sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Pedalada


O modelo proposto é o do
“New Deal Verde”. Um ambicioso programa de desmercadorização da provisão de serviços públicos da água à energia, passando pelo transporte coletivo, que assegure emprego e rendimento aos trabalhadores através da socialização do investimento e da propriedade dos meios de produção. O exemplo da produção da energia elétrica, com mobilização pública de investimento centralizado, planeado, que permita, por um lado, a criação de trabalho de qualidade, sindicalizado e bem-remunerado e, por outro, a garantia do acesso à energia como direito social, mostra um caminho já trilhado antes e que pode ser replicado em muitos outros sectores. O combate às mudanças climáticas é o combate ao capital e essa é também a luta dos trabalhadores pela sua emancipação.

Excerto de Alterações Climáticas: Superar a Jardinagem Política, mais um texto de Nuno Teles no seu substack. Se o professor de Economia da Universidade Federal da Bahia não vem ao blogue, o blogue vai até ele.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Passar ao lado da questão de fundo

No debate sobre a concentração de serviços de obstetrícia como solução para as intermitências de funcionamento em períodos críticos (meses de verão e quadra natalícia), e aludindo à reorganização da rede de maternidades promovida por Correia de Campos, tem sido defendido (ver por exemplo aqui ou aqui) ser esta a estratégia a adotar, dando nota dos obstáculos políticos (relacionados com a oposição à medida por parte de autarcas e deputados dos círculos eleitorais em questão), inerentes a essa abordagem.

Sucede, contudo, que os fundamentos em que assentou a reorganização da rede de maternidades em 2006/07 são bem distintos daqueles em que se baseia a atual proposta de concentração de serviços. O que estava em causa no tempo do ministro Correia de Campos, para lá da racionalização da despesa, era a necessidade de garantir, em territórios em declínio demográfico, um volume e diversidade de situações que assegurassem a «massa crítica» necessária à própria qualidade da resposta. Hoje, distintamente, o que está em causa é apenas a falta de recursos humanos para garantir o regular funcionamento destes serviços do SNS na região de Lisboa e Vale do Tejo, que é tudo menos desertificada.

Por outro lado, o que se constata é que os privados têm vindo, paulatinamente, a realizar uma proporção cada vez maior de partos (de 6,2% para 17,2% do total, entre 1999 e 2022), estimando-se, de acordo com a Ordem dos Médicos, que mais de 40% do total de ginecologistas e obstetras trabalhem no setor privado, sendo que na Grande Lisboa, cerca de 50% dos obstetras apenas trabalha no privado.


Muito mais que uma questão de reorganização e concentração dos serviços, a questão de fundo é pois, por isso, a da capacidade de reter e atrair novos profissionais para o SNS, travando a sua fuga para um setor privado em expansão. Um setor privado que é incapaz de cumprir plenamente princípios de política pública, como demonstra a prática de transferência de situações clínicas mais complexas para o SNS ou o excesso de recurso a cesarianas (65% do total de partos no privado em 2022, que comparam com os 32% registados no SNS, segundo a Pordata).

Não se espere, contudo, que o atual governo dê passos no caminho necessário, de fixação e atração de novos profissionais de ginecologia e obstetrícia para o SNS. Pelo contrário, não só o atual executivo propiciou uma situação ainda mais crítica no verão de 2024, face a 2023, como as medidas que já adotou e pretende adotar - nomeadamente no Plano de Emergência e Transformação na Saúde - vão no sentido de um reforço significativo do recurso ao setor privado, alimentando-o assim com um volume cada vez maior de recursos públicos.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Currículo perfeito


Profunda conhecedora de swaps na ótica do perdedor, governante da troika, especialista em austeridade e em sucatear património público, beneficiária das portas giratórias, com passagem direta de vende-pátrias para uma multinacional de cobrança de créditos duvidosos, onde a sua agenda deu jeito certamente: Maria Luís Albuquerque tem um currículo perfeito para comissária europeia. 

No Livre afiançaram que se lhe conhece “muito pouco pensamento europeu”. Pelo contrário, quem apresentou um livro de Mithá Ribeiro, deputado do Chega, cobrindo-o de elogios, tem pensamentos neoliberal e neofascista perfeitamente adequados para a UE realmente existente e para os seus efeitos reais para lá da euro-ingenuidade. 

Pensar melhor


Nós não temos uma elite do poder. Temos uma elitita, tal como temos um Portugal dos Pequenitos. Elas pensam como se fossem Carrie Bradshaw e eles pensam como se fossem Mr. Big, pensam politicamente como se estivessem num episódio de O Sexo e a Cidade

Paulo Raimundo pensa como se estivesse numa periferia europeia, solidária com o povo palestiniano. Pensa como se o imperialismo tivesse a “força mais letal” – palavras de Kamala Harris – para apoiar todos os genocídios. Pensa como se não fosse obrigado a escolher o mal menor, até porque, surpresa, não é cidadão dos EUA. Pensa como quem constrói alternativas de forma internacionalista, focado no combate ao capitalismo neoliberal, ao colonialismo e ao racismo. 

Quem é que pensa melhor?

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Insubmissão antiliberal


A gravidade do momento exige uma resposta firme da sociedade francesa contra o inacreditável abuso de poder autocrático de que é vítima.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Quem ganha com a política monetária do BCE?


Apesar de o Banco Central Europeu (BCE) já ter reduzido as taxas de juro há três meses, a verdade é que isso ainda não se reflete no bolso das pessoas. Os dados mais recentes do INE, noticiados pelo Público, ajudam a perceber porquê. Nos últimos dois anos, desde que o BCE começou a subir as taxas de juro, a prestação média dos créditos à habitação passou de €261 para mais de €400 em Portugal. E os juros representam uma fatia cada vez maior das prestações: em 2022, correspondiam a cerca de 17% do valor pago todos os meses, em julho deste ano já representam 60% do total. Tendo em conta que o rendimento médio líquido em Portugal é de €1137 mensais, isto significa que a prestação da casa representa hoje mais de um terço do salário médio.

A política monetária do BCE agravou a crise do custo de vida para muitas famílias. Mas nem todos se podem queixar. Os principais bancos em Portugal lucraram 1,2 mil milhões de euros só nos primeiros três meses deste ano, o que representa uma subida de 33% face ao mesmo período do ano anterior. Os valores tornam-se ainda mais impressionantes quando se tem em conta que, no ano passado, os lucros dos bancos portugueses já tinham batido recordes. Depois dos lucros extraordinários acumulados em 2023, os bancos ainda conseguiram superar estes valores no início de 2024, muito devido à margem financeira - a diferença entre os juros que cobram aos clientes nos empréstimos e aqueles que pagam nos depósitos.

O problema da política monetária do BCE não é só o facto de ter assente em premissas erradas. É que, ao contrário do que muitos economistas assumem, as opções de política monetária são tudo menos neutras, sobretudo do ponto de vista distributivo. Um aumento das taxas de juro tende a prejudicar os devedores, sobretudo os que se encontram nos escalões de rendimento mais baixos, e a beneficiar os credores. Na prática, tende a beneficiar os mais ricos. Tendo em conta que a redução da taxa de inflação teve pouco a ver com a atuação dos bancos centrais, convém questionar a quem serve a política monetária do BCE.

domingo, 25 de agosto de 2024

Diz que é uma espécie de anti-Tavares


Em 2020, Rui Tavares garantia no Público que “a Sociedade das Nações teve um início bem acolhido por grande parte da população mundial”, referindo os infames “mandatos”, uma tecnologia de controlo imperialista já criticamente escrutinada na história da economia política. 

Reparai que “grande parte da população mundial” estava, em 1919, sob o jugo do imperialismo, sob a forma colonial ou semicolonial e assim permaneceu. Para um historiador liberal, a “grande parte” é, implicitamente, a opinião pública ocidental. O liberalismo está sempre a confundir “género humano com Manuel Germano”. 

Wilson, o seu incensado líder, tinha recusado a inserção de uma clausula de igualdade racial, proposta pelo Japão, na Conferência de Paris, em linha com a aceitação da expansão dos impérios coloniais vencedores. Os que, logo em 1927, fundaram, em Bruxelas, a Liga contra o imperialismo e a opressão colonial, com a ajuda da Internacional Comunista e inspirados no seu Congresso dos Povos do Oriente de 1920, também discordariam de Tavares, mas deles não reza a história dominante ocidental, embora reze cada vez mais a história do Sul que não é global, porque é soberanista. 

Chegou-me há pouco às mãos uma outra crónica de Rui Tavares, agora no Expresso em papel, um luxo garantido a poucos políticos pelo quase-falido Grupo Impresa, o da sociedade indigente de comunicação. 

Tavares coloca aí Nicolás Maduro no mesmo saco do genocida de Israel e do seu apoiante húngaro (EUA-UE, na realidade). É o seu enésimo uso da teoria liberal da ferradura, incapaz de atentar em tudo o que importa na avaliação política, da intenção à consequência, do contexto nacional às mortíferas sanções imperialistas internacionais, sem esquecer os erros e efeitos não-intencionais de política. Só não erra, quem não tenta. 


Obviamente, temos de ter toda a paciência para o relativismo sonso de quem foi à embaixada israelita, estava o genocídio a começar; de quem acha que a perigosa belicista verde alemã dos negócios estrangeiros é o suprassumo do ecologismo; e nem sequer falo, olha, já o estou a fazer, da invenção de um Marx ao serviço da sua utopia federalista (ou será distopia?). Confesso que esta última é a minha preferida, já que fez escola entre intelectuais do Livre. 

Isto anda mesmo tudo ligado no euro-liberalismo. A Primeira Guerra-Mundial foi um lamentável acidente, já ouvi dizer Tavares, fruto de atavismos conservadores e nacionalistas. Afinal de contas, o progresso liberal estava a correr tão bem. A contingência é tudo e a estrutura nada. A palavra imperialismo está banida, sobretudo quando associada a uma economia política à la Lénine que foi à raiz da rivalidade, como de resto reconheceu, numa nota de rodapé metida a medo, Thomas Piketty, em Capital e Ideologia

Limito-me por agora a deixar duas questões puramente políticas, com hipóteses puramente políticas associadas: se os militantes do Livre estão em geral bem à esquerda de Tavares, como explicar o controlo férreo que este tem do pequeno aparelho do partido, como se viu nas últimas eleições; e como explicar os inconsequentes números públicos em torno da unidade da esquerda em que é useiro e vezeiro e nos quais ninguém sério pode acreditar, até dados os precedentes históricos relevantes? 

Para que não pensais que só critico: considero até que o intelectualmente muito capaz Tavares faz mais sozinho do que muita esquerda acompanhada para levar a água ao seu moinho ideológico; pelo menos, Tavares compreende o papel da luta das ideias e da persuasão e é aí que radica parte do seu, espero que temporário, sucesso relativo. Mas só parte: ele é a esquerda que a direita adora, afinal de contas. 

Entretanto, o meu jornal de sempre, o Público, com sinais de decadência inequívocos, chega e sobra para ter acesso ao extremo-centro para onde converge quem já disse querer dialogar com a direita: despolariza, filho, despolariza; complexifica, filho, complexifica. 

Diz que foi uma espécie de anti-Tavares, porque Rui Tavares não é Karl Dühring e eu definitivamente não sou o tão subestimado Friedrich Engels, o gigante de A situação da classe trabalhadora em Inglaterra, regressado a Manchester, vindo da Ucrânia, há uns anos, numa memorável intervenção artística e política de Phil Collins.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O imperialismo é letal


O imperialismo é primeiramente a política externa da potência dominante do sistema internacional ao serviço do capital financeiro. Os EUA são a potência imperialista por excelência e logo o país mais perigoso do mundo. E estes factos estruturais estão para lá da conjuntura política. Kamala Harris, citada pelo Financial Times, confirmou-o ontem no discurso de aceitação: “como chefe suprema das forças armadas, assegurarei que os EUA têm a força mais letal no mundo”.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Diz que é uma espécie de anti-Reis


Recusai pensar como um certo tipo de economista dominante. Só assim dareis as respostas mais óbvias às perguntas mais reacionárias sobre necessidades sociais vitais e que devem ser coletivamente assumidas. 

Os economistas convencionais gostam de alardear, como suprassumo da sofisticação, uma definição histórica e institucionalmente vazia de Lionel Robbins, de 1935, relacionando necessidades supostamente ilimitadas, recursos supostamente escassos e escolhas supostamente racionais. A partir desta definição chegam a uma noção de eficiência inventada por um fascista chamado Vilfredo Pareto para bloquear a igualdade. É inaplicável, até porque está dependente de uma alocação prévia de direitos e de obrigações que fica necessariamente por avaliar e de pressupostos heróicos. Depois, é só andar com a idiota análise custo-benefício para cá e para lá. 

Muitos papagueiam a definição de economia de Robbins, como se dissesse alguma coisa de significativo. As economias substantivas realmente existentes são outra coisa. São processos de institucionalização, histórica e geograficamente situados, escolhas sociais acerca de mecanismos de coordenação, critérios contestados no acesso a bens sociais, relações sociais de produção e de reprodução, determinando quem se apropria do quê e porquê, o que podemos ser e fazer com as nossas vidas, quem tem liberdade e quem está exposto a essa liberdade, etc. 

Nem necessidade, nem escassez, nem racionalidade são apropriadamente definidas no cânone neoclássico. Vale todo o relativismo, que disfarça mal a opção antissocialista dominante, profundamente normativa: o utilitarismo mais rasteiro é o refúgio filosófico dos que se dizem rigorosos. E dizem-se também isentos de valores, o topete. E assim têm sido deseducadas gerações de estudantes de economia. Sim, os economistas são menos cooperativos, devido a este ensino. 

Felizmente, a evidência empírica cada vez mais avassaladora mostra as vantagens absolutamente cruciais da socialização precoce das crianças fora do círculo familiar estreito, por exemplo em termos do seu desenvolvimento cognitivo e logo moral. Mas o homo economicus não nasce, não se desenvolve, não tem vulnerabilidades. Já aí está, já aí esteve, já aí estará, para todo o sempre, para ocultar todo o sadismo social. 

Os humanos são outra coisa. Fazem o melhor de que são capazes, de facto, mas nas circunstâncias que são as suas, sendo o dever da ação coletiva humanizar essas circunstâncias e desenvolver aquelas capacidades. O centro de tudo é a instituição, na definição dada por John Commons e que cito de memória: “ação coletiva que liberta, constrange e formata a ação individual”. 

Entretanto, o acesso universal e gratuito às creches, a sua massificação, é uma necessidade social, com um preço socializado, através de impostos, como toda a gente deve poder constatar, incluindo a partir do exemplo dos países que foram à frente, com vantagens também de género, quer no alívio do “altruísmo imposto” às mulheres, quer na geração de emprego feminino. Sim, o Estado social universal é o melhor que aconteceu à igualdade de género e de classe. 

Se houver necessidades vitais por satisfazer, deve haver racionamento assumido, e como Amartya Sen elogiou o que foi instituído na Segunda Guerra Mundial no Reino Unido, com listas de espera, neste caso, e mecanismos de voz para que estas sejam eliminadas tão rapidamente quanto possível. É bem melhor do que o silencioso e socialmente enviesado racionamento pela carteira. Os economistas convencionais só procuram complicar para ofuscar. Ignorai-os, que eles hoje em dia ignoram tanto do que importa. 

Pelo menos, Robbins era claro no seu antissocialismo visceral nos anos 1930. Havia ali uma honestidade que era função da época. A seguir à Segunda Guerra Mundial, Robbins lá assentou, rompeu com Hayek e aproximou-se intelectualmente de Keynes, advogando a massificação, de resto bem-sucedida, do ensino superior no seu país, atentai. 

Ricardo Reis, apoiante das direitas, ocupa a cátedra com o nome de Robbins na LSE, Oh My God, e não tem hoje “incentivos” para tal evolução. Apoucar os trabalhadores pobres e o Estado social é vantajoso, sabemo-lo há muito e por isso temo-lo criticado com denodo neste blogue e para lá dele.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Silêncios tão ruidosos como as bombas que destroem universidades


Esta ruína é o que sobra da principal universidade de Gaza, arrasada pelo colonialismo sionista, no quadro de um metódico processo de eliminação de uma nação. Já não resta qualquer universidade, já não há escolas. 

Apesar dos protestos de estudantes e docentes, incluindo de sindicatos da FENPROF, e de uma ou outra tomada de posição, como a da Universidade do Minho, o silêncio cúmplice tem dominado a universidade portuguesa. 

Este silêncio dominante está em linha com a história mais tenebrosa da universidade, tanto mais que outro galo cantou quando começou a Guerra da Ucrânia. Até um notável professor russo chamado Vladimir Pliassov, que garantia graciosamente o ensino desta língua, foi saneado sem mais pelo reitor da minha universidade, lembrai-vos. Também houve quem protestasse, umas centenas de professores com memória. Também não valeu de nada, embora haja combates cujo mérito está logo em travá-los.

Israel é Israel, não há cá cortes de relações ou sanções. O fascismo também era o fascismo. Por cada Bento de Jesus Caraça, havia dezenas de medíocres papagaios do corporativismo fascista e do liberalismo autoritário de recorte fascista, de acordo com a fase ou a tendência. 

Hoje, a desdemocratização das universidades, conquista UE/OCDE que apagou a herança de abril no governo universitário, paga-se mesmo muito cara, em cada vez mais planos, com reitores e diretores dotados de poderes longos e de legitimidades democráticas curtas. Estamos cada vez mais próximos do informal modelo Nova SBE, da opaca Universidade SA. 

Sabem qual é a razão destes silêncios universitários dominantes, dado que aí os professores de carreira têm outra estabilidade? É tudo brutalmente simples, creio, para lá das convicções ideológicas: dada a cumplicidade ativa dos EUA e da UE, há financiamentos que não podem ser perdidos e a ciência está cada vez mais sob controlo, convém não arriscar. Há quem arrisque, claro. Sempre houve.

Entretanto, o genocídio atinge sempre a informação, o conhecimento e a cultura, sem as quais não há essa aposta diária a que chamamos nacionalidade. As elites portuguesas não a valorizam, algumas até a apoucam, mas as elites palestinianas não se podem dar a esse luxo. 

Os comandos colonialistas da morte têm assassinado mais jornalistas do que em qualquer outro cenário de guerra na história. Os jornais portugueses, os jornalistas portugueses, também andam demasiado silenciosos. Aposto que é da precariedade e do correlativo medo entre os que sabem, por contraste com a opulência dos apologistas da morte na televisão. E a cúmplice UE financia cada vez mais o jornalismo e Israel também. Sim, estou a pensar em monstros morais, como a avençada Helena Ferro Gouveia.

Os consensos de Washington e de Bruxelas (e de Telavive) explicam tudo, mas tudo, sobre a elite com mais poder deste país - entreguista, vira-latista, mandonista. Sim, precisamos de palavras vindas do Brasil e já agora de seguir o exemplo das suas muito mais corajosas academia, media alternativa e política externa.

domingo, 18 de agosto de 2024

Não calar


“Quem não quer falar de capitalismo deveria calar-se também sobre o fascismo”, disse Max Horkheimer em 1939. Em 2024, podemos dizer que quem não quer falar do capitalista Mário Ferreira, que controla a TVI-CNN, deveria calar-se também sobre a fascista Helena Ferro Gouveia.

Perante as sociopatas declarações de Ferro Gouveia, da apologia desbragada do genocídio, em linha com ligações conhecidas, Carmo Afonso pergunta e bem: “qual é o limite para aquilo a que assistimos na televisão?” 

Infelizmente, creio que não há limite, porque não há autoridade democrática que se dê ao respeito constitucional. Só há capitalismo televisivo puro e duro, ou seja, fascismo televisivo.

sábado, 17 de agosto de 2024

Enfim


A sociedade indigente de comunicação usa e abusa do sinal aberto, um bem público, difundido ideias fascistas, de que o machismo e o ódio à cultura são parte integral, conjuntamente com o belicismo, o classismo e o racismo. 

Há mesmo um défice de autoridade do Estado, quando temos José Gomes Ferreira com responsabilidades no que passa aí por informação, só para dar um exemplo. Já há fascistas, como Nuno Rogeiro, a partilhar impunemente toda a espécie de mentiras, como não se cansa de denunciar Luís Galrão

E, sim, José Miguel Júdice, da extrema-direita estudantil na Universidade de Coimbra, membro da rede bombista de extrema-direita no PREC e negocista desde aí, também é tecnicamente um fascista. E é mais um poderoso sinal do declínio editorial e isto para já não falar da situação financeira do medíocre grupo Impresa. 

Perante mais um momento fascista de José Miguel Júdice, Pedro Marques Lopes limitou-se a um “enfim”. Quem me lê, sabe que uso muito o “enfim” como muleta. Por isso, sei que o “enfim” tem múltiplas camadas. 

O “enfim” pode ser a reação de um conservador ao fascismo. “Enfim”, são uns brutos, mas o que tem de ser, tem de ser, trata-se de salvar as pratas da família. O “enfim” pode ser um “que maçada e inconveniência este tio, porque não se cala?”, um “cala-te boca”. 

O “enfim” neste contexto pode mesmo ser o reconhecimento dos limites da liberdade de expressão em meio laboral no capitalismo realmente existente: “é melhor sinalizar muito discretamente a crítica, mas sem melindrar o patrão, que o herdeiro anda nervoso e ainda me despede”.

Enfim, os patrões têm poder, porque têm a capacidade de infligir custos significativos a quem, neste caso, só colabora, mas ganhando várias vezes mais do que um jornalista que aí trabalhe.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Lutar contra as direitas nas redes sociais, nas ruas, em todos os lados


Our eyes are soft with sorrow


Já que estamos com saudades dos anos 1960-1970 no cinema, com saudades do comprometido casal Gena Rowlands e John Cassavetes, deixo aqui outro dueto maravilhoso da mesma época.
   

Até sempre, Gena Rowlands


É possível um jovem universitário, chegado à capital, apaixonar-se por uma norte-americana muito mais velha? Era, realmente. E quando praticamente não havia norte-americanas em Lisboa. 

Havia, isso sim, pequenas salas de cinema espalhadas pela capital, como o Cine 222, ao Saldanha. É muito triste ver uma sala de cinema encerrada. Foi aí que vi Gena Rowlands pela primeira vez, ali nos idos de 1995/1996, mais de duas décadas depois de ter sido magnificamente filmada pelo seu realizador, John Cassavetes. 

Em 2024, frequento a sobrevivente sala a cheirar a mofo do Avenida, em Coimbra, onde há caminhos para a paixão do/no cinema. Quanto pior é a sala, melhor é o filme, adaptação da hipótese de Paul Krugman sobre salas de conferências. Divago, deixai-me divagar. 

Rowlands será sempre uma “mulher sob influência” e que muito me, nos, influenciou. Há um antes e um depois em todas as grandes e impossíveis paixões. Não esquecemos o belo momento, o tal “raio de luz indireta”. Morreu-nos esta semana, mas ela já era imortal há muito. Como tantas vezes acontece, João Quadros vai à essência: 

“Acho que poucas actrizes me perturbaram tanto psicologicamente como a Gena Rowlands. Talvez fossem aqueles papéis em que a loucura da personagem nos ultrapassa. Ficamos suspensos na esperança que recupere. Eu tinha vontade de ligar e dizer – não tomes nada, deixa a porta encostada, vou já.” 

Pedro Rei, por quem soube da triste notícia, informou-nos que o magnífico serviço público que dá pelo nome de RTP-Play tem dois filmes em que ela ocupa o ecrã todo. Ela vive aí e em tantos lados, para todo o sempre. Até sempre, Gena Rowlands.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Lado a lado para memória futura


 

Iluminar de novo


Mas na realidade o homem nunca foi tão egoísta como a teoria exigia. Embora o mecanismo do mercado tivesse privilegiado a sua dependência em relação aos bens materiais, as motivações «económicas» nunca formaram o seu único incentivo para trabalhar. Os economistas e os filósofos utilitaristas exortavam-no para abstrair, nos negócios, de todas as motivações que não fossem «materiais», mas em vão. Uma investigação mais profunda mostrava sempre que ele agia por motivos extraordinariamente «mistos», não excluindo os do dever para consigo próprio e para com os outros e, talvez, até encontrando um prazer secreto em trabalhar por trabalhar. 

A generosidade, a benevolência e a virtude cívica não são recursos escassos de oferta limitada, mas também não são competências que possam ser melhoradas e expandidas de forma ilimitada com a prática. Em vez disso, tendem a exibir um comportamento complexo e compósito, atrofiando quando não são praticadas e invocadas pelo regime socieconómico prevalecente e tornando-se de novo escassas quando são defendidas e estimuladas em excesso. Para tornar as coisas ainda mais complicadas estas duas zonas de perigo (...) não são conhecidas e muito menos são estáveis. 

A hipótese de um novo iluminismo radical foi forjada pela filósofa catalã Marina Garcés e é o título do seu pequeno grande livro a não perder, editado pela Orfeu Negro e ideal para transportar para praia, rio ou montanha, para sorver em goles pequenos, com tempo. Estes dois autores luminosos de eleição não são aí referidos, sendo parte do cânone de economia política e moral, indispensável para um trabalho convergente com o de Garcés. 

Aproveito este ensejo para agradecer à editora Orfeu Negro não só por este livro luminoso, mas por todos os outros, sobretudo os que me têm permitido passar horas de pura felicidade com o meu filho, do Incrível rapaz que comia livros a O meu avô. Ainda gosto de pensar no presente, sei que já é memória, ele há muito que já lê outros livros e sozinho. A conversa, essa, é como se não terminasse. 

A escola pública tem o dever de ensinar a todas as crianças o gosto pela leitura, pela escrita e pela argumentação, libertando-as das determinações familiares; uma ou outra técnica adicional e assim se formam trabalhadores e cidadãos insubmissos. Sem insubmissão, a economia e a cidadania, com separações artificiais abolidas, não funcionam bem. 

Não é preciso ser-se pós-moderno para concordar com a historiadora económica neoliberal Deirdre McCloskey: uma parte crescente da atividade económica no capitalismo tardio mobiliza sobretudo a retórica. Tento persuadir os estudantes do seguinte: façam o que fizerem profissionalmente, o vosso trabalho envolverá persuasão e daí a importância de escrever e de falar cada vez melhor, o que exige prática, na sala de aula e fora dela. As humanidades contam tanto na economia e não só, sem esquecer o prazer secreto no trabalho pelo trabalho, de que falava Polanyi.

O ensino, contra McCloskey, é uma parte fundamental de um setor público que cria valor socializado (bom, ela ensinou numa universidade pública grande parte da vida...). Sim, precisamos da economia mista, base material da soberania democrática, com motivações mistas, sendo que hoje estamos numa das zonas de perigo de que falava Hirschman. É só o começo de conversa, rumo a uma sociedade mais regulada e civilizada.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Mais um número no genocídio


Ontem ficámos a saber que o Governo dos EUA aprovou a venda de mais 20 mil milhões de dólares em armamento para Israel. Os 36 quilos por habitante de material explosivo, que já foi lançado pelo colonialismo sionista em Gaza, não bastam. Assim se fabrica um genocídio. 

O complexo militar-industrial determina em grande medida a política externa de alinhamento total com o sionismo: o marxismo simples e despojado explica mais do que a sofisticada sabedoria convencional liberal também nas relações internacionais. 

O resto é obra do complexo militar-ideológico. Basta atentar, por cá, nos serviços prestados pelo jornalismo dominante, escrito e televisionado, ou pela academia que é um nexo de contratos. E nós somos periféricos no cada vez menos relevante contexto europeu. As somas são mais pequenas e há silêncios que valem ouro.

Já agora, é preciso não confundir o direito internacional e a ONU com a chamada ordem internacional baseada em regras, feitas à medida dos interesses do capital que é grande dos EUA. Fazer distinções é fundamental e mais ainda aqui e agora.

Pedalada das Américas


Um número recente da The Economist anunciava triunfalmente o sucesso da transição energética para a energia solar. Em 2004, a instalação de um gigawatt de capacidade solar demorava um ano. Em 2010, demorava um mês. Hoje, demora menos de dez dias. O progresso tecnológico e a queda de preços, devida às economias de escala do sector explicariam a trajetória de crescimento muito acima do esperado. O “custo nivelado de energia” solar, uma medida que procura calcular os custos líquidos presentes com diferentes fontes de forma comparável, caiu para um milésimo do custo estimado nos anos sessenta. Hoje, o custo da energia solar e eólica está em torno de 40 dólares por megawatt, face aos 50-75 dólares do carvão. Os subsídios públicos, essenciais que foram nesta indústria nascente, poderiam ser agora retirados, deixando o mercado funcionar e resolver as mudanças climáticas.

O livro do geógrafo Brett Christophers The Price is Wrong – How capitalism won’t save us oferece uma perspectiva detalhada e céptica em relação a este triunfalismo. As notícias publicadas já depois do lançamento do livro parecem dar razão a Christophers. O investimento na geração de energia renovável na Europa e no Brasil parece ter estagnado. Esta é, portanto, uma realidade paradoxal (custos decrescentes e investimento estagnado). O livro dá-nos várias pistas explicativas. O ponto de partida de Christophers é a crítica ao presente modelo de produção energética, guiado por pretensos mercados competitivos e eficientes, onde os preços sinalizam a melhor alocação para o capital. Um modelo que esquece o “lucro” enquanto motor da acumulação de capital.

Se Nuno Teles, Professor de Economia da Universidade Federal da Bahia, não vem ao Ladrões, o Ladrões vai até ao seu regressado substack, com uma recensão a não perder.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Bastante factual ou não?


Olhai para este mapa, por favor. É a expressão visual de mais um holocausto colonial. Os pontos vermelhos são as zonas atingidas pelo exército terrorista de Israel, com a cumplicidade ativa dos EUA e da UE. 36 quilos de material explosivo por cada um dos habitantes de Gaza. 

As principais potências imperialistas antes da Primeira Guerra Mundial - Reino Unido, França e Alemanha -, responsáveis principais pela barbárie de 1914-1918, emitiram ontem um comunicado vergonhoso, onde conseguem não dizer a palavra Israel. Como disse Benjamim Fogel, “chegámos ao ponto em que Israel já não pode ser mais defendida e por isso os líderes ocidentais fingem que não existe”.   

Lembrai-vos que os vencedores da Guerra (Reino Unido e França) dividiram despojos dos impérios derrotados, incluindo partes do alemão e do otomano. Razão, toda a razão, tinha Lénine, ao contrário de algumas distorções de que a sua obra é alvo por historiadores liberais das ideias, como Rui Bebiano do Livre. 

Não por acaso, os bolcheviques tornaram públicos bastantes documentos secretos da diplomacia da guerra. No quadro da política colonial dos mandatos, Reino Unido e França passaram a controlar uma grande parte do Médio Oriente, sendo responsáveis longínquos por tudo o que ali se tem passado (a declaração Balfour é logo de 1917...). 

A Sociedade das Nações é hoje demasiado incensada pela historiografia liberal (por exemplo, atentai na opinião de Rui Tavares, que, de resto, foi à embaixada de Israel no início do genocídio, que isto anda tudo ligado quando se é consistente). A SdN foi pouco mais do que um instrumento austeritário e colonial do imperialismo europeu e colapsou na prática depois de ter colapsado na teoria (os soviéticos ainda aderiram, em 1934, mas depois houve a Etiópia, a Espanha, Munique e tudo o resto). 

Ao contrário da tese da continuidade, a ONU é muito diferente, sobretudo depois do absoluto reconhecimento da perversidade do colonialismo e do imperialismo em todas as suas dimensões, ali entre 1960 e 1974. 

Este aparte destina-se apenas a sublinhar os velhos e os novos imperialismos e subimperialismos. Sim, Reino Unido, França e Alemanha são cada vez mais vassalos dos EUA, em linha com a UE, obviamente. 

Felizmente, o mundo é menos eurocentrado e menos dominado pelos EUA. Isto vê-se na ONU e em Guterres, apesar da falta de poder, mas sobretudo vê-se na República Popular da China e no que vem por arrasto. Os EUA são há décadas e de longe o país mais perigoso do mundo. É muito positivo que haja freios e contrapesos à altura. 

Isto é tudo bastante factual ou não?    

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Dever da esperança


Catarina Coutinho é uma professora da Amadora, orgulhosa da sua terra, que encarna no Twitter e fora dele, estou certo, embora não a conheça, os melhores valores da escolha pública. Valoriza e visibiliza a generosidade e a empatia, as motivações intrínsecas, sem as quais não há progresso cognitivo e moral: “as boas pessoas salvam”, realmente.   

Tive algumas professoras assim, felizmente, na Martim de Freitas, em Coimbra, e o meu filho também as tem na mesma escola pública. Há muita desesperança pública na escola, mas depois há paredes luminosas pintadas por pessoas boas e que tornam a escola pública de hoje melhor do que era no meu tempo. E, já agora, os professores que tenham perdido a esperança na juventude e no progresso estão perdidos. Isto também vale para a universidade, bem sei. 

Por vezes, discordo do ecumenismo à esquerda de Catarina Coutinho, até porque há clarificações políticas que são necessárias e urgentes. No entanto, prefiro enganar-me com ela do que acertar com o padrão oposto, por vezes presente num certo Twitter elitista, que se julga de esquerda: Portugal é um país racista e os portugueses de todas as idades são, em geral, irrevogavelmente incultos e más pessoas. 

Esquece-se uma lição política fundamental quando se escreve desta forma: nunca se insulta o povo, nunca se generaliza a partir dos piores exemplos. Bem sei que o algoritmo quer que assim pensemos, mas temos a obrigação de ser mais luminosamente capazes de ir à raiz, olhando e vendo à nossa volta. 

A esquerda que conta cultiva a esperança no país e nos seus concidadãos e tem o dever do orgulho nas melhores e mais rebeldes tradições plebeias, sempre por redescobrir e reinventar. 

Uma pessoa com rugas belas e que me influenciou muito costumava dizer, com paciência sábia perante os meus juvenis arrufos, tão arrogantes quanto imaturos: “sim, camarada, mas não te esqueças que o 25 de abril foi feito por este povo”. 

É preciso então repetir: o pior é minoritário, tem de ser, na dúvida é sempre, a maioria invisibilizada faz o melhor de que é capaz nas circunstâncias que são as suas, sendo a tarefa da ação coletiva humanizar essas circunstâncias e desenvolver essas capacidades, como não me canso de repetir. 

Como disse alguém: “repetir, repetir, repetir sempre e quando estás farto de repetir é quando as pessoas começam a prestar atenção pela primeira vez”. Há tantas coisas que merecem a nossa atenção e nós somos só humanos. 

É a cooperação que nos salva e esta requer motivações adequadas, esquecei os economistas desatualizados. E há tanta cooperação invisibilizada por aí. Sem cooperação, a barbárie já teria triunfado definitivamente. E nós cremos ainda, e é de crença que se trata, não tenhais medo da palavra, na hipótese do socialismo

Temos então o dever da esperança na chamada bondade de estranhos, tudo o resto são nocebos.

sábado, 10 de agosto de 2024

Um jornal que não se abstém


Ano após ano, no período estival, os trabalhadores e pensionistas portugueses que passam a vida a consumir-se para conseguir, quando conseguem, pagar as contas do mês, são inundados com as notícias dos lucros enormes que os seus sacrifícios e exploração permitiram às grandes empresas e grupos económicos arrecadar. Esses lucros são favorecidos por políticas desenhadas a partir do Estado (...) Quem andar iludido com a natureza profundamente neoliberal da aceleração em curso, e que estará plasmada, o governo não o esconde, no Orçamento do Estado para 2025, é só olhar para estas ligações entre sector financeiro, poder político e grandes empresas.

Início e fim do editorial de Sandra Monteiro no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de agosto: acelerar a governação neoliberal. Não percais o que está no meio no renovado site do jornal. 

Fica claro que nenhum partido que se diga de esquerda pode abster-se de combater esta gente com denodo. Ainda para mais se se tiver em conta o sadismo laboral de quem anda a brincar com o subsídio de desemprego, apenas para aumentar a compulsão de mercado e logo a intensificação da exploração, como indica Margarida Antunes, economista e professora universitária que estudou a fundo este erodido direito.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Degradação e opacidade

O Portal da Transparência do SNS transformou-se, com o atual governo, num portal da opacidade. Dificultando, por exemplo, o acompanhamento da evolução de diversos indicadores, como sucede no caso dos serviços de urgência, (cujos mapas a ministra tentou, num momento inicial, ocultar), em que a informação diária se volatiliza, como o Expresso, aliás, oportunamente assinalou (ao deparar-se com a dificuldade de demonstrar que as urgências obstétricas fechadas aumentaram, em 40%, face a 2023).

Nas comparações que vão sendo possíveis, apesar da volatilidade da informação (que deixou de ser sistematizada pelo ministério de Ana Paula Martins), o acréscimo de encerramentos confirma-se, contrariando a ideia de que a situação atual foi meramente herdada do anterior governo, por mais que as dificuldades já existissem. De facto, quando se compara a situação das urgências de ginecologia e obstetrícia na Região de Lisboa e Vale do Tejo, no período de 8 a 14 de agosto, em 2023 e 2024, o aumento dos encerramentos torna-se incomparavelmente maior e mais crítico.


De facto, se em 2023, no conjunto de dias considerado (8 a 14 de agosto), se verificaram apenas 9 encerramentos de urgências por unidade/dia, em 2024, no mesmo período, estão previstos 38 encerramentos, valor que quase quadriplica o do ano anterior. Com a agravante de se prever que nenhuma das três urgências de ginecologia e obstetrícia localizadas na margem sul da Grande Lisboa esteja a funcionar entre 10 a 14 de agosto, ao contrário do que sucedeu em 2023, quando neste período estiveram sempre, pelo menos, duas urgências abertas 24 horas por dia.

Esta situação não reflete apenas o engodo eleitoral da AD, que prometeu resolver problemas num estalar de dedos, criando falsas expetativas. É também a instabilidade induzida pela minoria de direita, que interrompeu de forma abrupta a reorganização dos cuidados em curso, fazendo cair o diretor executivo do SNS e desconsiderando, de forma ofensiva, as gestões hospitalares. É o resultado de um governo que não planeou o verão e que abandonou o acompanhamento de proximidade que era feito. Tudo em nome de um plano que foi apresentado como sendo de emergência, mas que é - no seu propósito central - de degradação e privatização. É essa, na verdade, a desejada transformação.

Precisamos de uma ordem nova, como dizia Gramsci


O panorama editorial nacional é dominado pelo conformismo político-ideológico, pela ausência da vibrante tradição marxista internacional. Neste contexto, a tradução e publicação de uma «história crítica da austeridade», usando a «lente do conceito de classe», deve ser saudada, tanto mais que a Temas e Debates não é propriamente uma editora radical. Para esta decisão editorial deve ter contribuído a recepção internacional entusiástica, da crítica aos prémios, que tem sido reservada a um livro de história da economia política comparada da Itália e do Reino Unido nos anos imediatamente a seguir à Primeira Guerra Mundial. 

A italiana Clara E. Mattei é filósofa de formação e doutorada em Economia. Radicada nos Estados Unidos, lecciona na nova-iorquina New School for Social Research, instituição inicialmente formada por muitos intelectuais europeus fugidos do nazi-fascismo. 

O seu livro envolveu um aturado trabalho em arquivos dos dois países estudados, dos ministérios das Finanças e jornais da época, incluindo a inevitável The Economist, ainda hoje tão influente nas linhas editoriais de jornais portugueses ditos de referência, como o Público. Esta descida aos labirínticos arquivos foi orientada por uma preocupação histórico-filosófica, sublinhada na entrevista que concedeu por escrito: «a de incrustar qualquer forma de pensamento no seu contexto histórico, o que me facultou um quadro conceptual para estudar a Economia como uma disciplina que desempenha um papel fundamental na preservação da estrutura económica capitalista». As ideias têm força material quando se inscrevem na luta social. 

Um dos melhores efeitos do seu método abdutivo, síntese sábia de indução e de dedução, é a de fornecer a mais completa elaboração conceptual da austeridade, identificando as três formas articuladas que assumiu e assume: austeridade orçamental, ou seja, cortes na despesa pública associada ao bem-estar e subida dos impostos mais regressivos, como os que incidem sobre o consumo popular; austeridade monetária, traduzida em políticas deflacionárias, assentes na perpetuação de taxas de juro reais positivas; austeridade nas relações laborais, ou seja, todo o esforço regulatório e de política económica para garantir a disciplina e a hierarquia nas relações laborais. 

Recusando ver a austeridade como se de um erro se tratasse, Mattei argumenta que é, isso sim, um instrumento de violentas reacções de classe. Intelectualmente foi fundamentada por economistas objectiva e subjectivamente ao serviço da burguesia, embora muitas vezes com a preocupação de, em público, darem uma aparência técnica a este serviço antidemocrático, mesmo quando operavam em contexto fascista, procurando então ofuscar apostas sordidamente políticas. O seu objectivo foi o de travar a democratização da economia, concretamente, o surgimento de uma alternativa sistémica, a partir do momento em que as irridentes classes trabalhadoras italianas e britânicas, devido à economia de guerra e à Revolução de Outubro de 1917 na Rússia que se tornava soviética, tinham deixado de ver os arranjos institucionais de um capitalismo em crise de legitimação como um facto tão natural quanto inamovível da vida. 

Trata-se, neste livro, de «discernir um método no meio da loucura: a austeridade é um baluarte vital na defesa do sistema capitalista» e, logo, da sua relação social vital. Esta é centrada na subordinação de uma classe que cria tudo o que tem valor e que tinha de voltar a ser compelida a vender aquilo que tem de seu, a força de trabalho, e a um preço directo e indirecto mais baixo, assegurando a reposição da taxa de lucro. Como faz questão de assinalar, o seu livro também é, infelizmente, uma história do nosso sombrio presente, onde o novo teima em não nascer e o velho gera continuamente monstros: Giorgia Meloni e André Ventura aí estão.

As referências foram omitidas. O resto do artigo - As ordens e as desordens do capital - pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de agosto. Assinar este jornal é contribuir para um projeto cooperativo militante.
 

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Meia dúzia de notas antifascistas


1. Vijay Prashad é um historiador marxista indiano, autor, entre outros, do notável The Darker Nations – A People’s History of the Third World e diretor do Instituto Tricontinental, referência original a um dos momentos de encontro, em Havana, dos movimentos mais consequentes contra o imperialismo. 

2. Elon Musk – o Muscão – é o homem mais rico do mundo e é um consumado racista, em linha com a sua herança milionária na África do Sul do Apartheid, onde nasceu, sendo um apoiante da extrema-direita necessariamente violenta, o que explica também a ferocidade antisindical na Tesla, por exemplo. 

3. O Muscão mobiliza uma técnica desonesta para puxar o debate cada vez mais para a extrema-direita, por si maciçamente financiada, e que consiste em inflacionar o comunismo, confirmando-se que os que ignoram o capitalismo realmente existente, têm de ignorar o fascismo, incluindo a sua terrorista tropa de choque. 

4. Em Portugal, a IL e o Chega são adeptos fanáticos do Muscão, ou não fossem maciçamente financiados pelas frações mais reacionárias do capital financeiro, usando das mesmas técnicas desonestas, incluindo a de dizer que vivemos em socialismo

5. Os liberais até dizer chega procuram fugir às responsabilidades pelos custos sociais das suas iniciativas, com décadas neste país, das privatizações ao euro, passando pelo austeritarismo, revelando a falta de ética da responsabilidade; entretanto, uma liberal nos EUA é uma social-democrata diluída na Europa, onde a palavra liberal guarda predominantemente o seu sentido antidemocrático do longo século XIX. 

6. André Azevedo Alves domina as técnicas acima referidas, incluindo a de chamar, mais sonsamente, radical a Kamala, ou não fosse este professor no Instituto de Estudos Políticos da Católica um discípulo, e dos melhores em Portugal, de Mises, Hayek e Escrivá, membro da Mont Pelerin Society; em O neoliberalismo não num slogan, ignorei um dos principais ideólogos dos liberais até dizer chega, uma falha.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Política monetária amorosa

Em fevereiro último soubemos que em Portugal, os lucros agregados dos quatro maiores bancos privados a operar no país somaram 3.153 milhões de euros em 2023, num aumento de 81,9% face a 2022.

Há um par de dias, ou assim, foi noticiado que, o “lucro semestral [no ano que corre] dos bancos portugueses supera todo o ano de 2022” e (…) entre janeiro e junho, 31% acima do valor do mesmo período do ano anterior.

Lucros da banca privada que são, em grande medida, o resultado de prejuízos no banco central, como se explica, aqui, aqui ou aqui. Só em Portugal, em 2023, estes prejuízos ascenderam a 1504 milhões de euros.

Lucros da banca privada que são também resultado das magras taxas de juro sobre depósitos que a banca oferece aos seus clientes.

A este propósito, no fim de Maio passado, o Governador do Banco (que não é) de Portugal e anterior ministro das finanças, Mário Centeno afirmou publicamente querer explicações da banca.

Os lucros excepcionais do setor financeiro agora tornados públicos mostram quão pífia e para inglês ver foi aquela pretensa demonstração de autoridade.

Amor com amor de paga e as demonstrações de afecto não se fizeram esperar.


É isto inevitável? Os banqueiros têm mesmo de se abotoar com lucros obscenos à custa de prejuízos do banco central e, por isso, do erário público, num romance pornográfico? Não, obviamente, não o é, como tentei explicar também aqui.

Ao contrário de Mário Centeno, Robert Holzmann, governador do banco central da Áustria e um dos mais conservadores membros do Conselho do BCE, tem defendido (aqui e aqui) medidas que, embora insuficientes, vão no sentido correcto e visam conter esta hemorragia, politicamente engendrada, de recursos públicos para o setor financeiro.

E Centeno, que não enjeita ser categorizado como um governador mais progressista, (uma pomba, diz certa imprensa), porque não toma posição pública e se escuda sonsamente no facto destes prejuízos terem atingido todos os bancos centrais do eurosistema, como se isto dissesse alguma coisa sobre a sua pretensa inevitabilidade?

E o governo? Porque se mantém calado e finge que nada pode fazer dada a alegada independência do BCE? Pergunta retórica, claro, porque sabemos bem quão conveniente é esta situação para a narrativa intrujona do ‘não há dinheiro’ que permite e protege o aprofundamento da reestruturação neoliberal em curso.

No Reino Unido, o problema é semelhante. A economista Daniela Gabor afirma que “[é] suposto o Banco [de Inglaterra] não se meter em assuntos orçamentais. No entanto, a sua mão invisível está agora a esgotar os cofres do Tesouro para aumentar os lucros dos bancos comerciais”.

William Mitchell, por seu lado, trata este assunto aqui, num texto simples, mas que requer paciência e que vale muito a pena. Permitir que a abundância plena de reservas no sistema financeiro, abstendo-se os bancos centrais de as remunerar, resulte em taxas de juro zero é a sua, boa, proposta.

Aqui no retângulo, numa versão requentada do que já está a suceder no Reino Unido, é só esperar pelo simulacro de discussão que vão oferecer-nos a propósito do próximo orçamento de Estado. Muito previsivelmente, seremos informados que andámos novamente a viver acima das nossas possibilidades. O que não deixa de conter alguma verdade: amor que se dedica aos banqueiros não pode ser simultaneamente devotado ao SNS.

De qualquer forma também não há razão para, neste momento, nos preocuparmos, digamos. Por assim dizer.

Repare-se que a Comissão Europeia, guardiã mor desta distopia que transforma o país numa quase colónia, está na fase de fingir que negoceia com o governo e ainda nem sequer nos informou quanto do nosso dinheiro, afinal, nos autoriza a usar.

De resto, se é certo que, quando a encenação acabar, saberemos, finalmente, que orçamento nos foi autorizado, não é o menos que nunca saberemos que pressupostos usou para chegar ao ditame. É segredo. Por design. De facto, por que razão havia de se permitir o escrutínio democrático das arbitrárias imposições de uma instituição supranacional com legitimidade indirecta e viés neoliberal se podemos escudar-nos na ideia, obviamente enganosa, de que se trata de pressupostos técnicos para os quais não há alternativa?

Daniela Gabor, no texto acima linkado, afirma que a ‘Grã-Bretanha está a passar por uma versão extrema daquilo a que a teórica política Wendy Brown chamou 'desfazer a democracia' (undoing the demos), em que tecnocratas não eleitos que controlam a dinâmica monetário-orçamental estão a obstruir os futuros governos na prossecução de agendas transformadoras’. O mesmo pode e deve ser dito relativamente a Portugal e à UE.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Ligeireza jornalística e um topete descomunal

Numa «notícia» assinada por Cynthia Valente, mas que acaba por ser, na verdade, tempo de antena concedido a Rodrigo Queiroz e Melo, diretor executivo da AEEP (Associação dos Estabelecimentos do Ensino Particular e Cooperativo), o Diário de Notícias assinala, citando dados da DGEEC, que «um quarto dos alunos do Ensino Secundário frequenta o ensino privado». Do início ao fim da peça, o objetivo é claro: alimentar a ideia de que o privado tem vindo a ganhar terreno em termos de alunos inscritos, em resultado da sua maior qualidade face ao ensino ministrado na escola pública.

Sucede, porém - e o DN deveria ser o primeiro a constatá-lo -, que o ensino privado apenas tem crescido nas ofertas profissionalizantes, asseguradas por financiamento público (Ensino Profissional, Cursos EFA, Cursos de Aprendizagem, RVCC, etc.). De facto, quando se analisa a evolução dos inscritos em oferta não subsidiada (essencialmente cursos científico-humanísticos), constata-se que o número de alunos quase não se alterou na última década, passando de cerca de 26 mil em 2010/11 para 27 mil em 2022/23 (apenas 7% do total), tendo aliás perdido relevância face a 2015, tanto em termos absolutos como relativos.


Por outras palavras, o alegado acréscimo de atratividade do ensino privado não resulta de um qualquer «mérito próprio» do setor - como se pretende fazer crer - antes constituindo a expressão da aposta de política educativa no reforço das vias profissionalizantes, que se concretiza, em grande medida e por opção política, através das escolas privadas, financiadas pelo Estado para esse efeito e com esse objetivo. De facto, dos 25% de alunos que frequentavam em 2022/23 o ensino secundário em escolas privadas, a maior parcela - e que é a que tem aumentado (atingindo 18%) - corresponde a este tipo de oferta, assegurada por recursos públicos.

Nada disto, vejam bem, impede Rodrigo Queiroz e Melo de dizer que «o secundário sempre foi uma área forte do privado, mas a subida tem sido sempre bastante real em todos os ciclos», acrescentando - perante uma jornalista que se imagina estar apenas a segurar o microfone -, que «se o sistema de ensino público funcionasse bem, o privado não teria uma percentagem tão grande de alunos». Como se não bastasse, o diretor executivo da AEEP refere ainda a maior «competitividade no acesso ao ensino superior» para explicar o alegado aumento de alunos no privado, numa provável alusão às práticas de inflação de notas, que têm realmente, aqui sim - sejamos justos -, clara prevalência no setor que Queiroz e Melo representa.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Reflexão olímpica


O progresso depende da disponibilidade da massa da humanidade – e todos nós, em nove décimos da nossa natureza, pertencemos à massa – para reconhecer a superioridade genuína, submetendo-se à sua influência (...) Mas para os indivíduos se respeitarem por aquilo que são, têm de deixar de se respeitar por aquilo que têm.

Richard Tawney, Equality, 1931, p. 99. 

Já tinha havido um pretexto nos últimos jogos para resgatar do esquecimento esta reflexão de um notável historiador, economista moral e trabalhista britânico.

domingo, 4 de agosto de 2024

Almoço, agosto


Anteontem almocei num restaurante chamado Cantiflas. Tinha a televisão ligada, mas o som desligado. Foi melhor assim. 

Enfermeiras, agricultores durienses e operárias conserveiras protestavam numa sucessão de imagens e de legendas. Fazem muito bem, dados os salários e os outros rendimentos baixos e as condições de trabalho duras para quem produz tudo o que tem valor, do cuidado a uma lata de sardinha e a um copo de vinho. 

Como escreveu recentemente o filósofo Michael Sandel, “os arranjos económicos não definem apenas a distribuição de rendimento e de riqueza, já que também determinam a alocação de reconhecimento e de estima sociais”.  

Este país precisa de ondas e ondas de contestação social para que haja distribuições progressivas em tantos planos, já que as elites do poder não têm medo, nem vergonha, nem nada. E são até capazes de convocar a tirânica ideologia do mérito, tão bem escalpelizada por Sandel no seu último livro. São tantas as razões, as particulares e as gerais, para ligar o som. Os liberais, no sentido clássico dos que o são até dizer chega, detestam a voz dos de baixo, adoram a compulsão imposta de cima. 

Entretanto, a notícia seguinte foi a da foto. Quando as grandes empresas apresentam lucros recorde, este Governo dos ricos pretende baixar-lhes o IRC. Esta é uma uma medida que para lá de ser injusta, ainda para mais num contexto de regras euro-austeritárias cada vez mais discricionárias, só é eficaz a encher ainda mais os bolsos dos acionistas. Se as esquerdas, todas elas, se abstiverem de combater esta gente falharão ao povo. 

O investimento depende das expetativas de vendas, dizem os empresários há anos a fio, quando o INE lhes pergunta. Quando agem como classe para si sonham com salários e impostos baixos e têm ecos comunicacionais. 

Não ouvi os sons da classe dominante ao almoço. Felizmente, só ouvi as vozes de gente, incluindo os operadores de máquinas agrícolas durienses com quem tinha falado de manhã, a almoçar a bela diária de pernil e a falar dos almoços passados e futuros, imagino. 

O mês de agosto ainda há-de ser querido por/para todo o povo.