quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
O melhor livro de 2009 para os combates de 2010
Do que eu li, claro. A justificação está aqui. O ano de 2010 será o ano europeu do combate à pobreza e à exclusão social, ou, o que deveria ser o mesmo num país fracturado por péssimas escolhas políticas, o ano do combate às desigualdades. Desejo-vos um bom ano de 2010. Um ano com toda a simpatia.
O que fazemos com o que lemos?
«“a corrida quieta da leitura” (Maria Filomena Molder)
Cada livro dá uma velocidade de leitura; um livro deveria ter na sua capa ou na contracapa indicações de velocidade máxima e mínima de leitura: não ler a mais do que quarenta páginas por hora. (ideia a desenvolver)
Claro que a velocidade engana: livros imbecis, mas também livros perfeitos, podem ser lidos a uma grande velocidade, suponhamos: cem páginas por hora. Não é tanto a velocidade potencial de leitura de um livro que dá a sua qualidade, é mais o local aonde se chega com essa velocidade.
E que importa estar num carro que vai a uma grande velocidade, se ele chega a um sítio que eu não desejo (rapidamente, é certo)?
E que importa estar num carro que vai a uma velocidade lenta para que os seus passageiros possam apreciar a paisagem, se a paisagem não é relevante?
Contemplar quando estamos em viagem se a coisa contemplada for interessante.
Claro, dirão, ler é bom para os sentimentos, para os abanar: por favor, não introduza dados quantitativos no prazer da leitura.
Porém, não esquecer: o que faz cada um com o que leu à velocidade que leu? Paisagens e sítios de chegada. Contabilidade económica da leitura.
(Não podemos ler tudo. Somos mortais, meu caro.)»
– Gonçalo M. Tavares, Breves Notas sobre as Ligações (Llansol, Molder e Zambrano), Relógio d’Água, Lisboa, 2009, pp. 65-66.
Em defesa das famílias
Repesco um bom trabalho do i sobre a fraqueza e a vulnerabilidade do nosso Estado Social, reflectidas no fraco apoio às famílias (assim no plural é que deve ser porque famílias há mesmo muitas e, no futuro, serão cada vez mais): “Portugal é dos países europeus em que a assistência às famílias é mais reduzida (…) No conjunto dos países da União pré-alargamento a Leste, só Espanha fica atrás de Portugal com menos de 1% do produto direccionado para o apoio às famílias. A performance nacional não melhora mesmo no quadro da União Europeia a 27, com Portugal a ficar bem abaixo da média europeia: 2,1% do PIB (…) Portugal está entre o grupo minoritário de países (sete) que, no conjunto da união, estabelece restrições à atribuição de benefícios, em função do rendimentos ou de outros factores.”
Volto a sublinhar um ponto, que pode parecer paradoxal à primeira vista, mas que está bem consolidado nos trabalhos comparativos sobre o Estado Social; um ponto que não penetra no pensamento hegemónico sobre estas questões, reflectido nas políticas públicas dominantes em Portugal nos últimos anos: a importância da universalidade do Estado Social. A universalidade reforça a capacidade redistributiva, a eficácia e a legitimidade política das políticas, esteio da confiança. A universalidade diminui os custos administrativos dos programas sociais ou a probabilidade de guetização dos mais pobres (é sobre eles que toda a intrusiva monitorização tende a recair nestes contextos, o que faz com que, por exemplo nos EUA, o fraco e selectivo Estado Social faça cada vez mais parte do todo poderoso Estado Penal) e favorece a formação de coligações políticas amplas em sua defesa, num ciclo virtuoso que estamos longe de alcançar.
Só não percebo por que é que se diz que o tema das famílias é de direita. O facto dos partidos de direita andarem sempre com a família no discurso não quer dizer nada. Basta pensar quem tem promovido mudanças na legislação laboral, que muito prejudicam as famílias, ao legitimarem a precariedade e ao darem mais poder aos patrões para baralhar horários à boleia de horríveis eufemismos, como é o caso da adaptabilidade…
Volto a sublinhar um ponto, que pode parecer paradoxal à primeira vista, mas que está bem consolidado nos trabalhos comparativos sobre o Estado Social; um ponto que não penetra no pensamento hegemónico sobre estas questões, reflectido nas políticas públicas dominantes em Portugal nos últimos anos: a importância da universalidade do Estado Social. A universalidade reforça a capacidade redistributiva, a eficácia e a legitimidade política das políticas, esteio da confiança. A universalidade diminui os custos administrativos dos programas sociais ou a probabilidade de guetização dos mais pobres (é sobre eles que toda a intrusiva monitorização tende a recair nestes contextos, o que faz com que, por exemplo nos EUA, o fraco e selectivo Estado Social faça cada vez mais parte do todo poderoso Estado Penal) e favorece a formação de coligações políticas amplas em sua defesa, num ciclo virtuoso que estamos longe de alcançar.
Só não percebo por que é que se diz que o tema das famílias é de direita. O facto dos partidos de direita andarem sempre com a família no discurso não quer dizer nada. Basta pensar quem tem promovido mudanças na legislação laboral, que muito prejudicam as famílias, ao legitimarem a precariedade e ao darem mais poder aos patrões para baralhar horários à boleia de horríveis eufemismos, como é o caso da adaptabilidade…
quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
Racionalidade económica
O conceito de racionalidade económica que tem prevalecido no ensino da Economia tem uma inspiração filosófica que remonta pelo menos a David Hume (séc. XVIII). A síntese neoclássica de Lionel Robbins, nos anos 30 do século passado, foi beber a Hume e consagrou um entendimento da racionalidade económica em que os indivíduos são vistos como dotados à partida de preferências. A racionalidade económica incidiria sobre as escolhas que os indivíduos teriam de fazer para melhor satisfazer estas preferências: obter a maior satisfação com os recursos disponíveis, ou alcançar um dado nível de satisfação com o menor volume de recursos possível. Racionalidade e optimização andam aqui de mãos dadas e foram aplicadas a múltiplos domínios sociais (ver Becker e o casamento). A Economia passou a definir-se pelo uso de um método próprio em vez do estudo de um domínio particular da realidade social, o da provisão dos bens/serviços necessários ao bem-estar da sociedade.
Durante muito tempo, a crítica a este entendimento da racionalidade económica dirigiu-se à questão da “maximização”. Herbert Simon destacou-se na crítica desse procedimento e sugeriu que os seres humanos usam expedientes operacionais para determinar o que lhes convém a cada momento, mesmo que isso signifique um “óptimo de segunda linha.” No entanto, a questão é bem mais complicada porque os seres humanos não são máquinas e o cérebro não funciona segundo regras computacionais, ao contrário do que nos quis fazer crer a corrente cognitivista da psicologia. Infelizmente alguns economistas heterodoxos ficaram-se por esta visão computacional e, com alguma preguiça, ignoraram as outras correntes da psicologia e os avanços de outras ciências que desmentem a natureza computacional da cognição.
A natureza humana é muito mais complexa: para além da complexidade da sua biologia, os seres humanos são pessoas e não indivíduos. Constituem-se em sociedade. As suas preferências são interactivamente construídas pelo que não podem ser tratadas como algo dado à partida. Como se costuma dizer (ainda dentro do paradigma dominante) as suas preferências são endógenas. Por outro lado, as acções de hoje afectam os desejos, necessidades e preferências de amanhã. Recursos e preferências são em larga medida interdependentes; escolhemos certos objectivos porque também sabemos que temos recursos para os alcançar. Os pragmatistas americanos (Peirce, James, Dewey, Veblen) perceberam isto muito bem nas primeiras décadas do século XX. Mais ainda, em muitas situações, a incerteza é tal que nem os cálculos de risco com modelos probabilísticos funcionam porque não sabemos nada do que pode vir a acontecer (incerteza radical). A recente crise financeira apenas recordou o que há muito tempo já sabiam os economistas relegados para a margem da profissão (Minsky). Ou seja, a acção humana é um processo recursivo, dinâmico, emergente, que não pode ser captado pelo modelo tradicional, linear, de racionalidade económica descrito nos manuais de economia.
Mas há mais: a decisão humana que não se interessa pelos fins, que não quer saber dos seus efeitos sobre a pessoa e\ou a comunidade não pode ser considerada racional. Isso não faria qualquer sentido. No conceito de racionalidade tem de caber um juízo sobre os fins que nos propomos alcançar, o que nos remete para o papel dos valores no coração da acção humana! (ver a obra de Rescher). Enfim, rompendo com a divisão entre Economia “positiva” e Economia “normativa” com que nos catequizam nas primeiras aulas de Economia, é preciso assumir um outro paradigma da Economia que integre a interdependência entre eficiência e juízos de valor, o que nos leva a uma racionalidade económica que dá conta dos valores que organizam a economia, uma racionalidade cuja aplicação aos problemas concretos exige debate alargado e deliberação colectiva. Enfim, uma racionalidade económica bem diferente da versão calculatória que nos vai ser martelada pela comunicação social nos próximos meses a propósito da crise orçamental, como se fosse um dado da natureza e não uma construção pessoal e social, portanto uma realidade evolutiva, com história.
Durante muito tempo, a crítica a este entendimento da racionalidade económica dirigiu-se à questão da “maximização”. Herbert Simon destacou-se na crítica desse procedimento e sugeriu que os seres humanos usam expedientes operacionais para determinar o que lhes convém a cada momento, mesmo que isso signifique um “óptimo de segunda linha.” No entanto, a questão é bem mais complicada porque os seres humanos não são máquinas e o cérebro não funciona segundo regras computacionais, ao contrário do que nos quis fazer crer a corrente cognitivista da psicologia. Infelizmente alguns economistas heterodoxos ficaram-se por esta visão computacional e, com alguma preguiça, ignoraram as outras correntes da psicologia e os avanços de outras ciências que desmentem a natureza computacional da cognição.
A natureza humana é muito mais complexa: para além da complexidade da sua biologia, os seres humanos são pessoas e não indivíduos. Constituem-se em sociedade. As suas preferências são interactivamente construídas pelo que não podem ser tratadas como algo dado à partida. Como se costuma dizer (ainda dentro do paradigma dominante) as suas preferências são endógenas. Por outro lado, as acções de hoje afectam os desejos, necessidades e preferências de amanhã. Recursos e preferências são em larga medida interdependentes; escolhemos certos objectivos porque também sabemos que temos recursos para os alcançar. Os pragmatistas americanos (Peirce, James, Dewey, Veblen) perceberam isto muito bem nas primeiras décadas do século XX. Mais ainda, em muitas situações, a incerteza é tal que nem os cálculos de risco com modelos probabilísticos funcionam porque não sabemos nada do que pode vir a acontecer (incerteza radical). A recente crise financeira apenas recordou o que há muito tempo já sabiam os economistas relegados para a margem da profissão (Minsky). Ou seja, a acção humana é um processo recursivo, dinâmico, emergente, que não pode ser captado pelo modelo tradicional, linear, de racionalidade económica descrito nos manuais de economia.
Mas há mais: a decisão humana que não se interessa pelos fins, que não quer saber dos seus efeitos sobre a pessoa e\ou a comunidade não pode ser considerada racional. Isso não faria qualquer sentido. No conceito de racionalidade tem de caber um juízo sobre os fins que nos propomos alcançar, o que nos remete para o papel dos valores no coração da acção humana! (ver a obra de Rescher). Enfim, rompendo com a divisão entre Economia “positiva” e Economia “normativa” com que nos catequizam nas primeiras aulas de Economia, é preciso assumir um outro paradigma da Economia que integre a interdependência entre eficiência e juízos de valor, o que nos leva a uma racionalidade económica que dá conta dos valores que organizam a economia, uma racionalidade cuja aplicação aos problemas concretos exige debate alargado e deliberação colectiva. Enfim, uma racionalidade económica bem diferente da versão calculatória que nos vai ser martelada pela comunicação social nos próximos meses a propósito da crise orçamental, como se fosse um dado da natureza e não uma construção pessoal e social, portanto uma realidade evolutiva, com história.
Aprender com um debate
Interessante debate que corre, há já algum tempo, na blogosfera sobre a “classe média” e o trabalho doméstico. Destaque para Luís Aguiar-Conraria, a propósito dos enviesamentos cognitivos, com óbvias implicações políticas, que se multiplicam num país desigual e em que a única classe que tem reconhecimento público é uma misteriosa, mas ideologicamente tão conveniente, média – “A elite do país chama-se classe média” – e para Pedro Magalhães (via LA-C, onde podem encontrar algumas das ligações mais relevantes para um debate onde tem participado muita gente), a propósito, entre outras coisas, de um dado que eu já há algum tempo tinha curiosidade em conhecer, mas que nunca me tinha dado ao trabalho de procurar: estima-se, o International Social Survey Program estima, que, em Portugal, 8,4% das famílias recorra a terceiros para a limpeza da casa (trabalho pago e não-pago). Alguém conhece mais dados sobre este assunto?
Eu que sou economista...
“[O]s mesmos mercados que desestabilizaram o sistema financeiro a um ponto tal que este teve de ser salvo pelos contribuintes, exigem agora um esforço de consolidação como preço a pagar pelo seu apoio a governos cujas dificuldades ajudaram a causar.” Pedro Adão e Silva, Económico. Acho que a crise está a reforçar uma tendência intelectual positiva e que pode ter consequências políticas: a economia é demasiado importante para ser deixada aos economistas. O futuro da economia política e moral, ou seja, o futuro de qualquer abordagem realista ao processo de provisão dos bens necessários à vida depende disto. Da sociologia à ciência política ou à filosofia, a investigação económica mais interessante que eu tenho lido – por exemplo, sobre variedades do capitalismo, hegemonia do neoliberalismo, construção e reconstrução política dos mercados ou interacção entre economia, moral e política na resposta às recessões – é feita por investigadores que trabalham fora da ciência lúgubre. Só se pode saudar que a opinião na imprensa acompanhe esta tendência. Sinal que o policiamento dos economistas-2012 já não intimida ninguém. O debate e o conhecimento ficam a ganhar. E as políticas públicas, sem separações artificiais entre políticas económicas e sociais, se calhar também.
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
O retorno da religião à arena política (II)
Voltando à questão da crescente divisão entre cristãos e muçulmanos, e para finalizar este artigo, recordo a posição assumida pela revista francesa Marianne, num dossiê especial sobre o tema do voto suíço contra os minaretes (5-11/12/09): um “duplo não”. “Não à recusa dos minaretes”, nomeadamente por serem um atentado à laicidade. E, mesmo se muitos dos críticos do mundo muçulmano (na Arábia Saudita, no Irão, no Egipto, na Indonésia, etc.) à opção dos suíços não têm a mínima autoridade para o fazerem (porque, como exemplarmente mostrou a jornalista Margarida Santos Lopes no PÚBLICO, 26/12/09, os seus países promovem um puro “apartheid religioso”), a verdade é que a resposta ocidental não pode ser nunca na mesma moeda da intolerância.
Mas o segundo “não” da Marianne é para a “recusa em procurar compreender a realidade do medo face ao Islão na Europa”. Creio que a Europa, nomeadamente a UE, tem feito pouco para combater as razões de tais receios, designadamente por muitas vezes ceder em questões essenciais, dando razão àqueles que alegam existir uma certa “islamização da Europa”. Um exemplo disso tem sido, do meu ponto de vista, a forma absolutamente indulgente como tem sido tratada a candidatura de Ancara à UE, transigindo em princípios fundamentais: designadamente, aceitando prosseguir sem que a Turquia reconheça Chipre e conceda plenos direitos culturais, sociais e políticos à minoria curda (de que a ilegalização de um partido parlamentar curdo, DTP, foi apenas mais um episódio grave: PÚBLICO, 15/12/09). Esta transigência em princípios fundamentais faz o cidadão comum temer o pior no relacionamento da UE com o islão, pois que dá razão àqueles que alegam que o lobby pró-turco tudo pode e tudo subalterniza na sua defesa da caminhada de Ancara para a Europa.
Originalmente publicado no Público de 28/12/2009
O retorno da religião à arena política (I)
Apesar de todas as mercantilizações da quadra natalícia, esta é ainda uma época do ano profundamente marcada pelo espírito religioso, sobretudo em países católicos e com um (ainda) elevado nível de prática religiosa (em termos comparativos europeus). É, por isso, apropriado abordar a temática da religião, embora relacionando-a com a esfera política.
De acordo com um modelo analítico elaborado em finais dos anos 1960 por dois eminentes politólogos, Stein Rokkan e Seymour Martin Lipset, dois dos principais factores sociais explicativos dos alinhamentos dos eleitores e da formação dos sistemas partidários nas democracias modernas são a classe social e a religião. Mais, embora as clivagens políticas baseadas na classe estivessem mais difundidas entre as democracias modernas, vários estudos à época demonstravam que, lá onde a clivagem religiosa estava politicamente activada, a religião contava mais para explicar os alinhamentos dos eleitores do que a classe social. Mesmo se a última era mais frequentemente objecto de luta partidária, por via da politização dos temas associados às desigualdades e ao papel do Estado, e a religião funcionava mais como um factor de identidade. Porém, desde os anos 1970-80, a nova doxa na ciência política europeia apontava (até há pouco tempo atrás) para um declínio quer da classe, quer da religião enquanto factores explicativos dos alinhamentos políticos. No último caso, factores como a erosão da influência da religião nas sociedades (secularização), patente na forte contracção do universo dos crentes com prática regular, e a crescente individualização da relação dos fiéis com o divino estariam por detrás de um cada vez menor peso das divisões religiosas para explicarem os alinhamentos políticos.
Ultimamente, porém, a nova doxa tem vindo a ser alvo de contestação: fala-se cada vez mais de um regresso da religião, seja para explicar os alinhamentos partidários e/ou geopolíticos, seja para dar conta dos alinhamentos dos eleitores. No contexto do fim da guerra fria, e numa visão diametralmente oposta à do chamado “fim da história”, Samuel Huntington falava num “choque de civilizações” para explicar os novos alinhamentos geopolíticos na era do chamado “fim das ideologias”. Na sua visão, as religiões são um cimento essencial das identidades nas novas linhas de fractura civilizacional. Nesta senda, vários fenómenos vieram dar novo relevo às clivagens religiosas, nomeadamente a crescente divisão entre cristãos e muçulmanos, muito amplificada pelos atentados de 11 Setembro (2001), nos EUA, de 11 de Março (2004), em Espanha, e de 7 de Julho (2005), no Reino Unido. Outros episódios de grande saliência foram o assassinato de um realizador de cinema holandês (2004), crítico de certos costumes muçulmanos, por um extremista islâmico; o episódio dos cartoons de Maomé, na Dinamarca (2006); e, muito recentemente, o sufrágio maioritário dos suíços contra a construção de minaretes. Igualmente relevadoras foram as discussões sobre a inserção de referências à herança cristã no preambulo da “Constituição Europeia”, a crescente politização da integração do islão e dos muçulmanos na Europa, ou o debate em torno da candidatura da Turquia à União Europeia.
Mas não é só em torno da crescente divisão entre cristãos e muçulmanos que a religião tem voltado às arenas políticas domésticas. Por um lado, apesar da secularização e da individualização, a religião continua a ser em muitos países um significativo preditor do voto. Por outro lado, a crescente saliência dada a certos “novos temas” (liberalização do aborto, casamento homossexual, células estaminais, eutanásia, etc.) veio não só despoletar o regresso das mundivisões religiosas para o centro da competição política, mas também reactivar o peso das identidades religiosas no voto. Isso foi já visível em Portugal nas eleições de 2005, em torno da questão do aborto, e poderá ter sido também em 2009, em redor do casamento homossexual. Algo de semelhante tem ocorrido também em Espanha, pelo menos desde o consulado de Aznar.
Originalmente publicado no Público de 28/12/2009
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
O monstro que ninguém dispensa
O poder de compra dos funcionários públicos caiu 6% entre 2000 e 2009. As despesas com pessoal da administração pública diminuíram 11,1% em termos nominais e para os dez primeiros meses de 2009, em relação ao mesmo período de 2007. As despesas com a aquisição de serviços a privados por parte da administração pública central, entretanto, aumentaram 11,6% no mesmo período. O que antes era feito pela administração passa a ser feito, cada vez mais, por privados pagos pelos contribuintes. Estas são as principais conclusões de um estudo do economista Eugénio Rosa (disponível em www.eugeniorosa.com). O resto da minha crónica no i pode ser lido aqui.
domingo, 27 de dezembro de 2009
Já somos dois...
"Confesso a minha surpresa pelo artigo de Ricardo Reis no i de sábado em que se queixa de ser vítima de um maldoso boato propagado, entre outros, por João Rodrigues e por mim mesmo, segundo o qual ele teria afirmado em Agosto de 2007 que, 'dentro de um mês a crise estaria esquecida'". Vale mesmo a pena ler João Pinto e Castro. Obrigado JPC. Não tenho nada a acrescentar, a não ser sublinhar que um excelente trabalho de memória permite clarificar as coisas: do revelador enviesamento político dos alvos escolhidos por Ricardo Reis para os seus múltiplos insultos - sem carácter, burro, mentiroso ou desonesto, a escolha é vossa - até à data e natureza de certas e determinadas previsões. Na entrada de um dos edifícios do ISEG está inscrita uma frase de Bento de Jesus Caraça que todos devemos reter: "Se não receio o erro, é porque estou sempre disposto a corrigi-lo".
sábado, 26 de dezembro de 2009
Confiança e instituições
“De facto este país não é a Alemanha onde os contratos sociais são para cumprir, permitindo a criação de almofadas para ajudar a combater crises, do género: hoje recebemos (trabalhadores) menos para amanhã sermos compensados e vocês (patrões) não vêm depois com desculpas para e tal...” Vale sempre a pena ler Pedro Lains, apesar das distâncias e de não perceber a quem é que é dirigida a alusão ao “planeamento quinquenal”. Coisas que só servem para desconversar. Regressemos então à conversa inicial, essa sim interessante, com alguns comentários mais ou menos avulsos.
Em primeiro lugar, notar que a confiança, ancorada em instituições partilhadas, depende de um ciclo virtuoso, de que a reciprocidade positiva e a desigualdade económica reduzida são ingredientes, indicado por recente investigação empírica.
Em segundo lugar, uma prática alemã, repescada de uma proposta do CEPR norte-americano, que poderia ser apropriada neste contexto de aumento brutal do desemprego: incentivos fiscais à redução do horário de trabalho sem redução salarial proporcional para permitir manter a procura, incentivar a contratação e assim ajudar a reverter a destruição de emprego.
Em terceiro lugar, alguns apontamentos mais teóricos, seguindo o trabalho de Roberto Mangabeira Unger: temos de criticar o “fetichismo institucional”, ou seja, a ilusão de que abstrações – como a ideia de economia de mercado, por exemplo – têm expressões institucionais e políticas óbvias e prontas a aplicar. Não têm. Há uma indeterminação legal radical que assenta nas múltiplas possibilidades de afectação e reafectação dos feixes de direitos e obrigações entre os vários agentes.
Devemos falar em direitos de propriedade (falamos menos de deveres, mas isso é outra história), em contratos, em transacções bloqueadas (há certas coisas que não se podem, ou não se devem, comprar ou vender, caso contrário a expressão corrupção perderia todo o sentido…), em direitos laborais (os deveres são óbvios e a fonte do poder também; é o que explica que uma larga parte do país se levante todos as segundas-feiras à mesma hora…), em empresas (e nas várias formas de controlo dos seus vários activos), etc. Tudo no plural.
Por isso é que há variedades de capitalismo, por isso é que as instituições da economia são plásticas e exibem infinitas possibilidades de combinação e de recombinação. Sabemos que queremos, ou pelo menos acho que muita gente quer, amplas liberdades, justiça social e eficiência na economia. Nenhum destes conceitos tem um sentido evidente, claro. O desafio é descobrir a melhor forma de os definir e compatibilizar, tornando o inevitável conflito social mais produtivo do que ele tem sido em Portugal e largando a mochila da economia de mau manual que nos tolda a imaginação institucional, impedindo-nos de ver os vários picos que o capitalismo tem e os potenciais picos depois dele…
Em primeiro lugar, notar que a confiança, ancorada em instituições partilhadas, depende de um ciclo virtuoso, de que a reciprocidade positiva e a desigualdade económica reduzida são ingredientes, indicado por recente investigação empírica.
Em segundo lugar, uma prática alemã, repescada de uma proposta do CEPR norte-americano, que poderia ser apropriada neste contexto de aumento brutal do desemprego: incentivos fiscais à redução do horário de trabalho sem redução salarial proporcional para permitir manter a procura, incentivar a contratação e assim ajudar a reverter a destruição de emprego.
Em terceiro lugar, alguns apontamentos mais teóricos, seguindo o trabalho de Roberto Mangabeira Unger: temos de criticar o “fetichismo institucional”, ou seja, a ilusão de que abstrações – como a ideia de economia de mercado, por exemplo – têm expressões institucionais e políticas óbvias e prontas a aplicar. Não têm. Há uma indeterminação legal radical que assenta nas múltiplas possibilidades de afectação e reafectação dos feixes de direitos e obrigações entre os vários agentes.
Devemos falar em direitos de propriedade (falamos menos de deveres, mas isso é outra história), em contratos, em transacções bloqueadas (há certas coisas que não se podem, ou não se devem, comprar ou vender, caso contrário a expressão corrupção perderia todo o sentido…), em direitos laborais (os deveres são óbvios e a fonte do poder também; é o que explica que uma larga parte do país se levante todos as segundas-feiras à mesma hora…), em empresas (e nas várias formas de controlo dos seus vários activos), etc. Tudo no plural.
Por isso é que há variedades de capitalismo, por isso é que as instituições da economia são plásticas e exibem infinitas possibilidades de combinação e de recombinação. Sabemos que queremos, ou pelo menos acho que muita gente quer, amplas liberdades, justiça social e eficiência na economia. Nenhum destes conceitos tem um sentido evidente, claro. O desafio é descobrir a melhor forma de os definir e compatibilizar, tornando o inevitável conflito social mais produtivo do que ele tem sido em Portugal e largando a mochila da economia de mau manual que nos tolda a imaginação institucional, impedindo-nos de ver os vários picos que o capitalismo tem e os potenciais picos depois dele…
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
Euro: ironia, crime e pesadelo
"O valor excessivo do euro, que apesar de tudo ainda se mantém, está a penalizar fortemente a nossa economia, e desde este ponto de vista só podemos desejar que outras percepções pessimistas surjam e que o euro desça ainda muito mais (...) Os Alemães, quando da instauração da moeda única, forçaram a criação de instituições de política monetária que garantissem que o euro fosse uma moeda forte (...) Que os outros países aceitassem estas condições alemãs foi vergonhoso. Que nós quiséssemos aderir à moeda única neste enquadramento foi quase criminoso. Mas face a estes antecedentes é irónico constatar que a insuficiência das instituições da zona euro está a levar a que se vá tornando realidade o maior dos pesadelos dos Alemães."
João Ferreira do Amaral, Económico. Um dos poucos economistas, porque foram mesmo muito poucos, que alertou a tempo para o que nos esperava, dada a forma como o euro foi instituido. Os actuais economistas-2012, os do apocalipse que quase monopoliza o debate público, andavam entretidos com utopias de mercado...
João Ferreira do Amaral, Económico. Um dos poucos economistas, porque foram mesmo muito poucos, que alertou a tempo para o que nos esperava, dada a forma como o euro foi instituido. Os actuais economistas-2012, os do apocalipse que quase monopoliza o debate público, andavam entretidos com utopias de mercado...
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Notar bem
Vale a pena ler o trabalho de Bruno Faria Lopes e de Luís Reis Ribeiro no i. Destaque: “Mas para outros, como José Reis, a mudança tem de ser mais radical - empresas privadas pouco reguladas não podem condicionar a política dos Estados. ‘A alternativa é dizer que o caminho dos mercados financeiros não pode passar pelas agências de rating’, afirma. ‘A alternativa é valorizar mais entidades que já existem e que têm uma legitimidade democrática implícita, como por exemplo, o Banco Central Europeu’.” No processo podemos tornar a legitimidade do BCE explicita, por exemplo, reforçando os poderes de escrutínio e de controlo por parte do Parlamento Europeu e modificando as enviesadas prioridades inscritas nos estatutos do BCE. Imitar a Reserva Federal norte-americana já seria um bom primeiro passo. Aproveito para relembrar o que Jorge Bateira e Nuno Teles escreveram sobre as perversas agências de notação: um pilar da actual desordem financeira que persiste. Tal como os paraísos fiscais...
O liberalismo precisa de se defender do “liberalismo”
Há uma espécie de “liberalismo”, ensinado sobretudo nos cursos de Economia, que é ofensivo para o liberalismo. Há quem pense, por exemplo, que um contrato aceite por ambas as partes é necessariamente um contrato legítimo e que isso é uma ideia muito liberal.
Comecemos por um caso extremo: como sabemos existe um mercado de orgãos humanos; muitas vezes estes orgãos são vendidos por pessoas em estado de necessidade; estes contratos são ilegítimos (e proibidos pela lei).
Passemos a um caso menos extremo: o contrato de trabalho obriga-me a aceitar o “comando” do meu empregador; eu aceitei esse contrato; tenho, como trabalhador, de obedecer a todas as ordens que o meu empregador se lembre de me dar, ou há limites? Não seria legítimo, e não seria reconhecido pela lei o contrato em que uma das partes abrisse mão desses limites.
O mundo das relações de trabalho é uma zona cinzenta entre o legítimo e o ilegítimo. Posso mudar de patrão sempre que não esteja satisfeito? Assim seria se não existisse desemprego. Mas no mundo em que vivemos o desemprego existe e é por isso mesmo (entre outras motivos) que há uma parte fraca no contrato de trabalho. Foi exactamente a partir do reconhecimento deste diferencial de poder que foi criado o direito do trabalho.
O pensamento liberal é um mar nunca navegado para o “liberalismo”. Um liberal não pensa que um contrato é legítimo se for aceite por ambas as partes. Na realidade um liberal pensará antes que
“... os governos não limitam a sua preocupação com os contratos à garantia do seu cumprimento. Eles assumem a responsabilidade de determinar que contratos devem ser garantidos. Não basta uma pessoa ter feito uma promessa a uma outra sem que tenha sido enganada ou forçada. Não corresponde ao bem público que as pessoas tenham o poder de se obrigarem a si mesmas ao cumprimento de certas promessas”.
Stuart Mill Livro V, Capítulo 1, parágrafo 6
[a tradução não é nada fácil... para conferir, ver]
Quando os mercados têm sentimentos (não devemos ligar muito)
Vale muito a pena ler o artigo de Robert Skidelsky no FT de ontem: «O governo tem de cortar agora na despesa, porque é isso que esperam 'os mercados'. Os mesmos mercados que feriram o sistema bancário de tal forma que este teve de ser socorrido pelos contribuintes. Agora exigem uma consolidação orçamental, como preço a pagar pelo seu apoio a governos cujas dificuldades orçamentais ajudaram a causar. Por que raio devemos levar esse sentimento de mercado mais a sério do que aquele que conduziu ao deboche de 2007? Diz-se por vezes que os mercados podem não saber o que dizem, mas os governos não têm alternativa senão obedecer. Isto é inaceitável. A obrigação dos governos é governar no interesse das pessoas que os elegeram e não no da City de Londres.»
Apesar de, como escreve Skidelsky, os comentadores conservadores terem recuperarado o fôlego e a confiança, o facto de jornais como o FT continuarem a publicar textos deste teor confirma uma intuição: os triliões de euros que ainda nos vão custar a todos os desmandos da finança descontrolada permitiram afastar, para já, a perspectiva do fim do neoliberalismo reinante nas últimas décadas; ainda assim, é hoje mais fácil questionar este modelo do que era antes de 2007.
Há que manter esse debate aceso - e para isso é preciso repetir mil vezes: a crise orçamental não resulta da insustentabilidade das contas públicas; resulta da insustentabilidade de um regime económico de finança sem freios.
Apesar de, como escreve Skidelsky, os comentadores conservadores terem recuperarado o fôlego e a confiança, o facto de jornais como o FT continuarem a publicar textos deste teor confirma uma intuição: os triliões de euros que ainda nos vão custar a todos os desmandos da finança descontrolada permitiram afastar, para já, a perspectiva do fim do neoliberalismo reinante nas últimas décadas; ainda assim, é hoje mais fácil questionar este modelo do que era antes de 2007.
Há que manter esse debate aceso - e para isso é preciso repetir mil vezes: a crise orçamental não resulta da insustentabilidade das contas públicas; resulta da insustentabilidade de um regime económico de finança sem freios.
terça-feira, 22 de dezembro de 2009
Pessimismo partilhado?
João Pinto e Castro e Carlos Santos, dois economistas que sigo com toda a atenção, convergem com a análise de João Ferreira do Amaral, aqui citada, sobre as necessárias alterações na arquitectura do governo económico europeu. Pinto e Castro sugere um debate na AR. Proposta interessante: estou convencido que BE, PCP e uma parte do PS (minoritária?) convergiriam no diagnóstico e nas propostas. Se calhar teríamos surpresas noutras bancadas?
No entanto, a coisa está muito bem trancada a nível europeu. O Tratado de Lisboa, agora aprovado pelo bloco central europeu, só consolida os “dogmas neoliberais que informaram Maastricht”. É por esta e por outras que estou muito pessimista e não vejo como o que designei por paradoxo europeu possa ser politicamente superado (intelectualmente, a coisa é mais fácil...): A história indica que o liberalismo económico tende a destruir o mercado porque não consegue vislumbrar os seus limites, nem pensar em políticas e instituições que contrariem a miopia dos interesses capitalistas. As elites europeias, obcecadas com a construção do mercado interno, esqueceram-se a certa altura disto.
E esqueceram-se que um mercado interno equilibrado não é compatível com a compressão sistemática do crescimento dos salários, fruto de políticas públicas que fragilizam os assalariados, e com o aumento da desigualdade regional, fruto da quase ausência de mecanismos redistributivos à escala europeia. E não é compatível com a estratégia da economia dominante – a Alemanha – que seguiu a via não-cooperativa de assentar o seu crescimento nas exportações: os excessivos excedentes de uns são os excessivos défices de outros. O drama é que estas questões, que são uma das chaves da dependência externa da economia portuguesa, não entram sequer na discussão pública sobre economia, dominada que está pela tribo dos economistas-2012 e pelo seu lugar-comum da "competitividade" obtida à custa do sacrifício dos salários, da saúde e da vida fora do trabalho. De alguns, claro.
No entanto, a coisa está muito bem trancada a nível europeu. O Tratado de Lisboa, agora aprovado pelo bloco central europeu, só consolida os “dogmas neoliberais que informaram Maastricht”. É por esta e por outras que estou muito pessimista e não vejo como o que designei por paradoxo europeu possa ser politicamente superado (intelectualmente, a coisa é mais fácil...): A história indica que o liberalismo económico tende a destruir o mercado porque não consegue vislumbrar os seus limites, nem pensar em políticas e instituições que contrariem a miopia dos interesses capitalistas. As elites europeias, obcecadas com a construção do mercado interno, esqueceram-se a certa altura disto.
E esqueceram-se que um mercado interno equilibrado não é compatível com a compressão sistemática do crescimento dos salários, fruto de políticas públicas que fragilizam os assalariados, e com o aumento da desigualdade regional, fruto da quase ausência de mecanismos redistributivos à escala europeia. E não é compatível com a estratégia da economia dominante – a Alemanha – que seguiu a via não-cooperativa de assentar o seu crescimento nas exportações: os excessivos excedentes de uns são os excessivos défices de outros. O drama é que estas questões, que são uma das chaves da dependência externa da economia portuguesa, não entram sequer na discussão pública sobre economia, dominada que está pela tribo dos economistas-2012 e pelo seu lugar-comum da "competitividade" obtida à custa do sacrifício dos salários, da saúde e da vida fora do trabalho. De alguns, claro.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
O PIB é uma medida da riqueza, mas o que é a riqueza?
Como quase sempre acontece, para responder temos de olhar para trás - para a história das ideias - e só depois para o presente.
Para Adam Smith a riqueza era “o conjunto dos bens necessários à vida e ao conforto produzidos pelo trabalho”. Mas hoje em dia a maior parte dos economistas tenderá, segundo me parece, a discordar do “necessários” e do “trabalho”. O economista típico dirá primeiro, “o que é necessário e desnecessário é subjectivo, depende de um juízo de valor, e a Economia não faz juízos de valor” e proporá uma primeira modificação à definição de Smith: “o conjunto dos bens desejados pelos consumidores...”. [Ele acha que a necessidade é subjectiva e depedente de valores; já a desejabilidade, sendo igualmente subjectiva, objectivar-se-ia no momento em que o consumidor abre a carteira e paga sem que ninguém discuta os seus gostos].
Dirá depois, “nem só o trabalho cria riqueza” para logo propor como definição definitiva qualquer coisa como: “o conjunto dos bens desejados pelos consumidores e produzidos pelos factores produtivos (terra, trabalho e capital)”. [Como se sabe uma das tarefas da economia neoclássica foi exactamente atribuir ao capital virtudes produtivas].
Será que o assunto fica arrumado? Parece-me que não. Sem discutir agora as virtudes produtivas da terra e do capital (as do trabalho ninguém nega) preocupo-me apenas com um problema da definição de Smith, (a), e outros dois da definição “actual”, (b) e (c).
(a) Não haverá “riqueza” que não é produto do trabalho humano? Florestas, rios, mares, habitats, vida...?
(b) Não existirão bens desejados pelos consumidores que, por existirem à custa de outros bens (por exemplo: florestas, rios, mares, habitats, vida...), representam mais “pobreza” do que riqueza?
(c) Se a resposta a (b) for positiva, não estarão os desejos tão sujeitos a juízos de valor como as necessidades? [o que é mais importante, o desejo satisfeito ou os outros bens sacrificados? Que “peso” devo atribuir a cada um deles nas minhas escolhas?]
Estas são questões “metafísicas”, dir-me-ão. Serão. Mas é com elas e com outras semelhantes que os economistas que actualmente estão envolvidos na reflexão acerca do Produto Interno Bruto (o famoso PIB) são obrigados a debater-se.
Ideias socialistas II
"Essa profunda remodelação deveria prosseguir de acordo com as seguintes linhas:
- A política monetária deveria ter como objectivos, em pé de igualdade com a estabilidade de preços, o combate ao desemprego, o crescimento económico e a taxa de câmbio do euro;
- A total independência do Banco Central Europeu face ao poder político deveria ser eliminada;
- O papel macroeconómico da política orçamental no estimulo ao crescimento e no combate ao desemprego deveria ser reconhecido, levando a uma reformulação profunda do Pacto de Estabilidade e Crescimento;
- O financiamento monetário de défices públicos deveria ser admitido em situações de crise declarada;
- Deveria ser instituído um mecanismo processual que permitisse ao países da zona euro tomar medidas excepcionais para reequilibrar as suas contas com o exterior em caso de acumulação perigosa de dívida externa;
- Tudo o que é necessário fazer a nível macroeconómico será, afinal, abandonar os dogmas neoliberais que informaram Maastricht."
João Ferreira do Amaral, Opinião Socialista.
Opinião e apelo socialistas
Acho que devemos agir como se a opinião fosse a única coisa que contasse em política. Até porque os interesses dependem sempre de um quadro de ideias que os antecede. Perante a actual crise nacional e internacional, acho que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que a opinião seja cada vez mais socialista e para que possa transformar-se numa força material pela sua inscrição em política públicas realistas, ou seja, em políticas compatíveis com o melhor conhecimento disponível.
Neste contexto, Manuel Alegre e a corrente de opinião socialista estão de parabéns. Através da sua revista (www.opiniaosocialista.org) e do livro agora lançado ("Ideias para Grandes Decisões", ed. Campo da Comunicação), que compila alguns dos artigos que aí foram publicados sobre trabalho e seus direitos, escola pública, crise e política económica alternativa e corrupção e urbanismo, contribuíram para consolidar ideias válidas: da apropriação pública das mais--valias urbanísticas à defesa e à valorização dos serviços públicos, passando pela denúncia fundamentada de um Código de Trabalho que aumenta a discricionariedade empresarial e reduz os salários ou pela defesa de um Estado-estratego dotado de instrumentos para promover o sector dos bens transaccionáveis.
Manuel Alegre defendeu recentemente que está na altura de "repor o primado da política e da solidariedade sobre os egoísmos e os grandes interesses". O combate por um socialismo que só pode ser democrático e a defesa de um patriotismo progressista e cosmopolita, ancorado numa ideia de comunidade política inclusiva, revelam uma aguda percepção de que só as ideias podem superar interesses mal orientados.
Não alardeio distanciamentos de cronista que olha para a realidade com fingida neutralidade. Participei nos vários encontros das esquerdas, de que Manuel Alegre foi um dos protagonistas. Convirjo com a ideia de que as esquerdas devem ter sempre a coragem de fazer rupturas com um passado de incomunicabilidade e de que este processo de convergência só pode ser feito na base de políticas substantivas, capazes de romper com o que o politólogo André Freire designou por "enviesamento de direita do sistema político português".
E é precisamente por isso que me atrevo a usar esta crónica para fazer um apelo a Alegre: candidate-se à Presidência da República com esta plataforma. Este cargo tem de ser ocupado por alguém com memória antifascista, experiência política e convicções firmes. Por alguém capaz de inspirar pela palavra e pela proposta: justiça poética. E isto é tudo o que falta ao actual e derrotável inquilino do Palácio de Belém...
Crónica i
Neste contexto, Manuel Alegre e a corrente de opinião socialista estão de parabéns. Através da sua revista (www.opiniaosocialista.org) e do livro agora lançado ("Ideias para Grandes Decisões", ed. Campo da Comunicação), que compila alguns dos artigos que aí foram publicados sobre trabalho e seus direitos, escola pública, crise e política económica alternativa e corrupção e urbanismo, contribuíram para consolidar ideias válidas: da apropriação pública das mais--valias urbanísticas à defesa e à valorização dos serviços públicos, passando pela denúncia fundamentada de um Código de Trabalho que aumenta a discricionariedade empresarial e reduz os salários ou pela defesa de um Estado-estratego dotado de instrumentos para promover o sector dos bens transaccionáveis.
Manuel Alegre defendeu recentemente que está na altura de "repor o primado da política e da solidariedade sobre os egoísmos e os grandes interesses". O combate por um socialismo que só pode ser democrático e a defesa de um patriotismo progressista e cosmopolita, ancorado numa ideia de comunidade política inclusiva, revelam uma aguda percepção de que só as ideias podem superar interesses mal orientados.
Não alardeio distanciamentos de cronista que olha para a realidade com fingida neutralidade. Participei nos vários encontros das esquerdas, de que Manuel Alegre foi um dos protagonistas. Convirjo com a ideia de que as esquerdas devem ter sempre a coragem de fazer rupturas com um passado de incomunicabilidade e de que este processo de convergência só pode ser feito na base de políticas substantivas, capazes de romper com o que o politólogo André Freire designou por "enviesamento de direita do sistema político português".
E é precisamente por isso que me atrevo a usar esta crónica para fazer um apelo a Alegre: candidate-se à Presidência da República com esta plataforma. Este cargo tem de ser ocupado por alguém com memória antifascista, experiência política e convicções firmes. Por alguém capaz de inspirar pela palavra e pela proposta: justiça poética. E isto é tudo o que falta ao actual e derrotável inquilino do Palácio de Belém...
Crónica i
domingo, 20 de dezembro de 2009
Caro Hipermercado
Lembrei-me de te mandar um postalinho de boas festas para agradecer a tua preocupação comigo-consumidor. O que seria de mim se os teus trabalhadores fizessem greve na véspera de Natal? Não só teria de deixar de comprar nesta quadra tão prenhe de significado, como teria porventura de comprar os teus produtos mais caros no futuro. Eu por acaso não tenho acções tuas, mas se tivesse também estaria preocupado porque a greve poderia fazer baixar o teu valor bolsista e a tua rendibilidade. O meu eu-accionista também te agradece.
Mas agora que comecei a escrever lembrei-me que além de consumidor e potencial accionista sou também trabalhador. Mesmo sendo consumidor e accionista podia ter de trabalhar para ti e quem sabe se isso não me acontece um dia. Nesse caso, ser obrigado a trabalhar 60 horas por semana, 14 amanhã (com pré-aviso de algumas horas) e devolução do tempo a mais, mas sem pagamento extra, não é nada que se agradeça. Bem sei que tudo isto é legal, e que foi para isto mesmo que o código do trabalho foi alterado, mas mesmo assim... Se bem que não trabalhe para ti e não tencione vir a fazê-lo, há que considerar que a moda que começa nos hipermercados pode pegar-se a outras empresas.
Crias muito emprego e dizem que devemos estar-te agradecidos por isso. Mas não é certo que, quando nasceste, fizeste com que muitas "piquenas" (e médias) lojas fechassem? Quanto emprego destruíste?
Nasceste na periferia das cidades e o meu eu-automobilista, com algum incómodo mas não muito, desloca-se até lá. Mas o meu eu-idoso que já não guia e o meu eu-potencialmente-pelintra que não tem carro passamos a ter de comprar numa loja de bairro que vende mais caro. A quanto CO2, congestionamento e consumo superfluo de combustíveis deste origem?
Além disso, passaste a importar muitos produtos alimentares baratos. O meu eu-consumidor agradece, mas o meu eu-que-não-é-mas-podia-ser-agricultor passou a não conseguir vender a preço compensador e ... a balança alimentar ressente-se.
Encontras-me assim dividido, caro hipermercado: os meus eus consumidor, potencial accionista e automobilista contra os meus eus trabalhador, idoso e agricultor. Não apeles ao meu interesse porque eu não sei o que é o meu interesse e já não sei também se te agradeça se te deteste.
Se calhar se tivesse pensado mais quando comecei a escrever o postalinho tinha-te chamado “querido” e não “caro” para evitar confusões. Mas agora que acabei, depois de ter descoberto a minha divisão, acho mesmo que afinal podes estar a sair-nos muito caro a todos e já não emendo o que escrevi.
sábado, 19 de dezembro de 2009
A política da empresa
“Os comunistas confrontaram o governo com uma queixa dos trabalhadores da CP sobre um negócio de 50 toneladas de ferro.” A sucata dos Godinhos desta vida continua a ser revelada. Vale a pena ler a notícia do i. Permite-me destacar uma questão que muitos teimam em ocultar: como é importante existirem contra-poderes fortes no espaço laboral, mecanismos não-mercantis de "voz" que mobilizam o conhecimento das especificas circunstâncias de um tempo e de um lugar, para usar e subverter uma fórmula de F. Hayek, detido pelos trabalhadores e suas organizações. Outros tantos freios potenciais à corrupção. Mecanismos que podem e devem articular-se com os mercados ou quase-mercados. A informação e o conhecimento podem e devem ter várias fontes. É por estas e por muitas outras que a democracia não pode ficar à porta dos locais de trabalho, sejam públicos, privados ou qualquer coisa no meio.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
Inovar para quê?
«Gostaria que alguém me desse a mínima evidência que a inovação financeira conduziu ao crescimento económico - a mínima evidência». É Paul Volcker, presidente da Reserva Federal americana entre 1979 e 1987, quem o escreve num artigo do Times. Uma ideia a reter, em particular por aqueles que usam e abusam do conceito de inovação.
Economia política
"Sem o dizerem, ou mesmo sem o pensarem, muitos julgam ainda que o discurso económico é o que menos divide, ou o que pode gerar acordo, porque é meramente técnico e neutro. Também nisto se enganam."
João Cardoso Rosas, i.
João Cardoso Rosas, i.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
A crise como oportunidade...
"O peso do endividamento, sobrecarregado pelo desconserto económico, serve uma vez mais de pretexto ao desmantelamento da protecção social e dos serviços públicos. Há um ano pressagiou-se o coma dos liberais, mas eles encontram no repetido anúncio de que «as caixas estão vazias» o instrumento da sua ressurreição política." Serge Halimi, director do Le Monde diplomatique.
Notas breves. A resolução política de uma brutal crise nunca é evidente; precisamos de opor a este projecto de regressão, uma estratégia de reforma assente no incremento da progressividade do sistema fiscal, parte de um processo mais vasto de criação de um multiplicador da igualdade, no controlo dos capitais e na reconfiguração do sistema financeiro, no uso de instrumentos de protecção comercial e de política industrial ou na redemocratização das instâncias de condução da política económica; há tanto para fazer...
Euro: entre o destino de Sísifo e a saída isolacionista
O Primeiro-Ministro diz em Bruxelas que a política orçamental será expansionista enquanto a retoma não estiver assegurada. Porém, o Ministro das Finanças avisa que o próximo orçamento já reduzirá o défice orçamental (Público, 12 Dez.). Estas declarações do Ministro entendem-se como tentativa de apaziguamento das agências de notação financeira que têm Portugal sob mira, sobretudo no caso de a Grécia entrar em incumprimento.
Em Portugal, a receita já foi passada por Eduardo Catroga:
“Congelar a despesa durante dois ou três anos ao nível em que estava na previsão inicial de 2009”, em particular os salários dos funcionários públicos.
Ainda assim, não tenho a certeza de que a Moody’s e a Standard & Poor’s achem que basta. Estas agências, que foram agentes co-responsáveis pela crise, continuam a ser um pilar do sistema financeiro global e, com a cumplicidade de Bruxelas, continuam a definir as políticas públicas europeias (ver aqui).
E se a economia crescer menos que o défice? Ou nem sequer vier a crescer? Um denominador que aumenta menos que o numerador fará aumentar o rácio (Défice/PIB), o que significa que a política falhou o seu objectivo. Ao mesmo tempo, com o novo défice, a Dívida Pública terá de aumentar. Nesse caso, veremos a procura interna estagnar por via do congelamento dos salários, subida do desemprego, racionamento do crédito ao investimento. Quanto à procura externa, se nem os EUA vão sair da crise em 2010 e correm riscos de mergulhar em novo ciclo descendente(ver aqui), muito menos crescerá a Espanha, o Reino Unido e os outros países da UE que são nossos clientes tradicionais. Assim, não é credível que possamos fazer crescer a nossa economia nos próximos anos apenas à custa das exportações, ainda por cima com um euro sobrevalorizado. Muito menos se todos os países da Zona Euro seguirem as recomendações destas agências. Mergulharíamos na espiral deflacionista que mal conseguimos travar em 2009.
Em suma, os economistas neo-liberais propõem uma espiral descendente para 2010: menos despesa – menos Produto – menos receita fiscal e mais desemprego (mais despesa social) – aprofundamento do défice; para o orçamento de 2011, dada a previsível ineficácia destas políticas de austeridade, apresentarão propostas de maior agressividade tomando como modelo os cortes na despesa pública da Irlanda, selvagens e sucessivos.
Em vez da redução de despesa pública que sacrifica os estratos mais baixos da classe média, talvez se possa subir os impostos ao ricos, tributar mais os rendimentos do capital, as operações financeiras especulativas, os bónus das administrações, reforçar a eficácia do combate à evasão fiscal, etc. Em suma, distribuir de uma forma mais equitativa os sacrifícios que nos impõem. Mas será que chega? E, ainda assim, não continua a ser uma política recessiva, embora mais justa? E podemos continuar eternamente nesta tarefa de Sísifo?
Por outro lado, importa perceber que se as esquerdas se limitarem a fazer propostas neste sentido (distribuição mais justa dos sacrifícios) acabam por aceitar o terreno escolhido pela direita para o combate político. A estratégia das esquerdas tem de ser outra. Têm de demarcar o terreno do seu discurso e das suas propostas começando por rejeitar com clareza a doutrina pré-Keynesiana dominante em Bruxelas e Frankfurt. Sem deixar de reivindicar mais justiça nos sacrifícios, devem avançar com propostas estruturantes: a) uma iniciativa diplomática e de mobilização da opinião pública que convoque o maior número possível de países da Zona Euro em torno da rejeição de políticas recessivas em período de crise; b) criação de uma agência de notação das finanças públicas dependente da ONU; c) a reivindicação da criação imediata de um fundo europeu emissor de obrigações em euros para, sem imposição de condições contraproducentes, ajudar no curto prazo a Grécia e outros países com dificuldades em financiar-se.
Há certamente quem pense que esta solução não tem apoio político para vingar. Antes de mais, deve lutar-se por uma ideia em que se acredita mesmo que de momento não tenha apoio maioritário (a taxa Tobin é um exemplo). Pela minha parte, tenho dúvidas se, numa situação de colapso da Grécia acompanhado de repercussões em cadeia nos países da Zona Euro financeiramente mais frágeis, a Alemanha, Holanda e outros países (pressionados por uma coligação fracturante) não acabaria por abandonar o seu actual isolacionismo. A própria Alemanha também está dividida quanto ao que quer para o futuro da UE.
Os ortodoxos das finanças públicas deveriam pelo menos ter a lucidez de Martin Feldstein: “em dado momento, a incapacidade de lidar com os problemas económicos domésticos [nos países menos desenvolvidos da Zona Euro] no quadro da UEM poderá levar um ou mais países a concluir que os custos [de permanência no euro] são simplesmente insuportáveis.”
Em minha opinião, uma saída intempestiva teria consequências imprevisíveis, não apenas para o(s) país(es) em causa, mas também para o próprio euro. Uma saída organizada, negociada no quadro de uma revisão dos tratados, acompanhada de restrições adequadas quanto aos movimentos de capitais especulativos, seria uma solução desejável. Mas o futuro está mais do que nunca volátil.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
Ideias socialistas
"Contraste-se este nosso regime comercial com o dos Países Baixos; o mercado imobiliário holandês é dos que mais exemplarmente executa a retenção pública de mais-valias urbanísticas. Mesmo que se encontrem contíguos aos perímetros urbanos, os solos agrícolas holandeses são transaccionados a preço estritamente agrícola, posto que qualquer comprador privado sabe de antemão que futuros acréscimos de valor do solo, produzidos por via de loteamentos, reverterão para o erário público. Além de reter as mais-valias urbanísticas, o Estado Holandês oferece também para arrendamento público mais de 30% do parque habitacional do país — fórmula que além de facilitar a mobilidade laboral e assegurar residência a preço justo para toda a população, dificulta sobremaneira o crescimento de bolhas imobiliárias."
Pedro Bingre, Opinião Socialista.
Pedro Bingre, Opinião Socialista.
Códigos selvagens
"A manchete do Público de hoje fala como um livro aberto sobre a selvajaria social que avança a passos largos: 6o horas semanais para os trabalhadores dos hipermercados e outras grandes superfícies, num acréscimo horário sem pagamento como horas suplementares, o que se estes trabalhadores tiverem só um dia de folga dá 10 horas por dia e, se tiverem dois, dará 12 horas por dia, em funções que só um consumidor muito egoísta não perceberá que são extraordináriamente desgastantes. E também fala como um livro aberto que um dos sectores económicos mais espampanantemente rendosos não se lembre de contratar mais empregados em vez de descarregarrem traços de moderna escravatura sobre os seus actuais trabalhadores. E, depois, como já aqui escrevi a respeito de um debate na Quadratura do Círculo, virão uns sujeitos que apoiam tudo isto e depois dizem umas frases pesarosas sobre as alterações na vida familiar que até se repercutem negativamente no acompanhamento dos filhos." Vítor Dias no Tempo das Cerejas.
Seis breves sublinhados. Primeiro: a esquerda social-liberal, que desistiu de ver o que realmente se passa para lá da placa onde está escrito “proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço”, chama adaptabilidade à selvajaria laboral e promove-a através da reafectação dos direitos e das obrigações entre patrões e trabalhadores. Segundo: o prolongamento de horários deveria ser desencorajado, sobretudo em épocas de crise; neste contexto, quando o desemprego aumenta, as empresas poderiam, por exemplo, ser fiscalmente incentivadas a reduzir os horários de trabalho, sem perda de salários, evitando-se despedimentos ou favorecendo a contratação de mais trabalhadores. Terceiro: as famílias são ameaçadas por uma sociedade de mercado sem freios fiscais ou laborais adequados que, mesmo em crise, odeia tempos mortos, ou tem formas desumanas de os gerar (entre o prolongamento de horários e o desemprego). Quarto: nos balanços das empresas e no cálculo da riqueza gerada não é imediatamente visível a transferência de custos sociais para os trabalhadores, sob a forma de sofrimento no trabalho ou da perda de oportunidades para ter projectos estáveis fora do trabalho. Quinto: a “sociedade de consumo” (por que não considerar, entre outras, a “sociedade de trabalho”?), monta uma armadilha ao identificar-nos maciça e exclusivamente como consumidores. Sexto: só como cidadãos, e com o cultivo e protecção dos espaços onde esta identidade é afirmada, podemos mudar as regras do jogo que acentuam a discricionariedade empresarial (o local de trabalho tem de ser um desses espaços porque o que se passa na empresa diz respeito a todos).
Seis breves sublinhados. Primeiro: a esquerda social-liberal, que desistiu de ver o que realmente se passa para lá da placa onde está escrito “proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço”, chama adaptabilidade à selvajaria laboral e promove-a através da reafectação dos direitos e das obrigações entre patrões e trabalhadores. Segundo: o prolongamento de horários deveria ser desencorajado, sobretudo em épocas de crise; neste contexto, quando o desemprego aumenta, as empresas poderiam, por exemplo, ser fiscalmente incentivadas a reduzir os horários de trabalho, sem perda de salários, evitando-se despedimentos ou favorecendo a contratação de mais trabalhadores. Terceiro: as famílias são ameaçadas por uma sociedade de mercado sem freios fiscais ou laborais adequados que, mesmo em crise, odeia tempos mortos, ou tem formas desumanas de os gerar (entre o prolongamento de horários e o desemprego). Quarto: nos balanços das empresas e no cálculo da riqueza gerada não é imediatamente visível a transferência de custos sociais para os trabalhadores, sob a forma de sofrimento no trabalho ou da perda de oportunidades para ter projectos estáveis fora do trabalho. Quinto: a “sociedade de consumo” (por que não considerar, entre outras, a “sociedade de trabalho”?), monta uma armadilha ao identificar-nos maciça e exclusivamente como consumidores. Sexto: só como cidadãos, e com o cultivo e protecção dos espaços onde esta identidade é afirmada, podemos mudar as regras do jogo que acentuam a discricionariedade empresarial (o local de trabalho tem de ser um desses espaços porque o que se passa na empresa diz respeito a todos).
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
Recuperar o tempo perdido
"Mas o acordo de 2006 implicou uma efectiva recuperação do salário mínimo. Em 2009, já representava 79 por cento do poder de compra do de 1974 e o anunciado para 2010 representará 85 por cento. Uma trajectória que está de novo a ser posta em causa." Não percam o excelente trabalho do jornalista económico João Ramos de Almeida. Não se pode ceder à chantagem dos reaccionários "representantes" dos patrões (este adjectivo faz mesmo sentido), que nem sequer respeitam os acordos que assinaram. Sobre o papel das regras laborais exigentes na modenização económica, leiam isto. Sobre a importância do salário mínimo, leiam isto.
Poderes e razões
"Os governos parecem estar sob pressão das agências de rating, que têm agora um poder irónico, depois do falhanço que precedeu a crise financeira." José Reis do Ladrões em declarações ao jornal i. Experimentemos ir pelo caminho de cortes na despesa que estas agências, que os governos insistem em não desmantelar, recomendam: "A soma das partes (contracção da despesa pública e do rendimento disponível no conjunto da UE) é incompatível com o resultado agregado pretendido (sustentação da despesa, do emprego e da procura). Não é preciso ser adivinho para antecipar a consequência" (José Maria). Acrescentaria que um orçamento à altura das circunstância tem mesmo de enfrentar os grupos sociais que beneficiam da estrutura neoliberal de constrangimentos de que estas agências fazem parte.
De resto, toda esta situação nas periferias é a demonstração da utopia económica que presidiu à criação do euro: não há moeda europeia sem fiscalidade, despesa pública e divida pública europeias. Sobre o fracasso deste modelo de integração, vale a pena ler o euromorandum 2009/2010: "Europa em Crise". Desde há vários anos que centenas de economistas, entre os quais vários de nós se incluem, alertam para a sua insustentabilidade económica, social e ecológica e apresentam alternativas de política económica à escala europeia. Que fazer? Continuar a trabalhar e a insistir.
Jörg Huffschmid, Professor na Universidade de Bremen e um dos grandes dinamizadores desta e de outras redes de economistas europeus dedicadas à investigação e apresentação de propostas, faleceu recentemente: "Há homens que lutam um dia, e são bons; Há outros que lutam um ano, e são melhores; Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons; Porém há os que lutam toda a vida; Estes são os imprescindíveis" (Bertolt Brecht).
De resto, toda esta situação nas periferias é a demonstração da utopia económica que presidiu à criação do euro: não há moeda europeia sem fiscalidade, despesa pública e divida pública europeias. Sobre o fracasso deste modelo de integração, vale a pena ler o euromorandum 2009/2010: "Europa em Crise". Desde há vários anos que centenas de economistas, entre os quais vários de nós se incluem, alertam para a sua insustentabilidade económica, social e ecológica e apresentam alternativas de política económica à escala europeia. Que fazer? Continuar a trabalhar e a insistir.
Jörg Huffschmid, Professor na Universidade de Bremen e um dos grandes dinamizadores desta e de outras redes de economistas europeus dedicadas à investigação e apresentação de propostas, faleceu recentemente: "Há homens que lutam um dia, e são bons; Há outros que lutam um ano, e são melhores; Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons; Porém há os que lutam toda a vida; Estes são os imprescindíveis" (Bertolt Brecht).
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Capitalismo ou morte?
Tenho ouvido comentadores “liberais” queixarem-se do “pensamento único” acerca das questões ambientais. Para uns a responsabilidade humana do aquecimento global é um embuste. Eles têm a certeza. Outros têm dúvidas e admitem mesmo que é admissível pensar que, pelo sim pelo não, deveríamos abster-nos de causar um mal que pode ser irreversível e absoluto.
No entanto, uns e outros não hesitam em atribuir as preocupações ambientais ao que designam por sentimentos ou preconceitos anti-capitalistas. Para eles o resultado da acção colectiva pela sustentabilidade não poderia deixar de ser mais governo e, pior que tudo, governo global. Para eles “mais governo” seria um mal que se sobrepõe a todos os outros, mesmo ao risco de outros males absolutos e irreversíveis. Eis um caso de fundamentalismo.
Não quero dar conselhos mas acho que há outras defesas mais inteligentes do capitalismo. Por exemplo: um capitalismo compatível com a sustentabilidade ambiental, em vez deste. Não sei se existe, nem sei se chamaríamos capitalismo a uma economia social e ambientalmente sustentável. O que me parece é que a defesa do não-governo a todo custo, dado o que hoje sabemos ou pensamos saber, não é senão uma forma de insensatez.
Com toda a simpatia
Através de Thomas Frank, um cronista no "Wall Street Journal" das disfunções do capitalismo norte-americano, fiquei a saber que a percentagem de crianças norte-americanas que vive em famílias com "insegurança alimentar" atingiu 21% (consulte-se http://tcfrank.com).
Isto é consistente com o tratamento que os EUA, acompanhados pelo Reino Unido ou por Portugal, dão a uma larga percentagem das suas crianças: a pobreza infantil que aí se regista está acima da média, e a mobilidade social abaixo da média dos países desenvolvidos. São a UNICEF e a OCDE quem o diz. Também sabemos que quanto mais desiguais são os países, menor é o contributo do crescimento económico para diminuir a pobreza. Pobreza e desigualdade económica não são separáveis, como muitos teimam em pensar.
É estranho que a religião de mercado, ainda dominante, nos veja logo como adultos autónomos, prontos para entrar em contratos que são voluntários por sua alta definição. É estranho que seja nestes países que mais se tenda a responsabilizar os pobres pela sua situação. É estranho que se multipliquem as palas sociais que nos impedem de ver o que deve ser visto. Há tanta coisa estranha no capitalismo desigual, não há?
Enfim, a decência de uma sociedade mede-se primeiramente pela forma como cuida das suas crianças, como assegura a igualização das condições para o florescimento das capacidades que permitem alcançar funcionamentos genuinamente humanos, na útil formulação da filósofa Martha Nussbaum. De outra forma, como garantir que o discurso sobre o mérito tenha alguma adesão à realidade?
A decência também se mede pela forma como se reconhecem as - e se cuidam das - nossas múltiplas dependências e vulnerabilidades ao longo da vida. Tudo isto tem a ver com a ética do cuidado e das virtudes cooperativas. Como João Cardoso Rosas já aqui argumentou, a ética deve estar inscrita nas instituições. É também por isso que um Estado Social universal e com serviços gratuitos para o utente é precioso.
É reveladora a forma como alguns economistas - Eduardo Catroga, por exemplo - defendem o reforço da selectividade nas prestações sociais e no acesso com cada vez mais barreiras aos serviços públicos. Isto quando os estudos comparativos indicam que é precisamente a sua universalidade que reforça a capacidade redistributiva, a eficácia e a legitimidade política do Estado Social, esteio da confiança.
A universalidade diminui os custos administrativos dos programas ou a probabilidade de guetização dos mais pobres e pode ajudar a activar a simpatia, de que fala Adam Smith: a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e de imaginarmos o contexto dos seus sofrimentos. Sem miopias ou relativismos morais...
Crónica i
Isto é consistente com o tratamento que os EUA, acompanhados pelo Reino Unido ou por Portugal, dão a uma larga percentagem das suas crianças: a pobreza infantil que aí se regista está acima da média, e a mobilidade social abaixo da média dos países desenvolvidos. São a UNICEF e a OCDE quem o diz. Também sabemos que quanto mais desiguais são os países, menor é o contributo do crescimento económico para diminuir a pobreza. Pobreza e desigualdade económica não são separáveis, como muitos teimam em pensar.
É estranho que a religião de mercado, ainda dominante, nos veja logo como adultos autónomos, prontos para entrar em contratos que são voluntários por sua alta definição. É estranho que seja nestes países que mais se tenda a responsabilizar os pobres pela sua situação. É estranho que se multipliquem as palas sociais que nos impedem de ver o que deve ser visto. Há tanta coisa estranha no capitalismo desigual, não há?
Enfim, a decência de uma sociedade mede-se primeiramente pela forma como cuida das suas crianças, como assegura a igualização das condições para o florescimento das capacidades que permitem alcançar funcionamentos genuinamente humanos, na útil formulação da filósofa Martha Nussbaum. De outra forma, como garantir que o discurso sobre o mérito tenha alguma adesão à realidade?
A decência também se mede pela forma como se reconhecem as - e se cuidam das - nossas múltiplas dependências e vulnerabilidades ao longo da vida. Tudo isto tem a ver com a ética do cuidado e das virtudes cooperativas. Como João Cardoso Rosas já aqui argumentou, a ética deve estar inscrita nas instituições. É também por isso que um Estado Social universal e com serviços gratuitos para o utente é precioso.
É reveladora a forma como alguns economistas - Eduardo Catroga, por exemplo - defendem o reforço da selectividade nas prestações sociais e no acesso com cada vez mais barreiras aos serviços públicos. Isto quando os estudos comparativos indicam que é precisamente a sua universalidade que reforça a capacidade redistributiva, a eficácia e a legitimidade política do Estado Social, esteio da confiança.
A universalidade diminui os custos administrativos dos programas ou a probabilidade de guetização dos mais pobres e pode ajudar a activar a simpatia, de que fala Adam Smith: a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e de imaginarmos o contexto dos seus sofrimentos. Sem miopias ou relativismos morais...
Crónica i
domingo, 13 de dezembro de 2009
Um número imperdível
O número de Dezembro do Le Monde diplomatique – edição portuguesa está particularmente interessante. Comecemos pelo artigo mensal da Sandra Monteiro - A disputa do Estado: “É certo que o escrutínio do Estado, mesmo que não se acerte sempre na melhor forma de o fazer, também pode ser uma manifestação de que os cidadãos sentem que fazem parte desse edifício e querem participar numa sua construção mais conforme a valores e projectos colectivos de emancipação social. Mas o escrutínio do mundo empresarial, e sobretudo dos grandes grupos económicos, tem de ganhar peso no espaço público, para ter alguma relação com o impacto que, na configuração actual, a sua actuação tem nas nossas vidas.”
Continuemos com o dossiê português dedicado à fiscalidade e à corrupção. Eduardo Paz Ferreira, Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, analisa os fundamentos de um sistema fiscal progressivo no seu artigo “Justiça fiscal e boa sociedade”. Os deputados António Filipe e José Gusmão discutem, respectivamente, a necessidade de criminalizar o enriquecimento ilícito e os “espíritos, letras e práticas” da justiça fiscal. Para nos preparamos intelectualmente para o que aí vem. Finalizemos com o escrutínio do neoliberalismo como engenharia política de reconfiguração do Estado à imagem de um sector empresarial privado totalmente idealizado com o dossiê “Do Estado-Providência ao Estado Gestor.”
Continuemos com o dossiê português dedicado à fiscalidade e à corrupção. Eduardo Paz Ferreira, Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, analisa os fundamentos de um sistema fiscal progressivo no seu artigo “Justiça fiscal e boa sociedade”. Os deputados António Filipe e José Gusmão discutem, respectivamente, a necessidade de criminalizar o enriquecimento ilícito e os “espíritos, letras e práticas” da justiça fiscal. Para nos preparamos intelectualmente para o que aí vem. Finalizemos com o escrutínio do neoliberalismo como engenharia política de reconfiguração do Estado à imagem de um sector empresarial privado totalmente idealizado com o dossiê “Do Estado-Providência ao Estado Gestor.”
Tempo de espectros
A minha alma está parva e nem sei o que dizer: através do indispensável economia.info, fiquei a saber que a Comissão Europeia recomendou ao FMI a criação de uma taxa Tobin. É claro que isto pode servir apenas para nos distrair do que está em preparação nas desgraçadas periferias europeias, que podem e devem, como defende João Pinto e Castro, aliar-se: "A banqueiros salvais, a pobres roubais" (slogan de uma manifestação sindical em Espanha)? Entretanto, e porque os tempos são contraditórios, o reconhecimento público dos rendimentos excessivos dos irresponsáveis operadores financeiros não pára de crescer e a sensata vontade de os taxar também não: Chris Dillow argumenta, recorrendo a ampla evidência empírica, que a perversa cultura dos milionários bónus que lhes são pagos, parte de uma contraproducente e generalizada corrida aos incentivos pecuniários para motivar a performance, é o resultado do seu enorme poder e não da sua competência. Recupero uma crónica que escrevi no jornal i sobre estes assuntos:
Anda de novo um espectro pelo mundo do capital financeiro - o espectro da taxa Tobin, ou da taxação das transacções financeiras. Este espectro regressa a cada crise financeira. E tem ressurgido muitas vezes desde que em 1978 o economista James Tobin, que haveria de ganhar o prémio Nobel, propôs que se aplicasse um imposto modesto sobre as transacções nos mercados internacionais de divisas com o objectivo de reduzir a instabilidade cambial. Afinal de contas, o número de crises financeiras - cambiais e bancárias - mais do que triplicou desde os anos setenta, quando comparado com o período dos "trinta gloriosos anos" do pós-guerra marcado pelo maior peso da banca publica ou pela existência de controlos generalizados à circulação de capitais.
A história parece então corroborar as análises marxistas e keynesianas, convergentes neste campo: a instabilidade e a crise são indissociáveis das épocas do capitalismo em que mercados financeiros liberalizados e sobredimensionados comandam o processo económico. A liberdade do sector financeiro, com a proliferação de instrumentos financeiros cada vez mais sofisticados, serviu apenas para aumentar a sua opacidade, as rendas que este sector extrai aos outros sectores económicos e as remunerações dos seus operadores tornados míopes por uma desadequada estrutura de incentivos. No campo económico, à liberdade de uns corresponde sempre a vulnerabilidade de outros: os benefícios da finança são privados, mas os custos dos seus desmandos, dada a natureza deste sector, são sempre socializados. Os biliões que evitaram o colapso financeiro não podem ser esquecidos.
No entanto, até há pouco tempo, o espectro da taxa Tobin e de outras medidas de combate à instabilidade financeira era eficazmente esconjurado por uma santa aliança de reguladores, economistas e financeiros. A hipótese dos mercados financeiros eficientes era o seu cimento intelectual. A realidade encarregou-se de a desfazer e de recuperar a hipótese alternativa da instabilidade financeira indissociável da finança liberalizada. A notável entrevista de Adair Turner, presidente da autoridade de regulação financeira da Grã-Bretanha, à revista Prospect reflecte este estado de coisas: o seu diagnóstico dos males do sector financeiro e a sua defesa de uma taxa Tobin alargada parecem mostrar que desta vez será um pouco mais difícil esconjurar o espectro. Trata-se "somente" de uma questão de poder e de luta política. Porque do ponto de vista da validade, a grande narrativa da liberalização financeira está esgotada.
Anda de novo um espectro pelo mundo do capital financeiro - o espectro da taxa Tobin, ou da taxação das transacções financeiras. Este espectro regressa a cada crise financeira. E tem ressurgido muitas vezes desde que em 1978 o economista James Tobin, que haveria de ganhar o prémio Nobel, propôs que se aplicasse um imposto modesto sobre as transacções nos mercados internacionais de divisas com o objectivo de reduzir a instabilidade cambial. Afinal de contas, o número de crises financeiras - cambiais e bancárias - mais do que triplicou desde os anos setenta, quando comparado com o período dos "trinta gloriosos anos" do pós-guerra marcado pelo maior peso da banca publica ou pela existência de controlos generalizados à circulação de capitais.
A história parece então corroborar as análises marxistas e keynesianas, convergentes neste campo: a instabilidade e a crise são indissociáveis das épocas do capitalismo em que mercados financeiros liberalizados e sobredimensionados comandam o processo económico. A liberdade do sector financeiro, com a proliferação de instrumentos financeiros cada vez mais sofisticados, serviu apenas para aumentar a sua opacidade, as rendas que este sector extrai aos outros sectores económicos e as remunerações dos seus operadores tornados míopes por uma desadequada estrutura de incentivos. No campo económico, à liberdade de uns corresponde sempre a vulnerabilidade de outros: os benefícios da finança são privados, mas os custos dos seus desmandos, dada a natureza deste sector, são sempre socializados. Os biliões que evitaram o colapso financeiro não podem ser esquecidos.
No entanto, até há pouco tempo, o espectro da taxa Tobin e de outras medidas de combate à instabilidade financeira era eficazmente esconjurado por uma santa aliança de reguladores, economistas e financeiros. A hipótese dos mercados financeiros eficientes era o seu cimento intelectual. A realidade encarregou-se de a desfazer e de recuperar a hipótese alternativa da instabilidade financeira indissociável da finança liberalizada. A notável entrevista de Adair Turner, presidente da autoridade de regulação financeira da Grã-Bretanha, à revista Prospect reflecte este estado de coisas: o seu diagnóstico dos males do sector financeiro e a sua defesa de uma taxa Tobin alargada parecem mostrar que desta vez será um pouco mais difícil esconjurar o espectro. Trata-se "somente" de uma questão de poder e de luta política. Porque do ponto de vista da validade, a grande narrativa da liberalização financeira está esgotada.
sábado, 12 de dezembro de 2009
O todo e a soma das partes
Em conjunto (no G20, na UE, no FMI) proclamam: os estímulos à economia só devem retirados quando a recuperação estiver garantida, isto é, os défices públicos são necessários por enquanto (pelo menos).
Mas, a cada estado, em separado, exigem (o FMI, a UE): os défices públicos devem começar já a ser reduzidos. E cada um, isolado - veja-se a Irlanda - começa já a reduzir os défices com cortes salariais.
A soma das partes (contracção da despesa pública e do rendimento disponível no conjunto da UE) é incompatível com o resultado agregado pretendido (sustentação da despesa, do emprego e da procura). Não é preciso ser adivinho para antecipar a consequência.
Não é sustentável uma Europa economicamente integrada sem governo e sem instrumentos de governo económico.
Mas, a cada estado, em separado, exigem (o FMI, a UE): os défices públicos devem começar já a ser reduzidos. E cada um, isolado - veja-se a Irlanda - começa já a reduzir os défices com cortes salariais.
A soma das partes (contracção da despesa pública e do rendimento disponível no conjunto da UE) é incompatível com o resultado agregado pretendido (sustentação da despesa, do emprego e da procura). Não é preciso ser adivinho para antecipar a consequência.
Não é sustentável uma Europa economicamente integrada sem governo e sem instrumentos de governo económico.
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
Crise e financeirização do capitalismo: arquivo do blogue
“Os CDS não são alternativa. Precisamos de substituir as agências privadas de notação por agências públicas internacionais, sem fins lucrativos, cujos modelos de avaliação sejam transparentes.”
“No momento em que os Estados se endividam na tentativa de resolver os problemas criados, em parte, por estas agências [de notação], estas cortam, ou ameaçam cortar, a sua notação, dificultando a resposta à crise (…) Se é certo que o crescente endividamento poderia fazer recear uma menor capacidade de pagamento, só através dos actuais planos maciços de investimento público podem os Estados garantir a prosperidade futura necessária ao pagamento futuro da dívida.”
Nuno Teles sobre a perversa configuração da finança contemporânea. Recomendo o capítulo que o Nuno escreveu para o livro sobre políticas públicas em tempos de crise – O Estado ausente? Da liberalização dos mercados financeiros à crise do capitalismo sob hegemonia da finança.
Rectificação ou redistribuição?
"Em 2009 e 2010, o défice pode variar livremente, pelo que nem a cegueira do pacto de estabilidade pode impedir uma política económica orientada para a criação de emprego. Esta seria uma excelente oportunidade para o Governo 'rectificar' a sua política, aproveitando a margem de manobra para uma política ousada de pequeno e médio investimento público em reabilitação, equipamentos sociais, eficiência energética e energias alternativas ou acessibilidades, em particular no interior. E teria sido um excelente pretexto para uma reforma fiscal corajosa, que 'redistribuísse' a carga fiscal no nosso país, pondo aqueles que continuam a fugir às suas obrigações a contribuir, como devem, para financiar o arranque da economia e assegurar que não serão os do costume a pagar a consolidação orçamental que se seguirá." Vale a pena ler o artigo do José Gusmão.
O Zé esteve anteontem na SIC-Notícias a debater com outros deputados: um orçamento não é um negócio da semana. Vejam aqui. É de assinalar o facto de ter sido Vítor Baptista, que bem podia estar na ala direita do CDS, a defender a posição do PS e do Governo. Chamo ainda a atenção para a breve declaração de Baptista sobre a necessidade de mudarmos de "modelo ideológico" e de repensarmos as funções do Estado. Claro que sim. Mas acho que estamos a falar de coisas muito diferentes. A minha próxima crónica no i é sobre os brilhantes resultados para as crianças do discurso e da prática dos Baptistas desta vida, que aprofundam um modelo de capitalismo desigual.
O Zé esteve anteontem na SIC-Notícias a debater com outros deputados: um orçamento não é um negócio da semana. Vejam aqui. É de assinalar o facto de ter sido Vítor Baptista, que bem podia estar na ala direita do CDS, a defender a posição do PS e do Governo. Chamo ainda a atenção para a breve declaração de Baptista sobre a necessidade de mudarmos de "modelo ideológico" e de repensarmos as funções do Estado. Claro que sim. Mas acho que estamos a falar de coisas muito diferentes. A minha próxima crónica no i é sobre os brilhantes resultados para as crianças do discurso e da prática dos Baptistas desta vida, que aprofundam um modelo de capitalismo desigual.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
Uma inadmissivel intervenção do Estado
Noticia o Público (10 Dezembro 2009): o governo britanico impôs uma taxa de 50% sobre os bonus dos executivos bancários superiores a 25 mil libras. Os afectados são 20 mil. Um deles lamenta-se: “Isto é um regime de vitimização extrema. Muitas pessoas trabalham fora de horas, em prejuizo das suas famílias, e agora são discriminadas. Isto dá-me vontade de abandonar o emprego”.
É mesmo indecente. Anda um homem estenuado a fazer directas no escritório, a arriscar-se a chegar a casa para cair no sofá e ouvir o puto que lá vive dizer “Oh mãezinha o senhor que cá ficou ontem era mais brincalhão e engraçado do que este” , e depois isto?
O problema tem de se resolver. Proponho que se corte o tempo de trabalho deste senhor a metade e com a metade do tempo (e também do salário e dos prémios) que sobra se dê emprego a mais um. Ambos ficariam a ganhar: o que passa a ter vida familiar e o que passa a ter emprego.
Um seminário a não perder
No dia 16 de Dezembro (quarta-feira), a partir das 17h, o Nuno Teles do Ladrões irá apresentar, no CES, os primeiros resultados da sua investigação de doutoramento: Trabalhadores e finança – A economia política da expropriação financeira. A entrada é livre. Catarina Frade e Nuno Serra comentam. O Nuno está a desenvolver o seu trabalho no quadro deste excelente grupo de investigação em Londres. A acompanhar. Para aguçar o apetite, leiam o resumo da comunicação aqui.
Recorro aos nossos arquivos de Maio de 2007: "Na sede da rentabilidade rápida, os bancos de investimento negoceiam com instrumentos cada vez mais complexos, exóticos e sobretudo arriscados. E já sabemos: a moeda é o "sangue" da economia, quando o sistema circulatório (o sector financeiro) entra em colapso, todo o corpo sofre".
Isto resulta, obviamente, de uma boa e heterodoxa educação em economia: "No entanto, a recuperação está longe de ser uma realidade. O ajustamento à euforia financeira dos anos noventa está por fazer e o enorme fardo da dívida que pesa sob a economia norte-americana não permite antever um futuro sorridente. A instabilidade financeira, como já analisámos, está inscrita neste novo período do capitalismo. O futuro parece sombrio" (Nuno Teles, Racines de la financiarisation de la economie, Tese de Mestrado em Economia Internacional e Regulação, Universidade de Paris XIII, 2004, minha tradução).
O nosso homem em Copenhaga
Ricardo Coelho é um dos economistas que eu tenho seguido na área da economia ecológica. Aprender com quem investiga o assunto em tempos de “cimeira quente numa cidade fria.” Leiam a sua crítica ao mercado de carbono ou a sua radiografia dos movimentos sociais que estão em Copenhaga. Agora descobri que Ricardo Coelho é correspondente na cimeira e que está a escrever um diário sobre a dita (dia 1 e dia 2). É seguir dia a dia. E, já agora, ler algumas coisas deste extenso dossiê. Eu já aqui divulguei investigação sobre o chamado New Deal verde, ideia que me parece prometedora e que já está a servir de esteio a algumas discussões e políticas públicas na área.
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
CDS's há muitos
Na última hora o preço dos CDS (Credit Default Swaps) - um seguro transaccionável, cujo preço serve de medida para o risco de não pagamento - do Reino Unido ultrapassou o de Portugal. Estes preços dos mercados financeiros valem o que valem, ou seja, muito pouco, já que estão sujeitos às avaliações das fantásticas agências de notação e a uma formidável especulação financeira. Foi este tipo de contrato que, provavelmente, fez ruir a AIG (maior seguradora americana), depois da falência do Lehman Brothers.
No entanto, já que os "economistas de água cristalinas" nacionais fetichizam estes preços enquanto indicador de sustentabilidade, gostava de saber se concordam com o Financial Times quando este afirma que, além do futebol, também somos aparentemente melhores no risco de falência nacional. A resposta pode sempre ser a de Nogueira Leite: "Os mercados andam distraídos". Afinal, não funcionam assim tão bem...
No entanto, já que os "economistas de água cristalinas" nacionais fetichizam estes preços enquanto indicador de sustentabilidade, gostava de saber se concordam com o Financial Times quando este afirma que, além do futebol, também somos aparentemente melhores no risco de falência nacional. A resposta pode sempre ser a de Nogueira Leite: "Os mercados andam distraídos". Afinal, não funcionam assim tão bem...
Escolher a extrema-direita parlamentar
Desde que o direitista Luís Amado fechou o debate do programa do governo, onde concentrou as críticas no BE e no PCP, que a coisa era mais ou menos clara: o PS vai privilegiar entendimentos com a extrema-direita parlamentar no crucial campo orçamental. Bem-vindos às "campanhas civilizadas" pelo reforço do Estado Penal que pune os pobres, pela predação dos recursos públicos e pelo congelamento da justiça fiscal? Tudo começa com uma abstenção. Vítor Baptista, um muito pouco recomendável deputado "socialista", que tem como prioridade a manutenção dos privilégios dos gestores de topo, já veio dizer que abstenção do CDS é "um passo importante para a estabilidade governativa." Pois.
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