste momento a nossa BTC [balança de transacções correntes], dado que o grosso das nossas transacções é com os países da zona euro, tem o mesmo significado que teria calcular a BTC de Lisboa, face ao resto do país, no antigo regime (...) Portugal tem-se alterado radicalmente. Era um dos países mais regulamentados da Europa, hoje tem dos mercados mais liberalizados (...) A nossa taxa de crescimento tem estado, nos últimos anos, 1,4 pontos percentuais acima da média da UE. Isso possibilitou a Portugal uma aproximação do seu PIB per capita à média europeia. Será um processo continuado e é natural que o reforço da integração traga reforço da convergência.”
Mais palavras para quê?
Porque recordo este momento da história recente da economia política nacional? Porque encontrei hoje uma revista empoeirada destas numa estante da minha faculdade, que a estava a oferecer e não sei onde tenho o meu exemplar, que eu comprava estas coisas. Mas sobretudo porque um dos sintomas da falência e da corrupção actual do liberalismo económico, em Portugal e não só, é o fingimento de que nunca existiu realmente por aqui. Quem leia, por exemplo, João Miguel Tavares sabe que não papagueia outra coisa. É um ideólogo em segunda mão, afinal de contas. Como Karl Polanyi já tinha notado em 1944, o liberalismo é uma utopia que produz resultados distópicos, furtando-se por sistema à confrontação com as consequências reais da sua institucionalização naturalmente parcial.
Quem fale da versão lusa do neoliberalismo em Portugal tem, entre outras instituições, de falar de um Banco que já na altura não era de Portugal. O seu vice-governador era, em 1999, Luís Campos e Cunha, que ainda anda por aí a dizer vulgaridades. Na altura, deu uma entrevista à revista que é todo um sumário das ideias que nos conduziram até aqui. Minhas senhoras e meus senhores, vamos recuar duas décadas:
“No novo regime [do Euro] a situação é bastante diferente. Neste momento a nossa BTC [balança de transacções correntes], dado que o grosso das nossas transacções é com os países da zona euro, tem o mesmo significado que teria calcular a BTC de Lisboa, face ao resto do país, no antigo regime (...) Portugal tem-se alterado radicalmente. Era um dos países mais regulamentados da Europa, hoje tem dos mercados mais liberalizados (...) A nossa taxa de crescimento tem estado, nos últimos anos, 1,4 pontos percentuais acima da média da UE. Isso possibilitou a Portugal uma aproximação do seu PIB per capita à média europeia. Será um processo continuado e é natural que o reforço da integração traga reforço da convergência.”
Mais palavras para quê?
segunda-feira, 9 de setembro de 2019
Não se pode parar
«É com trabalhadores mobilizados e estimulados, com salários dignos, com condições dignas de trabalho, que se pode promover o crescimento económico, o desenvolvimento humano», afirmou Jorge Leite, jurista e professor jubilado da Universidade de Coimbra falecido no fim de Agosto. Foi um dos maiores especialistas do país em Direito do Trabalho, e um cidadão empenhado, ao lado do movimento sindical, na defesa das condições laborais e de vida dos trabalhadores. (...) É preciso compreender que, em todas estas lutas, os trabalhadores estão a ser alvo de reacções desproporcionadas por parte de patrões e do governo porque eles encarnam dois eixos centrais à globalização neoliberal austeritária: eles opõem-se aos ataques ao mundo do trabalho e situam-se em sectores por onde correm os fluxos (capitais e mercadorias) que o sistema entende não poderem parar… por causa dos lucros que permitem realizar. Na verdade, o governo português está a tomar como suas as dores de um sistema neoliberal europeu e global em que está cada vez mais inserido (e a crise também serviu para isso), quando o que devia fazer era compreender o que está em jogo e defender o Estado de direito democrático – como em parte fez perante os ataques ao Estado social.
Excertos do editorial, da autoria de Sandra Monteiro, sobre um país que não pode parar, no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Setembro. Neste número, podem, por exemplo, ler um artigo da componente francesa sobre Portugal, revelando os limites, a tal face escondida, de uma solução governativa irrepetível e intransmissível, até porque produto das circunstâncias específicas de um tempo e de um lugar. Não é aliás por acaso que o artigo começa pela lutas sociais em torno da habitação, uma das questões centrais de uma economia política ainda enviesada. O contraste com um certo turismo político internacional, tão deslumbrado quanto desinformado, não pode ser maior. Mas, afinal de contas, é do Le Monde diplomatique que estamos a falar.
sábado, 7 de setembro de 2019
Por que escrevo
Quero contar a vocês uma história que, para mim, foi muito importante: a primeira vez em que me senti desafiado pelo ofício de escrever.
Aconteceu no povoado boliviano de Llallagua, na zona mineira. No ano anterior, ali mesmo tinha acontecido a matança de San Juan. Os mineiros estavam celebrando a noite de San Juan, bebendo, dançando. E lá dos morros que rodeiam o povoado, o ditador Barrientos mandou metralhar todos eles. Uma matança atroz. Cheguei por lá mais ou menos um ano depois, em 68, e lá fiquei por um tempo, graças às minhas habilidades de desenhista. Porque, entre outras coisas, eu sempre quis desenhar – conseguia desenhar retratos, por exemplo. E retratei todas as crianças dos mineiros, e fiz também alguns cartazes do carnaval e outros eventos. Então me adotaram e passei muito bem, naquele mundo gelado e miserável, onde a pobreza era multiplicada pelo frio. Chegou a noite da despedida. Os mineiros meus amigos, armaram uma despedida com muita bebida – bebemos, cantamos, contamos piadas... cada uma pior que a outra. E eu sabia que às cinco ou seis da manhã, soaria a sirene que os chamaria para o trabalho na mina. E seria a hora de dizer adeus. Quando o momento estava chegando, eles me rodearam e me pediram uma coisa. Disseram: – Conta, conta pra gente como é o mar. E eu fiquei atónito porque não me vinha nenhuma ideia. Os mineiros eram homens condenados a uma morte antecipada nas tripas da terra, por causa do pó de sílica. A média de vida era de trinta, trinta e cinco anos, não mais. Eu sabia que eles jamais veriam o mar, que iam morrer muito antes de qualquer possibilidade de ver o mar, porque estavam condenados pela miséria a nunca sair daquele povoado. Então eu tinha a responsabilidade de levar o mar a eles, de encontrar palavras que fossem capazes de molhar todos eles, para que pudessem sentir o gosto e o cheiro do mar. E esse foi meu primeiro desafio de escritor, a partir da certeza de que escrever serve para alguma coisa.
Eduardo Galeano – “O Caçador de Histórias” – Ed. L&PM
(Surripiado aqui)
Aconteceu no povoado boliviano de Llallagua, na zona mineira. No ano anterior, ali mesmo tinha acontecido a matança de San Juan. Os mineiros estavam celebrando a noite de San Juan, bebendo, dançando. E lá dos morros que rodeiam o povoado, o ditador Barrientos mandou metralhar todos eles. Uma matança atroz. Cheguei por lá mais ou menos um ano depois, em 68, e lá fiquei por um tempo, graças às minhas habilidades de desenhista. Porque, entre outras coisas, eu sempre quis desenhar – conseguia desenhar retratos, por exemplo. E retratei todas as crianças dos mineiros, e fiz também alguns cartazes do carnaval e outros eventos. Então me adotaram e passei muito bem, naquele mundo gelado e miserável, onde a pobreza era multiplicada pelo frio. Chegou a noite da despedida. Os mineiros meus amigos, armaram uma despedida com muita bebida – bebemos, cantamos, contamos piadas... cada uma pior que a outra. E eu sabia que às cinco ou seis da manhã, soaria a sirene que os chamaria para o trabalho na mina. E seria a hora de dizer adeus. Quando o momento estava chegando, eles me rodearam e me pediram uma coisa. Disseram: – Conta, conta pra gente como é o mar. E eu fiquei atónito porque não me vinha nenhuma ideia. Os mineiros eram homens condenados a uma morte antecipada nas tripas da terra, por causa do pó de sílica. A média de vida era de trinta, trinta e cinco anos, não mais. Eu sabia que eles jamais veriam o mar, que iam morrer muito antes de qualquer possibilidade de ver o mar, porque estavam condenados pela miséria a nunca sair daquele povoado. Então eu tinha a responsabilidade de levar o mar a eles, de encontrar palavras que fossem capazes de molhar todos eles, para que pudessem sentir o gosto e o cheiro do mar. E esse foi meu primeiro desafio de escritor, a partir da certeza de que escrever serve para alguma coisa.
Eduardo Galeano – “O Caçador de Histórias” – Ed. L&PM
(Surripiado aqui)
sexta-feira, 6 de setembro de 2019
Desinformação
O primeiro-ministro António Costa tem repetido, nos últimos meses, que durante esta legislatura foram criados centenas de milhares de postos de trabalho, dos quais a esmagadora maioria tem contratos permanentes.
Disse-o, por exemplo, a 1/2/2018, no debate quinzenal: “Nos dois últimos anos, foram criados mais 288 mil novos postos de trabalho líquidos, 78% dos quais com contrato de trabalho” sem termo. Disse-o em Outubro de 2018 no debate quinzenal. A 10/7/2019, no debate do Estado da Nação: “Nos quatro anos desta legislatura foram criados 350 mil novos postos de trabalho (...) 89% dos novos empregos por conta de outrem são contratos sem termo.” Esta afirmação foi sujeita ao “Fact Check do Observador” e... grosso modo passou. Disse-o há dias no debate eleitoral com Jerónimo de Sousa e hoje com Catarina Martins, quando referiu que 92% dos 361,9 mil postos de trabalho assalariados criados desde o inicio da legislatura, eram contratos sem termo.
Ora, estas afirmações são incorrectas.
O problema é que custa mais desmontar um erro do que afirmá-lo. Mas vamos tentar.
Disse-o, por exemplo, a 1/2/2018, no debate quinzenal: “Nos dois últimos anos, foram criados mais 288 mil novos postos de trabalho líquidos, 78% dos quais com contrato de trabalho” sem termo. Disse-o em Outubro de 2018 no debate quinzenal. A 10/7/2019, no debate do Estado da Nação: “Nos quatro anos desta legislatura foram criados 350 mil novos postos de trabalho (...) 89% dos novos empregos por conta de outrem são contratos sem termo.” Esta afirmação foi sujeita ao “Fact Check do Observador” e... grosso modo passou. Disse-o há dias no debate eleitoral com Jerónimo de Sousa e hoje com Catarina Martins, quando referiu que 92% dos 361,9 mil postos de trabalho assalariados criados desde o inicio da legislatura, eram contratos sem termo.
Ora, estas afirmações são incorrectas.
O problema é que custa mais desmontar um erro do que afirmá-lo. Mas vamos tentar.
A arma do crime
Video dos arquivos da RTP. Para o ver, clique no link no texto |
No primeiro, afirma-se que é necessário poupança para o investimento (corte-se nos impostos!) e que tudo começa no Estado, para que os recursos sejam libertos para o sector privado prosperar. Reduza-se o funcionalismo, aperte-se nas suas condições, promova-se a disponibilidade (antecâmara o afastamento), corte-se no investimento público.
No segundo, depois de aplicadas essas medidas, por pessoas à frente das instituições públicas sintonizadas com este pensamento, mostra-se como o Estado é mau prestador de cuidados e serviços, advoga-se - com base nessa "prova" - um maior papel para o sector privado, devidamente financiado pelos recursos públicos, pagos pelos tais contribuintes que a direita diz defender, mas que prejudica aos cortar-lhes o "rendimento" que resulta de melhores cuidados públicos.
Para ouvir protagonistas do primeiro passo, veja este pequeno apontamento de reportagem com 18 anos de vida. Para ouvir protagonistas do segundo, basta ouvir Assunção Cristas, Rui Rio, Santana Lopes e a Iniciativa Liberal.
E andam nisto há décadas, de um lado para o outro, sempre no poder, sempre actuais, sem nunca conseguiram resolver os ditos problemas estruturais, que, na sua opinião, não têm a ver com as estruturas produtivas do país porque as políticas estruturais que defendem não as visam mudar, mas apenas impedir que alguma coisa mude verdadeiramente.
Esta é a arma do seu desempenho criminoso ao longo de todas as décadas que dominaram o poder e que continuam a influenciá-lo, nos governos PSD ou PSD/CDS, mas igualmente - e muitas vezes - sob a mandato dito socialista de Governos PS.
quinta-feira, 5 de setembro de 2019
Da conjuntura e da estrutura económicas
Através do resistir.info, tenho tomado contacto com as acutilantes análises do economista político indiano Prabhat Patnaik, na melhor tradição radical, que procurou ir à raiz dos problemas económicos, de uma certa Cambridge. No seu último artigo, Patnaik assinala algo muito importante, mas que tem gerado equívocos a remover: “O único modo de promover a procura agregada sob o regime do capitalismo neoliberal que continuou a existir foi portanto através do estímulo a ‘bolhas’ de preços de activos; e a política de taxa de juro foi utilizada para este propósito.”
Reparem que Patnaik não diz, como as tais vozes equivocadas, que a política de taxa de juro baixa é parte do problema especulativo. Como é evidente, esta política é parte da solução, uma parte hoje pequena, certamente, mas parte, ou não tivesse sido a “eutanásia do rentista”, a política de taxas de juro reais tendencialmente negativas, uma componente do mais vasto regime keynesiano dos chamados trinta gloriosos anos, logo a seguir à Segunda Guerra Mundial.
Na realidade, e ao contrário do que acontecia no regime keynesiano, a raiz do problema está aqui: “os países permanecem presos no turbilhão de fluxos financeiros globais”. Esse instável turbilhão especulativo foi o produto institucional dos processos de liberalização financeira, incluindo a abolição por demasiados países dos controlos de capitais, sobretudo a partir dos anos oitenta. A UE é o nome dessa liberdade reconquistada para o capital, liberticida para o trabalho, em parte do continente.
Contrastando com o tranquilo período anterior, esta configuração institucional e de classe liberal gera instabilidade financeira, quer de forma directa, quer de forma indirecta, já que a hegemonia do capital financeiro bloqueia em muitos contextos um uso adequado da política orçamental, com vista à estabilizadora socialização do investimento, de que também falava Keynes, e cria um regime de nula pressão salarial. A crise é sempre de procura.
A crise é realmente sistémica e os meios para a superar também têm de o ser. Uma política de pleno emprego pôde historicamente ser apodada de social-democrata. Hoje, é absolutamente radical. No fundo, talvez seja a social-democracia que hoje parece o cúmulo do radicalismo, de tal forma que os que são formalmente social-democratas a rejeitam na prática e muitas vezes até na teoria. Olhem, uma vez mais, para os países da UE.
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