terça-feira, 30 de setembro de 2008

Visão da crise financeira II

Comecemos por onde a actual crise começou. Pelo crédito hipotecário "subprime" e pelo sobreendividamento de muitos trabalhadores vulneráveis nos EUA. Um dado ilustra a conjugação de medíocre crescimento dos rendimentos e de injustiça social, indissociáveis da configuração de capitalismo sob hegemonia da finança de mercado que emergiu nos EUA, a golpes de política, a partir dos anos setenta: entre 1947 e 1973, época de consenso keynesiano, de contra-poderes sindicais fortes e de mercados muito mais limitados e politicamente enquadrados, o rendimento das famílias mais pobres (20% da população) cresceu, em termos reais, aproximadamente 116,1% e o rendimento das famílias mais ricas (20% da população) cresceu 84,8%; entre 1974 e 2004, na chamada "Era de Milton Friedman", esse crescimento foi, respectivamente, de 2,8% e de 63,6%. O resto da minha «visão de esquerda» pode ser lido no Jornal de Negócios. Paulo Pinto Mascarenhas oferece uma «visão de direita». O debate não pode parar.

A crise como oportunidade

Como escrevi na semana passada no esquerda, a desconfiança actual, ao contrário do que acontece com os activos criados pelos alquimistas da finança, tem um preço claro: a taxa de juro dos títulos do tesouro norte-americanos de curto prazo tornou-se, há alguns dias atrás, negativa, ou seja, os especuladores preferiram o prejuízo seguro dos activos do Estado às forças obscuras da incerteza dos mercados monetários. James Galbraith assinala que é agora possível aos EUA financiarem uma estratégia de investimento público com emissão de dívida de longo prazo a taxas mais reduzidas. Isto oferece uma pista para sair da crise: «new deal verde».

Na Europa, como propôs há já algum tempo Stuart Holland, um economista de esquerda, a União Europeia deve poder emitir «euro-obrigações», como parte de uma estratégia europeia coordenada de investimento público. Se temos moeda única e mercados integrados, temos de ter um orçamento federal com peso e dívida pública europeia. Para não falar de um sistema fiscal e de mecanismos públicos de controlo dos mercados financeiros comuns. E de um banco Central com outro mandato. O tempo do Estado mínimo europeu tem de acabar. Precisamos de muito mais planeamento e de coordenação a esta escala. Do desenvolvimento de tecnologias amigas do ambiente, ao reforço das infra-estruturas de transporte ferroviário, passando pelo combate à pobreza e às cavadas assimetrias regionais, há muitos projectos de curto, médio e longo prazo para desenvolver. Políticas públicas europeias para combater a crise. É preciso pensar nisto e já agora ler João Pinto e Castro: «o que o mercado nos diz é que, neste momento, os investidores estão dispostos a financiar projectos estatais, mas não privados». Ideias não faltam.

A esquerda tem que ter iniciativa. Há muito a aprender com Milton Friedman: « Estou convencido que esta é a nossa principal função: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável».

Visão da crise financeira

«Duas perspectivas das lições a tirar da crise financeira em que se vive há mais de um ano». «A visão da esquerda» é escrita por mim. «A visão da direita» por Paulo Pinto Mascarenhas. No Jornal de Negócios de hoje. Também no campo económico, a história e o debate não acabaram.

Ideias do passado com futuro

«A criação de um elevado imposto sobre as transferências para todas as transacções talvez fosse a mais salutar das medidas capazes de atenuar (...) o predomínio da especulação sobre a empresa» (John Maynard Keynes, Teoria Geral, 1936).

Para uma outra Economia

O Manifesto é longo e está escrito em Francês, mas vale a pena ler aqui. Esboça uma plataforma para uma outra Economia.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Segunda-feira negra?

Plano Paulson rejeitado. Pode ser o fim de um mundo. Quedas abruptas nas bolsas. Helena Garrido resume um dia de «loucura financeira». Incerteza radical. Incerteza criada por uma configuração do capitalismo que parece estar em processo de autodestruição. Tudo o que é frágil se desfaz no ar. Esperemos que a crença na bondade da financeirização do capitalismo também. O resto já é banal: nacionalizações. O único sinal positivo neste dia. Os governos europeus entraram em acção de forma surpreendentemente coordenada. Quem diria? Vai ser preciso muito mais união e coordenação de políticas. Estamos muito atrasados. O comunicado da AIG, roubado a Rui Tavares, mostra onde, em última instância, residem as fontes da confiança. O futuro terá um sector financeiro enquadrado por instituições públicas com um envolvimento muito mais directo. Não há alternativa decente.

O efeito da crise financeira na Economia

Refiro-me ao efeito da crise financeira na reputação da disciplina académica designada Economia. Limito-me a copiar comentários de leitores da edição on-line do Público a declarações de economistas portugueses a respeito das consequências da rejeição do plano Paulson no congresso dos EUA.

Sei que a amostra é pequena, mas mesmo assim dá que pensar .

Um: “É impressionante, os meios de comunicação (portugueses e estrangeiros) continuam a pedir comentários a economistas que há 1 mês não faziam a minima ideia do que estava acontecer. Continuam a tratar este fenómeno como fosse uma catástrofe natural, que nada fazia prever, tipo tsunami.”

Dois: “BANDO DE IDIOTAS! CORJA! SEMPRE A DEFENDER O PATRÃO! SÓ CÁ FALTA O CÉSAR DAS NEVES! SÃO TÃO SÁBIOS QUE É UMA PENA ESTAREM EM PORTUGAL!”

Três: “Já basta destes economistas. Afinal, não foram estes idiotas economistas, que nos levaram a este ponto com as suas ideias económicas? onde estavam estes idiotas quando a crise principiou? Ou melhor ainda, porque não foram eles capazes de antecipar esta porcaria?”

sábado, 27 de setembro de 2008

Oração

Oh Deus, que fazias nascer o sol todos os dias, enquanto repenicavam em Wall Street os alegres sinos de abertura. Coro: o que vai ser de nós?
Oh Deus, que fazias chegar a noite depois de ter provido a carteira nossa de cada dia. Coro: o que vai ser de nós?
Oh Deus, que nos acordas na incerteza, para dia sim nos fazer subir em euforias e dia não descer aos infernos da penúria. Deixas-nos sós com os nossos medos. Coro: o que vai ser de nós?
Oh Deus, que arrasas catedrais ou as entregas ao Monstro-cujo-nome-não-devemos-soletrar. Coro: o que vai ser de nós?

Porque te zangas, oh Deus? Porque os sacerdotes sucumbiram à incúria e não regularam como deveriam regular o seu rebanho? Porque a saudável ambição de sucesso que dá sentido à vida se transformou em ganância? Porque os homens enfim pecaram?
O que pedes, oh Deus? Castigo para os culpados? Sacrifícios? Quanto queres? Os setecentos mil milhões prometidos? Queres cinco milhões de milhões? Coro: o que vai ser de nós?

E pior que tudo, oh Deus (vem agora a maior de todas as ofensas) é a traição! São fariseus! Cantam-te loas nos dias felizes e abandonam-te na desventura. Entregam-se agora ao Monstro- cujo-nome-não-devemos-soletrar. Perdoa-lhes, oh Deus, se perdem a fé. Que sentido faz toda uma vida, se Tu, nos teus desígnios insondáveis, retribuis a devoção com pragas e castigos?

Sim, nós podemos?

É isto que eu gosto no keynesianismo de esquerda: é a melhor tradução, no campo económico, do «sim, nós podemos». Sim, nós podemos resolver a crise. Sim, nós podemos usar o Estado, essa magnífica caixa de ferramentas. Sim, nós podemos combinar o planeamento com mercados reconfigurados para resolver os grandes problemas do nosso tempo. Sim, nós podemos evitar a catástrofe do capitalismo puro. James Kenneth Galbraith sucede ao pai como o melhor intérprete desta tradição. Este artigo de opinião no Wasington Post oferece várias pistas para superar o risco de colapso sistémico financeiro e para recuperar a economia. Nos EUA, claro. Se tiverem mais tempo, leiam este seu artigo académico sobre os contornos da União Europeia daqui a algumas décadas. Uma previsão de padrões de desigualdade e de ineficência. Responsáveis: o fundamentalismo de mercado que está inscrito no actual arranjo do desgraçado governo económico europeu. Se as actuais opções políticas não forem alteradas, eu até dúvido que haja UE em 2042. Na Europa é mais: não, nós não podemos...

A nova esquerda e o regresso das velhas questões

«À luz disto, o impensável aconteceu: o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização (...) Não estamos perante uma desglobalização mas estamos certamente perante uma nova globalização pós-neoliberal internamente muito mais diversificada (...) o Estado que regressa como solução é o mesmo Estado que foi moral e institucionalmente destruído pelo neoliberalismo, o qual tudo fez para que sua profecia se cumprisse: transformar o Estado num antro de corrupção (...) se o Estado não for profundamente reformado e democratizado em breve será, agora sim, um problema sem solução» (Boaventura de Sousa Santos na Visão). Neste importante artigo sobre a crise financeira, destaquei as passagens referentes ao Estado. A vida encarrega-se de confirmar a centralidade e plasticidade do Estado. Uma parte da esquerda racionalizou a sua impotência política pensando que podia prescindir do Estado, do combate pela hegemonia no campo das políticas públicas e do árduo de trabalho de conquistar terreno eleitoral, buscando a maioria. Preferiu refugiar-se em localismos e globalismos etéreos. Está na hora de regressar ao poder que conta, à luta «pela refundação democrática do Estado», à análise das «contradições entre classes nacionais e transnacionais» e às «políticas de alianças». É aqui que tudo se continua a decidir. Sobre isto, pode também ler-se com muito proveito este artigo de Emir Sader na New Left Review. É sobre a América Latina como elo mais fraco do neoliberalismo. Oferece lições gerais. Hegemonia, bloco histórico e alastramento da democracia. A esquerda que conta é a que não abandona as velhas e díficeis questões que estão por resolver.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Acertar no totoloto em Maio de 2007?

Ao ler a polémica entre o Insurgente (I e II), o Rui Tavares e o Daniel Oliveira, lembrei-me destes dois posts (I e II). Onde é que podemos levantar o prémio?

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Economia liberal: posições, artigos, livros e recensões

Com o seu habitual poder de síntese, João Pinto e Castro resume numa frase a posição liberal (no bom sentido que a palavra tem nos EUA...) sobre o plano de salvamento do sector financeiro: «a nacionalização (total ou parcial) é a solução que melhor acautela os interesses dos contribuintes». Helena Garrido, no Jornal de Negócios, é igualmente sensata: «O plano Paulson ou outra qualquer acção de salvamento não pode nacionalizar apenas os prejuízos e os activos tóxicos». Claro. Como o Nuno Teles já aqui tinha assinalado, a Suécia mostra como se faz.

A fragilização endógena de Wall-Street pode criar as condições para uma reforma de fundo que imponha regras mais apertadas à finança. Sobre isto, e para além do que Paul Krugman tem escrito, vale a pena ler os economistas liberais que escrevem na American Prospect: Robert Kuttner, Robert Reich e Dean Baker. Do controlo sobre os incentivos dos gestores à introdução de novas taxas, os 700 mil milhões de dólares previstos no Plano Paulson não podem ser um cheque em branco a Wall-Street. E, sobretudo, convinha que se prestasse atenção às necessidades das classes trabalhadoras que, ao perderem o emprego e a casa, são as maiores vítimas das externalidades negativas geradas pelos desvarios de Wall-Street: «extensão do subsídio de desemprego, congelamento das hipotecas e um pacote de estímulos que crie empregos» (Robert Reich). Estado Social.

Keynesianismo de esquerda como alternativa ao «Estado Predador» afinado pelos Republicanos. Como defende James Galbraith, os Republicanos abandonaram na prática a ficção conveniente do mercado livre. Está na altura dos Democratas fazerem o mesmo.

Nota. O último livro de Robert Reich - Supercapitalism - não é sobre a crise, mas é sobre a forma de capitalismo que a gerou. É bastante desigual. Simpatizo pouco com o seu determinismo tecnológico, mas é bastante bom a rebentar com a conversa da responsabilidade social das empresas e a defender, com ampla evidência, que a desregulamentação e a intensificação da concorrência estão associadas a um aumento da corrupção e a um esvaziamento da esfera política democrática. A recensão de Tony Judt é injusta quando acusa o livro de ser economicista, mas é um pretexto para uma estimulante reflexão sobre o capitalismo e os seus limites políticos e morais.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Já passou o tempo das inevitabilidades neoliberais

Vital Moreira (VM) mostra como a década de oitenta foi mesmo terrível: «Defendo a elevação das propinas no ensino superior desde há vinte anos». E continua: «Desde logo, para dispor de mais recursos financeiros para aumentar as bolsas de estudo e os empréstimos bonificados, em número e valor». Como aliás se vê. Tem sido notável a ligação entre o aumento das propinas e o aumento do investimento no ensino superior. Tenham fé. Desta vez é que é.

«Empréstimos bonificados». Reparem. Milton Friedman está vivo e de boa saúde. VM termina com esta pérola: «Trata-se de aumentar a justiça social no acesso ao ensino superior, diminuindo o actual subsídio aos ricos e aumentando a ajuda a quem precisa». O populismo mercantil ao serviço da comercialização do ensino superior.

O pior nos intelectuais do «socialismo moderno» do PS é a forma como embrulham projectos regressivos numa retórica de esquerda. A justiça social, ou seja, a progressiva eliminação das desvantagens associadas, entre outras coisas, à lotaria da classe onde se nasce e a correspondente promoção das condições para uma maior igualdade no desenvolvimento das capacidades, alcança-se através de impostos progressivos que financiam serviços públicos universais e gratuitos para o utilizador. E bolsas. Tudo o resto é recriação de divisões de classe, manutenção de barreiras à entrada e criação de um enquadramento que nutre o egoísmo e o individualismo mercantis. Com custos administrativos elevados.

Falta só referir a citação que encabeça a posta de VM: «OCDE considera inevitável subida das propinas nas universidades». As inevitabilidades organizadas pela OCDE. É quem inspira o ministério. Muito eficaz no esvaziamento do Estado Social. VM apresenta hoje, em Coimbra, um livro de Correia de Campos sobre reformas da saúde. VM é muito coerente.

O contra-movimento até pode não ser só de esquerda

«As instituições económicas não têm hoje nem a autoridade nem os instrumentos de que precisam para impedir a anarquia da especulação» (Lula da Silva).

«Reconstruamos em conjunto um capitalismo regulado, em que sectores inteiros da actividade não sejam deixados à mera apreciação dos operadores de mercado» (Nicolas Sarkozy).

Começar o trabalho de desmantelamento da ordem neoliberal é uma tarefa que é de toda a esquerda e da direita que redescobre os limites. O importante é isolar politicamente os fanáticos do capitalismo sem fim. Da social-democracia ao conservadorismo, estes conquistaram posições de poder em demasiados partidos. Mudar o sentido do pêndulo no campo económico. Depois será tudo menos difícil.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Tantas perguntas

Não sei se João César das Neves (JCN) dirá melhor do que isto sobre a crise financeira: «Deve ser horrível ser Deus. Afinal quem é que quereria ser Deus, para ter tanto trabalho, fazer tudo tão bem, tão perfeito e depois acabar esquecido, desprezado, incompreendido?» (DN de ontem). Basta substituir Deus pelo Mercado Livre (assim com maiúsculas). Até há pouco tempo quase que não se dava pela diferença. Não vou poder ir ao debate. Aqui ficam algumas perguntas que eu gostaria de fazer a JCN:

Por que é que teve de recorrer, muito recentemente, a Keynes para «explicar» a actual crise financeira? Onde é que está a sua economia ortodoxa povoada de agentes omniscientes, de pequenos deuses, e de mercados sem falhas relevantes? Ainda acha que Keynes é neoclássico? Por que é que nunca refere que Keynes defendia, e bem, que a instabilidade financeira é um atributo necessário de mercados financeiros desenhados de acordo com as prescrições liberais? Será que mantém as suas posições a favor do incremento do papel dos mercados financeiros liberalizados (por exemplo, na área da Segurança Social)?

As perguntas multiplicam-se. Para a próxima não se esqueçam de convidar também um economista crítico dos desvarios neoliberais. João Ferreira do Amaral é dos poucos que, como académico e intelectual público, sempre resistiu ao que era até há pouco «a ideologia intransponível do nosso tempo». Ali onde era mais difícil. Na macroeconomia e na política económica. Muitos beneficiámos com isso. JCN, pelo contrário, sempre esteve muito entretido a escrever as vulgatas da ideologia dominante.

Humanismo e comunidade

O Público de ontem tem dois excelentes artigos de economia. De economia política e moral. Como deve ser. Na realidade, e por muito que alguns procurem disfarçar, não há há outra economia.

«Aos sofistas de mercado falta-lhes entender o que dizia Protágoras: 'o Homem é a medida de todas as coisas' — para si mesmo, naturalmente. Mas é de nós mesmos que estamos a falar. O maravilhoso funcionamento da teoria fez vítimas na prática. Esta é a medida última: não o mercado, não as empresas, não o sistema financeiro — mas as pessoas» (Rui Tavares).

«O problema é que, se os off-shores tiram dinheiro ao Estado em impostos que deixam de ser pagos, alguém terá de compensar essa falha. E, em regra, quem vai pagar aquilo que os outros não pagaram são bem menos ricos do que os felizardos que beneficiam dos paraísos fiscais. Por isso estes são 'infernos fiscais' para o conjunto da comunidade» (Francisco Sarsfield Cabral).

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

É o fim do capitalismo? V

Claro que não. Agora leiam a declaração do responsável pelo Tesouro dos EUA: «Como filosofia, nunca pensei que a intervenção (do Governo) fosse uma boa escolha. Tudo o que posso dizer é que ela é agora necessária» (Henry Paulson). Nos EUA podemos estar a assistir ao paradoxo histórico assinalado nos anos quarenta por Karl Polanyi: enquanto que o laissez-faire foi o resultado de um laborioso processo de construção de hegemonia ideológica e de engenharia social, a contra-engenharia, ou seja, a introdução de mecanismos de controlo, que fazem recuar o alcance dos mercados e que podem permitir, a prazo, subordina-los de novo às prioridades democráticas, é o resultado de um processo político mais ou menos espontâneo, posto em andamento quando as circunstâncias pressionam, para proteger a ordem social da ameaça do colapso económico generalizado. «O laissez-faire foi planeado, o planeamento não».

Os paradoxos multiplicam-se. Este último é muito infeliz: acho que os neoliberais podem estar mais descansados na Europa, berço da social-democracia. Da esgotada e cúmplice social-democracia. Tiago Barbosa Ribeiro menciona, e bem, a necessidade desta recuperar «parte do seu património perdido». No entanto, as boas propostas keynesianas de Vincenç Navarro ou os robustos princípios de regulação financeira, formulados por Frédéric Lordon, são uma utopia na actual UE. É que a União, como não nos cansamos de denunciar neste blogue, inscreveu o neoliberalismo nos tratados e nas instituições com responsabilidades económicas (do BCE à Comissão). A verdadeira social-democracia é uma impossibilidade ali onde muito se decide: no campo económico. Questão de blindagem institucional. Parece que a Europa suportará, mais uma vez, a maior parte do fardo da crise internacional. Os dogmas de mercado têm um preço elevado. De Bruxelas a Lisboa. Passando por Frankfurt. A Europa podia ser a solução, mas é hoje o principal problema. Escolhas. Quem foi o irresponsável que redigiu os estatutos do BCE? Quem aprovou o PEC? Quem avançou para a total liberalização financeira sem criar regras comuns e sem harmonização fiscal? Quem avançou para a moeda única sem orçamento federal digno desse nome? Quem?

É o fim do capitalismo? IV

Claro que não. Agora conseguem imaginar o que aconteceria se não existisse dívida pública? Actualmente, os especuladores refugiam-se na segurança dos títulos do Estado. O colapso dos mercados revela os pilares públicos em que assenta toda a sua arquitectura.

O Financial Times reconhece, em editorial de sexta-feira, que «as loucuras de uma geração de financeiros irresponsáveis terão de ser pagas pelos contribuintes». As estruturas económicas neoliberais que nutriram a irresponsabilidade foram construídas nas três últimas décadas. Diz ainda o FT que «uma regulação mais apertada é o preço a pagar. Mas isso fica para outro dia». Claro que sim. Quando esse dia chegar, esperem toda a resistência dos «irresponsáveis» e dos seus intelectuais na imprensa e na academia.

No entanto, o cálculo pode sair furado: as medidas de emergência, que se multiplicam nos EUA, podem dar origem a uma forte corrente de opinião a favor da reintrodução de mecanismos de controlo e de regras muito mais apertadas para as operações financeiras. Isto não pode ficar pela pura socialização das perdas. Senso comum.

A crise revela que a economia também é um sistema de regras – de autorizações, de constrangimentos, de proibições – que definem quem é que pode fazer o quê com o quê e quem é que está exposto às consequências dessas acções. As operações de venda a descoberto de acções acabam de ser limitadas nos EUA e no Reino Unido. Não custou nada. Mudar as regras para controlar a especulação que desestabiliza as economias. Instrumentos não faltam: das taxas (Keynes e Tobin) à proibição pura e simples. O princípio é claro e admite muita flexibilidade: é preciso diminuir a liberdade dos agentes financeiros. Para que aumente a liberdade do resto da sociedade, sobretudo para que aumente a liberdade da maioria dos trabalhadores que hoje estão expostos às consequências socioeconómicas perversas que advêm da liberdade irrestrita de circulação do capital.

No curto prazo importa perceber sobre quem é que vai reacair o fardo do ajustamento. O economista Dean Baker oferece preciosas indicações para uma operação de salvamento justa do sistema financeiro.

domingo, 21 de setembro de 2008

A revisão do Código de Trabalho e a descredibilização da política

Na semana passada foi votada a revisão do Código de Trabalho na Assembleia da República. O PSD absteve-se (creio que o CDS-PP também). BE e PCP e PEV votaram contra. Todos os partidos acusaram os socialistas (os únicos que votaram a favor, embora com 4 dos seus deputados a votarem ao lado dos partidos à esquerda do PS, entre eles Manuel Alegre e Teresa Portugal) de, com as propostas que fizeram nesta revisão da legislação laboral, terem feito uma pirueta de 180 graus face ao que defenderam quando o Código de Trabalho foi originalmente proposto e aprovado pela coligação PSD-CDS. Ou seja, o PS terá mudado de posição em várias matérias fundamentais sobre a legislação laboral – aguarda-se com expectativa uma comparação sistemática das principais mudanças de posição do PS, que penso estará a ser levada a cabo pelo especialista em “desigualdades sociais e sindicalismo”, o sociólogo (e militante socialista) Elísio Estanque.

E, segundo consideram vários especialistas, as mudanças terão sido num sentido de fragilizar a posição do elemento mais fraco na relação laboral, isto é, os trabalhadores. Além de possibilitar uma descida dos salários através do “banco de horas”. Tudo isto apesar de algumas medidas positivas de combate à precariedade.

Mas, independentemente do sentido das mudanças de posição, o que está em jogo é o como e o porquê das mesmas. Houve algum debate interno sobre isto ou tudo se processou em resultado de uma mudança de liderança no PS? O PS explicou em devido tempo aos militantes e aos eleitores (nomeadamente vertendo a mudança de orientações no seu programa eleitoral) que iria mudar de posição e porquê? Parece que não, pelo menos ninguém deu por isso. Sendo assim, fica-se sem perceber porque é que, quando estava na oposição, o PS tinha uma posição sobre a legislação laboral e, quando passou ao poder (e mudou de líder), passou a ter outra (alegadamente muito diferente em pontos fundamentais).

Então para tomar uma posição sobre o casamento homossexual é preciso uma discussão aprofundada e uma tomada de posição vertida no programa eleitoral e sufragada eleitoralmente, mas para efectuar mudanças tão fundamentais na posição do partido face a uma questão central do conflito político nas sociedades modernas (bem no âmago da divisão entre esquerda e direita!), as relações entre capital e trabalho, nada disso parecer ser necessário? Obviamente, nada disto ajuda a credibilizar a política e os partidos. E, por isso, percebem-se os remoques de Manuel Alegre à JS (que sobre isto se remeteu ao mutismo, pelo menos no parlamento): é que a credibilização da política passa por aqui.

Sobre as confusões que grassam no PS acerca do casamento homossexual

Na semana que passou, estalou mais uma confusão na bancada parlamentar do Partido Socialista. Vejamos porquê.

No dia 10 de Outubro serão votados os projectos de lei (apresentados pelo BE e pelos Verdes) reconhecendo aos homossexuais o direito ao casamento. (Apesar de há muito andar a anunciar que teria algo a apresentar neste domínio, a JS parece ter deixada as suas eventuais propostas a hibernar à espera de melhores dias…)

Pela voz do líder parlamentar, Alberto Martins, a bancada socialista anunciou esta semana que, como não houve ainda suficiente debate no seio do partido (e na sociedade) sobre o tema, além que nenhuma posição do PS sobre o mesmo foi vertida no programa eleitoral de 2005 (e, por isso, não pode ser sufragada popularmente), o partido não tem ainda uma posição definida sobre o assunto. Ou seja, o partido não está em condições de votar a favor no Parlamento. Parece perfeitamente razoável e legítimo.

Mas a seguir veio a confusão: Alberto Martins anunciou que, pelo que foi dito acima, o partido (através da direcção da bancada) iria dar indicação de “voto contra” (com exigência de disciplina de voto) aos seus deputados (sobre a questão do casamento homossexual). Curioso: não podem votar a favor porque ainda não discutiram o assunto, não se posicionaram no programa eleitoral, etc., em suma, ainda não tem posição. Então, sendo assim, a indicação de voto aos deputados (com ou sem exigência de disciplina de voto) não deveria ser a “abstenção”? Se o PS não tem posição amadurecida e sufragada popularmente para votar a favor como é que já a tem para votar contra? Não se percebe, de todo!

Desigualdade e Crise Financeira

A relação entre o crescimento da desigualdade nos EUA e a recente crise financeira não é um tema que tenha surgido nos últimos dias, dominados pelas extraordinárias planos de salvamento do sistema financeiro. No entanto, não difícil perceber como os mais pobres deste país mantiveram o seu nível de vida graças ao crescente endividamento, uma vez que os seus rendimentos reais estagnaram de há trinta anos a esta parte. Por outro lado os mais ricos, com quantidades recorde de capital acumulado, conseguiram,através dos mercados financeiros, satisfazer esta procura de crédito, o agora famoso subprime, cobrando juros de agiotas. Juntou-se a fome à vontade de comer.



Barbara Ehrenreich escreveu há um ano: “Por incrível que pareça, este pode ser o primeiro caso na história em que os explorados conseguem deitar abaixo um sistema económico injusto, sem passarem pela trabalheira de uma revolução.” De facto, assim foi, quando os mais pobres deixaram de pagar as suas prestações. Contudo, parece cedo para esperar uma melhor distribuição do rendimento através de um desenho mais progressivo do sistema fiscal, de um aumento do salário mínimo e de robustos programas de acção social. Doug Henwood, autor de uma das melhores análises dos mercados financeiros, defendia que tal programa, claramente social-democrata, soa, nos dias que correm, a revolução.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

London calling



London Calling - Joe Strummer e The Pogues

República Popular toma conta de Wall Street

Depois de nacionalização do Bear Stearns, da falência do Lehman Brothers e da compra do Merrill Lynch pelo Bank of America, já só restam 2 dos 5 grandes bancos de investimento independentes dos EUA: o Goldman Sachs e o Morgan Stanley. Hoje ficámos a saber que este último se prepara para vender metade do seu capital ao fundo de investimento público chinês. Quando a desconfiança se generaliza nos mercados desregulados, o melhor mesmo é recorrer a quem nunca alinhou em euforias liberalizadoras...

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

É o fim do capitalismo? II

Claro que não. Lembro agora um pequeno episódio. Em Abril, o Secretário do Tesouro norte-americano (equivalente ao ministro das finanças) Hank Paulson (o das actuais nacionalizações), deslocou-se à China para, segundo o FT, «pressionar fortemente» o governo a liberalizar a conta de capital, ou seja, abolir os seus controlos de capitais e sobretudo as suas restrições à operação de bancos estrangeiros na China. Como fizeram a maioria dos países. Muitos sob pressão do FMI, ou seja, dos EUA. Os bancos chineses são na sua maioria públicos e o crescimento chinês tem sido financiado pelas poupanças internas (como sempre acontece nos processo de crescimento bem sucedidos...). Wall-Street estava a perder milhões e queria entrar na China. É uma constante da política externa norte-americana desde os anos oitenta. Clinton foi muito mais bem sucedido noutros países. Paulson desta vez não foi. Ainda bem. A China se calhar já se abriu demais. Recentemente, o governo decidiu reforçar os seus sistemas de controlos sobre as operações fnanceiras. Até o FT aplaudiu. A crise, sempre a crise.

Se queremos perceber como chegámos até aqui, temos de perceber como se gerou o processo de financeirização do capitalismo. Temos de sacudir a amnésia histórica promovida pelos economistas neoliberais com uma lata descomunal. Aproveitam-se da invisibilidade destes processos e tentam enganar os cidadãos. No entanto, muitos não têm culpa. A história económica é cada vez menos o forte dos currículos de economia...

É o fim do capitalismo? III

Claro que não. Um curto esboço de história da financeirização do capitalismo anglo-saxónico dos últimos trinta anos. «Tudo começou» com a decisão de abolir o controlo do movimento de capitais. Reino Unido, governo conservador de Margaret Thatcher, 1979. Rapidamente seguido pelos EUA de Reagan. A partir daqui geraram-se as forças que criaram um plano inclinado. Iniciou-se um processo de transformação que ficou conhecido pelos três D’s.

Desregulamentação, ou seja, abolição de muitas das restrições à acção dos agentes financeiros, que passam a dispor de uma margem margem de manobra muito maior. Tudo no quadro de sistemas de regras nacionais cada vez mais «leves» e que procuram fomentar a auto-regulação, a concorrência e a inovação financeira, ou seja, a criação de produtos financeiros cada vez mais sofisticados e complexos. É preciso ser atractivo para os investidores internacionais. Que agora podem escolher. Só os «economistas antigos» é que ainda falam de especulação.

Desintermediação com a correspondente mudança do negócio bancário que passa da monótona e mais controlada intermediação financeira para a excitante apropriação de comissões com a montagem de operações financeiras crescentemente especulativas, arriscadas e potencialmente lucrativas. Entre estas inclui-se a, até há pouco aplaudida, titularização de créditos, na origem da crise. Através desta, os instrumentos tradicionais de dívida resultantes da intermediação financeira – empréstimos e hipotecas, por exemplo – são convertidos em títulos negociáveis e até podem sair dos balanços dos bancos. Tudo legal e óptimo porque se criam novos produtos e novos fontes de lucros. Todos ganhamos. Não é?

O último D é de descompartimentação, ou seja, da abolição das fronteiras entre os vários tipos de instituições financeiras e de mercados. Muito mais concorrência entre grandes e opacos conglomerados financeiros. Tudo óptimo. Tudo construído políticamente. A política dominante diz: «os «mercados é que sabem».

A actividade das instituições bancárias foi assim profundamente modificada pelo fim do controlo governamental da generalidade das taxas de juro, pela abolição das restrições quantitativas sobre o crédito e sobre os investimentos realizados pelos bancos e pela remoção das barreiras institucionais e geográficas entre os bancos, outras instituições financeiras e os investidores institucionais. Os EUA e o Reino Unido estiveram sempre na vanguarda destes processos políticos. Estas desregulamentação e descompartimentação culminaram, nos EUA de Clinton, com o fim por decreto (sempre por decreto...) da tradicional distinção entre bancos comerciais e de investimento. Esta última medida aboliu uma das principais regras que vinha do New Deal.

Em 1998, John Williamson e Molly Mahar, dois economistas com credenciais impecavelmente liberais, fizeram um balanço histórico das políticas financeiras dominantes desde os anos 80 à escala internacional (acho que o artigo não está na rede). Sistematizaram-nas em seis dimensões essenciais: (1) eliminação dos controlos de crédito; (2) desregulamentação das taxas de juro; (3) acesso, com restrições cada menores, ao sector financeiro em geral e ao sector bancário em particular e maior concorrência; (4) muito maior autonomia bancária, apenas restringida por uma regulação e supervisão publicas de natureza prudencial; (5) propriedade privada dos bancos; (6) Liberalização dos fluxos internacionais de capitais. A Europa não escapou. Pelo contrário. A Comissão Europeia não patrocinou outra coisa.

Aqui está o problema. Chama-se neoliberalismo. E foi a engenharia dominante do nosso tempo. Os resultados estão à vista. A alternativa é a questão. É uma contra-engenharia. Contra estes «mercados». Para uma próxima posta.

É o fim do capitalismo? I

Claro que não. A direita intransigente pode dormir descansada. Parece-me que a pergunta adequada, à luz da actual correlação de forças políticas e intelectuais e daquilo que sabemos sobre os sistemas económicos, é outra e é mais longa: será que isto é o fim de uma certa configuração do capitalismo, sob hegemonia da finança de mercado, que atingiu o seu máximo desenvolvimento no mundo anglo-saxónico e que gerou um padrão de desigualdade e de instabilidade sem precedentes desde 1929? Pode ser que sim. A fragilização endógena de Wall-Street e da City londrina abre uma janela de oportunidade para reformas estruturais (este termo costumava ser da esquerda, lembro-me de ler um discurso de Palmiro Togliatti...). Para isso é preciso perceber o que nós levou até aqui e apresentar propostas de mudança. Vou tentar em próximas postas recuperar o que já se escreveu neste blogue sobre estes assuntos e defender a tradição marxista-keynesiana (esta tradição existe, ao contrário do que acham muitos à esquerda e à direita, – ver este excelente artigo no Le Monde escrito por vários economistas da ATTAC – e pode ter hífen e tudo, mas sem dogmatismos...). Reformar, para gerar um sistema capitalista mais igualitário e decente (porque existe variedade no capitalismo) e a acumulação de forças democráticas, de conhecimento e de confiança que podem um dia autorizar voos mais ambiciosos, mas sempre no quadro de uma economia impura. Infinita paciência e alguma prudência.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Economistas antigos e modernos, filosofia e hegemonia

Silva Lopes, em Agosto de 2007, numa entrevista a Helena Garrido: «Sou um economista antigo, vejo as regulações que tínhamos e que hoje já não existem e fico um bocado preocupado». A história financeira internacional das últimas décadas numa frase.

O actual ministro das finanças, um economista «moderno», disse hoje: «Creio que há um ano atrás todos esperávamos que esta situação e a incerteza que daí decorria se pudesse desvanecer mais rapidamente» (esquerda). O «todos» ilustra bem o consenso neoliberal dos fóruns europeus que o ministro frequenta. Enfim, o que se desvanece rapidamente são mesmo as ideias económicas dominantes entre o Ministério das Finanças e o Banco de Portugal. As suas prescrições ortodoxas não servem para nada agora. Construir «mercados flexíveis» e reduzir o défice, os dois objectivos centrais do OE de 2008, foram a medida de toda a complacência governamental.

É cada vez mais claro que só uma vigorosa política económica keynesiana pode salvar a situação. Esta tem de ser acompanhada, como sempre se defendeu no melhor desta tradição económica, pelo restabelecimento de mecanismos públicos de controlo e de comando que reconfigurem os mercados financeiros e limitem o alcance do «casino». Isto é tarefa para reformas estruturais à escala nacional e internacional. Haja força política.

Entretanto, Barack Obama afirmou ontem que a crise é o resultado de «uma filosofia económica errada». Uma filosofia que contribuiu para destruir as «regulações que tínhamos e que hoje já não existem» e desta forma para gerar padrões, cada vez mais visíveis, de desigualdade e de ineficiência.

Soube que vai ser criado um instituto de investigação Milton Friedman na Universidade de Chicago, financiado por centenas de milhões de dólares de empresas e de milionários. Os que beneficiaram com as suas ideias «libertárias» não esquecem. Acreditam que a hegemonia intelectual se pode comprar. Pode ser que desta vez se enganem. Pode ser.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Quem é que ainda confia nos mercados financeiros liberalizados?

«O mercado imobiliário norte-americano continua em crise. Os preços da habitação caem mês após mês e o número de familias em dificuldade nos pagamentos das suas prestações não pára de crescer. Assim, nos últimos dias assistimos à nacionalização de facto - com um custo de alguns milhares de milhões de dólares - das sociedades de crédito hipotecário Fannie Mae e Freddie Mac, duas agências que, em conjunto, asseguram 80% das hipotecas imobiliárias norte-americanas. Entendidas como garantes de todo o sistema de crédito imobiliário, a falência destas agências abriria as portas a uma autêntica catástrofe nos mercados financeiros. Contudo, quando ainda procurávamos perceber as implicações desta decisão do Tesouro norte-americano, logo fomos informados de mais uma grande instituição financeira em risco de colapso: o banco de investimento norte-americano Lehman Brothers». O resto do artigo do Nuno Teles pode ser lido no esquerda. Confirma-se que o banco de investimento Lehman Brothers vai abrir falência. Entretanto, e para tentar evitar o colapso sistémico, a Reserva Federal lá vai facilitando o acesso dos bancos à liquidez, que só os relativamente sólidos e fiáveis títulos do tesouro norte-americano garantem (o Estado, sempre o Estado...), alargando o espectro de lixo tóxico privado que aceita como colateral para estas operações de financiamento. Como dizia o economista keynesiano Paul Davidson tudo se resume a três palavras: «liquidez, liquidez e liquidez!».

Arrastão

Uma excelente notícia para começarmos bem uma semana que promete ser turbulenta. Temos um novo blogue de esquerda. Chama-se Arrastão. Daniel Oliveira, Pedro Sales e Pedro Vieira decidiram juntar forças. Podemos esperar análise e comentário, jornalismo de investigação, humor e arte. A blogosfera de esquerda consolida-se com cooperação e com muitas e boas postas.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Bernanke ou Trichet?

O Nuno Teles já aqui argumentou muito bem que a inflação não é um problema monetário: «se, como estamos fartos de saber, a actual inflação se deve sobretudo ao aumento dos preços do petróleo e bens alimentares, por que é que são os bancos centrais a tratar do problema?». Nem mais. O BCE achou que devia tratar do problema subindo as taxas de juro. Nem que para isso tivesse que contribuir para a recessão. A Reserva Federal viu o combate à crise financeira e à recessão como a prioridade. A economia norte-americana, até ver, lá se vai aguentando. Com nacionalizações à mistura com o aumento do défice orçamental. Pragmatismo keynesiano mais ou menos escondido. Vamos ver se os desequilíbrios gerados pelas forças de mercado não vão obrigar a muito mais. Entretanto, a economia europeia, com mercados financeiros também demasido liberalizados, mas sem pragmatismo keynesiano na política económica, vai entrar em recessão. O preço da ortodoxia é elevado. De Frankfurt à Almirante Reis.

A taxa de inflação, que nunca atingiu valores que justificassem o pânico do BCE, desce dos dois lados do Atlântico. Paul Krugman diz mesmo que a deflação pode ser agora o problema nos EUA. Outros economistas, ligados ao movimento sindical europeu, alertaram a tempo para a perversidade das prioridades do BCE. Nunca é de mais repetir a minha formulação preferida para os problemas do velho continente: a Europa é como «um daqueles países em vias desenvolvimento a quem o FMI costuma impor um dos seus rígidos programas de estabilização (. . .) sob a tutela de um grupo de funcionários não eleitos» (Andrea Boltho da Universidade de Oxford). É por isto que a ortodoxia do BCE é desde o início um dos nossos principais alvos.

Os 'rankings' ou reino da propaganda

Já sabemos que o Director do Público, José Manuel Fernandes (JMF), é fanático de ‘rankings’. Também já nos vamos habituando a tê-lo como o exemplo acabado do perigo que é endeusar os ‘rankings’ como instrumento para compreender a realidade.

Os problemas envolvidos são conhecidos. Os ‘rankings’ procuram sintetizar num indicador um conjunto de realidades complexas, o que é quase por definição impossível. Se isto tem a vantagem de simplificar a mensagem (tornando a sua transmissão mais eficaz), convida a leituras simplistas da realidade. Na maioria das vezes, os resultados dependem crucialmente dos indicadores utilizados e da metodologia de agregação. Este problema é agravado pela recorrente recusa da comunicação social dominante para aprofundar qualquer tema – dois parágrafos seriam em geral suficientes para alertar para as insuficiências da análise, mas isso é pedir muito para grande parte dos jornalistas (ou dos responsáveis editoriais). Quando tudo isto se junta à tendência maniqueísta daqueles com poder para influenciar o discurso dominante – como é o caso de JMF – começamos a pensar se não seria melhor viver sem ‘rankings’.

O editorial do Público de hoje é dedicado ao relatório «Doing Business» de 2009, publicado pelo Banco Mundial. O ‘ranking’ aí publicado é construído com base em inquéritos a alguns entrevistados escolhidos a dedo - gabinetes de advogados, empresas de consultoria, associações empresariais, etc. – sobre a sua percepção acerca das condições (tempo e custos) para o registo de propriedade, a criação e fecho de empresas, o despedimento de trabalhadores, a resolução de disputas comerciais ou as transacções internacionais (em alguns casos, os resultados obtidos são complementados com estatísticas mais ou menos oficiais).

JMF diz tratar-se de um ‘ranking’ sobre «a capacidade dos diferentes países de atraírem negócios», o que é errado. Trata-se de uma análise selectiva sobre as «condições para realizar negócios». JMF pode achar que é a mesma coisa, mas não é. Para dar alguns exemplos, a atracção de investimentos depende de factores como a proximidade a mercados de grandes dimensões ou em crescimento, a qualidade das infra-estruturas, as habilitações e qualificações e dos dirigentes das empresas e dos trabalhadores, ou os incentivos públicos ao investimento. Nenhum destes aspectos é coberto pelo «Doing Business».

Para além disso, as respostas dependem muito da percepção de quem responde aos inquéritos. Por exemplo, se existe uma expectativa de que os responsáveis políticos são vulneráveis à pressão dos interesses empresariais, estes mais facilmente irão enfatizar a necessidade de alguns tipos de ‘reformas’ que estão em cima da mesa (pois sabem que haverá JMFs para difundir a mensagem da melhor forma).

Como é costume nestas coisas, tentam fazer-nos crer que essas reformas são as necessárias à atracção do investimento e ao crescimento económico. Nós até ficaríamos convencidos disso, não fora o facto de (i) diferentes estudos sobre «a capacidade de atrair negócios», usando indicadores e métodos diferentes, darem origem a ‘rankings’ muito distintos (por exemplo, dos 10 países que aparecem à frente no «Doing Business» só 3 estão entre os 10 primeiros no World Investment Report de 2007, da UNCTAD - ver figura ao lado) e (ii) não haver estudos que permitam estabelecer uma relação estatisticamente robusta entre muitas das condições consideradas relevantes para a atracção do investimento e o desempenho dos países nessa frente.

Ou seja, num tom sério de quem discute o futuro do país, acabamos quase sempre por nos encontrar no domínio da propaganda.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Escutem bem os desmentidos!



Paulo Pedroso disse ontem em entrevista: "Não tenho nada contra o Bloco Central" em caso de maioria relativa do PS. A declaração de Pedroso é, no entanto, menos reveladora do que a formulação dos desmentidos que se seguiram:

José Lello considerou especulativas estas declarações. Mas o que é especulativo é a ideia de que o PS poderá não ter maioria absoluta. Sobre a disponibilidade para um Bloco Central, José Lello não diz nada.

Mas bem mais claro foi Vital Moreira:

"A fórmula de governo deve ser uma questão pós-eleitoral, não pré-eleitoral". Ou seja, primeiro conta-se os votos, depois conta-se o plano. Vital Moreira acha que os eleitores socialistas não precisam de saber se o PS se vai aliar à direita depois das eleições, em caso de maioria relativa.

Aliás, Vital Moreira vai mais longe quando afirma que "admitir nesta fase do campeonato um governo de "bloco central" constitui uma inestimável ajuda à ofensiva do PCP e do BE contra o PS." (bold de VM)

Portanto, nesta fase do campeonato, o que é preciso é não ajudar a ofensiva do PCP e do BE. Para outras jornadas ficará uma decisão efectiva sobre o assunto.

Aliás, o post de Vital Moreira chama-se "especulação prematura". Interroga-se o leitor: Quando é que as especulações não são prematuras? Quando se tornam factos.

Ficamos à espera dos desmentidos. Daqueles que se percebem.

Res Privata: chegou a vez das matas nacionais

Vale a pena ler o artigo de Vitor Louro sobre o «liberalismo florestal» no Público de hoje. Duas passagens que me parecem muito relevantes: «O que está em causa é a possibilidade de entregar a entidades não públicas a gestão das matas nacionais (Pinhal de Leiria, dunas do litoral, Valverde, Herdade da Parra e outras), a maior parte das quais com uma fortíssima vocação de protecção. E isto em nome da alegadamente demonstrada incapacidade de gestão pelo Estado das suas próprias matas. Antes de mais é bom lembrar que o Estado tem vindo a perder essa capacidade em consequência das políticas que têm orientado as nomeações de dirigentes e o esvaziamento dos serviços. Assim, os governos fazem o mal e a caramunha (. . .) O que se passa é que sempre o Estado geriu essas áreas, com resultados que as tornam apetecíveis à ‘iniciativa privada’, especialmente se continuarem a pingar os apoios financeiros estatais. Trata-se de nacos muito apetecidos. Mas a verdade é que empresas cujo objectivo é a maximização dos lucros, não se perdem com ‘ninharias’ de protecção do Ambiente (erosão, paisagem, recursos hídricos, desertificação...)». O neoliberalismo, na sua dimensão mais predatória, é assim: destruição progressiva das capacidades de gestão do sector público e do conhecimento profissional acumulado em instituições e entrega aos privados dos recursos que são de todos e com a ajuda do esforço fiscal de todos. É claro que a defesa da Res Publica não passa por estas engenharias de mercado do «socialismo moderno». É por esta e por muitas outras que o «tanque» das políticas públicas de Sócrates e de Vitorino tem mesmo que mudar de nome: Res Privata.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A injustiça social faz muito mal à saúde

O título deste artigo sintetiza a principal conclusão de um notável relatório lançado recentemente pela Organização Mundial da Saúde. Coordenado por Michael Marmot, uma referência incontornável na área dos "determinantes sociais da saúde", e tendo a colaboração, entre outros especialistas, do Prémio Nobel da Economia Amartya Sen, este relatório oferece-nos um retrato realista da extensão das desigualdades nacionais e internacionais na área da saúde, dos mecanismos sócio-económicos que as geram e dos principais meios para as superar. Fá-lo através de uma impressionante recolha de evidência estatística, de estudos de caso e de análise histórica e institucional. O assunto não admite relativismos de nenhuma espécie e sobretudo não admite o subjectivismo egoísta que justifica todas as insanas utopias de mercado. Trata-se aqui de uma questão de vida ou de morte. E as utopias de mercado matam. Literalmente. O resto pode ser lido na minha contribuição mensal para o Jornal de Negócios.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

A Tragédia dos Comuns II

Uma mesma história – a Tragédia dos Comuns – duas «lições» opostas: privatização (Demsetz) ou administração pelo Estado (Hardin). Não há alternativa.

Mas, não haverá mesmo?

Vinte e anos depois a história de Demsetz e Hardin resurgiu no trabalho de Robert Wade só que agora sem tragédia («The management of common property resources: collective action as an alternative to privatisation or state regulation», Cambridge Journal of Economics, nº11, pp. 95-106, 1987). Wade estudou comunidades do Sul da Índia em que recursos como a água eram propriedade comum e descobriu que, em muitos casos, o recurso era utilizado de forma sustentável sem que existisse intervenção coerciva de qualquer agente externo, nem privatização. Concluía Wade:

«Uma longa linha de teóricos dos direitos de propriedade defendeu que os recursos em regime de propriedade comum acabaram necessariamente por ser sobre-explorados à medida que a procura aumenta. Para alguns autores, a única solução é a delimitação da propriedade, para outros a regulação estatal. (…) Os resultados da minha investigação são difíceis de reconciliar com estes argumentos.»

O que Wade efectivamente encontrara é que em muitos casos as comunidades geriam o recurso com sucesso em regime de propriedade comum. Em comunidade, agindo em colectivo, os indivíduos eram capazes de estabelecer uma regra de acesso individual ao recurso comum que tendiam habitualmente a respeitar e empenhavam-se na monitorização do seu cumprimento por parte dos outros.

Para Wade os estudos de caso mostravam que além da privatização e da regulação estatal existiam outras formas de conjurar a tragédia. No entanto, Wade também verificara que, a par dos casos de sucesso, existiam outros em que a tragédia dos comuns se manifestava efectivamente.

Daqui emergiam novas perguntas: Em que circunstâncias as pessoas que enfrentam uma potencial tragédia dos comuns são capazes de organizar um sistema de regras que permite evitar a tragédia? Quais são essas circunstancias? Quais são essas regras?

As descobertas de Wade têm sido confirmadas e as suas perguntas retomadas por muitos outros.
Parece-me que vale a pena olhar com mais atenção para os resultados de toda essa investigação de que Elinor Ostrom é outro nome de referência.

Res Privata

Dada a prática dominante do «socialismo moderno» no campo das políticas públicas e a filosofia que implicitamente a enquadra, proponho uma mudança de nome para o «tanque» onde se irão lavar todas as ideias do «centro-esquerda»: Res Privata.

O Tanque


"Estavam lá todos. Quase o pleno dos membros do Governo, muitos deputados, alguns históricos socialistas. Ninguém quis faltar ao acto oficial de apresentação da Fundação Res Publica, o grupo de reflexão que é uma espécie de "think tank" (instituição de debate e reflexão) socialista. Na nova instituição, caberão todas as esquerdas." Público

"Eu não tenho dúvidas. São atitudes como estas dos partidos políticos, e esforços como estes, que credibilizam a política em Portugal. É o esforço de tanta gente, que quer dar o seu melhor para procurar novas ideias e novos projectos, que credibiliza e dá confiança à política no nosso país. Do que eu não tenho dúvidas é que o que não dá credibilidade à politica é o discurso do negativismo, é o discurso da maledicência, é o discurso do pessimismo, é o discurso do bota-abaixo, é o discurso de que “nada é possível fazer no nosso país”. Não. Esse é um discurso medíocre, que nada tem a oferecer ao país, e que só convida à desistência e ao conformismo". José Sócrates, 8 Setembro 2008, no lançamento da fundação Respública.

Na apresentação de um Grupo de Reflexão à Esquerda, o PS apresenta os porta-vozes do costume, Sócrates atira-se à oposição (Externa e Interna). Lavagem de roupa suja, portanto. Quanto às ideias sobre o que deve ser uma governação à esquerda, ao balanço crítico da políticas, ao debate com cépticos e opositores do Governo, vão ter de esperar, que agora é tempo de propaganda.

Este discurso do "Abaixo o bota-abaixo", aliás, tem muita história nos governos portugueses. Todos, mais tarde ou mais cedo, acabam a resmungá-lo em diferentes versões, desde as forças de bloqueio até aos profetas da desgraça. Bem dizia há uns anos António Guterres, sobre o executivo de Cavaco Silva: "Nós não temos um Governo, temos uma oposição à oposição."

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Menos Estado, tanta ou mais despesa

Como é que um Estado mais pequeno nos pode sair tão caro ou ainda mais do que outro um pouco maior e mais produtivo? Subcontratando, subcontratando, subcontratando sempre.

O Publico (8 Set. 2008, p7) explica: «Vários hospitais públicos recorrem a empresas privadas que cobram valores muito altos por hora. Há médicos que ganham 2500 euros numa urgência de 24 horas num hospital público quando contratados por empresas privadas, e alguns deles pertencem mesmo ao quadro do estabelecimento onde fazem o 'banco'».

Se calhar, se formos a ver, na realidade o que há é empresas que cobram isso ao hospital contratante sem que o médico contratado sonhe sequer com o montante que o intermediário obteve com a venda dos seus serviços.

Mas neste caso o Ministério responsável vê nisto um problema a resolver e «quer limitar contratações caras de médicos». E que tal reconhecer que o problema existe em todo o Estado fazendo da vontade do Ministério da Saúde exemplo?

Os privados são sempre mais eficientes...

... Quando não são, o Estado paga.

"O governo dos Estados Unidos da América decidiu assumir o controlo das empresas Fannie Mae e Freddie Mac, as duas gigantes do crédito imobiliário, para evitar a sua falência. O plano governamental prevê o investimento até 200.000 milhões de dólares nas duas empresas, tornando-se na maior intervenção de sempre do Estado norte-americano no sector financeiro."

O mito do mercado livre implode

Aqui está. Todos os insanos «princípios» neoliberais convenientemente deitados para o lixo. Onde importa. Na prática política. A estabilidade do sistema não se compadece com a vulgata do «mercado livre». O governo dos EUA foi obrigado a nacionalizar a Fannie Mae e a Freddie Mac, dois actores maiores do mercado imobiliário norte-americano. A palavra suja não é usada claro. No entanto, os 200 mil milhões de dólares injectados falam por si e pela boa gestão privada das duas instituições charneira. A Fannie Mae é um produto do New Deal. E durante décadas ajudou a garantir a estabilidade do mercado imobiliário. Foi privatizada no final dos anos sessenta. A Freddie Mac foi criada nos anos setenta para ajudar no desenvolvimento do processo de financeirização que marcou as décadas neoliberais subsequentes. Os resultados estão à vista. O Estado está por isso de regresso. Às claras. Habituem-se. Este livro acabadinho de sair explica porquê. E expõe as diferentes modalidades que este regresso pode assumir. Escrito pelo economista keynesiano de esquerda James Kenneth Galbraith, o melhor que posso dizer é que está à altura da obra do pai (John Kenneth Galbraith). Quando tiver mais tempo, hei-de escrever uma recensão a justificar por que é que este livro contém uma rigorosa análise económica das últimas três décadas de injustiça social e de ineficiência, uma excelente descrição dos mecanismos que geraram a presente conjuntura e dos meios para superar as dificuldades que afectam a actual configuração do capitalismo. Se passar por aqui algum editor fica o apelo à tradução. Podem encontrar uma boa discussão do livro aqui. James K. Galbraith foi o principal conselheiro económico de John Edwards. Diz-se que a candidatura de Obama está atenta às suas ideias. Esperemos que sim. Como aconteceu no New Deal, pode ser que as circunstâncias tornem inevitável o que parece ser hoje impossível. Optimismo da vontade.

sábado, 6 de setembro de 2008

A Tragédia dos Comuns

«Imaginem uma pastagem aberta a todos» – escrevia Garrett Hardin na revista Science em 1968, evocando os Commons da Inglaterra pré-industrial ou os nossos baldios ancestrais. Durante séculos enquanto a guerra, a miséria e a doença contiveram a população humana e animal abaixo do limite de capacidade da pastagem, este arranjo comunitário funcionou razoavelmente bem. Mas o que acontece quando ambas as populações aumentam?

Para chegarmos à resposta de Hardin teremos de pressupor que todos os criadores de gado usam a pastagem com o objectivo de maximizar o seu ganho pessoal e que os animais, contrariamente à pastagem, são propriedade individual dos seus criadores.

Se assim for, para cada um dos utilizadores do prado comum, a decisão de criar um novo animal deve basear-se, de acordo com os pressupostos que Hardin aqui adoptava, numa análise de custo-benefício. Tomemos x como o benefício de criar um novo animal e y como o custo de fazer. O benefício, x, é o valor de mercado do animal no momento de ser vendido. O custo, y, consequência do sobre-pasto, é a perda de peso de todos os animais que se alimentam da pastagem comum decorrente da presença de mais um animal. Para o conjunto dos criadores o custo de um novo animal é pois y, mas do ponto de vista de quem decide se deve ou não criá-lo é apenas uma parte de y, chamemos-lhe z. É fácil verificar que mesmo quando x é menor do y é possível que x seja maior do que z. Isto é, mesmo que a análise custo-benefício social desaconselhe a criação do novo animal, a mesma análise, agora individual, pode recomendar o contrário. O indivíduo supostamente movido pela maximização do ganho pessoal adoptará o ponto de vista individual. Conclui Hardin: mesmo quando a capacidade da pastagem foi ultrapassada e cada novo animal origina perdas colectivas que ultrapassam os benefícios, os criadores individuais insistirão em sobrecarrega-la mais e mais. E acrescenta:
«Aqui reside a tragédia. Cada homem é presa de um sistema que o obriga a aumentar a sua manada sem limite – num mundo que é limitado. A ruína é o destino para o qual todos se precipitam, cada um em persecução do seu melhor interesse numa sociedade que acredita na liberdade dos bens comuns».

Hardin era um ecologista. Ele não discutia a sustentabilidade de prados comunitários em face do crescimento do número de cabeças de gado, mas a sustentabilidade do planeta em face do crescimento demográfico. Para ele a lógica era a mesma nos «comuns» ou na «casa comum» e essa lógica encerrava consequências trágicas. A Tragédia dos Comuns podia ser evitada, mas não com apelos à consciência e à responsabilidade. O remédio era a coerção – «coerção mútua, mutuamente acordada pela maioria das pessoas afectadas» – isto é, a intervenção de um agente «externo» a quem fosse atribuída a prerrogativa de monitorizar o cumprimento de uma regra de restrição de acesso por parte dos indivíduos e administrar sanções em caso de incumprimento.

Um ano antes de Hardin, um outro autor, desta vez um economista, Harold Demsetz, evocara uma história semelhante para discutir não questões ambientais, mas um problema da teoria económica. Os índios da Península do Labrador partilhavam tradicionalmente um mesmo território de caça onde obtinham alimento e peles. Como é natural, o que cada um fazia no território comum, o número de animais que caçava, tinha repercussão no povoamento animal do território e portanto consequências para os outros caçadores. Mas num mundo de abundância, próximo de idílios originais, estes efeitos cruzados, ou externalidades, eram, segundo Demsetz, negligenciáveis.

Mas, com a chegada dos comerciantes de peles ocidentais o contexto alterou-se. Para os caçadores índios as peles tornaram-se então moeda de troca para bens incrivelmente tentadores. Em consequência, a caça no território comum intensificou-se, as populações animais decresceram e as externalidades deixaram de ser negligenciáveis. Como na história de Hardin os índios de Demsetz estão agora numa situação trágica. Eles são racionais, mas, como os benefícios das suas acções são superiores à parcela dos custos que incumbe a cada um, insistem em caçar para além dos limites dentro dos quais a actividade é sustentável.

Dizia-nos Demsetz que, de acordo com o registo antropológico, foi por esta altura que nesta sociedade de caçadores emergiu a propriedade privada. O território de caça, anteriormente usufruído em comunidade, foi retalhado e atribuído em parcelas às diferentes famílias. Demsetz explicava: confinados a territórios relativamente bem delimitados os caçadores tornavam-se mais prudentes. Agora as consequências da sobre-caça iriam recair em primeiro lugar sobre eles próprios, ou na linguagem técnica de Demsetz, as externalidades eram parcialmente internalizadas.

Sobre a propriedade isto é o que se ensina na generalidade dos actuais cursos de Economia. O mesmo em todos eles, sem direito a contraditório. Discutir se a propriedade privada é ou não legítima, ou quando é que é legítima, já não interessa nada. Agora o que importa é mostrar que é o único arranjo social eficiente, o único que não conduz ao desastre. E para isso a Tragédia dos Comuns e Demsetz servem muito bem.

Tudo isto é, no mínimo, discutível. Ao longo deste mês tentarei mostrar porquê.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Populismo repressivo?

«O Orçamento de Estado para 2009 prevê um aumento das verbas destinadas às forças de segurança, anunciou hoje o ministro da Administração Interna» (Público). Num contexto de crise socioeconómica grave e na mais desigual e injusta sociedade europeia, um governo socialista prefere reforçar o aparelho repressivo. Prioridades de quem não consegue resistir às irresponsáveis «ondas mediáticas» que a comercialização sem freios da televisão tende a gerar? Já agora, deixo aqui um excerto de um artigo sobre «o neoliberalismo como intervencionismo de mercado» que eu e o Nuno Teles escrevemos para o Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa de Julho (referências omitidas):

A expansão politicamente suportada das forças de mercado e o aumento das desigualdades e da desestruturação social que esta expansão sempre gera, conjugada com o esvaziamento progressivo do Estado Social assente na provisão pública universal, têm levado, nos países desenvolvidos onde estes processos foram mais longe, a um reforço das áreas de actuação do Estado associadas à repressão e à punição, ou seja, à emergência e reforço de um Estado Penal, que é tanto mais importante quanto mais neoliberal é o modelo de desenvolvimento socioeconómico em causa.

Sendo Portugal uma das mais desiguais sociedade da Europa e tendo um Estado Social frágil e em processo de reconfiguração neoliberal, não é de admirar que o governo pareça apostar no reforço selectivo da provisão pública e privada na área da segurança. Portugal tem um polícia para cada 227 habitantes, quando a média europeia é de um para 350. E o governo, num contexto de suposta contenção orçamental, prometeu formar mais dois mil polícias nos próximos tempos, assinalando assim a sua aposta num reforço muito selectivo da provisão pública. A segurança privada, por sua vez, é um dos poucos sectores económicos a registar um crescimento assinalável nos últimos anos de estagnação económica, expandindo-se com apoio do Estado, já que o sector público tem um peso de 30% na facturação do sector.

Nota. Sobre este tema vale a pena ler esta posta de Pedro Sales no Zero de Conduta.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Segurança paga: afinal pouco de novo

Pelo Público de hoje ficamos a saber que afinal não se tratava de propor aos donos de bombas de gasolina que contratem e paguem seguranças privados. O que vai acontecer é que o Estado vai celebrar um protocolo com empresas privadas «para prevenir os assaltos a postos de abastecimento». A notícia fala de dispositivos electrónicos e acções de formação, mas não dá muito mais detalhe acerca do conteúdo do protocolo. Quem paga? A avaliar pela satisfação do representante dos proprietários de bombas de gasolina à saída de uma reunião no ministério, deve ser o Estado.

Não há grande novidade portanto. Apenas mais subcontratação de serviços privados por parte do Estado e outro episódio na história do Estado mais pequeno que nos custa o mesmo ou ainda mais; só que desta vez numa área particularmente sensível: a segurança interna.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

O fardo da desigualdade extrema

Um excelente sítio sobre o fardo das desigualdades socioeconómicas nos EUA e sobre as melhores formas de as superar. Bem desenhado e com muita informação. Em Portugal há quem se dedique a estudar seriamente este assunto - o nosso maior constrangimento socioeconómico e um poderoso factor de corrosão dos sentimentos morais. É preciso popularizar os dados e os argumentos a favor de uma maior igualdade. Temos aqui um bom modelo. Que tal uma versão portuguesa? Porque, como ali se argumenta recorrendo a ampla evidência, a desigualdade está indissociavelmente ligada à precariedade, ao prolongamento dos horários de trabalho, à corrupção, à insegurança ou à degradação da provisão dos bens públicos. Até o Banco Mundial, sistematizando muita da investigação económica recente sobre o assunto, que já superou o mito do necessário «trade-off equidade-eficiência», reconhece a desigualdade elevada como um poderoso constrangimento ao desenvolvimento económico. Estes dois gráficos sobre a evolução dos rendimentos nos diferentes escalões de rendimento (dos 20% mais pobres aos 5% mais ricos) em dois períodos da história dos EUA (1947-1979 e 1979-2006) são, neste contexto, bastante elucidativos. Há muitos manuais de introdução à economia que precisam mesmo de uma boa revisão. Pouco provável. Como afirmou John Kenneth Galbraith: «tal como é convencionalmente ensinada, a economia é em parte um sistema de fé, cujo propósito não é tanto revelar a verdade, mas mais fortalecer a confiança dos que dela comungam nos dispositivos sociais estabelecidos».

Nota. Uma informativa recensão de Renato Carmo inaugurou, no passado mês de Agosto, uma rúbrica sobre desigualdades em Portugal no Le Monde Diplomatique -Edição Portuguesa. Todos os meses sairá um artigo sobre o tema. A acompanhar.

Quem quer segurança paga-a!

Os proprietários das bombas de gasolina reclamam segurança. Responde-lhes o governo [é pelo menos o que ouvi na rádio] : «Ponham lá seguranças privados». «E quem paga?», perguntam os proprietários indignados, como indignado estaria qualquer cidadão contribuinte cumpridor a quem dissessem “quem quer segurança pague-a”.

Não sei qual foi a resposta. Só sei que mesmo assim o responsável da associação de proprietários lá foi dizendo dos serviços dos seguranças privados: “Quando até os polícias nas esquadras são agredidos, para que servem seguranças desarmados. Se pudessem estar armados, ainda vá ...”

A privatização levada ao absurdo. Quem quer segurança paga-a e a segurança privada tem de estar armada. O monopólio do uso da força é uma coisa pouco competitiva. Que tal uma milícia armada por sector de actividade económica?

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Onde está o novo príncipe?

«O entusiasmo da esquerda europeia [com Obama] explica-se então facilmente. Há muito tempo que ela vê os buracos na narrativa liberal-financeira dominante; mas não tem nada para propor em troca» (Rui Tavares). Não me parece que os problemas da esquerda estejam relacionados com a ausência de alternativas robustas à narrativa neoliberal. Nem que Obama proponha algo de novo nesta área. Dos dois lado do Atlântico, já há muito tempo que se multiplicam as propostas socioeconómicas de mudança: das crises financeira e ecológica aos problemas do desemprego e das desigualdades, não faltam ideias de reforma institucional e de política económica tanto à escala nacional como à escala internacional. O problema fundamental é de ordem política, de poder, de capacidade para conquistar a hegemonia. Construir coligações sociais vencedoras, difundir e popularizar ideias, mover maiorias e tentar mudar as coisas no governo. Essa arte tem faltado à esquerda fora da América Latina. Aqui Obama pode dar um grande contributo: ganhar as eleições e, uma vez no poder, estar à altura do seu magnifico discurso na convenção democrata. Não é pouco.

Na Europa, a esquerda tem um problema particular: os mecanismos de governo económico europeu em que a social-democracia se deixou enredar e esgotar e que corroem as bases de qualquer alternativa. Na realidade, isto faz parte de um problema bem mais grave: à esquerda há quem não veja «os buracos na narrativa liberal-financeira» e quem aceite que esta continue a definir as opções de governo e os termos do possível. A esquerda que vê o total fracasso da actual trajectória só tem que ter confiança nas suas ideias. Joseph Stiglitz afirma que «a esquerda tem uma agenda coerente que conjuga crescimento e justiça social». Acho que sim. O problema é mesmo de poder. Nas diferentes escalas.