sexta-feira, 31 de julho de 2009

Classes, impostos e as contas da redistribuição

A classe média é um conceito elástico, mas com limites. Num país onde o salário mediano não ultrapassa os 700 euros mensais, os 5,4% de agregados que declaram (declaram, atenção…) rendimentos acima de 50 mil euros por ano incluem a nossa classe média? Coloco esta pergunta a propósito do «zoom» de Bruno Faria Lopes que saiu anteontem no i, infelizmente não disponível. Somos informados que as «classes média e média-alta» (que seriam os tais 5,4% no topo da distribuição) pagam cerca de 60% do IRS. Um imposto aparentemente progressivo. Há um detalhe que não é mencionado numa reportagem sobre a intenção do governo de reduzir a possibilidade de deduções no IRS para os escalões mais altos: infelizmente, o progressivo IRS representa apenas 25% do total dos impostos cobrados. Os regressivos impostos indirectos representam quase 60%. Isto muda um pouco o retrato do esforço fiscal. O nosso sistema fiscal redistribui pouco. E estamos no país mais desigual da Europa.

De resto, é preciso dizer que a desigualdade económica, cujos efeitos perversos estão bem estudados, tem de ser também combatida a montante dos impostos. Temos de gerar o chamado multiplicador da igualdade: os países com menos desigualdades antes de impostos são também os que redistribuem mais. Um interessante paradoxo. Isto é questão de relações laborais e de poder dentro e fora das empresas. De qualquer forma, com instituições e políticas partilhadas por todos seria mais fácil escapar à armadilha social portuguesa. O PS desistiu de agir aqui. Conformou-se com a estrutura económica do nosso país.

Ao contrário da tradição social-democrata, o PS prefere colocar o conjunto da comunidade a apoiar indirectamente os sectores mais reaccionários do patronato com uma vaga proposta, inspirada no imposto negativo de Milton Friedman, de subsídio aos salários de pobreza, que apenas perpetua as relações sociais que dão origem aos baixos salários. Há uma via mais eficaz para combater a pobreza laboral e para, no mesmo processo, mudar a estrutura produtiva: salário mínimo decente em actualização constante, maior centralização das negociações entre sindicatos e patrões, mais poder aos sindicatos, combate a sério à precariedade e aposta na formação.

Com regras exigentes beneficiamos os sectores mais produtivos e combatemos a pobreza: é a lógica do tão propalado modelo sueco. O PS prefere o «realismo» da via anglo-saxónica. Hei-de voltar a isto com mais tempo. De qualquer forma, dizer que esta bota do subsídio à Friedman não bate com a perdigota da bandeira da modernização tecnológica do tecido produtivo que o PS gosta tanto de acenar…

Voltando aos impostos. Há muitas coisas que podem e devem mudar no nosso sistema fiscal: eliminar totalmente o sigilo bancário, criar um novo escalão de IRS (45%) e acabar, como sugere Vital Moreira na reportagem do i, acima mencionada, com a generalidade dos regressivos benefícios e deduções fiscais. É ainda necessário taxar as transacções financeiras e as mais-valias fundiárias. Ficaria tudo bem mais simples e transparente. Aqui não é o PS que tem a iniciativa, mas a esquerda socialista.

Ainda na área fiscal, a proposta eleitoral do PS de atribuir a cada criança nascida uma conta-poupança de 200 euros, que só pode ser mexida ao atingir a maioridade, fez-me lembrar outra proposta: reintroduzir um imposto sucessório bem desenhado. Este é o mais justo de todos os impostos. A associação das duas políticas faria todo o sentido. Igualdade de oportunidades. Riqueza partilhada para bloquear parcialmente a transmissão inter-geracional de desigualdades.

Infelizmente, o PS apoiou a eliminação do imposto sucessório pelo PSD-CDS, o montante de 200 euros é irrisório e a principal justificação apresentada para a proposta é bizarra: medida de incentivo à natalidade? A ideia do uso de incentivos pecuniários, neste contexto, parte de pressupostos muito duvidosos sobre as motivações humanas. A medida do PS oferece boas razões para a natalidade? Não me parece. Isto não quer dizer que não devamos criar as condições - horários estáveis, condições de trabalho e remunerações dignas, serviços de apoio ou políticas sociais - para ajudar a superar as verdadeiras escolhas trágicas que bloqueiam a natalidade. De qualquer forma, com esta medida estamos ainda muito longe de uma «stakeholder society». É para aí que queremos caminhar?

PS. Pedro Sales, a quem roubei a fotografia, vê o outro lado da medida do PS: um subsídio à banca. Será que o PS pensou nisto?

quarta-feira, 29 de julho de 2009

O monstro que ninguém dispensa...


O artigo de Ricardo Reis no i sobre a evolução da consumo público apresenta-nos dados interessantes, mais conhecidos uns, menos conhecidos outros: o aumento do peso do consumo público é acompanhado por um aumento do peso dos impostos; o consumo público, basicamente destinado a pagar os custos laborais dos serviços públicos, subiu mais durante os governos PSD do que durante os governos do PS nas duas últimas décadas. De resto, o volume do Estado nada nos diz sobre a natureza das políticas públicas. O resto do artigo, marcado pelo uso da expressão «crescimento do monstro», cuja aceitação acrítica deve ser recusada, revela alguns preconceitos ideológicos. Ricardo Reis assume que os «recursos são devorados pelo monstro». É como se o improdutivo Estado parasitasse a esfera produtiva da economia com as suas punções fiscais.

Na realidade, o «monstro» público gera bens e serviços úteis que são parte dos «recursos disponíveis num país». As actividades de produção do sector público não-mercantil, muito intensivas em trabalho, somam-se às do sector mercantil e contribuem para o PIB. Isto é evidente. A produção não-mercantil do «monstro», a provisão pública, gera rendimentos. Neste campo, os impostos, pagos pelo sectores público e privado, não são mais do que um pagamento socializado por um conjunto de actividades com valor (esta ideia é apresentada e desenvolvida num excelente artigo do economista Jean-Marie Harribey). Além disso, é artificial separar transferências redistributivas do consumo público. A provisão pública de bens e serviços pode ser, em si, bastante redistributiva e as transferências requerem recursos humanos e um aparelho administrativo (não falemos dos custos administrativos do sector privado em actividades de substituição como os seguros privados).

Ricardo Reis menciona de passagem a convergência do nosso país com a Europa nesta área. Falta referir um dos factores que a pode explicar: a democratização do país. Esta tende sempre a impulsionar o processo de «crescimento do monstro», o que até pode ser bem virtuoso (veja-se o livro do economista Peter Lindert). Explicações convergentes sublinham a perenidade da popularidade e apoio político à ideia do Estado Social, apesar de todos os ataques de que este tem sido alvo, ou destacam o lastro na despesa pública que resulta do envelhecimento, em curso, da população ou da natureza muito intensiva em trabalho qualificado e com evoluções da produtividade necessariamente lentas, típica das áreas tradicionais de envolvimento do Estado, como é caso da educação.


Finalmente, um comentário à forma algo enviesada como Ricardo Reis insiste em enquadrar teoricamente o debate sobre políticas públicas: esquerda intervencionista e direita não intervencionista. Na realidade, como já aqui defendi, o debate relevante nos países capitalistas desenvolvidos já há muito que não é sobre o peso do Estado, mas sim sobre o que o Estado deve fazer. Isto tem implicações para a compreensão do ainda hegemónico projecto neoliberal. De facto, e para além da ênfase nos processos de privatização, de liberalização financeira e comercial ou de desregulamentação das relações laborais, uma das dimensões que tem sido recentemente sublinhada nos estudos sobre o neoliberalismo, como conjunto de ideias que inspiram as políticas públicas, é a sua aposta numa profunda reconfiguração do Estado e das suas funções.

O objectivo neoliberal, sobretudo nos países mais desenvolvidos, é o de encontrar soluções institucionais e de financiamento que favoreçam a progressiva entrada dos grupos privados nas áreas tradicionais da provisão pública, associadas não só ao chamado Estado Social (saúde, educação ou segurança social), mas também à gestão e controlo de equipamentos e infra-estruturas públicas. Usar o Estado e os recursos financeiros que este controla para abrir novas áreas de negócio, onde os lucros estão relativamente garantidos, é a orientação de fundo. A célebre questão da redução da sua dimensão (em termos, por exemplo, do peso das despesas públicas no PIB), ao contrário de alguma retórica neoliberal, nunca foi realmente central para este projecto de transformação.

É por estas e por outras que devemos falar, na linha de Dean Baker (o livro está disponível na integra aqui), do inevitável «intervencionismo», que pode ser de esquerda ou de direita. Estruturação política das instituições por forma a dirigir recursos para os mais ricos ou para os mais pobres? Estado Social ou Estado Penal? Estruturação política das instituições por forma a favorecer interesses capitalistas ou interesses mais vastos? Para promover lógicas cooperativas ou concorrenciais? Respondam como quiserem, mas reconheçam que há sempre estruturação política das instituições económicas. E que quanto mais mercados, mais regras e mais Estado. É a vida no capitalismo tardio...

A Economia Moral do recibo verde


Um cliente é alguém que compra o produto ou o serviço que eu vendo no mercado, o patrão é alguém que me paga para trabalhar para ele, ou em vez dele. É verdade que em ambos os casos o que eu estou a vender é trabalho, mas ainda assim há pelo menos uma grande diferença: o cliente não manda em mim e o patrão manda (dentro de certos limites). Nada mais claro. Por muito que o cliente tenha sempre razão ele não é o meu patrão.

Acontece no entanto que o recibo verde é uma instituição extraordinária que consegue transformar um patrão em cliente. Com o recibo verde o meu patrão pode-me pagar todos os meses o meu salário como se estivesse a remunerar serviços que lhe prestei e pode deixar de fazê-lo quando entender, sem qualquer custo. Ao mesmo tempo ele continua a poder dar-me ordens. Segundo ouvi dizer numa entrevista de uma representante dos Precários Inflexíveis, isto é o que acontece em 900 000 casos em Portugal. Uma enorme anomalia: 900 000 mil relações de trabalho dependente transformadas em prestação de serviços por obra e graça de uma instituição chamada recibo verde. É absurdo, não é permitido, mas pode fazer-se. O recibo verde usado a torto e a direito ilegalmente, instituiu-se. É considerado natural.

Para alguns pensadores liberais do século XIX a legitimidade do assalariamento assentava na provisão de segurança de um salário (fixo) pelo capital, em troca de esforço, obediência e lucro (variável) por parte do trabalho. Tornar a relação de assalariamento “flexível”, e o recibo verde (ilegal) representa a forma mais acabada de “flexibilidade”, equivale a libertar uma das partes do contrato (o capital) da obrigação que legitimava a relação de assalariamento: a assunção dos riscos e a provisão de segurança.

Em que se transforma a relação de assalariamento depois de isso acontecer? Num produto da circunstância que decorre de alguns não terem (enquanto outros têm) acesso à terra e aos instrumentos de produção. Num produto da necessidade, da coerção e da força bruta.

A “bolha imobiliária” portuguesa

Portugal vive agora as consequências do estoiro de uma bolha imobiliária velha de duas décadas
(Pedro Bingre, “A bolha imobiliária: duas faces da mesma (falsa) moeda”)

Qual a natureza da “bolha imobiliária" portuguesa? Uma bolha de preços ou uma bolha de construção? As duas em simultâneo? Parece ser este o caso no texto de Pedro Bingre, mas nada é dito sobre tal distinção. Não o fazendo, porém, tender-se-á, como muitos fazem, a transpor de forma simplista para a realidade nacional o que se sabe sobre a experiência de outros países. Certo é que, de acordo com a informação disponível, o comportamento dos preços da habitação em Portugal estará longe de poder ser classificado como uma “bolha” especulativa de preços.



Segundo o Banco de Portugal, o crescimento acumulado dos preços da habitação em Portugal, entre 1996 e 2007, terá sido de 45%, contra os cerca de 100% dos EUA, os 150% da França, dos Países Baixos e da Bélgica, os 200% da Espanha e do Reino Unido ou os 350% da Irlanda.

Parece, na verdade, haver boas razões para este comportamento aparentemente atípico dos preços da habitação em Portugal. Pese embora a forte pressão da procura, potenciada pela prolongada descida das taxas de juro e pelas campanhas agressivas do sector bancário para angariação de novos clientes, a forte dinâmica construtiva das últimas décadas, conjugada com o grande stock de alojamentos vagos, terá permitido que o crescimento dos preços não se tenha tornado explosivo (ou seja, o mercado ter-se-á ajustado sobretudo pelo lado das quantidades).

Todos os estudos sugerem que o comportamento dos preços da habitação (em termos reais) terá sido em Portugal largamente justificado pela evolução dos fundamentais macroeconómicos, como sejam o rendimento disponível das famílias, as taxas de juro e outras condições de crédito, não havendo uma situação de sobrevalorização geral dos preços no nosso país da qual tenha que resultar agora, inevitavelmente e por consequência, uma forte quebra dos preços.

Ou seja, se alguma bolha imobiliária “rebentou” recentemente em Portugal foi uma bolha da construção, não uma bolha dos preços. O forte arrefecimento da construção de habitação nos últimos anos e a pressão para que, finalmente, a prioridade vá agora para a reabilitação (aqui) parecem confirmar esta ideia. Nada disto invalida, evidentemente, que, dada a natureza local dos mercados da habitação, bolhas localizadas de preços, designadamente em algumas áreas urbanas, tenham ocorrido.

terça-feira, 28 de julho de 2009

A saúde é uma arma...



Soube-se ontem que «o hospital de Loures, o primeiro a ser lançado no modelo de parceria público-privada, vai ser construído e gerido pelo consórcio liderado pela Espírito Santo Saúde». Vale a pena ouvir de novo a reveladora declaração de uma responsável da Espírito Santo Saúde: saúde e armamento são os melhores negócios. O capitalismo predador no seu melhor.

Vale a pena também lembrar as declarações de José Sócrates: «Há uma grande dificuldade em fazer os contratos, o Estado gasta uma fortuna para vigiar o seu cumprimento e nunca foi possível eliminar a controvérsia. Por isso, é melhor o SNS ter gestão pública». Isto foi em Março 2008. Anunciou-se o fim da gestão privada depois do fiasco do Amadora-Sintra. No entanto, pelo sim, pelo não, continuaram com as engenharias predadoras feitas de construção e de gestão. Os riscos ficam todos no Estado. Como já aqui argumentei, ao contrário do romance de mercado sobre o monstro, a questão do peso do Estado não nos diz nada sobre a orientação das políticas públicas.

Neste blogue há muito que defendemos a tese de que a entrada dos grupos económicos privados na gestão de hospitais públicos constitui um dos principais mecanismos de destruição a prazo do Serviço Nacional de Saúde (por exemplo, I, II e III). Não só não existe evidência de ganhos de eficiência com a gestão privada, como se multiplicam os custos com o desenho de complexos contratos e com a sua monitorização. Isto para não falar dos riscos de captura política e do crescente músculo político dos grandes grupos económicos rentistas. De facto, custa muito dinheiro garantir que a busca incessante de lucros não coloca em risco a saúde pública. A gestão pública do SNS é mais segura e eficaz. Os grupos económicos privados que vão trabalhar para os sectores de bens transaccionáveis para exportação…

“Urbanismo e Corrupção”: um dossiê que vale a pena ler e discutir



Os problemas da habitação e do urbanismo nunca foram uma prioridade política em Portugal. E, estranhamente, apesar da sua enorme relevância, estes problemas parecem também não mobilizar muito as atenções da comunicação social ou da blogosfera. Por isso é ainda mais de saudar a publicação recente, no último número da OPS!, de um dossiê cheio de boas ideias e alguns excelentes artigos sobre “urbanismo e corrupção” (aqui).


Permito-me destacar algumas dessas ideias:


- “O que rende milhões não é tanto, como vulgarmente se pensa, a construção civil, que é a fase final e visível do processo, mas sim a transformação do solo, que resulta de três vias: a classificação de um solo rústico como urbano ou urbanizável; a mudança de usos (uma zona verde que passa a ser para habitação, um espaço de equipamentos que é transformado em escritórios, uma praça pública que se “ privatiza” para um centro comercial, etc.); e o aumento dos índices de ocupação muito para lá do razoável, através do aumento do número de pisos ou da volumetria” (Helena Roseta). [A transformação dos solos rústicos em urbanizáveis entre 1985 e 2000 terá gerado mais-valias urbanísticas na ordem dos 110.000 milhões de euros (mais de 4% do PIB português de 2008 em termos médios anuais).]


- Esta transformação está intimamente ligada à acção do poder autárquico (um poder neste domínio “equivalente ao da emissão da moeda”, nas palavras de Helena Roseta).


- Os planos (Planos Directores Municipais, Planos de Urbanização, Planos de Pormenor, …) têm servido, não para construir cidades equilibradas e com qualidade de vida, mas basicamente para valorizar terrenos. [“É para valorizar terrenos que se continuam a fazer planos. Quando não é esse o desígnio, os planos não “passam”. Pede-se-lhes que sejam o suporte de complexas operações de engenharia financeira, em que o interesse público é sacrificado à rentabilidade final da operação.” (Helena Roseta).]


- O actual sistema de licenciamento favorece a corrupção (segundo Maria José Morgado, pasme-se, o licenciamento de um imóvel pode chegar a exigir 3.000 requisitos).


- O combate contra essa corrupção exige a socialização das mais-valias urbanísticas geradas pelo processo de desenvolvimento urbano, designadamente por via fiscal, e o primado do poder público na produção de solo urbano, assim como uma maior transparência e escrutínio das decisões administrativas e autárquicas pelos cidadãos (“urbanismo participativo”).


- É preciso, a exemplo do que se fez recentemente no Código Penal Espanhol, introduzir na legislação portuguesa a figura do crime contra o ordenamento do território, implicando “a responsabilidade penal pela aprovação de projectos de edificação contrários às normas urbanísticas vigentes, envolvendo nessa responsabilidade a concessão de licenças camarárias e os próprios órgãos municipais que nelas intervieram” (Maria José Morgado)


A história do caso da Ponte do Galante, na Figueira da Foz, contada por Pedro Bingre neste dossiê, é ilustrativa e reveladora da actual situação portuguesa nesta matéria e vale a pena ser lida.


Já o texto que o mesmo autor escreve sobre a “bolha imobiliária” e as dificuldades das famílias portuguesas relacionadas com a habitação merece vários reparos, mas deixo isso para outro(s) post(s).

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Na Faculdade de Economia da Universidade Católica lêem-se encíclicas papais?


“A actividade económica não pode resolver todos os problemas sociais através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há-de ter como finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar também e sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se presente que é causa de graves desequilíbrios separar o agir económico — ao qual competiria apenas produzir riqueza — do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redistribuição”.


CARTA ENCÍCLICA, CARITAS IN VERITATE,

DO SUMO PONTÍFICE BENTO XVI

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS,

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS, AOS FIÉIS LEIGOS

E A TODOS OS HOMENS DE BOA VONTADE

SOBRE O DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL NA CARIDADE E NA VERDADE

Pobreza e escolhas políticas

Os últimos dados do INE sobre os níveis de pobreza ilustram as consequências das escolhas políticas. Comecemos com as boas notícias. Registou-se um decréscimo dos níveis de pobreza entre os reformados. Mesmo assim, mais de um quinto vive na pobreza. O complemento solidário de idosos terá contribuído para os resultados positivos, mas modestos, num país onde cerca de 80% dos reformados da Segurança Social não ganham o equivalente ao salário mínimo. Passemos às más notícias. A taxa de pobreza aumentou entre os que trabalham e entre os que estão desempregados, o que faz com que globalmente se mantenha nos 18% em 2007, último ano do inquérito do INE. A minha crónica semanal pode ser lida no i.

domingo, 26 de julho de 2009

Incentivo às actividades financeiras - uma das rupturas necessárias

O Público de hoje tem um texto sobre a recente divulgação dos resultados ao Inquérito ao Potencial Científico por parte do Ministério da Ciência e Ensino Superior (MCES). Nele ficamos a saber que é cada vez maior o peso dos bancos portugueses nas despesas empresariais em investigação e desenvolvimento (I&D). Das duas uma: ou temos um sistema bancário com uma dinâmica inovadora sem par, ou temos razões para nos preocuparmos.

De acordo com os dados apresentados, em 2007 havia 3 bancos entre as 5 empresas com mais gastos em I&D em Portugal (em 2005 havia apenas 1). O sistema financeiro representa hoje 14% dos gastos em I&D empresarial (apenas 5% em 2005), quase tanto como o total da indústria transformadora. Como explicá-lo?

É relativamente simples: primeiro, o governo reintroduziu o sistema de incentivos à I&D empresarial (SIFIDE), um dispositivo fiscal que permite às empresas deduzir aquele tipo de despesas no imposto a pagar (se isto levou a que muitas empresas passassem a declarar despesas de I&D que já realizavam, levou a que muitas outras se esforçassem por mascarar de I&D despesas com pouco de inovador - e é sabido que os bancos são bons em gestão fiscal); segundo, o conjunto de despesas qualificáveis enquanto I&D é suficientemente abrangente para incluir «a análise de risco financeiro, os modelos de risco de crédito e seguros e técnicas relativas ao consumidor»; finalmente, a vontade de mostrar resultados sobre a transformação tecnológica do país muito provavelmente terá levado as autoridades fiscais a adoptar critérios pouco exigentes no controlo das declarações de despesas em I&D por parte das empresas.

A reintrodução do SIFIDE - que havida sido abandonado pelo governo de Durão Barroso/Santana Lopes - foi uma medida correcta, que dá um sinal claro aos agentes privados sobre o tipo de investimentos que devem ser socialmente valorizados. O que não se compreende é que o sistema financeiro seja abrangido por este sistema de incentivos fiscais, muito menos tendo em conta o tipo de despesas acima referidas. Por um lado, porque o sistema financeiro não precisa de mais incentivos para se desenvolver em Portugal - o seu peso no emprego nacional é pouco superior a metade da média europeia, enquanto o seu peso no valor acrescentado é superior à média europeia (há quem veja nisto sinal de grande 'produtividade', eu vejo lucros excessivos); para além disso, a taxa de imposto efectiva paga pelas empresas financeiras é tipicamente inferior à do resto da economia; por outras palavras, não faltam sinais de que a actividade financeira já tem incentivos de sobra em Portugal (porque será que ouvimos tão pouco os economistas do regime falarem sobre o assunto?). Por outro lado, sabemos hoje que as técnicas de análise de risco que foram seguidas nos últimos anos foram um ingrediente central no despoletar da presente crise, tornando no mínimo irónico que o desenvolvimento dessas técnicas ande a ser subsidiado por todos nós.

sábado, 25 de julho de 2009

Os tempos ainda correm?


«É também assim que as “reformas” actuais se impõem: primeiro gera-se o medo do futuro, com previsões catastrofistas matraqueadas todos os dias. Perante o medo as pessoas apenas desejam que não sejam elas as visadas pelas “reformas” e calam-se. Multiplicado por todas as pessoas, esta atitude leva a uma desmoralização generalizada, que redunda numa self-fulfiling prophecy: a ideia de que já ninguém está para isso e de que o mundo é mesmo assim, sem escolhas, sem alternativas, sem sequer se perguntar se é mesmo assim (…) Na Europa, infelizmente, Portugal parece ser um exemplo de vanguarda. Do governo às empresas, passando pelas universidades. Um “bom” político hoje já não é a criatura vagamente populista que promete coisas boas, mesmo que incumpríveis; é antes a criatura que sabe assustar. Já repararam como o optimismo - ou sequer a promessa de que depois de alguns sacrifícios virá a compensação - desapareceu completamente do discurso político (uma vez mais, a todos os níveis) português?».

Miguel Vale de Almeida nos Tempos que Correm. Agora parece que os tempos deixaram de correr. Simplex. Afinal de contas, o que Miguel Vale de Almeida nos propõe para justificar a sua eleição como deputado do PS de Sócrates, de cujas políticas foi um dos mais argutos críticos, é a nova conjuntura política criada pela vitória do PSD nas europeias. A política do voto útil é apenas uma das faces da desmobilizadora política do medo. Uma política que ajudará à imposição das “reformas” que MVA tão bem criticou. Como MVA descobrirá se o seu apelo à maioria de Sócrates, que perpetua uma correlação de forças conservadora, for bem sucedido. Espero que não seja. Não há boas razões para que seja. A coerência não é para aqui chamada. As razões das escolhas, sim. Leiam com atenção o que Francisco Oneto e Nuno Teles escreveram. Quem é que à esquerda, mesmo sendo «liberal», pode querer mais quatro anos deste plano inclinado? Quatro anos de neoliberalização da provisão pública, quatro anos de política que trucida funionários, quatro anos de austeridade assimétrica, quatro anos de consolidação do Estado predador, quatro anos de amputação da segurança social pública, quatro anos de código de trabalho empresarialmente correcto, quatro anos de aumento da precariedade. A memória é uma arma. Contra o medo. Esperança assente em políticas socialistas alternativas.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Não sei se é...

...das leituras de posts na diagonal ou do autismo político dos últimos quatro anos, mas talvez fosse mais ajuizado/produtivo para o debate se lessem os posts com cuidado até ao fim. Nomeadamente, o que antecede este.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Voto útil de esquerda

A campanha eleitoral está aí. As hostes do PS mobilizam-se na captação dos votos perdidos à esquerda. A tarefa é simples. Afinal, não defende Manuela Ferreira Leite a redução do Estado às suas funções de soberania (justiça, defesa, segurança pública)? Bem, a tarefa é mais complicada. MFL não vai fazer campanha apoiada na revolucionária privatização total dos serviços públicos. Seguirá uma estratégia mais «reformista». Ainda assim, é fácil prever o que será o seu neoliberal hipotético governo:

- Na economia, voltará a obsessão do défice e a defesa cega da ortodoxia monetarista do BCE. As ruinosas parcerias público-privadas serão promovidas como forma de desorçamentação e, ainda assim, o mais provável é o investimento estagnar (com um ligeiro aumento em período pré-eleitoral). As sobrantes participações públicas em indústrias estratégicas, onde a competição é impossível, como a energia, serão privatizadas. A legislação laboral será «flexibilizada» e o governo fechará os olhos aos abusos e ilegalidades (ex. recibos verdes) que proliferam no nosso mercado de trabalho.

- Na protecção social, um governo PSD promoverá o modelo assistencialista. A protecção dos desempregados será reduzida em nome do incentivo à busca de trabalho. As prestações sociais serão condicionadas ao entorno familiar dos potenciais beneficiários. A segurança social transferirá competências e recursos para o “terceiro sector”, numa espécie de «outsourcing social», promotor da concorrência entre prestadores, resultando na degradação de serviços e aumento da precariedade laboral.

- Na educação, a democracia será eliminada das escolas. Escolas municipalizadas, geridas como empresas por um director todo poderoso, competirão entre si e o sector privado, cada vez mais subsidiado pelo Estado. No ensino superior, o mais provável é a introdução de um modelo de gestão privada das universidades ao mesmo tempo que se reduzem as transferências do orçamento e se aumentam as propinas.

- Na saúde, um governo do PSD introduzirá preços em todos os serviços e promoverá a empresarialisação dos hospitais. Num gesto ousado, poderia mesmo introduzir vouchers neste sector para serviços actualmente inexistentes no SNS. O sector privado florescerá, com a consequente sangria de recursos humanos do sector público.

Em suma, MFL procurará mimetizar ou introduzir tout court o funcionamento de mercado nos serviços públicos. O núcleo neoliberal. Como certamente o PSD argumentará em sua defesa, a despesa social não diminuirá. No entanto, esta servirá sobretudo para encher os bolsos de uns tantos grupos económicos.

Face a este cenário, não será difícil ao PS captar o voto útil. Ninguém de esquerda quer um governo assim, pois não?...

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Rebentou a bolha da ortodoxia na Economia?


De todas as bolhas económicas que foram furadas, poucas rebentaram de forma mais espectacular do que a reputação da Economia propriamente dita.


Aos nossos leitores mais propensos à ortodoxia recomendo alguma calma… Quem escreveu o paragrafo anterior não foi nenhum ladrão.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Bater no fundo


Já batemos no fundo? Depois de batermos no fundo vem lá de novo o crescimento? Existem sinais de retoma? Aqui estão perguntas a que não podemos responder com certeza. Os sinais são contraditórios.

Mas a nossa dificuldade de prever o que lá vem não resulta apenas da confusão de sinais. O problema é que estarmos ou não a bater no fundo e de regresso ao crescimento depende também de muitos acreditarem ou não que estamos já a bater no fundo. As expectativas e a reflexividade são o que fazem das ciências sociais, ciências muito “duras” (difíceis).

Dada a reflexividade é possível criar factos. Fazer previsões como “já estamos a bater no fundo” é uma forma de tentar inverter as expectativas, e pode ser também uma forma de tentar voltar aos negócios como de costume sem que nada de essencial mude na economia de casino, como até agora não mudou. Acho que é por isso, e não pela clareza dos sinais, que nestes últimos tempos ouvimos dizer tantas vezes “estamos a bater no fundo”.

Quero tentar evitar opor a isto um “ainda não batemos no fundo” destinado a favorecer as mudanças que considero essenciais para evitar o sofrimento evitável. Mesmo assim, quando vejo, como nunca tinha visto, sinais de deflação - das tentativas de descer salários (até no jornal Público vejam lá), a pequenos restaurantes de olho no vizinho que desceu os preços – não posso deixar de temer que ainda não tenhamos batido no fundo e de achar cada vez mais que os que nos meteram nesta não serão capazes de nos fazer sair dela.


Economia solidária?

A última Encíclica Papal - Caridade na Verdade - merece ser lida e discutida. Quem escreve isto é um não crente que reconhece a influência da Igreja Católica e acha que a sua doutrina social continua a oferecer recursos para pensar criticamente a economia e as transformações necessárias para a tornar mais solidária. A minha crónica semanal pode ser lida no i.

Sobre a economia social e solidária podem ler com proveito este artigo de Sandra Monteiro no último número do Le Monde diplomatique – edição portuguesa: «Só se não cairmos em simplismos que venham substituir a ilusão do homo economicus por uma espécie, igualmente «natural», de homo cooperativus é que poderemos colocar-nos no terreno da construção, árdua e contraditória, dos arranjos que pensamos terem mais capacidade para instituir práticas que favoreçam sociedades mais assentes na cooperação, na reciprocidade, etc. Práticas que aproveitem as potencialidades de cada homem e mulher, que garantam uma melhor utilização dos recursos socioeconómicos ao serviço do bem comum e que o façam tendo em conta a sustentabilidade a longo prazo, ou seja, assegurando que o respeito pelo tempo dos homens incorpora o respeito pelo tempo da Terra». Foi recentemente lançado entre nós o Dicionário Internacional da Outra Economia, um magnífico instrumento de trabalho para todos os que estão interessados em construir alternativas democráticas no campo da provisão. Não percam.

domingo, 19 de julho de 2009

Nas mãos da Alemanha, como desde o início (II)

O leitor pode legitimamente colocar a questão: sendo tudo isto conhecido há muito tempo, porquê só agora esta previsão tão sombria quanto ao Euro? O que é que mudou?
Resposta: há poucas semanas a Alemanha clarificou de uma forma inequívoca a sua posição quanto ao futuro da integração europeia.

Reparem neste artigo de Anatole Kaletski (The Times, 18-05-09):“A forma mais plausível de a Europa escapar a este círculo vicioso será a Alemanha abandonar a sua velha filosofia de rigor orçamental e embarcar num estímulo orçamental em larga escala e garantir as dívidas de todos os seus parceiros na Zona Euro. O pressuposto hoje assumido nos mercados de capitais é que, se as condições na Europa continuarem a deteriorar-se, o governo alemão fará exactamente isso.”

Partilhando esta visão optimista, um artigo na revista The Economist assumia também que a Alemanha tem muito a perder com o incumprimento de qualquer membro da Zona Euro, pelo que estaria ‘condenada’ a apoiar um estado-membro em dificuldades financeiras (na realidade, a situação é mais complicada porque são vários estados). O seu apoio implicaria a introdução de um controlo comunitário das contas públicas dos estados-membros muito mais apertado o que, no quadro de uma negociação global, acabaria por levar a um aprofundamento da integração política. Tese do artigo: uma crise de pagamentos conduziria a mais integração e não a menos.

Assim, a minha expectativa até há bem pouco tempo era a de que a crise levaria ao lançamento de uma política europeia de estímulo à economia que, por seu turno, criaria condições institucionais para o arranque da política orçamental em falta na Zona Euro. Desse modo, não só os custos do ajustamento no curto prazo, em países menos desenvolvidos como Portugal, seriam atenuados mas também ficaria disponível uma nova política macroeconómica para contrabalançar a uniformidade da política monetária.

Pois bem, com o apoio da opinião pública e da maioria dos partidos, a Alemanha acaba de dizer aos mercados de capitais e aos seus parceiros (por via constitucional) que recusa avançar na integração europeia. Os estados que se encaminham para uma situação de grave dificuldade financeira terão de voltar-se para o FMI e aceitar as suas condições. Esta é a mudança crucial que não podemos ignorar.

Recordo que a minha previsão não é uma opção política, é uma antevisão racional do fim da actual Zona Euro, gostemos ou não. É possível que após a implosão se venha a constituir uma outra com muito menos membros, ficando (por hipótese) os restantes ligados àquela através de câmbios ajustáveis, mas não quero ir tão longe na previsão.

Para quem quiser começar a pensar numa estratégia de combate à crise em ruptura com as actuais condicionantes do euro, e portanto com outros custos e benefícios, deixo mais este texto de Jacques Sapir.

Entretanto, a crise também abre novas oportunidades para o País. Talvez ela nos leve a construir um modelo de desenvolvimento mais sustentável, não apenas financeiramente mas também social e ambientalmente. Oxalá.

Nas mãos da Alemanha, como desde o início (I)

Os comentários às minhas postas (I e II) sobre o princípio do fim do Euro são reveladores do quanto é difícil a discussão ponderada de um assunto sensível. Admito que o cenário desperte em alguns a emoção do orgulho nacional ferido. Afinal, o País fez importantes sacrifícios para estar no “pelotão da frente” e abdicou de parte da soberania na perspectiva de que o euro seria um abrigo para as tempestades cambiais e um passaporte para o progresso material. E, no entanto, até o fervoroso europeísta Mário Soares admite que a UE corre “o risco de desagregação” (ver aqui).

Um leitor tomou a previsão que apresentei (com fundamentação racional) como uma manobra retórica “para marcar pontos ideológicos”. Outro, como a defesa de uma opção tão anti-europeia quanto a de uma direita nacionalista. Ainda outro, quer saber a minha ‘verdadeira’ opinião. De facto, leituras pouco atentas, irreflectidas, só inspiram comentários precipitados. Em mais do que uma passagem do texto fui bem claro quanto à minha preferência política pelo aprofundamento da integração europeia. Agora, como também disse, um europeísmo lúcido, não-ideológico, exige o uso da inteligência. Em vez de emoções, do que precisamos é de recursos intelectuais para ver os limites da integração europeia e perceber como esta crise a atinge profundamente.

Por isso, na primeira parte da posta partilhei a minha leitura de vários factos ocorridos nas últimas semanas. Não estava à espera que todos concordassem com a minha interpretação sobre a posição da Alemanha mas confesso que me surpreendeu a validação do que escrevi por parte de um compatriota lá residente, pelos vistos culturalmente bem integrado. A sua opinião reflecte com imensa clareza o nacionalismo económico e o apoio a políticas recessivas hoje dominante no eleitorado alemão. Ao que parece, o país recusa ver a realidade: quebra dramática do PIB, dependência do resto da Europa para parte importante das suas exportações, quase falência de uma parte do sector bancário. Joschka Fischer tem mesmo razões para estar preocupado. E nós também.

Complementando o texto de 2006 de Jacques Sapir que referi em (II), remeto os leitores para a análise da situação actual na Zona Euro feita pelo economista Patrick Artus (aqui) e também para este texto por ser tecnicamente acessível.

Admito que muitos leitores não tenham uma ideia do que vai acontecer durante o próximo ano. Na linha do que defendem os economistas da SEDES, o governo eleito em Setembro, tal como na Irlanda ou na Grécia, vai conduzir uma severa política de austeridade tendo em vista convencer os fundos de investimento (intocáveis executores da disciplina do mercado) de que não vai falhar no serviço da dívida. É que, com o passar do tempo, esta vai aproximar-se dos 100% do PIB, a marca da venda da dívida apenas a juro proibitivo.

Também irá apoiar as empresas expostas à concorrência mundial que procurem impor cortes salariais para recuperarem alguma competitividade-custo perdida nos últimos anos, sem o que não conseguem travar no imediato a perda de quotas de mercado. Em consequência destas medidas no sector público e privado o País verá agravada a sua recessão. Como quase toda a Europa vai adoptar esta política económica , a crise tornar-se-á social e politicamente insustentável. Mais ainda, a Europa não apoiará os EUA nos seus esforços de saída da crise ficando a Alemanha suspeita de querer sair desta recessão global “à boleia” dos programas de estímulo à economia lançados pela administração Obama.

A crítica imediata a esta política de recessão social apontaria uma alternativa à brutal redução de salários: promover o crescimento das exportações com base em inovação tecnológica e organizacional. Porém, o alargamento significativo do número de empresas que adoptam estratégias de inovação eficazes exige outro horizonte temporal. As actuais políticas de inovação devem certamente ser revistas mas os resultados não são para o curto prazo, muito menos para a emergência financeira que vamos viver. Como disse Krugman a propósito da Espanha, "isto vai ser feio."

Assim, a manutenção de Portugal na Zona Euro (enquanto esta durar) implica a decisão política, ainda que implícita, de sofrer um prolongado período de grande desemprego. E isto sem que o sacrifício valha a pena porque o nível de vida apenas subirá sustentadamente com o aumento da produtividade e os processos sociais que permitiriam esse aumento, através do investimento e da inovação tecnológica, são prejudicados pelas políticas de austeridade.

sábado, 18 de julho de 2009

A economia política Gripe A (III) - A responsabilidade humana


A Gripe A não foi produto de um qualquer acidente de laboratório. Esta gripe vive nos patos e outras espécies aviárias endemicamente. No final de cada Verão, quando massas de patos e gansos selvagens migram, a gripe floresce, de forma inócua para estas aves, através das suas excreções que infectam a água dos lagos. No entanto, no final de cada Outono, a gripe parece hibernar e quase que desaparece, emergindo novamente no Verão seguinte. Este ciclo pode ter milhares, senão milhões de anos.

Elevadas densidades das populações onde o vírus da gripe vive são decisivas para a sua expansão e, consequentemente, potenciação das suas mutações. Ora, as últimas décadas foram marcadas por uma revolução na produção pecuária, agora linha de produção massificada, liderada por grandes multinacionais como a Tyson (responsável pela produção anual de 2.2 mil milhões de aves domésticas). A densidade das populações de aves onde o vírus da gripe se pode desenvolver aumentou exponencialmente. Este aumento da densidade aviária, aliado à super-urbanização de regiões em acelerado processo de industrialização, resulta num caldo onde a Gripe A facilmente se expande e se pode recombinar com a Gripe B, a tradicional gripe humana. Assim, não é de estranhar que tenha sido no Sudoeste Asiático, uma região com fortes densidades humanas e aviárias, o local originário da maior parte dos surtos de gripe aviária.

O caso da actual gripe A (H1N1), ou suína, é em tudo parecida. Este vírus manteve-se surpreendentemente estável durante décadas. Em 1997, porcos de uma mega-exploração, na Carolina do Norte, foram identificados como infectados com a gripe humana H3N2. Rapidamente se percebeu que o vírus tinha ganho características quer da gripe aviária, quer da gripe suína clássica, resultando num conjunto de novos subtipos, entre eles o H1N1, espalhados nas populações suínas por toda a América do Norte. A transformação da produção suína terá contribuído decisivamente para a transmissão e mutação do vírus. A percentagem de porcos criados em complexos com mais de 5 mil animais passou de 18% do total da produção em 1993, para 53% em 2003 nos EUA. Concluíndo, se é certo que o vírus da gripe não é o produto da acção humana no sentido estrito, a forma como a produção pecuária está organizada é claramente responsável por um aumento dos riscos inerentes a esta doença.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

O princípio do fim do Euro (II)

Ao mesmo tempo que a Alemanha recusa uma política europeia de relançamento, a França confronta a Alemanha com uma política orçamental expansionista. Ao ‘eixo’ partido da União Europeia junta-se a passividade dos estados que estão na primeira linha para um agravamento dramático da sua dívida pública. Portugal é apenas um deles.

Em suma, a menos que ocorra um milagre na Alemanha, o agravamento da crise ecónomica e financeira acabará por fazer saltar a faísca detonadora de uma crise política na UE no próximo ano. A interacção das várias crises conduzirá ao desmoronar da Zona Euro por insustentabilidade social, financeira e política. Nessa altura não vai haver condições para ponderar sobre o que será melhor para o futuro de cada estado-membro (benefícios e custos de ficar ou sair do euro). A partir de um dado momento a dinâmica dos acontecimentos será imparável.

Para os que acham que apresento uma visão catastrofista recomendo a leitura deste texto de Jacques Sapir, escrito há três anos, onde a actual crise e vários cenários para o futuro da Zona Euro foram discutidos.

Para terminar, e tendo em vista a próxima campanha eleitoral, deixo algumas questões a que as esquerdas do meu País deveriam responder:
Que posição deve Portugal assumir relativamente ao 'isolacionismo' da Alemanha, seja no combate à crise seja no bloqueio da integração europeia?
Deve Portugal permanecer na Zona Euro a qualquer preço ou deve (tanto quanto possível) preparar a saída juntamente com outros estados?
Ou a leitura do que nos espera no próximo ano é outra, e nesse caso qual?

Atenção, nas respostas não vale tomar os desejos por realidade.

O princípio do fim do Euro (I)

Em vez de anunciar o fim da crise vou fazer uma previsão polémica: o aprofundamento da actual crise com a entrada em cena de uma crise política europeia que irá juntar-se às crises financeira e económica.

aqui disse que a Alemanha desempenha um papel central no próximo futuro da Zona Euro. Também alertei (aqui) para a imperiosa necessidade de uma coligação de países da Zona Euro confrontar a Alemanha com as suas responsabilidades no que toca à sustentabilidade da nossa moeda comum.

De facto, uma ‘moeda única’ não é sustentável quando as grandes desigualdades de nível de desenvolvimento dos estados envolvidos não são contrabalançadas por uma política económica comum (ver aqui e aqui). Confirmando esta objecção de fundo, o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) aguentou-se mal no passado recente e teve de ser flexibilizado. Agora, a recessão global em que estamos mergulhados está a criar as condições que vão precipitar o fim do próprio euro. Custa-me fazer esta afirmação, mas o meu europeísmo é um projecto político realista e não uma ideologia que transporta para fora da realidade. E a realidade a que não podemos fugir é que a Alemanha está a criar as condições perfeitas para acabar com o euro. Vejamos como.

Embora a nossa comunicação social não lhes tenha dado relevo, alguns sinais de mau presságio viram a luz do dia nas últimas semanas:

1) A crescente preocupação dos especuladores com a degradação da economia da Zona Euro, a solvabilidade de uma parte importante do seu sistema bancário e a sustentabilidade das finanças públicas de vários Estados (ver aqui) reflectiu-se já num episódio de fuga, em termos líquidos, das obrigações emitidas pela Alemanha. Como dizia um gestor de fundos (aqui), ao contrário do passado, “os investidores têm sérios receios relativamente à sua exposição na região.”

Por conseguinte, nos próximos meses a dívida pública alemã não só vai crescer mas também vai encarecer gerando um efeito bola de neve que levará a ortodoxia governante a cortar (mais) na despesa para reduzir o défice. O que provocará mais recessão, portanto menos receita e mais despesa pública, ou seja ainda mais défice em percentagem do PIB.

Tendo em conta que a bancarrota da Califórnia e outros estados vai agravar a crise nos EUA, é razoável admitir que nos próximos tempos a Alemanha não vai ter mercados para onde exportar. Por isso, na falta de mercado interno europeu, o seu horizonte é uma profunda recessão agravada pela política económica adoptada. Ao mesmo tempo, o eleitorado alemão não vê a esquerda como alternativa credível e cada vez mais volta as costas à Europa (ver aqui).

2) O parlamento alemão tomou uma decisão da maior relevância para o futuro da Zona Euro. Tornou os défices públicos inconstitucionais, salvo em circunstâncias excepcionais (ver aqui). A partir de 2016 os défices do governo federal superiores a 0,35% do PIB serão inconstitucionais e a partir de 2020 nenhum estado federado pode incorrer em défice. Isto significa, em primeiro lugar, que a Alemanha fixou na sua constituição (e sabemos o que isso significa no espírito germânico) uma política orçamental pró-cíclica tal como a descrevi no ponto anterior. Em segundo lugar, e apesar das consequências que a medida vai ter para o resto da UE tendo em conta o grau de integração já alcançado, a decisão da Alemanha foi unilateral. Agora, de nada serve clamar por um Fundo Europeu de Estabilização Financeira para acudir aos Estados em ruptura porque a Alemanha acaba de dizer, com esta decisão unilateral, que não vai assumir a sua quota-parte na garantia orçamental necessária à criação desse fundo. Um estado da União Europeia que se aproxime do incumprimento terá de pedir empréstimos ao FMI e não à sua “União”.

3) O tribunal constitucional alemão aprovou há dias o Tratado de Lisboa sob condições. Segundo Wolfgang Münchau (ver aqui), estas condições obrigam o parlamento alemão a uma estrita vigilância de toda a legislação proveniente das várias instâncias da UE para aferir da sua constitucionalidade. Uma das áreas consideradas críticas é a política orçamental que, segundo o tribunal, só pode ser exercida por um estado soberano. Para os juízes, a UE é uma entidade inter-governamental pelo que está fora de questão qualquer avanço federal no que toca à política orçamental, fiscalidade incluída. Ou seja, o processo de integração da UE não pode ir além do actual estádio. Ficamos com uma moeda única mas sem política económica (monetária, orçamental, cambial, comercial) para gerir o mercado único. Como diz Münchau a rematar o seu artigo, “no mínimo, quem está trancado numa união monetária com a Alemanha deveria estar muito preocupado.”

quarta-feira, 15 de julho de 2009

A Economia Política da Gripe A (II)

Antes de continuar a minha série de posts, vale a pena responder ao chorrilho de disparates e desonestidade intelectual sobre a gripe A de que este post é um bom exemplo. Primeiro desvaloriza-se a ameaça. Afinal, a gripe aviária de 2005 só (?) matou 250 pessoas... Comparada com outros problemas de saúde globais, a capacidade mortífera da doença é relativizada até à irrelevância. Isto seria só manipulação mediática da indústria farmacêutica e do Rumsfeld.

A memória pode ser longínqua, mas foi exactamente este vírus da gripe (H1N1) que provocou uma das maiores pandemias do século XX: a famosa gripe “espanhola” de 1918, provavelmente nascida nas infectas trincheiras da primeira Guerra Mundial, que matou entre 25 e 100 milhões de pessoas num total de 500 milhões de doentes. Em Portugal, estima-se em 120 mil mortes. Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso foram duas destas vítimas. Entretanto, outros surtos epidémicos têm surgido com mortalidades menores, mas mesmo assim muito preocupantes, por exemplo, em 1957, com uma mortalidade de 2 milhões de pessoas, e em 1968 com uma mortalidade entre 2 e 7 milhões.

Se a gripe aviária de há poucos anos matou pouca gente foi porque os países asiáticos empreenderam vastos programas de abate maciço de aves, prevenindo a propagação do mortífero vírus e consequente possibilidade de mutação que permitisse o contágio entre humanos (a discussão ainda está em aberto acerca desta possibilidade ter realmente acontecido). A actual gripe parece não ter a mesma agressividade da gripe aviária ou mesmo da gripe “espanhola”. Aliás, o H1N1 foi endémico nas populações humanas até ser substituído, em 1957, pelo H2N2 – o que pode explicar a menor incidência do actual vírus nas populações mais idosas. No entanto, o seu potencial de contágio é muito maior e nada impede que se transforme numa estirpe mais mortal à medida que se expande por todo o mundo.

Quanto ao Tamiflu, ao contrário do que se afirma, este é, de facto, um dos dois antivirais eficazes contra a gripe A. Ninguém nega que a Roche lucra imenso com a actual gripe. Face à sua muito limitada capacidade de produção (em 2004 produzia somente oito milhões de doses por ano), os governos devem, por isso, ignorar os direitos de propriedade intelectual do antiviral e produzi-lo em massa. Esta é única parte deste post com a qual concordo, embora ache estranho que se avance uma solução para um problema que é negado no texto que a antecede.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Economia ou casino?

«Se a história serve de indicador, depois de crises que surgem a meio de uma grande revolução tecnológica, vem uma época dourada. O boom Victoriano, a Belle Époque e o auge do pós-guerra foram períodos de prosperidade. Mas isto não é mecânico. Exige decisões que modifiquem as condições do mercado, que favoreçam a economia real e não o casino financeiro e distribuam melhor a riqueza, estimulem a procura e a expansão da produção e emprego. O capitalismo já viveu quatro ciclos pendulares como este». Vale a pena ler a entrevista que Carlota Pérez, economista heterodoxa já aqui discutida pelo Ricardo, deu ao i. Um pretexto para conhecer os seus trabalhos. Pérez faz parte de uma minoria de economistas que, incompreensivelmente, continua a ter a mania de conceber a economia como uma ciência social e histórica dedicada a estudar a evolução do capitalismo realmente existente, as relações entre as revoluções tecnológicas e o entorno institucional ou entre o capital industrial e o financeiro. Tudo assuntos menores…