quinta-feira, 18 de setembro de 2008

É o fim do capitalismo? III

Claro que não. Um curto esboço de história da financeirização do capitalismo anglo-saxónico dos últimos trinta anos. «Tudo começou» com a decisão de abolir o controlo do movimento de capitais. Reino Unido, governo conservador de Margaret Thatcher, 1979. Rapidamente seguido pelos EUA de Reagan. A partir daqui geraram-se as forças que criaram um plano inclinado. Iniciou-se um processo de transformação que ficou conhecido pelos três D’s.

Desregulamentação, ou seja, abolição de muitas das restrições à acção dos agentes financeiros, que passam a dispor de uma margem margem de manobra muito maior. Tudo no quadro de sistemas de regras nacionais cada vez mais «leves» e que procuram fomentar a auto-regulação, a concorrência e a inovação financeira, ou seja, a criação de produtos financeiros cada vez mais sofisticados e complexos. É preciso ser atractivo para os investidores internacionais. Que agora podem escolher. Só os «economistas antigos» é que ainda falam de especulação.

Desintermediação com a correspondente mudança do negócio bancário que passa da monótona e mais controlada intermediação financeira para a excitante apropriação de comissões com a montagem de operações financeiras crescentemente especulativas, arriscadas e potencialmente lucrativas. Entre estas inclui-se a, até há pouco aplaudida, titularização de créditos, na origem da crise. Através desta, os instrumentos tradicionais de dívida resultantes da intermediação financeira – empréstimos e hipotecas, por exemplo – são convertidos em títulos negociáveis e até podem sair dos balanços dos bancos. Tudo legal e óptimo porque se criam novos produtos e novos fontes de lucros. Todos ganhamos. Não é?

O último D é de descompartimentação, ou seja, da abolição das fronteiras entre os vários tipos de instituições financeiras e de mercados. Muito mais concorrência entre grandes e opacos conglomerados financeiros. Tudo óptimo. Tudo construído políticamente. A política dominante diz: «os «mercados é que sabem».

A actividade das instituições bancárias foi assim profundamente modificada pelo fim do controlo governamental da generalidade das taxas de juro, pela abolição das restrições quantitativas sobre o crédito e sobre os investimentos realizados pelos bancos e pela remoção das barreiras institucionais e geográficas entre os bancos, outras instituições financeiras e os investidores institucionais. Os EUA e o Reino Unido estiveram sempre na vanguarda destes processos políticos. Estas desregulamentação e descompartimentação culminaram, nos EUA de Clinton, com o fim por decreto (sempre por decreto...) da tradicional distinção entre bancos comerciais e de investimento. Esta última medida aboliu uma das principais regras que vinha do New Deal.

Em 1998, John Williamson e Molly Mahar, dois economistas com credenciais impecavelmente liberais, fizeram um balanço histórico das políticas financeiras dominantes desde os anos 80 à escala internacional (acho que o artigo não está na rede). Sistematizaram-nas em seis dimensões essenciais: (1) eliminação dos controlos de crédito; (2) desregulamentação das taxas de juro; (3) acesso, com restrições cada menores, ao sector financeiro em geral e ao sector bancário em particular e maior concorrência; (4) muito maior autonomia bancária, apenas restringida por uma regulação e supervisão publicas de natureza prudencial; (5) propriedade privada dos bancos; (6) Liberalização dos fluxos internacionais de capitais. A Europa não escapou. Pelo contrário. A Comissão Europeia não patrocinou outra coisa.

Aqui está o problema. Chama-se neoliberalismo. E foi a engenharia dominante do nosso tempo. Os resultados estão à vista. A alternativa é a questão. É uma contra-engenharia. Contra estes «mercados». Para uma próxima posta.

4 comentários:

Tiago disse...

Cada vez mais me parece que há um primado da política sobre a economia:

O neoliberalismo foi a forma de nos ultimos 30 anos de transferir riqueza para os ricos.

Nos ultimos 30 dias estamos a assistir a socialismo para os ricos (fascismo, há quem lhe chame). Um governo republicano nacionaliza a maior companhia de seguros do mundo... Pode ser, desde que ajude os do costume.

O neoliberalismo foi o meio. Se estatizar tudo (tudo o que for prejuizo) tambem ajudar os "haves e os have mores", então também passa a ser bom.

O neoliberalismo está morto... isso nao quer dizer que a acumulacao de riqueza vá ser parada. O que se segue pode ser pior ainda...

Anónimo disse...

Caro camarada

É muito útil esta abordagem, mas falta uma referência ao que é que originou a viragem neoliberal (termo bastante equívoco, mas enfim...). De acordo com os teus posts, ela parece ter resultado de uma alteração da relação de forças na esfera política num sentido conservador (Reagan e Thatcher).

O problema, do meu ponto de vista, é mais profundo e estrutural. O início do fim do Estado social e da lógica económica keynesiana resulta sobretudo da crise do Estado social e da lógica económica keynesiana. Quer um período quer outro (keynesianismo e neoliberalismo), independentemente das suas configurações concretas, correspondem a duas etapas do desenvolvimento capitalista, encadeadas historicamente e determinadas essencialmente pela necessidade de expansão infinita do sistema.

A opção de opor a recuperação do Estado social à crise do neoliberalismo, para além de configurar uma falsa alternativa, parece algo do género «meter o Rossio na Rua da Betesga». A instalação do Estado social correspondeu a um conjunto de condições históricas que hoje, manifestamente, não existem.

Do meu ponto de vista, a alternativa que hoje dramaticamente se coloca é, para recuperar o jargão, entre socialismo (entendido aqui em sentido lato como uma perspectiva anticapitalista) e barbárie. Não estamos necessariamente a chegar ao fim do capitalismo, mas, como geralmente acontece no final de cada ciclo, a resposta do sistema é o acentuar da célebre destruição criativa. Resta saber onde nos levará a criatividade...

Anónimo disse...

"O capitalismo morreu. Viva o capitalismo !"

Não, mas está perto. Pelo menos o regente anterior deu-se como incapaz de resolver o paradigma que o capitalismo propicia, definhou e parece estar moribundo. Vejam mas é se não esperneia ...

O mal que se segue sff ...

Anónimo disse...

"A instalação do Estado social correspondeu a um conjunto de condições históricas que hoje, manifestamente, não existem."

Poder-me-ia esclarecer um pouco mais este tópico?