segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Vindima num “poema geológico”

O último livro que li sobre o Douro foi um raro romance de Miguel Torga, comprado no museu perto da sua aconchegante casa, agora aberta ao público, em São Martinho de Anta. Dali desce-se para o Douro e sobe-se depois para Penedono. 


Penedono fica a sul desta região e já é quase totalmente dominado pelo granito, pelo carvalho e pelo castanheiro, ao invés do xisto, da oliveira e da vinha, subitamente visíveis apenas na fronteira norte do mais pequeno concelho do distrito de Viseu, já quase no concelho vizinho de São João da Pesqueira, esse sim plenamente duriense. É o mais glorioso dos contrastes que conheço. 


Vou cada vez mais frequentemente ao Douro, olho para as paisagens de cortar a respiração, que passam a correr de comboio ou de carro, paro, ganho fôlego, caminho e vou tentando ver e saber o que se passa numa região com desigualdades tão cavadas como os seus vales, inscritas nos corpos dos que a fizeram e fazem, dos que lá vivem, trabalham e criam tudo o que ali tem valor, dos que escreveram o tal “poema geológico” de que falou Torga. 


Infelizmente, há jornalistas que por lá andam, mas que só olham para a classe dominante, como aqui já se denunciou. Isso é também visível em títulos recentes de dois jornais, que parecem refletir persistentes linhas editoriais de classe (como faz falta um jornalismo laboral): “Falta de trabalhadores perturba arranque da vindima no Douro” (Público) e “Falta de trabalhadores para a vindima é problema que se agrava no Douro” (DN). Proponho títulos mais rigorosos: falta de aumentos salariais perturba arranque da vindima no Douro e falta de salários decentes é problema que se agrava no Douro, por exemplo. 


A vindima tem lugar cada vez mais cedo: “o atípico está a tornar-se normal” por obra e desgraça das alterações climáticas, do capitaloceno. “Fim do mundo, fim do mês”, isto anda mesmo tudo ligado na economia tão moral quanto política.

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