segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Há ou não há alternativa?

Na discussão política permanente que mantenho com um amigo que permanecerá anónimo, um facto acaba sempre presente: mesmo no ambiente intelectual e político mais ideologicamente intoxicado pelas variedades de erva daninha europeísta, 20% dos nossos concidadãos considera que o euro é prejudicial a Portugal.


Estas eleições teriam sido, queremos crer, um bom ponto de partida para destruir o mito de que não há alternativa: produzir mais e cada vez melhores argumentos e apresentar propostas que aumentem a confiança desta minoria e a alarguem, até que esta possa pesar na situação.

Talvez um dos problemas da esquerda à esquerda do PS tenha sido não ter colocado esta questão no centro. Talvez não adiantasse eleitoralmente muito no curto prazo, mas pelo menos teria sido mais fácil de explicar o voto contra um orçamento que definitivamente não dava respostas, confirmando Portugal na cauda das respostas de política orçamental. Os constrangimentos são o que são.

No processo, mais gente teria ficado esclarecida. Será que há outra forma de combater o medo e o recurso ao mal menor?

De um amigo


Os comunistas portugueses não necessitam que lhes venha lembrar Lénine neste momento tão, mas tão, difícil, até porque o conhecem muito melhor. Os amigos fazem o que podem nas ocasiões. 

É realmente preciso: “Investigar, estudar, descobrir, adivinhar, captar o que há de particular e específico, do ponto de vista nacional, na maneira pela qual cada país aborda concretamente a solução do problema internacional comum.” 

Sem esquecer o seguinte: “Não é difícil ser revolucionário quando a revolução já estourou e está em seu apogeu, quando todos aderem à revolução simplesmente por entusiasmo, modismo e inclusive, às vezes, por interesse pessoal de fazer carreira (...) É muitíssimo mais difícil - e muitíssimo mais meritório - saber ser revolucionário quando ainda não existem as condições para a luta direta, aberta, autenticamente de massas, autenticamente revolucionária, saber defender os interesses da revolução (através da propaganda, da agitação e da organização) em instituições não revolucionárias e, muitas vezes, simplesmente reacionárias, numa situação não revolucionária, entre massas incapazes de compreender imediatamente a necessidade de um método revolucionário de ação.” 

Revolução nas nossas particulares circunstâncias nacionais continua a querer dizer as concretizações e potencialidades contidas no melhor da nossa Constituição, a que conserva os traços da revolução democrática e nacional. O problema internacional comum continua a ser o de organizar as lutas dos povos contra as várias formas institucionais de que o imperialismo se reveste, incluindo na, e através da, União Europeia.

A dificuldade, claro, é esta: “Temos de concordar que seria insensata e até mesmo criminosa a conduta de um exército que não se dispusesse a conhecer e utilizar todos os tipos de armas, todos os meios e processos de luta que o inimigo possui ou pode possuir. Mas essa verdade é ainda mais aplicável à política que à arte militar. Em política é ainda menos fácil saber de antemão que método de luta será aplicável e vantajoso para nós, nessas ou naquelas circunstâncias futuras. Sem dominar todos os meios de luta podemos correr o risco de sofrer uma derrota fragorosa - às vezes decisiva - se modificações, independentes da nossa vontade na situação das outras classes puserem na ordem do dia uma forma de ação na qual somos particularmente débeis.” 

Um primeiro comentário


domingo, 30 de janeiro de 2022

A roda invisível dos ratos corredores


Antes de falarmos apenas dos resultados eleitorais desta noite e ainda propósito deste último post do João Rodrigues, queria deixar aqui um longo artigo meu, publicado no 29º Caderno Vermelho, publicado pelo PCP, a partir das notas para um debate organizado pelo jornal Le Monde diplomatique - edição portuguesa.

Trata-se de uma abordagem desenvolvida do que se passa na comunicação social e que amplia a denúncia do post referido. Uma comunicação social que, em vez de responder às suas obrigações constitucionais, esssencial à defesa do pluralismo, se transformou antes num dispositivo de venda de publicidade - nas suas mais diversas formas - que, seguindo as forças poderosas do mercado, reduziu e afunilou o pluralismo às ideias da direita, o que não abona nada de bom para o futuro do país e da democracia.

Chama-se, aliás, a atenção para o facto de este ter sido um desfecho expectável do quadro aberto pela revisão constitucional traçada entre Cavaco Silva e Vítor Constâncio em 1989. As instituições supostamente independentes incumbidas de regular o sector, consagradas por essa revisão constitucional no melhor espírito neoliberal - que tem mais ódio à influência política de quem é eleito do que à influência fáctica de quem é dono do capital - acabam por ser - como era de esperar! - ineficazes. No final, o poder do dinheiro é o poder.

Para quem quiser passar por cima desse quadro descritivo, gostava apenas de chamar a atenção para a parte do artigo em que se fazem propostas alternativas a este panorama.

O declínio editorial também é a ofuscação global


1.
Francisco Pinto Balsemão tem um podcast de entrevistas chamado deixar o mundo melhor, mas aposta em figuras que o deixaram bem pior, como o estreante Durão Barroso, da Guerra do Iraque à Goldman Sachs. Isto não se inventa. É esta comunicação social em declínio editorial tão expresso, tão parcial neste período, que merece ser defendida? 

2. Seguindo uma tradição de exclusão, exceptuando os painéis partidários, comunista não entra no comentário eleitoral televisivo de hoje, mas entram fascistas capitalistas como José Miguel Júdice e outros comentadores ditos independentes, mas igualmente ligados a partidos, da esquerda à direita.

3. Nas relações internacionais, como já aqui defendi, o debate público ainda é mais enviesado do que na economia. Ainda hoje ouvi o programa semanal visão global da aparentemente mais equilibrada Antena 1 e aquilo foi literalmente equivalente ao direitista Observador, de Bruno Cardoso Reis a José Milhazes. Dada a ausência de pluralismo, ofuscação global seria um nome melhor, na realidade.

4. Só nos resta desejar que o impacto eleitoral deste declínio editorial seja mínimo, mas lá que não é nulo, não é.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Se António Saraiva insiste, nós também: Não, não temos funcionários públicos a mais

Não deixa de ser impressionante a facilidade com que algumas ideias falsas, que se entranharam no senso comum, continuam a ser descontraidamente difundidas no espaço público. Na entrevista de ontem ao Publico, António Saraiva, presidente da CIP, insistiu na ideia de que Portugal tem funcionários públicos a mais, afirmando ser «possível e desejável diminuir» os recursos humanos do Estado. Aliás, esta proposta é uma das três «reformas» que constam do caderno reivindicativo que o Conselho Nacional das Confederações Patronais irá entregar aos partidos, ainda esta semana. A «folga orçamental» assim obtida permitiria, segundo Saraiva, conceder um «alívio fiscal» às empresas.

Talvez o presidente da CIP ainda não tenha reparado, mas de facto - como já tínhamos assinalado aqui, também a propósito de declarações suas - o que a realidade nos mostra é que a percentagem de funcionários públicos no emprego total em Portugal (14%) é bem inferior à média da UE (18%), havendo apenas quatro países com valores ainda mais baixos que o registado entre nós em 2019.


E quando na mesma entrevista António Saraiva tenta justificar a proposta dos patrões com o facto de «nas duas últimas legislaturas» terem entrado «para a administração pública 60 mil pessoas» - dando a entender que se passaram todas as marcas da razoabilidade - o presidente da CIP esquece-se que essas entradas (na verdade a rondar as 70 mil) se limitam a anular os cortes da maioria de direita de Passos e Portas, entre 2011 e 2015. De facto, em 2021 o número de funcionários públicos (cerca de 731 mil) é praticamente o mesmo que se registava em 2011 (cerca de 728 mil), com a agravante de o seu peso relativo no emprego total ter passado de 15,4% (2011) para 15,2% (2021).


Por último, registar ainda - como oportunamente o Ricardo Paes Mamede aqui assinalou - que «mais de metade do reforço de funcionários públicos desde 2014 (ano a partir do qual o número começou a aumentar) corresponde a pessoal qualificado da saúde e da educação»; que muitas destas contratações decorrem da regularização de vínculos precários em que se encontravam «dezenas de milhares de pessoas que já trabalhavam para o Estado (...) disfarçados de prestadores de serviços»; e que «o peso dos salários na despesa pública corrente tem vindo a cair continuamente desde 2003, sendo hoje metade do que era no início do século».

Ou seja, a verdadeira questão que se coloca nesta matéria não é a de termos funcionários públicos a mais - que não temos - mas sim, como refere o Ricardo, a de saber se o Estado conseguirá «atrair as pessoas com as qualificações necessárias, dada a persistência de salários baixos, contratos precários» e «poucas perspetivas de progressão», para lá do «bullying permanente de quem acha que o Estado está sempre a mais».

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

A memória é um país distante (VIII)


«Rui Rio já não é o político que tentou criar no Porto uma democracia autoritária, na qual jornalistas mais críticos eram filmados e expostos nos placards da autarquia; onde os arrumadores deviam ser “escorraçados” ou detidos para identificação; onde colunistas ou atores foram processados por lhe dirigirem palavras duras – e absolvidos em nome da liberdade de expressão; onde os apoios municipais exigiam que os seus destinatários se “abstivessem” de criticar a câmara. Rui Rio também já não é o político que reclamou a suspensão de eleições nas câmaras endividadas, que limpou das listas de deputados os seus opositores internos e transformou o PSD numa máquina fiável, obediente e previsível.
(...) Rui Rio anda irreconhecível. O seu ar austero e ríspido deu lugar a uma longa coleção de sorrisos para os seus adversários. (...) O sucesso poupou-o à amargura e ao ressentimento. Coisa breve, porque, se Rui Rio tem um mérito, é o de não esconder o que é. O Rui Rio sorridente e com gatinhos acabará na primeira contrariedade. Com ele no governo, o “rigor” vai apertar a liberdade de crítica e de expressão, vai colidir com a separação de poderes, vai, enfim, tornar a vida pública do país mais tensa e áspera
».

Manuel Carvalho, Rui Rio paz e amor

A lição antifascista


Corrijam-me se estiver errado: ao contrário do que acontece nas grandes manifestações de Abril em Maio, não costumo ver a nossa bandeira nas iniciativas dos “antifas”. 

Lembremos e atualizemos a lição antifascista: fascista é a única palavra que se deixa a este inimigo derrotável. Neste contexto, não se deve esquecer que a política popular passou também pela disputa ideológica das formas de fronteira nacional e de segurança a garantir. Sem algum grau de fronteira económica, sem controlo político democrático sobre os capitais e sobre os fluxos comerciais ao nível dos Estados, não há autoridade e responsabilidade políticas democráticas; nem forma de segurança defensável, a social, a que é garantida pela provisão pública universal de um conjunto de bens e serviços e pelo pleno emprego. 

A fronteira e a segurança defensáveis implicam o manejo deliberado de vários instrumentos de política económica. O drama é que estes foram anulados ou furtados pela integração europeia e pelas suas instituições nada democráticas, a começar pelo todo-poderoso Banco Central Europeu, mais próximas do capital no centro do que do mundo do trabalho na periferia. Sem a vontade nacional e popular a funcionar para democratizar a economia, e sem os instrumentos de política económica que lhe dão tradução material, o campo fica livre para a viciosa imaginação da extrema-direita num contexto de insegurança e de vulnerabilidade. 

Nos anos trinta, perante o ascenso dos fascismos, favorecidos pelas crises geradas pelo capitalismo liberal e pelo correspondente desemprego de massas, a estratégia antifascista passou precisamente por um trabalho político de reinvenção progressista da escala nacional. Como disse Georgi Dimitrov, um dos ideólogos da estratégia das frentes populares definida, em 1935, pela Terceira Internacional: “O internacionalismo proletário deve aclimatar-se, por assim dizer, a cada passo e deitar profundas raízes no solo natal. Ao revoltar-se contra toda a vassalagem e contra toda a opressão é o único defensor da liberdade nacional e da independência do povo”. 

A melhor tradução institucional do antifascismo foram as constituições em tantos países a seguir à Segunda Guerra Mundial, assentes nos valores do mundo do trabalho organizado, do pleno emprego e do Estado social, sem os quais não podia e não pode haver uma democracia avançada, expressão do desejo crescente de igualdade no campo socioeconómico. A nossa Constituição, a de 1976, produto de uma revolução democrática e nacional, foi tributária desse movimento quase trinta anos depois. Ainda hoje devemos muito a este espírito, das liberdades democráticas ao Serviço Nacional de Saúde. O nacional não está lá por acaso.

Hoje, nas circunstâncias históricas que são as nossas, não deixemos, para recomeçar, que os fascistas fiquem à frente nas próximas eleições legislativas dos que lhe fizeram, fazem e farão frente. Aqui está, creio, uma resolução para o primeiro mês do ano que agora começa.

De um ensaio no setenta e quatro sobre o fascista Ventura e as palavras que não são suas: Deus, Pátria, Família e Trabalho. 

Sim, o fascista tem estado mais manso nestas semanas de Janeiro, quase reduzido ao revelador número animalista da coelhinha e a umas habilidades para segmentos, inspiradas em Paulo Portas. Táticas de campanha.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Alguém acha que o salário mínimo não deve subir?


«Mas há alguém, e agora vou englobar mesmo todos, da extrema-direita à extrema-esquerda, há alguém que ache que o salário mínimo é muito e que não deve subir, que chega para viver? Há alguém? (...) O Dr. António Costa tem o desplante de dizer que o PSD é contra o aumento do salário mínimo nacional. Então o PSD é a favor do quê? Da redução do salário mínimo nacional? Acha que é dinheiro a mais?»

Rui Rio (janeiro de 2022)

«Qual o objetivo do Governo em aumentar o salário mínimo nacional? Fomentar mais o desemprego? Aumentar mais as falências? (...) Acha que o país precisa que eu agora chegue aqui e faça demagogia? E se o Governo disser que quer pagar 650 eu peço 700? Não é isso que o país precisa. Para fazer demagogia tenho outros. E infelizmente dado aquilo que aconteceu ao país, nós temos de ter os pés bem assentes na terra. (...) Eu repito, não acho adequado o aumento do salário mínimo nacional.».

Rui Rio (setembro/outubro de 2020)

No combate das ideias, uma das mais importantes conquistas da solução política à esquerda encontrada em 2015 foi o desfazer do mito de que o aumento do Salário Mínimo Nacional prejudicava a economia, conduzindo a «mais falências e desemprego», como disse Passos Coelho, para defender de seguida que o mais sensato era reduzir o seu valor. Teses que a realidade tratou de contrariar, como mostra a trajetória de recuperação do emprego depois de 2015 e o seu contributo para o relançamento da economia e o aumento dos salários.

Mesmo com afirmações contraditórias, o que já é revelador da sua consistência política, dir-se-á que Rio não é Passos. Mas a verdade é que ambos assumem a lógica da «economia do pingo», em que primeiro se cria riqueza e só depois se distribui, o fundamento para a recusa da subida dos salários e a primazia dada às empresas. Além disso, e como estamos em campanha eleitoral, convém lembrar Passos Coelho também por outra razão: a da propensão da direita para a velha tática de dizer primeiro uma coisa e fazer depois o seu contrário. Sem pestanejar.

A dignidade do trabalho e o Estado Social são a nossa casa comum


«O que atravessa as propostas da direita portuguesa é uma visão profundamente individualista da sociedade. É a ideia que as pessoas se interessam, aliás, se devem apenas interessar pelas suas vidas. A ideia de sociedade de cada um por si, sem querer saber o que acontece aos outros. É por isso que a direita dá tanta centralidade ao mercado e é por isso que nunca fala de desigualdades. Acredita numa sociedade de vencedores e vencidos, em que o sucesso de alguns é o insucesso de muitos.
(...) É por isso que onde a direita ambiciona sempre incutir os valores da competição, nós temos de proteger os valores da cooperação. Nós cooperamos porque reconhecemos que sozinhos somos seres limitados. Que coletivamente somos mais fortes e que a nossa força resulta da pluralidade, da partilha, da solidariedade. Cooperamos porque para nós os problemas de uns são os problemas de todos.
(...) É por isso que nos afastamos das propostas defendidas pela direita, sobretudo quando ela as faz em nome da “liberdade”. (...) A liberdade para nós não é um valor abstrato, não é um recurso proclamatório. Para nós a liberdade que conta é a liberdade efetiva e igual para todos, não só para alguns.
(...) Liberdade é, depois de termos trabalhado uma vida inteira, podermo-nos reformar sem ficar dependentes da caridade alheia ou à mercê dos mercados financeiros. E essa liberdade só o sistema público de pensões nos pode dar. Liberdade é podermos ter uma formação de qualidade, sejamos nós filhos de um patrão ou de um trabalhador. E essa liberdade só a escola pública nos pode dar. Liberdade é termos acesso a cuidados de saúde de qualidade sem que nos perguntem se os conseguimos pagar. Essa liberdade só o Serviço Nacional de Saúde nos pode dar. Esta liberdade igual para todos e não só para alguns – para aqueles que a podem pagar – não cai do céu. Ela existe porque foi conquistada, porque foi construída, porque ao longo da história nos organizámos coletivamente para lhe dar uma tradução institucional a que chamamos “Estado Social”.
(...) Que ninguém se esqueça que a grande maioria da população portuguesa não é licenciada e que nenhum país se desenvolve se se esquecer de respeitar, reconhecer e valorizar o trabalho de todos, independentemente dos seus estudos. De todos aqueles que fazem trabalho manual e social. Valorizar e respeitar os nossos operários, os nossos homens e mulheres que fazem as coisas que usamos para viver. Os nossos sapatos, as nossas roupas, os nossos móveis, as nossas casas. Valorizar e respeitar as mulheres e os homens que garantem que as nossas cidades, os nossos hospitais ou as nossas casas são limpas. Valorizar e respeitar aqueles que cuidam, em instituições ou em casa, dos nossos idosos, das nossas crianças ou das pessoas com deficiência.
(...) Para a direita, uma sociedade de vencedores e vencidos é sinónimo de “sociedade meritocrática”. Falam em “mérito” para justificarem e aceitarem desigualdades. Mérito? (...) Aquelas mulheres que cozem as gáspeas, as partes dos sapatos, horas e horas seguidas, sentadas sem quase olhar para o lado, sempre a olhar para a agulha, para a pele e para a linha... não têm mérito? Os técnicos de manutenção da CP não têm mérito? Aqueles homens que conseguem fazer milagres e mantêm comboios com 50 anos a circular em Portugal não têm mérito? As técnicas sociais dos lares, creches, cercis, não têm mérito? Aquelas mulheres e homens que cuidam todos dias dos nossos idosos, das nossas crianças e dos nossos familiares com deficiência... não têm mérito? Só conseguiremos ter um país desenvolvido e forte se valorizarmos e respeitarmos todos os que trabalham.
(...) A cola da nossa comunidade, a nossa casa comum é o Estado Social, a maior construção coletiva de que fomos capazes. Uma construção que devemos proteger, aprofundar e, quando a colocam em causa, defender dos que a querem destruir em nome da “liberdade”.
»

Da intervenção de Pedro Nuno Santos, ontem em Aveiro.

Livrai-nos do RBI


A paciência e a persistência de Francisco Louçã no combate ao Rendimento Básico Incondicional (RBI) são admiráveis – Uma chuva de dinheiro cai na campanha eleitoral, por exemplo. Tem colocado uma questão simples, a que os defensores do que justamente apoda de fraude nunca se dão à maçada de responder, e ainda tem ajudado na resposta: “Como os proponentes não apresentam a conta, e até suspeito que nunca o farão, sugiro a quem lê que a faça”. Louçã tem-na feito, de facto. 

No campo económico, mas igualmente com vastos impactos sociopolíticos, há outras questões simples e a que os defensores do RBI evitam responder. Por exemplo: e os potenciais efeitos inflacionários significativos desta maciça injeção de poder de compra, dado que, ao contrário da proposta do emprego garantido, não se garante correspondente capacidade do lado da oferta? O trabalho é realmente uma maçada política evitável para certa “esquerda” que fica apenas na esfera da circulação. 

Alargando o espectro das objeções, sem medo de repetições, diria que há pelo menos mais meia dúzia de razões para fugir a sete pés de partidos que propõem tal despautério – Livre e PAN –, uma espécie de algodão não engana político. 

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Querido diário - Há 20 anos a prometer a revolução...

Há dez anos, os "liberais" de então também tinham muita pressa em reformar o Estado…

Jornal Público 25/1/2012

Aliás, dez anos antes disso, em 2001, também os "liberais" de então, com Durão Barroso à frente, também tinham muita pressa em reformar o Estado e até prometeram algo irracional: uma auditoria às contas públicas! Passos Coelho prometeu coisas igualmente irrazoáveis e interesseiras como são hoje as propostas dos jovens liberais que pensam como os velhos liberais (ver aqui um resumo).

Mas nem Durão Barroso fez alguma coisa em 2002, nem Passos Coelho ou Paulo Portas o fizeram em 2012. Paulo Portas - regressado da sua irrevogável demissão de Julho de 2012 - apresentou em 2013 uma infantil página A4 para reformar o Estado que ninguém, nem mesmo Passos Coelho, levou a sério. Mas entretanto, tinham cortado nos apoios sociais, cortado nos vencimentos, cortado no pessoal, cortado no investimento público, cortado nos serviços públicos da Saúde, na Educação, na Protecção Social. Cegamente. 

Mas não foram capazes de fazer alguma reforma estrutural como tinham prometido. 

Pior: perceberam da pior maneira que pretender "reformar" o Estado se traduz em cortes de benefícios e serviços públicos de que a maioria dos portugueses beneficia (autêntico rendimento indirecto e cimento social) e que a sua aplicação gera recessão, desemprego e... protestos! O PSD levou dez anos a erguer-se desse tombo e o CDS não está em muito boa forma!  

Agora, o velho PSD liberal já nem fala de cortes. Os jovens liberais da IL e os velhos liberais do PSD querem antes colocar o Estado a pagar aos privados para cobrir as falhas do Estado que os velhos liberais (e alguns socialistas liberais) ajudaram a criar durante 30 anos. Já não querem cortar vencimentos: querem que seja o Estado a subsidiar os baixos salários, cortando nos impostos - ou seja, colocando a população a financiar sobretudo as poucas grandes empresas (que possuem 28% do total dos trabalhadores) - enquanto vendem à mesma população que deveremos dar uma borla fiscal de centenas de milhares de euros a cada CEO de multinacionais e grandes empresas e no IRC pago pelas grandes empresas. Mas mesmo assim  não vai funcionar. 

Porque não há como o Estado para realizar a igualdade de oportunidades, supostamente tão querida dos liberais.  E depois, não é possível - aos olhos de quem quer ter contas à la Frankfurt - ter gastos públicos duplicados: pagar a privados e, ao mesmo tempo, manter a capacidade instalada do Estado. E alguma coisa terá de ser cortada. E será o investimento público e os gastos públicos em pessoal (ou seja, serviços públicos). E assim voltam aos cortes que se esquivaram a dizer que queriam.

Só que antes de vivido esse pesadelo, eleitoralmente a promessa funciona. 

Funciona como o anúncio de uma revolução redentora que tudo vai resolver. A má vida dos mesmos dois milhões de pobres que assim se mantêm durante décadas, os atrasos seculares, as dívidas externas, o atraso sectorial nacional, uma burguesia nacional sem visão soberana e independentista. Só que é tudo mentira. Mas depois, já é tarde, estaremos todos muito pior e tudo levará muito tempo a recuperar. Quase dez anos! É um desperdício de tempo, energia e recursos. É um falhanço como país. É um crime social. E que não se apaga apesar de todos os sorrisos divertidos e graçolas na publicidade que possam hoje esboçar.   

O "liberalismo" já provou várias vezes em Portugal: não funciona como prometem. Funciona apenas para transferir dinheiro da maioria da população para uma minoria. E, por isso, não faz falta a Portugal.


 

Os cinco erros da direita sobre o crescimento económico em Portugal

Os partidos de direita apresentam-se a estas eleições com um discurso simples sobre a economia portuguesa. Afirmam que Portugal tem tido um crescimento medíocre comparado com os países do Leste europeu, que eram pobres e hoje são mais ricos que nós. E que essa diferença se deve às políticas adoptadas: liberais naqueles países, “socialistas” aqui. Logo, segundo a direita, é preciso liberalizar, privatizar e desregulamentar para Portugal crescer.

Este discurso é simples e eficaz. É também errado, por cinco razões.

1. O desempenho das economias de Leste é menos diferente do português do que parece

As economias não crescem sempre ao mesmo ritmo – há momentos em que aceleram, outros em que abrandam. Nas economias menos avançadas, as acelerações devem-se quase sempre a factores externos e nem sempre são virtuosas.

Na UE, todos os novos Estados membros passaram por um período de rápido crescimento económico nos anos que se seguiram à integração. Tal deve-se a três motivos principais: a abundância de fundos de coesão, a liberalização dos movimentos financeiros internacionais e os fluxos de investimento estrangeiro (que exploram as novas oportunidades de investimento e de produção a baixos custos).

Isto aconteceu também a Portugal na década e meia que se seguiu à entrada na então CEE, em 1986. A este nível, Portugal não compara nada mal com os oito países da Europa de Leste que aderiram à UE em 2004: destes, só a Polónia teve uma taxa anual de crescimento superior à portuguesa nos 15 anos posteriores à integração europeia (ver gráfico).


O problema vem depois – e não é por acaso. À medida que os rendimentos médios aumentam, o montante de fundos europeus diminui e as vantagens competitivas associadas aos baixos custos também. Os fluxos de financiamento externo invertem-se, então: se no início o capital entra para emprestar a juros baixos e investir em diferentes actividades, na fase seguinte o capital sai sob a forma de lucros, juros e amortização dos empréstimos entretanto contraídos. Quem julga que os elevados ritmos de crescimento dos países de Leste se vão manter ad eaternum enquanto a economia portuguesa estagna não presta muita atenção à história do crescimento económico.

2. Os países de Leste tinham condições para crescer que nada têm que ver com “medidas liberais”

A direita defende que o rápido crescimento dos países do Leste europeu se deve a políticas liberais, em particular impostos baixos e um Estado de dimensões reduzidas. Qualquer explicação para o crescimento económico que se baseia num único factor é de desconfiar – se assim fosse, os economistas não andavam há 250 anos a tentar compreender o fenómeno. Neste caso concreto, a explicação apresentada esquece alguns dos elementos essenciais.

A ideia de que os países de Leste tinham menos condições do que Portugal para crescer é simplesmente errada. Se há coisa que se sabe sobre o crescimento económico é que este tende a beneficiar muito das qualificações das pessoas – e os países de Leste têm desde há muitas décadas os níveis mais elevados de educação entre as nações europeias.

Outro facto bem conhecido dos processos de crescimento diz respeito à importância do perfil de especialização dos países. E, ao contrário do que muitos sugerem, as economias que mais têm crescido no Leste europeu não eram pouco desenvolvidas: uma década antes de aderirem à UE (ou seja, quando ainda estavam na transição para o capitalismo), países como a Estónia, a Eslovénia, a República Checa, a Eslováquia e a Polónia tinham já um perfil de exportação mais sofisticado do que o de Portugal (ver gráfico construído a partir daqui).

Índice de complexidade económica das exportações de cada país


Às vantagens na educação e ao perfil de especialização, alguns países do Leste somam a proximidade histórica e geográfica a economias muito mais avançadas, de cuja força tendem a beneficiar. Os casos mais óbvios são a República Checa (que se tornou uma extensão da indústria transformadora alemã) e a Estónia (que se tornou um prolongamento da economia finlandesa).

Ignorar todos estes factores – o impacto da integração europeia, os níveis de educação e de sofisticação tecnológica de partida, ou a proximidade a economias mais avançadas – para insistir na tese da abordagem liberal como factor de sucesso económico, só pode ser resultado de ignorância ou má fé.

A automatização vai acabar com o trabalho?


O debate sobre o impacto da inovação tecnológica na destruição de postos de trabalho não é de agora. Na última década, surgiram alguns estudos que procuravam estimar a quantidade de empregos que seriam eliminados face ao avanço da automatização e à rápida evolução da tecnologia, tanto para uso pessoal como para aplicação em diferentes processos produtivos. Mas a pandemia parece ter dado nova força à ideia: no ano passado, o McKinsey Global Institute atualizou os seus cálculos e estimou que a automatização poderá acabar com 45 milhões de postos de trabalho nos EUA até 2030. O que isto significa é que, nos próximos 8 anos, um quarto da força de trabalho norte-americana perderia o emprego para robôs – um cenário muito pouco animador.

Há duas ideias que têm sido veiculadas por boa parte dos economistas mainstream acerca deste fenómeno. A primeira é a de que a automatização já está a ser responsável por uma elevada taxa de substituição de trabalhadores por robôs, que se vai acentuar devido à recessão que estamos a atravessar e que levará a um inevitável e significativo aumento do desemprego nas próximas décadas. A segunda é a de que o avanço da automatização tem sido responsável pelas crescentes desigualdades e pela redução da fração do rendimento nacional que é alocada ao fator trabalho – isto é, a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores. Embora ambas as ideias sejam relativamente intuitivas e estejam na base de discursos alarmistas sobre o suposto “fim do emprego”, nenhuma sobrevive a uma análise mais sóbria da realidade.

Temos bons motivos para não embarcar na ideia de que os robôs vão acabar com o trabalho. Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o investimento na adoção das novas tecnologias pelas empresas não tem sido tão expressivo como se supunha, como demonstram vários estudos empíricos realizados nos últimos anos (como os do Economic Policy Istituteaqui ou aqui – ou este do Roosevelt Institute), em parte pelo facto de que continua a ser mais barato empregar pessoas. Por outro lado, as tecnologias de inteligência artificial têm sido desenvolvidas para lidar com tarefas muito específicas, sendo incapazes de substituir o conhecimento humano indispensável em várias áreas.

Além disso, a história das sucessivas revoluções industriais diz-nos que o desenvolvimento de novas tecnologias não se limita a destruir alguns tipos de trabalhos, mas gera novas necessidades no processo produtivo e, com isso, novos empregos. No século XIX, embora o desenvolvimento da indústria tenha feito desaparecer os artesãos, implicou simultaneamente a criação de novos empregos qualificados dentro e fora das fábricas; da mesma forma, no final do século passado, a proliferação das caixas de multibanco não reduziu (e até aumentou) o número de funcionários bancários, devido à abertura de mais balcões de atendimento possibilitada pela redução de custos. O próprio relatório da Mckinsey reconhece que a maioria das pessoas cujos postos de trabalho serão extintos continuará a trabalhar na mesma área de atividade e só uma percentagem bastante menor (cerca de 10%) terá de procurar emprego noutras áreas, ao passo que a The Economist reconhece esta semana que “os economistas estão a rever as suas previsões sobre os robôs e o emprego”, face à falta de dados que as comprovem, e que a “era das narrativas sombrias” sobre o desemprego permanente parece ter acabado.

Também temos bons motivos para afastar a ideia de que é a robotização que tem alimentado o crescimento das desigualdades. Essa tese resulta da teoria neoclássica, que assume que a distribuição do rendimento produzido numa economia é feita de acordo com o contributo relativo de cada fator de produção (trabalho e capital) para esse processo. Assim, os salários e os lucros seriam resultantes da “produtividade marginal” de trabalho e capital, respetivamente. Se, nas últimas décadas, a fração do rendimento para o trabalho tem diminuído um pouco por todo o mundo, só se poderia concluir que os trabalhadores estão a contribuir menos (marginalmente) do que o capital. O problema desta história é que depende de hipóteses teóricas extremamente irrealistas, como a existência de mercados perfeitamente competitivos. Na verdade, a tendência de estagnação dos salários e aumento das desigualdades, a que Portugal não tem escapado, está relacionada com o modelo de globalização das últimas décadas, marcado pela abertura ao comércio internacional, que permite deslocalizar as atividades e incentiva os países a competirem através de baixos custos do trabalho (leia-se, baixos salários), e pela desregulação laboral, que desprotegeu os trabalhadores, enfraqueceu os sindicatos e comprimiu os salários, como foi identificado por três investigadores do FMI.

No entanto, a automatização vai implicar mudanças de fundo nas estruturas produtivas e nas relações sociais. No ano passado, o Gabinete de Estatísticas do Trabalho dos EUA publicou um estudo sobre as perspetivas de evolução no emprego no pós-pandemia, prevendo que a destruição de emprego será bastante mais expressiva entre os trabalhos que requerem menos qualificações. Embora estas projeções devam ser analisadas com bastante prudência, já que estão sujeitas a enorme incerteza, é razoável assumir que a próxima década traga maior procura por serviços relacionados com cuidados de saúde e inovação tecnológica, que tenderão a crescer mais, ao passo que as profissões mais mal pagas, na restauração ou na hotelaria, poderão reduzir-se.

Isso significa que a próxima década colocará novos desafios à repartição mais justa da riqueza. Uma das formas de a promover é através da reorganização do tempo de trabalho – a robotização pode contribuir para que trabalhemos menos horas semanais e diárias, como Keynes sugeriu há quase 100 anos. Outra passa pelo investimento público na educação e na formação ao longo da vida, de forma a reforçar as qualificações das pessoas e a prepará-las para as mudanças no mundo do trabalho. Ambas partem do pressuposto de que o Estado deve promover o emprego e apostar num modelo que permita conciliá-lo com a vida pessoal, em vez de se acomodar à suposta inevitabilidade do desemprego e abdicar dessa disputa. Temos muito trabalho pela frente.

A iniciativa liberal é um perigo, dado que...

... é uma versão intelectualmente aprimorada do programa do Chega. Afinal de contas, estes dois partidos são herdeiros da radicalização neoliberal que ocorreu com o governo da Troika, liderado por Pedro Passos Coelho: das privatizações ao aumento dos poderes patronais, correlativo da diminuição dos direitos laborais, passando pela erosão de serviços públicos estruturalmente subfinanciados.

Ambos insistem na subsidiação do capitalismo no campo da educação ou da saúde, à boleia da retórica da «liberdade de escolha», desestruturando os serviços públicos e corroendo a autonomia e o carácter dos seus profissionais, ainda não submetidos à lógica do lucro. E ambos insistem na redução acentuada da progressividade de um sistema fiscal, por sua vez já corroído pela fuga das grandes empresas e dos mais ricos aos impostos, indissociável da liberdade internacional de circulação dos capitais. Esta tem sido promovida por uma integração europeia que ambos os partidos defendem nos seus dois principais pilares, o do mercado único e o da moeda única, ou seja, da política demasiado única e estruturalmente enviesada para as direitas.

O cosmopolitismo de pendor federalista da IL, culturalmente partilhado por demasiados intelectuais de esquerda, por oposição ao nacionalismo etno-racial do Chega, esconde mal um alinhamento profundo das direitas, das novas e das velhas, com a continuação da política da Troika. A soberania popular e democrática, de base nacional, materialmente assente num maior controlo democrático da economia, é o grande inimigo comum.

A divisão de trabalho entre estes dois novos partidos é certamente espontânea, o resultado da acção, mas não da intenção, política de diferentes fracções da burguesia, sem deixar de ser menos impressionante por isso: enquanto no Chega o aprofundamento do programa de neoliberalização é embrulhado num discurso racista, explicitamente autoritário e musculado, na Iniciativa Liberal é embrulhado num discurso leve e progressista, de onde referências pretensamente feministas e anti-racistas não estão ausentes, na esteira da enésima reinvenção do ideal liberal clássico das carreiras abertas aos talentos de todo o lado, sem discriminações, nem favorecimentos, até porque a fronteira política não deve ter significado socioeconómico.

Esta tendência «liberal» progride num debate público onde as questões de fronteira, género ou minorias são sistematicamente desligadas das questões de classe, de matriz socioeconómica, e das políticas económicas e sociais universais na comunidade política, do pleno emprego aos direitos sócio-laborais, que atenuam ou eliminam em simultâneo várias formas de exploração e de opressão, libertando colectivamente.

O resto do artigo A liberdade a sério está para lá do liberalismo, publicado em Abril de 2021, encontra-se agora disponível na íntegra no novo site do Le Monde diplomatique - edição portuguesa.

Procurando resgatar a palavra liberdade das mãos de uma das iniciativas reacionárias das fracções mais reacionárias do capital que é grande, finaliza-se com Sérgio Godinho, que sabe bem o que é a liberdade a sério:


Hoje


segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Querido Diário - antes é que era bom...

Jornal Público, 24/1/2012

Quando se inicia uma recessão - seja porque é importada ("FMI alerta para o risco de recessão à escala mundial"), seja quando um Governo acha que tem de praticar austeridade para promover a poupança ou porque há "despesa pública a mais" que os "os contribuintes não podem pagar mais" - lembre-se que depois há consequências. E que custa muito mais retomar o ponto de partida.
 
Aos olhos de qualquer pessoa sensata, não fazia então sentido estar a cortar na despesa pública quando se avolumava uma recessão. Só ia provocar mais recessão em cima de recessão, mais desemprego, menos salários. Já se sabe isto desde a Grande Depressão de 1929 e até antes se calhar. Mas aos olhos dos jovens turcos, nada fez mais sentido do que a sua cartilha que traziam no bolso. 
 
Porque a cartilha tem um objectivo que nunca é dito nem plasmado nos programas eleitorais: quanto menos despesa pública, mais há mercado para os operadores privados puderem usufruir dele. Nada como um Estado desarticulado para que, o que antes eram direitos, passem a ser serviços. E então se as receitas fiscais puderem contribuir para essa despesa dos contribuintes/cidadãos, ouro sobre azul. 

Não é um programa económico/social: é um projecto de investimento. Mas não é seu.
 

 
E é então que se parte a moldura dourada desse grande "programa" - o anúncio de que se vai resolver os problemas estruturais do país que o impedem de crescer (sim, também de falou nisso em 2011/12). O grande instrumento dessa política de Passos Coelho era baixar a TSU e substituir essa "carga fiscal sobre as empresas" pagando-a com a receita de IVA. Mas o problema é que, afinal, as contas de Eduardo Catroga - seu adviser - estavam mal feitas ou não tinham sido feitas. E Passos Coelho descobriu que, afinal, não podia pagar o que prometera porque isso lhe dava cabo do objectivo que abraçara de descer rapidamente o défice orçamental... 

Obriguem sempre a direita a dizer antes como fará as coisas. E não aceitem generalidades como resposta. 
 
Passos Coelho também prometeu que as alterações na legislação laboral de 2012 iriam fazer o emprego crescer no ano seguinte. Porquê? Porque as alterações iriam libertar as empresas. Afinal, o desemprego explodiu porque as alterações desequilibraram ainda mais a já de si desequilibrada relação entre trabalhadores e patronato. Reduziu-se ainda mais a procura. E o desemprego impediu os salários de crescer. Hoje, até a direita acha que os salários médios têm de subir.
 
Rui Rio já aprendeu: promete que a economia vai crescer porque sim (!), mesmo quando todas as experiências provam que baixar impostos não promove crescimento económico, mas défices orçamentais. Mas - falhanço virtuoso! - mais défices justificam cortes na despesa pública. E cortes justificam mais mercado para o sector privado... que já beneficiou entretanto com a descida dos impostos realizada logo a curto prazo.
 
Tudo tem uma lógica, mas não é a anunciada. E depois dirão que foram mal entendidos. Veja-se o caso de Cavaco Silva:


E tudo se repete. Até havia, também, mais uma crise em que os Estados Unidos prometem defender alguém, atacando primeiro... Há dez anos era o Irão, hoje é a Rússia.  
 
Cá é com cada vez mais arrogantes e mais ignorantes/superficiais actores. Por que é que a direita, dos seus think thanks políticos, os escolhe sempre assim? 

Mas o PIB cresceu...


«No caso da taxa única, a Lituânia é apontada como um exemplo a seguir, pois ultrapassou Portugal em PIB per capita. De facto, é um caso que merece reflexão. A taxa de suicídio da Lituânia é das mais altas do mundo, a segunda mais alta da UE. O sistema de educação pratica dos salários mais baixos da UE enquanto o desempenho académico dos estudantes se encontra abaixo da média da OCDE. Na saúde, este país tem hoje menos 52 hospitais do que em 1990 e a esperança média de vida é seis anos mais baixa do que a portuguesa. Com resultado semelhantes, a Letónia decidiu abandonar a taxa única de IRS em 2018. Por último, entre 1990 e 2020, a Lituânia perdeu um milhão dos seus 3,7 milhões de habitantes. A maioria emigrou à procura da melhores condições de vida. É uma catástrofe demográfica equivalente a uma guerra. Mas o PIB cresceu.»

Ruben Leitão Serém, Neoliberalismo à portuguesa II (via Francisco Louçã)

Educação, inovação e intervenção pública: o resto é banha da cobra

A mensagem mais eficaz dos partidos da direita (todos eles) durante a campanha eleitoral em curso é a de que a economia portuguesa tem vindo a ser ultrapassada por vários países do Leste europeu que eram até há pouco tempo pobres e que isso se deve a 25 anos de "políticas socialistas" em Portugal. Será mesmo assim? 

Há seis países cujo PIB per capita medido em paridades de poder de compra é hoje superior ao português, mas que não o era em 1995. Desses, dois deles (Malta e Chipre) são ilhas mediterrânicas (e não países de Leste) com menos de um milhão de habitantes. Dos restantes, três têm entre um e três milhões de habitantes (Estónia, Lituânia e Eslovénia), sendo a República Checa o único com uma dimensão idêntica a Portugal (10,7 milhões). 

Dois daqueles países (Malta e Eslovénia) já tinham níveis de PIB per capita idênticos aos portugueses em meados da década de noventa. Outros dois (Estónia e Lituânia) perderam população no período em análise, o que não só ajuda a explicar a melhoria dos rendimentos per capita, como sugere que a sua população não está assim tão entusiasmada como a direita portuguesa parece estar. 

Se há coisa que estes países têm em comum e que os distingue de Portugal são os níveis de educação: em todos eles a proporção de adultos activos com o ensino secundário completo é superior ou muito superior a Portugal (no caso dos países de Leste os valores são ainda hoje quase o dobro e já é assim há muitas décadas). Se queremos perceber por que motivo têm crescido mais estes países, é por aqui que devemos começar. 

Às qualificações superiores vale a pena acrescentar outros factores que têm pouco a ver com o imaginário da direita portuguesa. Tomemos como referência a República Checa, o único dos seis países com dimensão comparável à portuguesa. Para além dos níveis educacionais muito superiores aos de Portugal (94,1% da população tem o ensino secundário, por comparação com 55,4% em Portugal) e de ter iniciado o seu processo de industrialização muito mais cedo (foi das primeiras economias industrializadas da Europa, ainda no século XIX), o mapa anexo ilustra uma característica que devemos ter bem presente: a sua ligação à economia alemã. 

A Alemanha é o principal destino de exportações da República Checa. Por sua vez, este país é o elo principal da cadeia de produção da indústria automóvel alemã. Isto não aconteceu por acaso, nem por receitas políticas milagrosas. O muro de Berlim mal tinha caído e já a Alemanha estava a assinar um “Tratado de Vizinhança” com a Checoslováquia, abrindo portas à entrada em força do investimento alemão naquele país, cujas fronteiras penetram bem fundo os territórios do leste da Alemanha. A proximidade geográfica, os laços históricos, as elevadas qualificações, os baixos salários, o domínio da língua alemã por boa parte da população, a vontade das lideranças alemãs em ocupar rapidamente o espaço deixado livre pelo fim do bloco soviético – tudo isto contou para a acelerada reindustrialização da antiga Checoslováquia. 

Enquanto isto, Portugal seguia o caminho contrário. A liberalização financeira, a privatização das grandes empresas rentistas, a valorização cambial do euro, a entrada da China na OMC e o próprio alargamento a Leste determinaram o rápido desmantelamento de boa parte da indústria portuguesa e o foco nos sectores protegidos da concorrência. Não foi por falta de “liberdade económica” ou de “excesso de socialismo” que a economia portuguesa estagnou no último século. Liberalização, privatização e desregulamentação das relações laborais foi o que mais tivemos desde 1995. 

Não é com mais agenda liberal que a economia portuguesa vai recuperar. É preciso continuar a investir em educação e em inovação. É preciso um Estado que seja um parceiro activo das empresas e dos centros de saber na promoção da mudança estrutural, como o foi ao longo dos séculos em todos os países que se desenvolveram. Acima de tudo, é preciso persistência e perseverança. O resto é banha da cobra. 

(Podem analisar alguns dos dados aqui referidos no site "O Estado da Nação em Números").

Livrai-nos do livre


Reparai nas pancartas (ou como se distorce uma revolução democrática e nacional...)

A fazer fé nas sondagens, corremos o risco de ter o Livre outra vez no parlamento, mesmo depois do triste espectáculo que nos proporcionou na passada legislatura, aquando da retirada da confiança à sua deputada. O Livre resume tudo o que está mal numa certa esquerda, começando no empreendedorismo de quem criou um partido sozinho, subindo para um palanque num teatro lisboeta há uns anos atrás. A americanice das primárias veio por arrasto. E isto não é o pior. 

O que o jovem conservador de direita disse do Volt aplica-se grosso modo ao Livre: “É um partido que, basicamente, quer que a União Europeia passe a ser um país. Há que elogiar um partido que defende o fim de Portugal. Eu também estou um bocado farto.” 

E há mais: da proposta liberal na habitação ao RBI, expressões de tantos diagnósticos errados. E que dizer do fascínio por “fundos”? Já não é a primeira vez que Rui Tavares vem com esta conversa dos fundos e já aqui o criticámos por isso há alguns anos atrás: num destes dias, ouvi-o na TV dizer que se trata agora de taxar, também em sede de IRS, especialmente os altos rendimentos pós-universitários para criar “um fundo” para financiar jovens universitários, a ciência e um par de botas. O programa não é nada claro. 

Imaginemos, mas só por um momento, que esta consignação é constitucional e perguntemos: um fundo é o quê? Um veículo que gere ativos financeiros, em modo de perversa financeirização do Estado, tal como tem sido estudado por Ana Santos? E como definir essa relação entre frequência universitária e altos rendimentos? Mistérios institucionais e fiscais. 

Se Rui Tavares dissesse que queria simplesmente aumentar a progressividade do IRS para “financiar” o Estado social, incluindo a acção social escolar, tinha sido mais claro e rigoroso, mas não tinha tido o mesmo estilo. E o estilo prafrentex é tudo no Livre, que obviamente tem entusiástica recepção nos inconsequentes modismos académicos ditos progressistas, com acesso garantido a um Público em declínio editorial.

E é isto que passa pelo partido mais à esquerda nas ignorantes manipulações ideológicas do “votómetro” do Observador, expressão do entusiasmo mais geral das direitas ditas liberais pelo Livre, de Henrique Raposo no Expresso a Marques Mendes na SIC. Porque será?

domingo, 23 de janeiro de 2022

The Beatles - Come Together


Ansioso com o futuro da esquerda


O outro problema que pode ter levado ao cenário — que muita gente, incluindo eu, considerava delirante até há pouco tempo — de Rui Rio poder vir a ser primeiro-ministro, é a total arrogância de António Costa perante todos os outros partidos, queimando as pontes possíveis — e nem o mais colaborante e disponível Livre, com quem o PS se associou na Câmara de Lisboa, foi poupado à acusação de que queria (veja-se só!) trazer a energia nuclear para Portugal. Dinamitando todas as alianças possíveis, o que tem António Costa para oferecer além do cenário de maioria absoluta de simpatia duvidosa? Um “Governo à Guterres.” É engraçado como António Costa nem consegue disfarçar: “Se foi bom ou mau? Olhe, foi o que foi...” O problema é que este “foi o que foi” é a mais completa tradução de um Governo errático (...) 
Ao acenar ao povo com a maioria absoluta (trazendo inevitavelmente à memória José Sócrates e também as maiorias de Cavaco Silva) e com governar à Guterres (o “pântano”), António Costa, do alto da sua “egotrip” parece que está a fazer tudo para que Rui Rio acabe a ser primeiro-ministro e ele, Costa, vá sossegadinho para casa à espera de um cargo europeu. 

[Ana Sá Lopes, Público, 23 Janeiro 2022] 

 

É triste o caminho que a direcção do PS escolheu. Resta-me a frágil esperança de que, após estas eleições, as esquerdas vão dar início a uma profunda revisão das respectivas estratégias políticas.


Se um PS “contas certas”, bom aluno de Bruxelas, é a maquilhagem da estagnação com pinceladas sociais, um PSD no governo é a erosão ainda mais rápida do Estado social (saúde, educação, pensões, cultura, ...). É o regresso de um ainda melhor aluno de Bruxelas quanto à despesa pública e impostos. É o regresso dos que, por cegueira ideológica e cumplicidade com os interesses dos poderosos, ignoram a teoria económica comprovada pela experiência em qualquer parte do mundo: cortes na despesa aumentam o peso do défice e da dívida e criam desemprego; aumentos na despesa com investimento público e com boas políticas sociais, estimulam o investimento privado, criam emprego e reduzem o peso do dívida.

 

Vou votar, e voto na esquerda que está mais próxima do povo humilde, mais próxima dos de baixo.

Um voto


Um partido “dogmático” e “sectário”, “avesso à mudança” e “que só sabe protestar”, um partido “anacrónico” e “parado no tempo”. É a estes termos que o PCP é frequentemente reduzido. A redução terá motivações diversas. Há quem critique o PCP por desejar o seu enfraquecimento, mas quem o faça por outras razões. Pedimos a estes últimos que leiam as linhas que se seguem.

Leiam as linhas, um voto para todos os dias, no site provisório do Expresso. Ao mais seguro papel não chegámos, porque não houve tempo ou espaço, certamente.

Aproveito para divulgar um belíssimo concerto, superando distinções de classe entre clássica e popular, em Coimbra: se a política é acção colectiva com consequências culturais, a cultura é acção colectiva com consequências políticas. Cultura política e política cultural estão entrelaçadas.

Gosto sempre de sublinhar o óbvio: este momento de agitação e propaganda (agitprop), termo franco da tradição comunista que sempre apreciei, só a mim compromete, ocorrendo num blogue plural, onde objectividade não se confunde com neutralidade; um blogue com militantes e candidatos dos outros dois partidos que têm de ser parte da alternativa, BE e PS, e com gente sem partido, mas que, lá está, toma partidos.
   

sábado, 22 de janeiro de 2022

Taxa de juro: apesar de você, preço mesmo político

Marriner Eccles, presidente da Reserva Federal dos EUA entre 1936 e 1948, explicou-nos: “é uma ilusão pensar que (...) o mercado controla a taxa de juro (...) não é verdade”. A história recente ilustra-o de modo particularmente gráfico. 


Através de comunicado de 16 de Dezembro de 2021 ficámos a saber que “[n]o primeiro trimestre de 2022, o Conselho do BCE espera realizar compras de ativos líquidos ao abrigo do PEPP a um ritmo mais baixo do que no trimestre anterior. No final de Março de 2022, o Conselho do BCE suspenderá as compras de ativos líquidos ao abrigo do PEPP”. 

Como evoluiu, a partir do dia seguinte, 17 de Dezembro de 2021, a taxa de juro das obrigações do tesouro de Portugal? 


O que diz João Leão acerca disto? 

“Sabemos que os mercados, ao nível do financiamento dos países e das empresas, estão a reagir e as taxas de juro estão aí a aumentar e esse é um desafio que vamos ter de enfrentar, pela primeira vez nos últimos anos, que é o aumento das taxas de juro para o futuro”. 

Sim, digamos que aumentos da taxa de juro, numa economia endividada em 767 mil milhões de euros e que produz anualmente 211 mil milhões de euros, constituem um desafio. Bem, calhando, desafio é capaz de não ser o adjetivo adequado para descrever a onda de insolvências e desemprego que nos esperaria se esse aumento atingisse valores significativos. 

Assim sendo, aumentos de taxas de juro em Portugal, porquê? 

Em Portugal, com a inflação, medida pela variação anual do Índice Harmonizado de Preços no Consumidor, nos 0,9%, ou, medida pela sua variação homóloga, nos 2,6%, a subida da taxa de juro, receita errada em qualquer dos casos, não pode ser usada como justificação. 

Então como se explica toda esta compreensão com uma alegadamente inevitável subida da taxa de juros?

Desde logo, porque parece interessar a fracções mais afoitas, mas não menos irrealistas, dos que mandam; grupos de credores do centro/norte da europa que parecem estar tão convencidos do seu poder, que acreditam que será sempre possível obrigar os devedores a pagar, não importa quanto quanto se degrade a relação entre r e g, entre juros e crescimento. Valha-nos, por hora, que parece também haver entre quem decide quem ainda não se tenha esquecido do que nos levou ao "whatever it takes".  

E depois, permitam-me, por favor, que recapitule: porque é necessário alimentar o tabu, fabricar controvérsia, enfim, deseducar o povo na mentira das taxas de juro controladas pelos mercados; caso contrário, se continuar este “entrelaçamento entre política monetária e política orçamental”, “existe o risco de que a consolidação orçamental necessária em alguns países do euro seja posta em causa”. 

Ou seja, com baixas taxas de juro é difícil continuar a esconder que tudo o pudermos fazer, podemos pagar. E, por isso, havendo dinheiro, torna-se impossível defender que tem de retomar-se o aprofundamento da reestruturação mercantil do Estado, o objetivo permanente da política neoliberal. 

Por exemplo, o sucesso do negócio da CUF em saúde, depende do sub-financiamento público, e da desarticulação subsequente, que consiga impor-se ao SNS. Sem poder dizer-se que o Estado não tem dinheiro, que o gastou em juros, isto não é politicamente fazível.  

Para outro exemplo, havendo dinheiro, relaxado o mecanismo disciplinador do desemprego por taxas de juro baixas, é difícil manter a intransigência nas relações de trabalho que assegura que os ganhos de produtividade, ainda que medíocres, porque resultam da sobre-exploração de mão de obra barata e insuficiente investimento, são inteiramente capturados pelo patronato

E, para um último exemplo, sem desviar dinheiro das reformas dos nossos, pode não ser possível voltar a suportar as extorsionárias taxas de juros de que beneficiaram as poupanças que se converteram em reformas deles. 

Logo, parece deduzir-se, um cenário de taxas de juro mais altas, “é um desafio que temos de enfrentar”, como nos afiança Sendeiro, ou melhor, Leão. Preparem-se. Estamos mesmo de regresso à idade das trevas


sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Vinte anos de euro: A História explica


O Euro começou a circular em Portugal há 20 anos e o seu aniversário foi quase ignorado pela generalidade da imprensa portuguesa e europeia. A moeda única impôs um colete de forças monetário e orçamental aos Estados mais pobres que a ela aderiram. Depois da euforia inicial, da crise e da austeridade, porque desapareceu o Euro do debate público?

O resto pode ser lido no Setenta e Quatro.

Cortes

A extrema-direita grita que não haverá cortes salariais, nas pensões, nos vencimentos e na classe média sem que antes haja cortes nos vencimentos dos políticos. Mas já falam de cortes? 

Afinal começou cedo...