quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Jesus e o dinheiro


A polémica com esta instalação de Bordalo II lembrou-me de ir rever um pequeno texto com o título Jesus e o dinheiro, do teólogo espanhol José Ignacio Gonzáles Faus, incluído numa obra coordenada por Anselmo Borges que, por sua vez, resultou de um Colóquio Internacional organizado pelo mesmo Anselmo Borges, em Valadares, a 8 e 9 de outubro de 2011 com o tema Quem foi, quem é, Jesus Cristo?.

Estive nesse colóquio, numa altura em que a troika estava a começar o seu programa em Portugal. O tema Jesus e o Dinheiro parecia completamente necessário naquele momento, mas, na altura, a minha sensação foi, um pouco, de desilusão. Esperava uma intervenção mais política, dedicada às questões das desigualdades, dos efeitos nefastos e injustos das medidas de austeridade. No entanto, Gonzáles Faus surgiu com uma apresentação teológica de três lições de Jesus sobre o dinheiro nos Evangelhos com apenas algumas lições para o presente.

Em primeiro lugar, Gonzáles Faus explica que aí, o dinheiro é visto como um ente que gera uma fé religiosa. Dinheiro surge nas palavras de Jesus como Mamôn, que era também o nome de uma divindade oriental e segundo Gonzales Faus, tem a mesma origem da palavra amén, no sentido de fé, fé religiosa.

Neste sentido, o dinheiro é um concorrente direto da fé em Deus. Daí a frase radical de Jesus no evangelho de Mateus ou de Lucas “Não se pode servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6, 24; Lc 16, 13). Explica então que “entre Deus e o dinheiro há (…) uma incompatibilidade absoluta: porque o dinheiro exige do ser humano uma rendição e entrega total”. E podemos relembrar ainda o episódio dos vendilhões do templo. E refere ainda:
O dinheiro não é só um meio de troca, inocente e útil (…). É isso, sem dúvida, mas é muito mais do que isso: uma fonte de prestígio e reconhecimento dos outros (…). Para lá do mais, é um meio omnipotente (como dizemos de Deus), porque com ele tem-se acesso a todos os outros meios.
A segunda lição de Jesus sobre o dinheiro está nas frequentes condenações dos ricos. As palavras de Jesus relativamente aos ricos são das mais duras dos Evangelhos: “é mais fácil um camelo passar através do buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus” (Mc 10, 25), diz Jesus a propósito de um jovem rico que cumpria todos os mandamentos, mas não aceita desprender-se das suas riquezas.

O amor ao dinheiro é colocado por Jesus como uma “abominação aos olhos de Deus” (Mt 16, 15). Quando fala no rico que se banqueteia e no pobre Lázaro, as palavras são novamente da maior aspereza. Este rico, indiferente à miséria que tinha à porta de casa, está condenado, não tem salvação possível. Por outro lado, Zaqueu, que era rico, salva-se quando decide dar metade dos seus bens e restituir quatro vezes mais àqueles que defraudou, ou seja, quando deixa de ser rico.

Aí surge a terceira lição. A centralidade do “dar tudo o que tens” mostra-se, em particular, numa outra passagem dos Evangelhos, em que Jesus afirma que, no juízo final se salvam aqueles que O viram com fome e lhe deram de comer, O viram com sede e lhe deram de beber, que O acolheram quando era estrangeiro, que Lhe deram de vestir quando estava nu, que O visitaram quando estava doente ou na prisão. Assim, não como algo impessoal, mas como algo dirigido ao próprio Jesus. Dar o que temos aos pobres é, então, não um ato de caridade assessório, mas de justiça e da mais profunda natureza de ser cristão.

Na altura tudo isto me pareceu bastante esotérico. Anos depois, e tendo passado estes últimos anos, a estudar a história das ideias sobre moeda, tudo isto se torna cristalino.

Desde a invenção da moeda que grande parte da história da humanidade é a da luta entre aqueles que confiam no poder do dinheiro e aqueles que o querem controlar e dominar. Tomás de Aquino, por exemplo, encontra-se na junção de duas tradições de pensamento onde esse objetivo era inequívoco. Por um lado, Aristóteles e por outro lado, a Bíblia e a tradição judaico-cristã.

Para além do que já se leu de Jesus, A Bíblia tem ainda, no Antigo Testamento, a condenação da usura e a figura do jubileu, uma remissão da das dívidas e da servidão que surgia do não pagamento de dívidas. Entendia-se aí que a relação monetária, a dívida, colocava em causa a irmandade do povo de Israel, tornando uns servos dos outros, o que ia contra as ordens do próprio Deus. O que Tomás de Aquino interpreta na Suma Teológica:
Aos Judeus foi proibido receber usura dos seus irmãos, isto é, dos Judeus. Por onde se dá a entender que receber usura de quem quer que seja é sempre mau; pois, devemos considerar a todos os homens como próximos e irmãos.
Já na tradição de Aristóteles, o dinheiro é visto como uma riqueza artificial cujo valor reside unicamente na capacidade de mensurar e servir de meio de troca das riquezas naturais (que têm, de facto, um valor de uso), que por sua vez servem o propósito da vida boa, que inclui a aspiração individual para a felicidade e a aspiração coletiva para a autossuficiência. Com algumas variações, os seus seguidores seguem de perto esta hierarquização do dinheiro enquanto meio dirigido para fins terrenos que por sua vez se dirigem para fins últimos.

É assim que estes autores teorizam a moeda como um meio de troca neutro e estéril. Era essa a sua natureza, negada sempre que se colocava a moeda como um fim em si mesma, justificando a condenação secular da usura, mas também impondo a obrigação de um preço justo nas trocas mercantis.

Portanto, para estes autores, a ideia de que a moeda era um meio de troca neutro era prescritiva e não descritiva. O dinheiro não era neutro, mas, pela sua natureza e por critérios éticos e de justiça, devia sê-lo. Estes autores sabiam e alertavam para os riscos de colocar o dinheiro como um fim.

No entanto, ainda na Idade Média e principalmente a partir dos séculos XVII e XVIII, a moeda foi-se soltando das amarras religiosas, políticas e sociais em que se encontrava. O crescimento do comércio leva vários escolásticos a acrescentar mais e mais exceções à regra da condenação da usura. Os metais preciosos passam a ser vistos como uma forma de riqueza ou até a riqueza em si mesma, em particular com o mercantilismo. Os primeiros autores liberais como Locke, Hume, Steuart ou Montesquieu entre outros, começam a teorizar o dinheiro como um travão à arbitrariedade do soberano que agora tinha de se submeter ao seu poder. Nos mesmos autores, a paixão pelo dinheiro, antes vista como um vício capital, passa a ser vista, primeiro, como um vício menor, para mais tarde se transformar numa virtude como explica Albert Hirschman em As Paixões e os Interesses.

A própria visão sobre a natureza da moeda muda. É neste processo que a ideia de que a moeda é, de facto, um meio de troca neutro ganha a sua preponderância, alavancada por Hume e depois pelos economistas Clássicos como Ricardo ou Stuart Mill. Ao contrário da visão aristotélica, esta neutralidade não é prescritiva, mas sim descritiva. Porque neutro aqui significa também, neutro em termos de valores, em termos de justiça. Com a revolução marginalista acabou-se até com a clássica distinção (que vem de Aristóteles) entre valor-de-uso e valor-de-troca. Ter a moeda como um fim deixou de ser um problema. Todo o valor das coisas passou a ser visto em termos monetários.

Assim, ao longo destes últimos séculos, o dinheiro teve via aberta para se tornar, de um meio num fim e depois n'O fim último de toda a ação humana, quando, numa economia monetária de produção capitalista, toda a atividade humana depende da procura do dinheiro e da sua acumulação. Somos, hoje, escravos do dinheiro.

Apesar do controlo quase total pelo dinheiro, perceber o problema disto é, ainda, intuitivo. Nós percebemos que em múltiplas situações o dinheiro, isto é, a troca mercantil, valorada e mediada pelo dinheiro, não corresponde a critérios de justiça, não corresponde ao real valor das coisas. Sabemos que o valor de uma pessoa não se mede pelo valor monetário do seu produto ao longo da vida. Sabemos que os rendimentos não são uma verdadeira medida do mérito ou do trabalho. Sabemos que o valor de uma floresta ou da biodiversidade não se medem pelo seu impacto no PIB. Usamos critérios de justiça ou até virtude para recusar preços ou resultados monetários e propomos soluções que fogem ao mercado e, ao invés, apontam para a decisão coletiva e o bem comum. Mas em todo o lado somos forçados a achar que o dinheiro é e deve ser o juiz último de tudo e somos amiúde ridicularizados quando consideramos o contrário.

Gonzáles Faus lembra que também Jesus foi ridicularizado pela sua perspetiva sobre o dinheiro: “os fariseus, como eram muito amigos do dinheiro, ouviam as suas palavras e troçavam dele” (Lc 16, 14) e continua depois: “como se riam Milton Friedman ou Hayek dos teólogos da libertação… Um riso que, no fundo, não passa de um falso mecanismo de autodefesa.”

Esta autodefesa é, segundo Gonzales Faus, a de, perante palavras tão claras de Jesus nos Evangelhos, tantos cristãos continuarem a assobiar para o lado e a inventar contextualizações que permitam a quadratura do círculo de amar a Deus enquanto amam o dinheiro e não compreendem os riscos de o colocar como fim último.

Daí a conclusão perentória de Gonzales Faus:
É contrário ao projeto de Jesus (e, portanto, à vontade de Deus) o sistema económico em que vivemos e nos movemos, no qual o dinheiro tem mais direitos do que o ser humano. E é coerente com o seguimento de Jesus o esforço por uma mudança de sistema para outro mais justo, onde seja o ser humano, e não o dinheiro ou o Capital, o verdadeiro sujeito de direitos. (…) Do que se trata é de superar este sistema edificado sobre a paixão do dinheiro e a busca do máximo lucro possível: porque um sistema assim só produz ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres.

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