segunda-feira, 31 de janeiro de 2022
Há ou não há alternativa?
Estas eleições teriam sido, queremos crer, um bom ponto de partida para destruir o mito de que não há alternativa: produzir mais e cada vez melhores argumentos e apresentar propostas que aumentem a confiança desta minoria e a alarguem, até que esta possa pesar na situação.
Talvez um dos problemas da esquerda à esquerda do PS tenha sido não ter colocado esta questão no centro. Talvez não adiantasse eleitoralmente muito no curto prazo, mas pelo menos teria sido mais fácil de explicar o voto contra um orçamento que definitivamente não dava respostas, confirmando Portugal na cauda das respostas de política orçamental. Os constrangimentos são o que são.
No processo, mais gente teria ficado esclarecida. Será que há outra forma de combater o medo e o recurso ao mal menor?
De um amigo
Os comunistas portugueses não necessitam que lhes venha lembrar Lénine neste momento tão, mas tão, difícil, até porque o conhecem muito melhor. Os amigos fazem o que podem nas ocasiões.
domingo, 30 de janeiro de 2022
A roda invisível dos ratos corredores
Antes de falarmos apenas dos resultados eleitorais desta noite e ainda propósito deste último post do João Rodrigues, queria deixar aqui um longo artigo meu, publicado no 29º Caderno Vermelho, publicado pelo PCP, a partir das notas para um debate organizado pelo jornal Le Monde diplomatique - edição portuguesa.
Trata-se de uma abordagem desenvolvida do que se passa na comunicação social e que amplia a denúncia do post referido. Uma comunicação social que, em vez de responder às suas obrigações constitucionais, esssencial à defesa do pluralismo, se transformou antes num dispositivo de venda de publicidade - nas suas mais diversas formas - que, seguindo as forças poderosas do mercado, reduziu e afunilou o pluralismo às ideias da direita, o que não abona nada de bom para o futuro do país e da democracia.
Chama-se, aliás, a atenção para o facto de este ter sido um desfecho expectável do quadro aberto pela revisão constitucional traçada entre Cavaco Silva e Vítor Constâncio em 1989. As instituições supostamente independentes incumbidas de regular o sector, consagradas por essa revisão constitucional no melhor espírito neoliberal - que tem mais ódio à influência política de quem é eleito do que à influência fáctica de quem é dono do capital - acabam por ser - como era de esperar! - ineficazes. No final, o poder do dinheiro é o poder.
Para quem quiser passar por cima desse quadro descritivo, gostava apenas de chamar a atenção para a parte do artigo em que se fazem propostas alternativas a este panorama.
O declínio editorial também é a ofuscação global
1. Francisco Pinto Balsemão tem um podcast de entrevistas chamado deixar o mundo melhor, mas aposta em figuras que o deixaram bem pior, como o estreante Durão Barroso, da Guerra do Iraque à Goldman Sachs. Isto não se inventa. É esta comunicação social em declínio editorial tão expresso, tão parcial neste período, que merece ser defendida?
2. Seguindo uma tradição de exclusão, exceptuando os painéis partidários, comunista não entra no comentário eleitoral televisivo de hoje, mas entram fascistas capitalistas como José Miguel Júdice e outros comentadores ditos independentes, mas igualmente ligados a partidos, da esquerda à direita.
3. Nas relações internacionais, como já aqui defendi, o debate público ainda é mais enviesado do que na economia. Ainda hoje ouvi o programa semanal visão global da aparentemente mais equilibrada Antena 1 e aquilo foi literalmente equivalente ao direitista Observador, de Bruno Cardoso Reis a José Milhazes. Dada a ausência de pluralismo, ofuscação global seria um nome melhor, na realidade.
4. Só nos resta desejar que o impacto eleitoral deste declínio editorial seja mínimo, mas lá que não é nulo, não é.
sábado, 29 de janeiro de 2022
Questão para reflexão
sexta-feira, 28 de janeiro de 2022
Se António Saraiva insiste, nós também: Não, não temos funcionários públicos a mais
Talvez o presidente da CIP ainda não tenha reparado, mas de facto - como já tínhamos assinalado aqui, também a propósito de declarações suas - o que a realidade nos mostra é que a percentagem de funcionários públicos no emprego total em Portugal (14%) é bem inferior à média da UE (18%), havendo apenas quatro países com valores ainda mais baixos que o registado entre nós em 2019.
E quando na mesma entrevista António Saraiva tenta justificar a proposta dos patrões com o facto de «nas duas últimas legislaturas» terem entrado «para a administração pública 60 mil pessoas» - dando a entender que se passaram todas as marcas da razoabilidade - o presidente da CIP esquece-se que essas entradas (na verdade a rondar as 70 mil) se limitam a anular os cortes da maioria de direita de Passos e Portas, entre 2011 e 2015. De facto, em 2021 o número de funcionários públicos (cerca de 731 mil) é praticamente o mesmo que se registava em 2011 (cerca de 728 mil), com a agravante de o seu peso relativo no emprego total ter passado de 15,4% (2011) para 15,2% (2021).
Por último, registar ainda - como oportunamente o Ricardo Paes Mamede aqui assinalou - que «mais de metade do reforço de funcionários públicos desde 2014 (ano a partir do qual o número começou a aumentar) corresponde a pessoal qualificado da saúde e da educação»; que muitas destas contratações decorrem da regularização de vínculos precários em que se encontravam «dezenas de milhares de pessoas que já trabalhavam para o Estado (...) disfarçados de prestadores de serviços»; e que «o peso dos salários na despesa pública corrente tem vindo a cair continuamente desde 2003, sendo hoje metade do que era no início do século».
Ou seja, a verdadeira questão que se coloca nesta matéria não é a de termos funcionários públicos a mais - que não temos - mas sim, como refere o Ricardo, a de saber se o Estado conseguirá «atrair as pessoas com as qualificações necessárias, dada a persistência de salários baixos, contratos precários» e «poucas perspetivas de progressão», para lá do «bullying permanente de quem acha que o Estado está sempre a mais».
quinta-feira, 27 de janeiro de 2022
A memória é um país distante (VIII)
«Rui Rio já não é o político que tentou criar no Porto uma democracia autoritária, na qual jornalistas mais críticos eram filmados e expostos nos placards da autarquia; onde os arrumadores deviam ser “escorraçados” ou detidos para identificação; onde colunistas ou atores foram processados por lhe dirigirem palavras duras – e absolvidos em nome da liberdade de expressão; onde os apoios municipais exigiam que os seus destinatários se “abstivessem” de criticar a câmara. Rui Rio também já não é o político que reclamou a suspensão de eleições nas câmaras endividadas, que limpou das listas de deputados os seus opositores internos e transformou o PSD numa máquina fiável, obediente e previsível.
(...) Rui Rio anda irreconhecível. O seu ar austero e ríspido deu lugar a uma longa coleção de sorrisos para os seus adversários. (...) O sucesso poupou-o à amargura e ao ressentimento. Coisa breve, porque, se Rui Rio tem um mérito, é o de não esconder o que é. O Rui Rio sorridente e com gatinhos acabará na primeira contrariedade. Com ele no governo, o “rigor” vai apertar a liberdade de crítica e de expressão, vai colidir com a separação de poderes, vai, enfim, tornar a vida pública do país mais tensa e áspera».
Manuel Carvalho, Rui Rio paz e amor
A lição antifascista
quarta-feira, 26 de janeiro de 2022
Alguém acha que o salário mínimo não deve subir?
«Mas há alguém, e agora vou englobar mesmo todos, da extrema-direita à extrema-esquerda, há alguém que ache que o salário mínimo é muito e que não deve subir, que chega para viver? Há alguém? (...) O Dr. António Costa tem o desplante de dizer que o PSD é contra o aumento do salário mínimo nacional. Então o PSD é a favor do quê? Da redução do salário mínimo nacional? Acha que é dinheiro a mais?»
Rui Rio (janeiro de 2022)
«Qual o objetivo do Governo em aumentar o salário mínimo nacional? Fomentar mais o desemprego? Aumentar mais as falências? (...) Acha que o país precisa que eu agora chegue aqui e faça demagogia? E se o Governo disser que quer pagar 650 eu peço 700? Não é isso que o país precisa. Para fazer demagogia tenho outros. E infelizmente dado aquilo que aconteceu ao país, nós temos de ter os pés bem assentes na terra. (...) Eu repito, não acho adequado o aumento do salário mínimo nacional.».
Rui Rio (setembro/outubro de 2020)
No combate das ideias, uma das mais importantes conquistas da solução política à esquerda encontrada em 2015 foi o desfazer do mito de que o aumento do Salário Mínimo Nacional prejudicava a economia, conduzindo a «mais falências e desemprego», como disse Passos Coelho, para defender de seguida que o mais sensato era reduzir o seu valor. Teses que a realidade tratou de contrariar, como mostra a trajetória de recuperação do emprego depois de 2015 e o seu contributo para o relançamento da economia e o aumento dos salários.
Mesmo com afirmações contraditórias, o que já é revelador da sua consistência política, dir-se-á que Rio não é Passos. Mas a verdade é que ambos assumem a lógica da «economia do pingo», em que primeiro se cria riqueza e só depois se distribui, o fundamento para a recusa da subida dos salários e a primazia dada às empresas. Além disso, e como estamos em campanha eleitoral, convém lembrar Passos Coelho também por outra razão: a da propensão da direita para a velha tática de dizer primeiro uma coisa e fazer depois o seu contrário. Sem pestanejar.
A dignidade do trabalho e o Estado Social são a nossa casa comum
«O que atravessa as propostas da direita portuguesa é uma visão profundamente individualista da sociedade. É a ideia que as pessoas se interessam, aliás, se devem apenas interessar pelas suas vidas. A ideia de sociedade de cada um por si, sem querer saber o que acontece aos outros. É por isso que a direita dá tanta centralidade ao mercado e é por isso que nunca fala de desigualdades. Acredita numa sociedade de vencedores e vencidos, em que o sucesso de alguns é o insucesso de muitos.
(...) É por isso que onde a direita ambiciona sempre incutir os valores da competição, nós temos de proteger os valores da cooperação. Nós cooperamos porque reconhecemos que sozinhos somos seres limitados. Que coletivamente somos mais fortes e que a nossa força resulta da pluralidade, da partilha, da solidariedade. Cooperamos porque para nós os problemas de uns são os problemas de todos.
(...) É por isso que nos afastamos das propostas defendidas pela direita, sobretudo quando ela as faz em nome da “liberdade”. (...) A liberdade para nós não é um valor abstrato, não é um recurso proclamatório. Para nós a liberdade que conta é a liberdade efetiva e igual para todos, não só para alguns.
(...) Liberdade é, depois de termos trabalhado uma vida inteira, podermo-nos reformar sem ficar dependentes da caridade alheia ou à mercê dos mercados financeiros. E essa liberdade só o sistema público de pensões nos pode dar. Liberdade é podermos ter uma formação de qualidade, sejamos nós filhos de um patrão ou de um trabalhador. E essa liberdade só a escola pública nos pode dar. Liberdade é termos acesso a cuidados de saúde de qualidade sem que nos perguntem se os conseguimos pagar. Essa liberdade só o Serviço Nacional de Saúde nos pode dar. Esta liberdade igual para todos e não só para alguns – para aqueles que a podem pagar – não cai do céu. Ela existe porque foi conquistada, porque foi construída, porque ao longo da história nos organizámos coletivamente para lhe dar uma tradução institucional a que chamamos “Estado Social”.
(...) Que ninguém se esqueça que a grande maioria da população portuguesa não é licenciada e que nenhum país se desenvolve se se esquecer de respeitar, reconhecer e valorizar o trabalho de todos, independentemente dos seus estudos. De todos aqueles que fazem trabalho manual e social. Valorizar e respeitar os nossos operários, os nossos homens e mulheres que fazem as coisas que usamos para viver. Os nossos sapatos, as nossas roupas, os nossos móveis, as nossas casas. Valorizar e respeitar as mulheres e os homens que garantem que as nossas cidades, os nossos hospitais ou as nossas casas são limpas. Valorizar e respeitar aqueles que cuidam, em instituições ou em casa, dos nossos idosos, das nossas crianças ou das pessoas com deficiência.
(...) Para a direita, uma sociedade de vencedores e vencidos é sinónimo de “sociedade meritocrática”. Falam em “mérito” para justificarem e aceitarem desigualdades. Mérito? (...) Aquelas mulheres que cozem as gáspeas, as partes dos sapatos, horas e horas seguidas, sentadas sem quase olhar para o lado, sempre a olhar para a agulha, para a pele e para a linha... não têm mérito? Os técnicos de manutenção da CP não têm mérito? Aqueles homens que conseguem fazer milagres e mantêm comboios com 50 anos a circular em Portugal não têm mérito? As técnicas sociais dos lares, creches, cercis, não têm mérito? Aquelas mulheres e homens que cuidam todos dias dos nossos idosos, das nossas crianças e dos nossos familiares com deficiência... não têm mérito? Só conseguiremos ter um país desenvolvido e forte se valorizarmos e respeitarmos todos os que trabalham.
(...) A cola da nossa comunidade, a nossa casa comum é o Estado Social, a maior construção coletiva de que fomos capazes. Uma construção que devemos proteger, aprofundar e, quando a colocam em causa, defender dos que a querem destruir em nome da “liberdade”.»
Da intervenção de Pedro Nuno Santos, ontem em Aveiro.
Livrai-nos do RBI
A paciência e a persistência de Francisco Louçã no combate ao Rendimento Básico Incondicional (RBI) são admiráveis – Uma chuva de dinheiro cai na campanha eleitoral, por exemplo. Tem colocado uma questão simples, a que os defensores do que justamente apoda de fraude nunca se dão à maçada de responder, e ainda tem ajudado na resposta: “Como os proponentes não apresentam a conta, e até suspeito que nunca o farão, sugiro a quem lê que a faça”. Louçã tem-na feito, de facto.
terça-feira, 25 de janeiro de 2022
Querido diário - Há 20 anos a prometer a revolução...
Há dez anos, os "liberais" de então também tinham muita pressa em reformar o Estado…
Jornal Público 25/1/2012 |
Aliás, dez anos antes disso, em 2001, também os "liberais" de então,
com Durão Barroso à frente, também tinham muita pressa em reformar o
Estado e até prometeram algo irracional: uma auditoria às contas públicas! Passos Coelho prometeu coisas igualmente irrazoáveis e interesseiras como são hoje as propostas dos jovens liberais que pensam como os velhos liberais (ver aqui um resumo).
Mas nem Durão Barroso fez alguma coisa em 2002, nem Passos Coelho ou Paulo Portas o fizeram em 2012. Paulo Portas - regressado da sua irrevogável demissão de Julho de 2012 - apresentou em 2013 uma infantil página A4 para reformar o Estado que ninguém, nem mesmo Passos Coelho, levou a sério. Mas entretanto, tinham cortado nos apoios sociais, cortado nos vencimentos, cortado no pessoal, cortado no investimento público, cortado nos serviços públicos da Saúde, na Educação, na Protecção Social. Cegamente.
Mas não foram capazes de fazer alguma reforma estrutural como tinham prometido.
Pior: perceberam da pior maneira que pretender "reformar" o Estado se traduz em cortes de benefícios e serviços públicos de que a maioria dos portugueses beneficia (autêntico rendimento indirecto e cimento social) e que a sua aplicação gera recessão, desemprego e... protestos! O PSD levou dez anos a erguer-se desse tombo e o CDS não está em muito boa forma!
Agora, o velho PSD liberal já nem fala de cortes. Os jovens liberais da IL e os velhos liberais do PSD querem antes colocar o Estado a pagar aos privados para cobrir as falhas do Estado que os velhos liberais (e alguns socialistas liberais) ajudaram a criar durante 30 anos. Já não querem cortar vencimentos: querem que seja o Estado a subsidiar os baixos salários, cortando nos impostos - ou seja, colocando a população a financiar sobretudo as poucas grandes empresas (que possuem 28% do total dos trabalhadores) - enquanto vendem à mesma população que deveremos dar uma borla fiscal de centenas de milhares de euros a cada CEO de multinacionais e grandes empresas e no IRC pago pelas grandes empresas. Mas mesmo assim não vai funcionar.
Porque não há como o Estado para realizar a igualdade de oportunidades, supostamente tão querida dos liberais. E depois, não é possível - aos olhos de quem quer ter contas à la Frankfurt - ter gastos públicos duplicados: pagar a privados e, ao mesmo tempo, manter a capacidade instalada do Estado. E alguma coisa terá de ser cortada. E será o investimento público e os gastos públicos em pessoal (ou seja, serviços públicos). E assim voltam aos cortes que se esquivaram a dizer que queriam.
Só que antes de vivido esse pesadelo, eleitoralmente a promessa funciona.
Funciona como o anúncio de uma revolução redentora que tudo vai resolver. A má vida dos mesmos dois milhões de pobres que assim se mantêm durante décadas, os atrasos seculares, as dívidas externas, o atraso sectorial nacional, uma burguesia nacional sem visão soberana e independentista. Só que é tudo mentira. Mas depois, já é tarde, estaremos todos muito pior e tudo levará muito tempo a recuperar. Quase dez anos! É um desperdício de tempo, energia e recursos. É um falhanço como país. É um crime social. E que não se apaga apesar de todos os sorrisos divertidos e graçolas na publicidade que possam hoje esboçar.
O "liberalismo" já provou várias vezes em Portugal: não funciona como prometem. Funciona apenas para transferir dinheiro da maioria da população para uma minoria. E, por isso, não faz falta a Portugal.
Os cinco erros da direita sobre o crescimento económico em Portugal
Este discurso é simples e eficaz. É também errado, por cinco razões.
1. O desempenho das economias de Leste é menos diferente do português do que parece
As economias não crescem sempre ao mesmo ritmo – há momentos em que aceleram, outros em que abrandam. Nas economias menos avançadas, as acelerações devem-se quase sempre a factores externos e nem sempre são virtuosas.
Na UE, todos os novos Estados membros passaram por um período de rápido crescimento económico nos anos que se seguiram à integração. Tal deve-se a três motivos principais: a abundância de fundos de coesão, a liberalização dos movimentos financeiros internacionais e os fluxos de investimento estrangeiro (que exploram as novas oportunidades de investimento e de produção a baixos custos).
Isto aconteceu também a Portugal na década e meia que se seguiu à entrada na então CEE, em 1986. A este nível, Portugal não compara nada mal com os oito países da Europa de Leste que aderiram à UE em 2004: destes, só a Polónia teve uma taxa anual de crescimento superior à portuguesa nos 15 anos posteriores à integração europeia (ver gráfico).
O problema vem depois – e não é por acaso. À medida que os rendimentos médios aumentam, o montante de fundos europeus diminui e as vantagens competitivas associadas aos baixos custos também. Os fluxos de financiamento externo invertem-se, então: se no início o capital entra para emprestar a juros baixos e investir em diferentes actividades, na fase seguinte o capital sai sob a forma de lucros, juros e amortização dos empréstimos entretanto contraídos. Quem julga que os elevados ritmos de crescimento dos países de Leste se vão manter ad eaternum enquanto a economia portuguesa estagna não presta muita atenção à história do crescimento económico.
2. Os países de Leste tinham condições para crescer que nada têm que ver com “medidas liberais”
A direita defende que o rápido crescimento dos países do Leste europeu se deve a políticas liberais, em particular impostos baixos e um Estado de dimensões reduzidas. Qualquer explicação para o crescimento económico que se baseia num único factor é de desconfiar – se assim fosse, os economistas não andavam há 250 anos a tentar compreender o fenómeno. Neste caso concreto, a explicação apresentada esquece alguns dos elementos essenciais.
A ideia de que os países de Leste tinham menos condições do que Portugal para crescer é simplesmente errada. Se há coisa que se sabe sobre o crescimento económico é que este tende a beneficiar muito das qualificações das pessoas – e os países de Leste têm desde há muitas décadas os níveis mais elevados de educação entre as nações europeias.
Outro facto bem conhecido dos processos de crescimento diz respeito à importância do perfil de especialização dos países. E, ao contrário do que muitos sugerem, as economias que mais têm crescido no Leste europeu não eram pouco desenvolvidas: uma década antes de aderirem à UE (ou seja, quando ainda estavam na transição para o capitalismo), países como a Estónia, a Eslovénia, a República Checa, a Eslováquia e a Polónia tinham já um perfil de exportação mais sofisticado do que o de Portugal (ver gráfico construído a partir daqui).
Às vantagens na educação e ao perfil de especialização, alguns países do Leste somam a proximidade histórica e geográfica a economias muito mais avançadas, de cuja força tendem a beneficiar. Os casos mais óbvios são a República Checa (que se tornou uma extensão da indústria transformadora alemã) e a Estónia (que se tornou um prolongamento da economia finlandesa).
Ignorar todos estes factores – o impacto da integração europeia, os níveis de educação e de sofisticação tecnológica de partida, ou a proximidade a economias mais avançadas – para insistir na tese da abordagem liberal como factor de sucesso económico, só pode ser resultado de ignorância ou má fé.
A automatização vai acabar com o trabalho?
Há duas ideias que têm sido veiculadas por boa parte dos economistas mainstream acerca deste fenómeno. A primeira é a de que a automatização já está a ser responsável por uma elevada taxa de substituição de trabalhadores por robôs, que se vai acentuar devido à recessão que estamos a atravessar e que levará a um inevitável e significativo aumento do desemprego nas próximas décadas. A segunda é a de que o avanço da automatização tem sido responsável pelas crescentes desigualdades e pela redução da fração do rendimento nacional que é alocada ao fator trabalho – isto é, a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores. Embora ambas as ideias sejam relativamente intuitivas e estejam na base de discursos alarmistas sobre o suposto “fim do emprego”, nenhuma sobrevive a uma análise mais sóbria da realidade.
Temos bons motivos para não embarcar na ideia de que os robôs vão acabar com o trabalho. Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o investimento na adoção das novas tecnologias pelas empresas não tem sido tão expressivo como se supunha, como demonstram vários estudos empíricos realizados nos últimos anos (como os do Economic Policy Istitute – aqui ou aqui – ou este do Roosevelt Institute), em parte pelo facto de que continua a ser mais barato empregar pessoas. Por outro lado, as tecnologias de inteligência artificial têm sido desenvolvidas para lidar com tarefas muito específicas, sendo incapazes de substituir o conhecimento humano indispensável em várias áreas.
Além disso, a história das sucessivas revoluções industriais diz-nos que o desenvolvimento de novas tecnologias não se limita a destruir alguns tipos de trabalhos, mas gera novas necessidades no processo produtivo e, com isso, novos empregos. No século XIX, embora o desenvolvimento da indústria tenha feito desaparecer os artesãos, implicou simultaneamente a criação de novos empregos qualificados dentro e fora das fábricas; da mesma forma, no final do século passado, a proliferação das caixas de multibanco não reduziu (e até aumentou) o número de funcionários bancários, devido à abertura de mais balcões de atendimento possibilitada pela redução de custos. O próprio relatório da Mckinsey reconhece que a maioria das pessoas cujos postos de trabalho serão extintos continuará a trabalhar na mesma área de atividade e só uma percentagem bastante menor (cerca de 10%) terá de procurar emprego noutras áreas, ao passo que a The Economist reconhece esta semana que “os economistas estão a rever as suas previsões sobre os robôs e o emprego”, face à falta de dados que as comprovem, e que a “era das narrativas sombrias” sobre o desemprego permanente parece ter acabado.
Também temos bons motivos para afastar a ideia de que é a robotização que tem alimentado o crescimento das desigualdades. Essa tese resulta da teoria neoclássica, que assume que a distribuição do rendimento produzido numa economia é feita de acordo com o contributo relativo de cada fator de produção (trabalho e capital) para esse processo. Assim, os salários e os lucros seriam resultantes da “produtividade marginal” de trabalho e capital, respetivamente. Se, nas últimas décadas, a fração do rendimento para o trabalho tem diminuído um pouco por todo o mundo, só se poderia concluir que os trabalhadores estão a contribuir menos (marginalmente) do que o capital. O problema desta história é que depende de hipóteses teóricas extremamente irrealistas, como a existência de mercados perfeitamente competitivos. Na verdade, a tendência de estagnação dos salários e aumento das desigualdades, a que Portugal não tem escapado, está relacionada com o modelo de globalização das últimas décadas, marcado pela abertura ao comércio internacional, que permite deslocalizar as atividades e incentiva os países a competirem através de baixos custos do trabalho (leia-se, baixos salários), e pela desregulação laboral, que desprotegeu os trabalhadores, enfraqueceu os sindicatos e comprimiu os salários, como foi identificado por três investigadores do FMI.A iniciativa liberal é um perigo, dado que...
Ambos insistem na subsidiação do capitalismo no campo da educação ou da saúde, à boleia da retórica da «liberdade de escolha», desestruturando os serviços públicos e corroendo a autonomia e o carácter dos seus profissionais, ainda não submetidos à lógica do lucro. E ambos insistem na redução acentuada da progressividade de um sistema fiscal, por sua vez já corroído pela fuga das grandes empresas e dos mais ricos aos impostos, indissociável da liberdade internacional de circulação dos capitais. Esta tem sido promovida por uma integração europeia que ambos os partidos defendem nos seus dois principais pilares, o do mercado único e o da moeda única, ou seja, da política demasiado única e estruturalmente enviesada para as direitas.
O cosmopolitismo de pendor federalista da IL, culturalmente partilhado por demasiados intelectuais de esquerda, por oposição ao nacionalismo etno-racial do Chega, esconde mal um alinhamento profundo das direitas, das novas e das velhas, com a continuação da política da Troika. A soberania popular e democrática, de base nacional, materialmente assente num maior controlo democrático da economia, é o grande inimigo comum.
A divisão de trabalho entre estes dois novos partidos é certamente espontânea, o resultado da acção, mas não da intenção, política de diferentes fracções da burguesia, sem deixar de ser menos impressionante por isso: enquanto no Chega o aprofundamento do programa de neoliberalização é embrulhado num discurso racista, explicitamente autoritário e musculado, na Iniciativa Liberal é embrulhado num discurso leve e progressista, de onde referências pretensamente feministas e anti-racistas não estão ausentes, na esteira da enésima reinvenção do ideal liberal clássico das carreiras abertas aos talentos de todo o lado, sem discriminações, nem favorecimentos, até porque a fronteira política não deve ter significado socioeconómico.
Esta tendência «liberal» progride num debate público onde as questões de fronteira, género ou minorias são sistematicamente desligadas das questões de classe, de matriz socioeconómica, e das políticas económicas e sociais universais na comunidade política, do pleno emprego aos direitos sócio-laborais, que atenuam ou eliminam em simultâneo várias formas de exploração e de opressão, libertando colectivamente.
O resto do artigo A liberdade a sério está para lá do liberalismo, publicado em Abril de 2021, encontra-se agora disponível na íntegra no novo site do Le Monde diplomatique - edição portuguesa.
Procurando resgatar a palavra liberdade das mãos de uma das iniciativas reacionárias das fracções mais reacionárias do capital que é grande, finaliza-se com Sérgio Godinho, que sabe bem o que é a liberdade a sério:
segunda-feira, 24 de janeiro de 2022
Querido Diário - antes é que era bom...
Jornal Público, 24/1/2012 |
Mas o PIB cresceu...
«No caso da taxa única, a Lituânia é apontada como um exemplo a seguir, pois ultrapassou Portugal em PIB per capita. De facto, é um caso que merece reflexão. A taxa de suicídio da Lituânia é das mais altas do mundo, a segunda mais alta da UE. O sistema de educação pratica dos salários mais baixos da UE enquanto o desempenho académico dos estudantes se encontra abaixo da média da OCDE. Na saúde, este país tem hoje menos 52 hospitais do que em 1990 e a esperança média de vida é seis anos mais baixa do que a portuguesa. Com resultado semelhantes, a Letónia decidiu abandonar a taxa única de IRS em 2018. Por último, entre 1990 e 2020, a Lituânia perdeu um milhão dos seus 3,7 milhões de habitantes. A maioria emigrou à procura da melhores condições de vida. É uma catástrofe demográfica equivalente a uma guerra. Mas o PIB cresceu.»
Ruben Leitão Serém, Neoliberalismo à portuguesa II (via Francisco Louçã)
Educação, inovação e intervenção pública: o resto é banha da cobra
A mensagem mais eficaz dos partidos da direita (todos eles) durante a campanha eleitoral em curso é a de que a economia portuguesa tem vindo a ser ultrapassada por vários países do Leste europeu que eram até há pouco tempo pobres e que isso se deve a 25 anos de "políticas socialistas" em Portugal. Será mesmo assim?
Há seis países cujo PIB per capita medido em paridades de poder de compra é hoje superior ao português, mas que não o era em 1995. Desses, dois deles (Malta e Chipre) são ilhas mediterrânicas (e não países de Leste) com menos de um milhão de habitantes. Dos restantes, três têm entre um e três milhões de habitantes (Estónia, Lituânia e Eslovénia), sendo a República Checa o único com uma dimensão idêntica a Portugal (10,7 milhões).
Dois daqueles países (Malta e Eslovénia) já tinham níveis de PIB per capita idênticos aos portugueses em meados da década de noventa. Outros dois (Estónia e Lituânia) perderam população no período em análise, o que não só ajuda a explicar a melhoria dos rendimentos per capita, como sugere que a sua população não está assim tão entusiasmada como a direita portuguesa parece estar.
Se há coisa que estes países têm em comum e que os distingue de Portugal são os níveis de educação: em todos eles a proporção de adultos activos com o ensino secundário completo é superior ou muito superior a Portugal (no caso dos países de Leste os valores são ainda hoje quase o dobro e já é assim há muitas décadas). Se queremos perceber por que motivo têm crescido mais estes países, é por aqui que devemos começar.
Às qualificações superiores vale a pena acrescentar outros factores que têm pouco a ver com o imaginário da direita portuguesa. Tomemos como referência a República Checa, o único dos seis países com dimensão comparável à portuguesa. Para além dos níveis educacionais muito superiores aos de Portugal (94,1% da população tem o ensino secundário, por comparação com 55,4% em Portugal) e de ter iniciado o seu processo de industrialização muito mais cedo (foi das primeiras economias industrializadas da Europa, ainda no século XIX), o mapa anexo ilustra uma característica que devemos ter bem presente: a sua ligação à economia alemã.
A Alemanha é o principal destino de exportações da República Checa. Por sua vez, este país é o elo principal da cadeia de produção da indústria automóvel alemã. Isto não aconteceu por acaso, nem por receitas políticas milagrosas. O muro de Berlim mal tinha caído e já a Alemanha estava a assinar um “Tratado de Vizinhança” com a Checoslováquia, abrindo portas à entrada em força do investimento alemão naquele país, cujas fronteiras penetram bem fundo os territórios do leste da Alemanha. A proximidade geográfica, os laços históricos, as elevadas qualificações, os baixos salários, o domínio da língua alemã por boa parte da população, a vontade das lideranças alemãs em ocupar rapidamente o espaço deixado livre pelo fim do bloco soviético – tudo isto contou para a acelerada reindustrialização da antiga Checoslováquia.
Enquanto isto, Portugal seguia o caminho contrário. A liberalização financeira, a privatização das grandes empresas rentistas, a valorização cambial do euro, a entrada da China na OMC e o próprio alargamento a Leste determinaram o rápido desmantelamento de boa parte da indústria portuguesa e o foco nos sectores protegidos da concorrência. Não foi por falta de “liberdade económica” ou de “excesso de socialismo” que a economia portuguesa estagnou no último século. Liberalização, privatização e desregulamentação das relações laborais foi o que mais tivemos desde 1995.
Não é com mais agenda liberal que a economia portuguesa vai recuperar. É preciso continuar a investir em educação e em inovação. É preciso um Estado que seja um parceiro activo das empresas e dos centros de saber na promoção da mudança estrutural, como o foi ao longo dos séculos em todos os países que se desenvolveram. Acima de tudo, é preciso persistência e perseverança. O resto é banha da cobra.
(Podem analisar alguns dos dados aqui referidos no site "O Estado da Nação em Números").
Livrai-nos do livre
domingo, 23 de janeiro de 2022
Ansioso com o futuro da esquerda
[Ana Sá Lopes, Público, 23 Janeiro 2022]
É triste o caminho que a direcção do PS escolheu. Resta-me a frágil esperança de que, após estas eleições, as esquerdas vão dar início a uma profunda revisão das respectivas estratégias políticas.
Se um PS “contas certas”, bom aluno de Bruxelas, é a maquilhagem da estagnação com pinceladas sociais, um PSD no governo é a erosão ainda mais rápida do Estado social (saúde, educação, pensões, cultura, ...). É o regresso de um ainda melhor aluno de Bruxelas quanto à despesa pública e impostos. É o regresso dos que, por cegueira ideológica e cumplicidade com os interesses dos poderosos, ignoram a teoria económica comprovada pela experiência em qualquer parte do mundo: cortes na despesa aumentam o peso do défice e da dívida e criam desemprego; aumentos na despesa com investimento público e com boas políticas sociais, estimulam o investimento privado, criam emprego e reduzem o peso do dívida.
Vou votar, e voto na esquerda que está mais próxima do povo humilde, mais próxima dos de baixo.
Um voto
Um partido “dogmático” e “sectário”, “avesso à mudança” e “que só sabe protestar”, um partido “anacrónico” e “parado no tempo”. É a estes termos que o PCP é frequentemente reduzido. A redução terá motivações diversas. Há quem critique o PCP por desejar o seu enfraquecimento, mas quem o faça por outras razões. Pedimos a estes últimos que leiam as linhas que se seguem.
sábado, 22 de janeiro de 2022
Taxa de juro: apesar de você, preço mesmo político
sexta-feira, 21 de janeiro de 2022
Vinte anos de euro: A História explica
O Euro começou a circular em Portugal há 20 anos e o seu aniversário foi quase ignorado pela generalidade da imprensa portuguesa e europeia. A moeda única impôs um colete de forças monetário e orçamental aos Estados mais pobres que a ela aderiram. Depois da euforia inicial, da crise e da austeridade, porque desapareceu o Euro do debate público?
O resto pode ser lido no Setenta e Quatro.