Através do jornal digital 7Margens, soube de uma boa notícia do Papa Francisco: “Estou a escrever uma segunda parte da [encíclica] ‘Laudato Si‘ para atualizar os problemas atuais”. Precisamos mesmo de escutar “o grito dos pobres e o grito da terra”, de cruzar “o fim do mundo e o fim do mês”, a mesma luta. Aguarda-se então com expetativa este desenvolvimento da economia moral de Francisco, com recorte anti-sistémico.
Aproveito para deixar por aqui a minha ultima crónica no setenta e quatro:
“Reparai, quando alguém tem de levantar ou ajudar uma pessoa a levantar-se, que gesto faz? Olha-a de cima para baixo. Trata-se da única ocasião, do único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo: quando queremos ajudá-la a levantar-se.”
O conjunto das intervenções públicas do Papa Francisco nos dias que esteve em Portugal perfaz quase meia centena de páginas. Para lá do desatento mediatismo da entusiasmada Jornada Mundial da Juventude, vale a pena lê-las.
Escolhi este excerto porque reflete na perfeição o que julgo ser a economia moral de Francisco, vertida em várias Encíclicas: a provisão dos bens necessários à vida tem de ser a terra onde pode florescer um igualitarismo que se reflete primeira e ultimamente nas relações fraternas entre pessoas. A economia substantiva nunca é neutra: existe uma economia política neoliberal, “a economia que mata”, mas também existem alternativas que permitem o florescimento humano. A posição de Francisco é clara.
E destas páginas ficam a faltar as palavras que dirigiu no crucial encontro que teve com treze pessoas, vítimas de abusos por parte de membros do clero, onde terá escutado os testemunhos e pedido, uma vez mais, perdão, como foi relatado em pormenor pelo jornalista António Marujo no jornal digital Sete Margens. É abissal a diferença em relação ao “clericalismo” por si fustigado e que ainda domina a Igreja portuguesa, que nunca se dignou a semelhante encontro.
Sim, na economia moral de Francisco tudo está ligado e a verdade está mesmo na totalidade. As ligações ficaram patentes para quem quis verdadeiramente escutar o seu primeiro testemunho no Centro Cultural de Belém. Aí criticou uma Europa que aposta na corrida armamentista e na guerra, ao invés de defender o Estado social e a paz. Chamou também a atenção, uma vez mais, para o fenómeno da desigualdade económica – “o ambiente natural e o ambiente humano degradam-se em conjunto”, já tinha demonstrado na Carta Encíclica Laudato si’, de 2105, refletindo a melhor tradição da economia ecológica, a que sabe que os mecanismos de mercado por si só nos trancam em círculos viciosos.
Na sua intervenção na Universidade Católica Portuguesa (UCP), Francisco deu uma lição necessária: “À universidade que se comprometeu a formar as novas gerações, seria um desperdício pensá-la apenas para perpetuar o atual sistema elitista e desigual do mundo com o ensino superior que continua a ser um privilégio de poucos.”
Estas palavras foram ditas numa instituição de ensino rica, tão elitista quanto marcada pela influência da “economia que mata” e do pensamento neoconservador sempre belicista, patentes na sua Escola de Negócios e de Economia ou no seu Instituto de Estudos Políticos. Há, de resto, toda uma história de formação de Chicago Boys em Universidades ditas Católicas, que Francisco, sendo argentino, conhece bem. A página mais negra foi escrita, creio, em Santiago do Chile. A UCP teve a sorte de ter sido criada poucos anos antes de Abril, mas não deixou de contribuir para a hegemonia neoliberal em democracia.
A sua Reitora anunciou a boa notícia da criação de uma cátedra dedicada à “Economia de Francisco e de Clara”. No entanto, sabemos que não há nada menos fiel a este espírito do que uma instituição que tem, por exemplo, um “programa executivo de gestão do luxo”, portanto, um programa de promoção do consumo conspícuo, um dos justos alvos da economia moral de Francisco.
Na Carta Encíclica Fratelli Tutti, de 2020, entre tantos temas cruciais, Francisco fala de uma economia do cuidado, de “nos constituirmos como um ‘nós’ que habita a casa comum”, para logo a seguir identificar um obstáculo político de monta: “um tal cuidado não interessa aos poderes económicos que necessitam de um ganho rápido”. Aliás, estes poderes vivem do “descarte”, traduzido, por exemplo, na “obsessão por reduzir os custos laborais”: “sem se dar conta das graves consequências que provoca, pois o desemprego daí resultante tem como efeito direto alagar as fronteiras da pobreza”, afiança.
Este é um homem simples e direto, que se dirige a crentes e não-crentes, a todos, sem deixar de fazer distinções cruciais. Como já disse, é melhor ser-se ateu do que ir à missa e depois semear o ódio. Esta encarnação do cristianismo autêntico estava a pensar em políticos como André Ventura, certamente, nos vendilhões de todos os templos e de todos os tempos. Afinal de contas, Francisco já tinha defendido, em 2016, o seguinte:
“São os comunistas que pensam como os cristãos. Cristo falou de uma sociedade em que os pobres, os débeis e os excluídos é que decidem. Não os demagogos, os Barrabás, mas o povo, os pobres, tenham fé em Deus ou não”.
Prudentemente, um dos Barrabás nacionais decidiu evitar Francisco, indo para a Madeira. A verdade assusta-o. Os testemunhos de Francisco, a sua economia moral, são sempre um excelente antídoto contra os novos rostos do fascismo gerados pelo neoliberalismo.
Até à próxima, Francisco.
2 comentários:
O comentário citado do Papa Francisco, que respeito como não crente, reproduz quase ipsis verbis um parágrafo, escrito décadas antes, por Gabriel Garcia Marquez em obra que não consigo identificar mas talvez seja em "Viver para recordá-la" pela única razão de ter sido a última que reli há uns tempos.
Quem esteve sentado ao lado de Francisco no CCB também esteve esta semana em Kiev a incentivar o contrário do que lá escutou ...
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