quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O socialismo como socialização da economia

O debate sobre a ideia de proibir o despedimento quando há lucros, a decorrer nos comentários a esta posta, suscita uma questão que para mim é central: a gestão pertence exclusivamente aos donos da empresa (ou ao gestor nomeado), sejam eles um pequeno empresário, os accionistas da grande empresa ou mesmo o Estado?

Houve um tempo em que os trabalhadores deste país intervinham activamente através de comissões de trabalhadores. Hoje apenas se ouve falar da comissão de trabalhadores da Autoeuropa. Tal não acontece por acaso. Apesar de muito contaminado pelo modelo anglo-saxónico, o chamado "capitalismo renano" ainda mantém a participação das comissões de trabalhadores na gestão das empresas. Note-se que no capitalismo anglo-saxónico as empresas são geridas apenas no interesse dos seus donos e, sobretudo nas últimas décadas, segundo estratégias orientadas para a rendibilidade de curto prazo.

Contudo, o desenvolvimento histórico do capitalismo no continente europeu mostrou que é do interesse da sociedade que as empresas sejam geridas pelo conjunto dos actores que nela intervêm e o sejam numa lógica de longo prazo. Por isso, a intervenção dos trabalhadores na gestão faz parte da cultura germânica. Na actual crise, os trabalhadores alemães do sector automóvel têm o direito de influenciar decisões estratégicas, por maioria de razão quando está em jogo o seu emprego.

Note-se que o acesso dos trabalhadores à informação de gestão relevante alargaria a discussão das estratégias de investimento da empresa e, por essa via, permitiria prevenir os investimentos ilícitos e/ou meramente especulativos, os investimentos que apenas visam aumentar as remunerações e o poder dos gestores, e também impediria o saque da empresa em proveito do património de gestores e empresários como é corrente em Portugal. E já nem falo da coacção psicológica e moral como estratégia de submissão dos trabalhadores, e como 'incentivo' ao despedimento dos mais inconformados, uma prática também frequente nas empresas portuguesas.

Ao contrário do que Pedro Lains possa imaginar, como socialista não defendo a estatização da economia, nem o regresso à planificação central. Os mercados (não há mercados sem regulação, embora no capitalismo neoliberal ela seja frequentemente mínima e/ou má) são absolutamente indispensáveis. Mas também, como se sabe, não são a única configuração institucional disponível para afectar os recursos da comunidade. Os serviços públicos, incluindo os ditos 'de interesse geral', não devem estar sujeitos à gestão empresarial competitiva, nem à nova gestão pública mimetizando os métodos daquela.

Como socialista, defendo a progressiva socialização da economia: a expansão e coexistência de diferentes formas de propriedade (empresas privadas, públicas, cooperativas e outras formas do chamado 'terceiro sector'), diferentes formas de participação dos trabalhadores no seio das empresas, e diferentes formas de relacionamento do Estado com os restantes actores sociais (Estado que ‘faz’, que ‘faz-fazer’, que ‘faz com’). Trata-se de ver o socialismo como um processo histórico de combate, no plano social e no das ideias. Uma evolução cumulativa, sem qualquer determinismo.

Num sentido amplo, socializar a economia significa pôr a economia ao serviço do bem público e, para que isso seja assegurado, é preciso que os trabalhadores tenham um papel central na governação das organizações. Para os socialistas, a democracia, com o que implica de direitos e deveres, não pode ficar à porta das organizações, sejam elas públicas ou privadas.

Lutar pelo socialismo é lutar democraticamente pela progressiva socialização da economia a partir do interior do capitalismo, o que é bem diferente do social-liberalismo, a esquerda gestionária do capitalismo numa lógica de remediação social. Por muito que esta esquerda se enfeite com causas fracturantes para disfarçar a escolha ideológica que assumiu, 'gerir' em vez de 'transformar' o capitalismo.

Espero que tenha ficado claro o que entendo por esquerda transformadora.

9 comentários:

CS disse...

Uma esquerda transformadora, penso eu, tem de saber usar um argumentário inteligente, como se faz neste blogue. Discutir energias renováveis, por exemplo, é muitas vezes caír na boca do lobo com debates estéreis sobre aquecimento global. Convidava a ler esta versão alternativa que atinge o mesmo fim por outros meios:
http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/02/os-argumentos-das-energias-renovaveis.html

Tiago Tavares disse...

Caro Jorge Bateira,

Gostei do exemplo que utilizou para demonstrar que o capitalismo "remano" (independentemente do que isso seja) é claramente superior ao modelo anglo-saxónico (este presumo que seja um capitalismo mais próximo de uma economia de mercado). A escolha dos dois países como exemplos paradigmáticos de um e outro modelo foi particularmente inteligente já que a presença das sinergias positivas que se criam entre sindicatos, estado, e empresas extravasa para o sucesso económico de cada país.

Na realidade parece-me incrivelmente evidente e lógico que a Alemanha tenha tido muito mais sucesso que o RU, em parte devido às políticas sociais que implementou. Mas como sei que aqui não existem muitos fãs da utilização de modelos económicos (pelo menos os de natureza neoclássica - iteração de curvas de oferta e procura etc.) vou saltar a explicação teórica e passar desde já a factos estatísticos.

Nos últimos 10 anos a taxa de desemprego rondou os 9% na Alemanha enquanto que no RU andou pelos 5%. Para mais, enquanto que no RU 25% desse desemprego é de longa duração (mais de 12 meses) na Alemanha a fasquia fica acima de 50%. Isto é de loucos: 50%.

Claro que podem haver muitos factores que tornam o desemprego mais elevado na Alemanha. Mas se as decisões estratégicas das empresas alemãs, auxiliadas por sindicatos de trabalhadores, estiverem a ser melhores do que as do RU então a produtividade germânica por cabeça será ainda assim mais elevada. Pois, desde inicio de 2000 que o RU ultrapassou a Alemanha em PIB per capita (PPP). Ou seja, neste momento os ingleses encontram-se mais ricos do que os alemães. Esta tendência deriva de uma taxa de crescimento, nos últimos 18 anos, média do PIB real no RU de 2.4% contra uma alemã de apenas 1.9% (é melhor nem referir a portuguesa).

Sim, mas pelo menos as flutuações da produção e do emprego deverão ser menores na Alemanha, não? Não?! Não! De facto o desvio padrão do crescimento do PIB e do desemprego registaram valores inferiores no RU nos últimos 18 e 10 anos, respectivamente. Mas ainda há mais. Nos últimos anos as balanças comerciais alemãs apresentaram desequilíbrios bastantes superiores aos do RU (no ano de 2007 a Alemanha tinha um excedente da balança corrente de 7.6% do PIB o RU de -3.6%). E claro, com o estalar da crise o poderoso modelo de capitalismo "renano" alemão sofreu uma quebra de 8.2% no PIB (q/q) que se compara com os 5.9%q/q no RU.

Mas a economia, o rendimento monetário, e a estabilidade do emprego não é tudo na vida. E nem mesmo quando o sucesso económico, mesmo que monetário, significa recursos libertados para outros objectivos. Que eu saiba os ingleses não têm a Claudia Schiffer. E se objectivo é obrigar as empresas a aceitar o domínio dos sindicatos nas suas decisões então talvez o modelo alemão seja efectivamente bom. Mas claro, se queremos discutir os objectivos, temos de deixar a economia e a ciência de fora. E daí que apareçam as propostas de proibir despedimentos para as empresas que têm lucro. É a total indiferença face às contribuições teóricas e empíricas que economistas como Jacob Mincer ou Boyan Jovanovic trouxeram à profissão à mais de 30 anos atrás. Mas é assim em tempos de crise. Cá estarão os economistas (neoclássicos e econometristas) para arcar as culpas quando a próxima Smoot-Hawley entrar em vigor.

Anónimo disse...

Excelente e esclarecedor post! Já chateiam os comentários que chutam para canto os vossos argumentos, acusando-vos de quererem ser uma espécie de directores do Gosplan nacional.

Miguel Fabiana disse...

Tiago,

...e porque é que essas ferramentas e dados estatísticos não ajudaram a evitar a "cena" que se assiste hoje em dia?!?

"Intellectuals are reliable lagging indicators, near–infallible guides to what used to be true" - Charles R. Morris

Foi por se ter tentado impingir modelos perfeitos (Homo Economicus e similares) que depois se escorregou neste lodaçal económico!

Relembro uma parte dos discursos do Prof João Cocco e Sérgio Rebelo, num evento recente da UCP em que eles falavam sobre o "tratamento estatístico" de dados sem relação nenhuma, por parte de alunos da licenciatura de economia e "incrivelmente" era encontradas relações entre esses dados... quando não as havia! Um modelo Social, visto apenas com os óculos de Economista (e daqueles que ficam com pruridos cutâneos quando se fala em Economia Política ou em Neuro-economia) não trás, pelos vistos, grande aporte ao Modelo em causa.

Eu costumava dizer aos meus colegas de empresa que gerir através do números, nem gerir é! A gestão faz-se com pessoas, pelas pessoas e os números são indicadores e ....estes representam apenas isso: números e dados!

Se a econom(etr)ia apenas sabe ver números e "deitando fora o bébé, com a água do banho" se esquece ou não tem tempo para pensar nas ....pessoas....como Indivíduos, Cidadãos e como a Unidade indivisível do Sistema Social....depois descambamos em "cenas" tristes: as pessoas começam a ser tratadas e pour cause a assumir-se como "consumidores".

Um Avôzinho meu que era Médico, tinha no escritório dele, em Santana, Ilha da Madeira, um quadro em ponto cruz que dizia: " Um Médico que só sabe de medicina, nem de medicina sabe".

Fique bem!

Miguel

Tiago Tavares disse...

Caro Miguel,

Parece-me que o meu caro não tem formação de economista pelo que não deveria falar com essa arrogância em relação aos modelos económicos contemporâneos. Esses tipo de modelos tendem a incluir normalmente preços pegajosos, informação pegajosa, mercados financeiros incompletos, problemas de compromissos por parte dos governos, expectativas adaptativas, formação de hábitos pelos consumidores, indivisibilidades e activos ilíquidos, racionalidade limitada, etc.. Um bom sítio para olhar para estes modelos é o RED ou esta entrevista do Thomas Sargent. Isto parece-me claramente afastado daquilo que conceptualiza como "modelos perfeitos", "homo economicus", "econom(etr)ia", "neoclássicos", "neoliberais" ou lá o que lhe esteja a chamar.

A questão central que eu tentei colocar no meu comentário prende-se exactamente com a complexidade dos assuntos económicos. Pareceu-me excessivo referir o impacto sindical na Europa continental como claramente positivo e daí ter decidido contrapor alguns resultados económicos entre a Alemanha e o Reino Unido. Comparativamente ao RU, a Alemanha tem sido um desastre em termos de política económica. A presença estatal excessivamente pesada na economia alemã (o tal estado que "faz", "faz com", "faz fazer", permita-me que acrescente, um verdadeiro faz tudo) poderá ser uma das razões desses resultados desoladores. Daí que seja importante discutir economicamente os objectivos que se pretendem.

E essa de que os números e as estatísticas só têm função como números e estatísticas só pode ser interpretada como uma anedota. Experimente gerir a sua empresa sem contabilidade de custos; ou experimente prever qual o impacto de um medicamento na saúde de uma população assim de cabeça; ou experimente alinhar eficientemente umas máquinas numa empresa utilizando um ábaco; ou experimente fazer política económica sem estatísticas de inflação, emprego, produto, etc.. São para estes e muitos outros casos que existe a matemática e a análise estatística. E abdicar destes conhecimentos era retornar à idade da pedra.

É precisamente pela razão que muitas das correlações em economia são espúrias que existe a econometria. Infelizmente este tema é apenas utilizado neste blogue quando se pretende publicitar estudos dúbios publicados em revistas obscuras (ex. o artigo Lancet sobre as nacionalizações na Rússia publicitadas num comentário recente).

E já agora vejo que defende o individualismo metodológico. Uma metodologia mais próxima dos seus amigos neoclássicos que dos keynesianos (pelo menos os precedentes da síntese neoclássica). Sim os modelos neoclássicos tentam partir de premissas básicas associadas ao indivíduo e à tecnologia para, a partir daí, derivar preposições.

Não conheço nenhuma citação de um médico nessa linha mas sei que Stuart Mill disse um dia que "um homem não será um bom economista se não for nada mais" (cit. por Robbins). Obviamente que estou de acordo com esta observação de Mill. No entanto um economista não deve deixar de o ser só porque tem objectivos que contradizem a sua ciência.

José M. Sousa disse...

Bem, nos dias de hoje tamanho elogio à economia do Reino Unido parece bizarra.

Mas será que esses modelos comparam a qualidade do emprego? Comparar simplesmente 5% no RU com 9% na Alemanha não é dizer tudo.


Convém dizer que o Reino Unido benficiou nos últimos anos do maná do petróleo e gás natural caro do Mar do Norte

José M. Sousa disse...

Caro Tiago Tavares

O que parece escapar aos seus brilhantes modelos são coisas como estas:


«Which of these countries has the most prisoners per head of population? Sudan, Syria, China, Burma, Saudi Arabia, Zimbabwe or England and Wales? We win, or rather lose: I have ranked these countries in reverse order(1). On this measure, England and Wales have a more punitive judicial system than most of the world’s dictatorships.»

Tiago Tavares disse...

Vou deixar aqui apenas 4 pontos para concluir a minha participação neste comentário:

(1) Não terá lido nenhum comentário meu a elogiar o RU ou sequer a descrever qualquer modelo económico. O meu ponto foi apenas fornecer alguns dados de comparação entre o sucesso económico entre países para modelos de capitalismo supostamente diferentes (descritos nos comentários do Jorge Bateira).

(2) Sim os 5% de desemprego per se não são grande coisa, nem mesmo quando referi o desemprego de longa duração ou volatilidade deste agregado. É apenas um indicador e não deve ser confundido com outras questões como qualidade ou razoabilidade.

(3)O RU não é nenhuma Arábia Saudita ou Rússia. É uma economia largamente baseada nos serviços e na manufactura. Dificilmente a produção de petróleo explica as dinâmicas de produção ou de emprego neste país.

(4) Se comparar a população criminal da região de Caxias com a população criminal da região da Antárctida chegamos rapidamente à conclusão que Caxias tem um sistema judicial mais punitivo que a Antárctida. E tudo isto encontra-se intimamente ligado com a forma como as empresas organizam a sua produção...Acho melhor deixar a apanha de cerejas para outras discussões.

(Ponto extra): Acho que alguns modelos económicos (mas nem todos) também não devem apanhar isto: a República Checa é o país do mundo onde mais se vende cerveja por cabeça - cerca de 82litros por ano.

José M. Sousa disse...

RU:

Manufactura: «The worry is that Britain's neglected manufacturing base may now be too small and wobbly to take the weight[...]»

Importância do petróleo e gás natural:

«Had Britain not had the
revenues and trade flows from North Sea oil and gas in the 1980s and 1990s,
our economic position would have been considerably worse, and the
comparative performance of France and Germany, without this luxury, should
be seen in this context.»


Quanto à sua comparação entre Caxias e a Antártida, enfim...

No entanto, talvez concorde consigo de que não haja mais uma diferença tão grande entre o capitalismo alemão e o britânico, na medida em que o capitalismo renano se deixou seduzir pelo anglo-saxónico nos últimos anos.