sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Linhas a traçar


A tendência inerente ao capitalismo de mercadorização e monetização de tudo o que existe e de crescentes desigualdades só pode ser contrariada, ou pelo menos adiada, por uma ação coletiva que nos dias de hoje só encontra força suficiente na forma do Estado. Quer se queira quer não é através do Estado que atualmente podemos, conscientemente, tomar opções políticas com objetivos concretos, livres da lógica de mercado onde as nossas ambições estão reduzidas a subprodutos do lucro, o que numa sociedade tão desigual beneficia apenas uma minoria cada vez menor da população.

No seu discurso de vitória, Gabriel Boric, recém-eleito presidente do Chile sintetizou bem a tensão existente entre estas duas esferas de lógicas distintas: “... isto significa crescer economicamente, converter o que alguns entendem como bens de consumo, de maneira equivocada, em direitos sociais garantidos para todas e para todos independentemente do tamanho da sua carteira.” É no traçar desta linha entre direitos sociais e bens de consumo que se travam muitas das principais batalhas políticas.

Nestas batalhas a diabolização da dívida pública e dos défices públicos teve e tem um papel fundamental, tendo esta, no caso europeu, culminado na criação do Euro e na relegação do dinheiro público para o mesmo nível hierárquico de uma qualquer empresa, o que faz com que seja muito difícil, ou mesmo impossível, escapar à lógica de mercado e assegurar direitos sociais para todos em áreas como a saúde, educação e habitação. A criação privada de dinheiro que concessionamos ao sistema financeiro segue e alimenta a lógica de mercado em que se insere, contribuindo para um exacerbar das tendências de mercadorização e crescente desigualdade já referidas. A submissão da criação pública de dinheiro a essa mesma disciplina de mercado impede-nos de contrariar esta tendência de forma satisfatória, como se tem visto nos últimos tempos com a visível deterioração dos serviços públicos por essa Europa fora.

Além de objetivamente limitar a capacidade de intervenção dos Estados, e dos efeitos negativos no crescimento económico e nos lucros das empresas (a défices públicos correspondem superavits privados), o fetiche das contas certas naturaliza e internaliza nas pessoas uma lógica de soma nula em que a provisão de serviços públicos está dependente do dinheiro dos contribuintes. Esta perceção num cenário de crise do capitalismo torna cada vez mais difícil a defesa dos serviços públicos sem questionar os pressupostos da discussão, sem pôr em causa a natureza do dinheiro e a forma como este é e pode ser criado.

Na última década e sobretudo com o combate à pandemia e à crise climática tem-se assistido a alterações significativas aos princípios fundadores do Euro relativamente à submissão das finanças públicas à lógica de mercado. Num artigo importante, Jens van’t Klooster fala até (talvez exageradamente) numa mudança de paradigma para descrever a forma como tecnocratas das instituições europeias têm cautelosamente reinterpretado os seus mandatos para colmatar as disfuncionalidades da Zona Euro. Estes desenvolvimentos não são mais que meras tentativas de salvar o capitalismo de si mesmo, no entanto devem servir para ilustrar a possibilidade de outras soluções e realidades políticas muito menos submissas à logica do mercado e do lucro. E isto vale para o combate à pandemia e às alterações climáticas assim como para o traçar da linha entre direitos sociais para todos e bens de consumo.

2 comentários:

Anónimo disse...

Na zona Euro os Estados estão capturados, o equivale a dizer que tudo deve obedecer a uma lógica de mercado, o que equivale a dizer que não devem existir direitos sociais, o que equivale a dizer que não existe igualdade, o que equivale a dizer que a liberdade não deve existir o que equivale a dizer que não se vive em democracia.

Jaime Santos disse...

O problema, Pedro Pratas, é que como reconhecem os seus colegas de blogue João Rodrigues e Paulo Coimbra, a capacidade de o Estado dispor de uma moeda que seja capaz de pagar bens e serviços que não produzimos, é que a balança comercial esteja pelo menos equilibrada e a inflação controlada (o controle de fluxos financeiros limita a exportação mas também a desejável importação de capitais, leia-se o investimento estrangeiro).

E as soluções que a Esquerda tem apresentado, mormente um aumento do défice com o consequente endividamento externo ou a pura e simples impressão de dinheiro (MMT), algo que o BCE já de alguma maneira faz com o quantitative easing (o que não se faz sem possíveis consequências), não garantem nem uma coisa nem a outra.

A isto associa-se naturalmente o problema de que o crescimento que sugerem implica um agravar dos problemas ambientais (não há crescimento sem um aumento do consumo energético e mesmo o desacoplamento entre estas duas variáveis observado no mundo ocidental provavelmente reflete simplesmente a deslocalização da produção para o Oriente).

É uma pena que a Esquerda não seja capaz de abraçar a causa do decrescimento e sugerir às pessoas uma vida mais simples, com menos trabalho, menos consumo e mais bem-estar...