quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

AD no país das maravilhas

 

A Aliança Democrática (AD) – coligação entre o PSD, o CDS e o Partido Monárquico – apresentou na semana passada o seu programa económico para as eleições legislativas de março. Com estas medidas, o objetivo da AD é o de “ampliar as condições de efetiva liberdade económica, para alcançar uma economia mais flexível, mais concorrencial, com menos impostos e menores distorções.”

O eixo central do programa é o choque fiscal prometido: prevê-se a redução do IRS, a isenção de IRS e de contribuições sociais para prémios de desempenho, a redução das taxas de IRS em 2/3 para os jovens até 35 anos, a diminuição do IRC para 15% até ao final da legislatura e a eliminação da derrama municipal e estadual. A AD compromete-se a reduzir a carga fiscal e também a reduzir a despesa e a dívida pública em percentagem do PIB, apontando para um rácio de dívida pública de 90% no final da legislatura.

Os economistas que delinearam o programa económico da AD acreditam que o corte de impostos não terá impacto negativo nas contas públicas: ao promover o investimento privado, que se prevê que cresça 5% no próximo ano, e as exportações, o crescimento económico passará dos atuais 2% para 3,5% anuais e, apesar da redução das taxas para as famílias e empresas ter um custo estimado de 5.000 milhões de euros, as receitas arrecadadas pelo Estado aumentarão em 10.000 milhões de euros. Por outras palavras, o corte de impostos vai pagar-se a si próprio.


Parece bom demais para ser verdade. E há bons motivos para pensar que é mesmo.

Baixar impostos e esperar que chova?

O programa económico da AD coloca as fichas todas no choque fiscal e, sobretudo, na redução dos impostos para as empresas, que justificam a previsão de um crescimento tão acentuado do investimento privado. A ideia é relativamente intuitiva: menos impostos sobre as empresas permitem-lhes aumentar os valores que reinvestem na atividade, contribuindo para melhorar a capacidade produtiva e fomentar o crescimento da economia.

No entanto, não é mais do que uma crença: os estudos empíricos existentes não nos permitem afirmar que baixar impostos às empresas traria mais crescimento. Uma revisão de literatura recente, levada a cabo pelos economistas Philipp Heimberger e Sebastien Gechert, analisou dezenas de estudos publicados que usam diferentes indicadores (alterações nas taxas nominais ou nas taxas efetivas), avaliam efeitos de curto e longo prazo e se baseiam em diferentes metodologias. Embora alguns apontem para um impacto positivo no crescimento, outros dizem que é nulo ou negativo. A conclusão é que, ao contrário que se costuma pressupor, não há evidência empírica que nos permita afirmar que as descidas do IRC promovem o crescimento económico.

Um dos argumentos que a direita utiliza é a ideia de que temos uma das taxas de IRC mais elevadas do conjunto de países da União Europeia, o que funcionaria como entrave ao investimento privado no país. No entanto, o que os dados disponíveis nos dizem é que não existe qualquer relação entre a taxa máxima de IRC e o nível de investimento do setor privado.

O investimento privado depende de muitos outros fatores: o dinamismo da procura em cada país, as expectativas de vendas por parte das empresas, os apoios públicos ao investimento empresarial, entre outros. Além disso, centrar o debate na taxa máxima de IRC, como a direita tem feito, é enganador, já que é difícil (para não dizer impossível) encontrar uma empresa que pague mesmo essa taxa de imposto.

A taxa geral de IRC é de 21% e, para uma empresa atingir a taxa máxima, teria de ser sujeita não apenas à derrama municipal, que varia entre 0% e 1,5% consoante o município em questão, como também à derrama estadual, que pode ir dos 3% aos 9% e que se aplica apenas a empresas que apresentem um rendimento coletável superior a €1,5 milhões, que perfazem... menos de 1% do tecido empresarial português.

A taxa efetiva de imposto, que corresponde ao que a maioria das empresas paga efetivamente depois de se considerarem os vários benefícios fiscais e deduções, corresponde a pouco mais de metade (18,9%), de acordo com a Autoridade Tributária.

Quando propõe a eliminação da derrama, a direita argumenta que a taxa máxima funciona como desincentivo ao investimento. No entanto, o que os dados da AT nos dizem é que algumas empresas de maior dimensão chegam a pagar menos do que as pequenas: nos últimos anos, as empresas com volume de negócios entre €2 milhões e €50 milhões pagaram taxas médias efetivas inferiores às que tinham volume de negócios inferiores a €2 milhões. Além disso, o que não falta em Portugal são isenções e benefícios fiscais para as empresas que decidam investir. Por fim, seria muito pouco credível que alguma empresa deixasse de investir apenas para não pagar uma taxa de imposto ligeiramente superior sobre ganhos que seriam muito superiores.

Impostos e imposturas

A promessa de redução de impostos tem como pressuposto a ideia de que a economia portuguesa tem uma carga fiscal excessiva, que impede o desenvolvimento do país e explica a emigração de jovens. Essa ideia não sobrevive ao confronto com os factos: na verdade, a carga fiscal em Portugal é inferior à média da União Europeia e encontra-se bastante abaixo de vários dos países com melhor qualidade de vida.

As sondagens dizem-nos que a instabilidade financeira e os problemas no acesso à habitação são os principais motivos de preocupação dos jovens. Ou seja, é a combinação de baixos salários, contratos precários e custos incomportáveis da habitação que torna difícil a vida para a maioria das pessoas no país e leva mais de metade dos jovens a admitir emigrar. É a esses problemas que os programas dos partidos têm de tentar dar resposta.

A AD promete baixar os impostos para os jovens através de uma redução das taxas de IRS aplicáveis em todos os escalões, exceto no último, para os trabalhadores até aos 35 anos. No entanto, a promessa é enganadora: mais de metade dos jovens ganha menos de €1000 por mês e ganharia pouco, sobretudo tendo em conta que já existe uma isenção de IRS para jovens nos primeiros cinco anos de trabalho. Mesmo para quem não é atualmente abrangido, a proposta da AD beneficia muito mais quem ganha mais. À semelhança da proposta de isentar de IRS os prémios de desempenho, o objetivo é minar a função redistributiva do imposto. A direita não está a falar para os jovens, mas sim para os mais ricos.

Há vida para além dos impostos

Quando se fala no impacto de medidas, os economistas referem-se ao “efeito multiplicador”: o impacto que uma determinada medida orçamental tem no rendimento total gerado na economia. É este conceito que está implícito na proposta da AD, como identificou o Tiago Santos neste blog. Embora haja vários fatores que influenciam o efeito multiplicador de cada medida, há vários estudos que procuram estimar o impacto de um aumento da despesa pública ou de uma descida de impostos.

Há dois aspetos para os quais estes estudos apontam. Por um lado, a maioria conclui que o multiplicador da despesa é superior a 1: por cada aumento de €1 na despesa (e, sobretudo, no investimento) do Estado, o PIB cresce mais do que €1, o que significa que os benefícios que o investimento gera para a economia não só compensam, como tendem a superar os seus custos iniciais. Por outro lado, o impacto estimado de um aumento da despesa ou do investimento público costuma ser superior ao de uma redução de impostos, o que nos indica que o dinheiro seria melhor empregue pelo Estado na promoção do investimento em áreas onde tem faltado.

Sobre habitação, a AD pede-nos confiança no mercado livre e na iniciativa privada. Para a compra da primeira casa, a coligação propõe a isenção de IMT e de imposto de selo e a implementação de garantias públicas para os empréstimos à habitação. Já para o arrendamento, PSD e CDS querem a “substituição de limitações administrativas de preços por subsidiação pública aos arrendatários em situações de vulnerabilidade/necessidade efetiva”.

Nenhuma destas medidas resolve o problema dos preços exorbitantes para a maioria das pessoas nas principais cidades e zonas envolventes. A isenção de impostos beneficia essencialmente a pequena percentagem de jovens que já tem capacidade para adquirir casas aos preços atuais. Pior: tanto no mercado de compra e venda como no de arrendamento, a direita quer que seja o Estado a subsidiar os lucros que os proprietários arrecadam com os preços e rendas altíssimas.

A isto junta-se a desregulação do setor e um “programa de Parcerias Público-Privadas para a construção e reabilitação em larga escala”, que, embora não se encontre especificado, facilmente traz à memória a experiência do país com PPPs em que os privados ganham à custa do Estado.

Não só não há nenhuma medida que intervenha no mercado no sentido de limitar a pressão especulativa a que tem sido sujeito por parte de fundos imobiliários e não-residentes endinheirados, como é assumida a defesa do alojamento local. A AD quer eliminar a contribuição extraordinária sobre o AL, eliminar a caducidade das licenças e rever os limites atualmente impostos, numa altura em que já há mais alojamentos locais por habitante em Lisboa do que em algumas das cidades com maior pressão turística do mundo, como Nova Iorque.

Já sobre o trabalho, por trás de frases ambíguas e pouco claras – “modernizar as regras para confrontar a segmentação do mercado e ajustar às transformações no mundo do trabalho” –, está o programa de sempre: reduzir a proteção laboral, facilitar despedimentos e aprofundar a precarização do trabalho. Foi isso que PSD e CDS levaram a cabo da última vez que governaram, durante o período da Troika, tornando Portugal num dos países da UE com maior peso dos contratos precários.

Na campanha eleitoral, a AD pede-nos para “acreditar na mudança”. Mas o programa que apresenta, elaborado em articulação com um conjunto de economistas de má memória para o país, é um misto de medidas de eficácia muito duvidosa com outras que representam essencialmente a continuidade do modelo de crescimento da última década, assente na monocultura do turismo e na bolha imobiliária. Nas maravilhas prometidas, só acredita quem quer.

Para superar a melancolia de esquerda

O historiador Enzo Traverso identificou e valorizou um feixe de emoções e de sentimentos políticos, sobretudo presente no marxismo depois de 1989, que designou por “melancolia de esquerda”. Implicando uma visão da história despojada de qualquer vestígio teleológico, de qualquer crença no progresso imanente, esta melancolia não é nova e perpassa ocultamente a esquerda revolucionária. Estas emoções prevalecem em certas conjunturas históricas, marcadas pela derrota e pelo reconhecimento introspetivo de perdas mais ou menos irreparáveis, constituindo em si mesma uma tradição por resgatar. Trata -se, então, de refletir não apenas sobre a derrota do socialismo, ou sobre o lastro deixado pelo correlativo triunfo, já com décadas, da variante neoliberal de capitalismo, mas também sobre a forma como estes dois processos articulados na economia política internacional mudaram a relação entre memória, história e ação política num campo ideológico particular. 

Traverso argumenta que a melancolia de esquerda pode ser necessária para resgatar uma certa memória letalmente ameaçada do socialismo, embora se foque mais na rememoração da sua dimensão utópica do que nas suas concretizações e efeitos reais. Sem esquecer os tão enfatizados e tantas vezes descontextualizados crimes, cometidos em nome do socialismo, é preciso não obliterar os seus hoje menos enfatizados feitos e efeitos internacionais. Como Traverso de resto reconhece, os “fantasmas que perseguem a Europa hoje em dia não são os das revoluções do futuro, mas os das derrotadas revoluções do passado”.

Na sua análise, navegando entre memória e história, Traverso omite a tradição social-democrata ocidental, igualmente atravessada por um olhar melancólico sobre o passado perdido, em particular sobre os “trinta gloriosos anos” das chamadas economias mistas ocidentais, num contexto histórico marcado pela Guerra Fria. Aqui, podemos dizer que os fantasmas que perseguem a Europa, mas também os Estados Unidos da América (EUA), não são os das reformas do futuro, mas os das derrotadas ou ameaçadas reformas do passado, isto se a palavra reforma não tivesse sido capturada pelo neoliberalismo há várias décadas. A ponte entre as tradições marxista e social-democrata pode ser feita pela obra de Eric Hobsbawm. [referências omitidas]

O resto do artigo pode ser lido na Revista Estudos do Século XX, desenvolvendo alguns dos argumentos já esboçados em O neoliberalismo não é um slogan. É uma espécie de síntese do que tenho aprendido com alguns historiadores mortos e vivos, sobretudo depois de ter tido a felicidade de integrar, vai para uma dúzia de anos, o núcleo de história de uma faculdade de economia e de outras três ciências sociais, gestão, relações internacionais e sociologia. Têm-me dado liberdade para ser indisciplinado no ensino e na investigação. 

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Da lambebotice

Perante a enésima tomada de posição vergonhosa do Governo português em matéria de política externa, Mariana Garrido, com sólida formação nesta área, escreveu no Twitter: “Alguém que se ponha a estudar esta tendência secular de fazer da cobardia e da lambebotice o motor da política externa portuguesa.” 

Realmente, a política externa portuguesa é uma área tão ou mais policiada intelectual e politicamente do que a economia. Têm mesmo medo do pluralismo. Reina então aí, com honrosas exceções, a paz dos cemitérios de Washington e de Bruxelas, um conformismo que gera mediocridade, com consequências deletérias para a vida nacional, sobretudo num mundo cada vez mais multipolar. 

No seguimento de Garrido, apostaria que temos de ter uma perspetiva de economia política internacional para explicar esta mentalidade subserviente: da dependência financeira ou militar à dependência intelectual e política, poder duro e poder mole para lá da diplomacia do croquete ou dos negócios estrangeiros.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Um Estado com estratégia não é socialismo, é boa política

No Japão (um país há muito governado por conservadores ou liberais) as políticas de ciência, tecnologia e inovação têm por base planos quinquenais, que orientam cerca de metade do orçamento público para aquelas áreas. O mais recente plano japonês identifica como prioridades as áreas tecnológicas de inteligência artificial, biotecnologia, computação quântica, semicondutores, robótica, materiais e energias renováveis, aplicadas aos domínios do espaço, oceanos, saúde, alimentação, agricultura, floresta e pescas. 

Os planos quinquenais, precedidos de exercícios detalhados de prospectiva tecnológica, são também prática corrente na Coreia do Sul capitalista. O mais recente plano identifica seis áreas prioritárias: IA aplicada à educação, plataformas autónomas de integração de internet das coisas, robôs auto-evolutivos para companhia de humanos, sistemas de assistência médica remota com base em biossinais, tecnologia de comunicação de ultra-alta frequência, e sistemas de monitorização anónima hiper-conectados. Para cada uma destas áreas prioritárias, o plano sul-coreano identifica o tipo de intervenção pública que é necessário para impulsionar o seu desenvolvimento, fomentando a articulação entre investigação científica e inovação empresarial.

Os EUA deixam evidentes as suas apostas prioritárias em grandes programas federais, como o recente CHIPS and Science Act (que dedica o equivalente ao PIB português a áreas como a produção de semicondutores, a computação quântica, a inteligência artificial, a nanotecnologia, as energias “limpas” e as biotecnologias) e o Inflation Reduction Act (que apoia com um orçamento ainda maior a produção e difusão de tecnologias de ponta na área da descarbonização). Um conjunto de agências federais americanas assegura não apenas o apoio, mas com frequência a coordenação de esforços públicos e privados para assegurar o desenvolvimento das áreas de aposta prioritária.

Estes são apenas alguns exemplos de práticas de planeamento e selectividade nas políticas de investigação e inovação, prosseguidas por países com economias avançadas, tendo em vista o desenvolvimento das suas capacidades produtivas. A direita portuguesa chama a isto “socialismo”. Na verdade, é apenas boa política pública.

O resto do meu texto está disponível no Público de hoje, em papel e online.

Notas pessoais de dias coletivos

Tenho algumas divergências com os comunistas e com os ecossocialistas, mas tenho muitas mais convergências. Nacionalista de esquerda – “democrata e patriota”, na sua formulação –, sinto-me muito honrado em integrar as listas da CDU às legislativas pelo meu distrito, Coimbra.


Fui tirar a fotografia de candidato ao Centro de Trabalho do PCP, junto a Coimbra A, estação em risco, na semana passada. Na sala de exposições e debates, onde decorreu a sessão fotográfica, estava uma retrospetiva da pintura e desenho de um historiador da minha faculdade, infelizmente já falecido, chamado Jaime Ferreira. Uma proposta de história do pão é a obra de referência de um intelectual que vive no meio da arte e da memória engajadas. Desde os tempos de estudante que pintava e desenhava, muitas vezes sob pseudónimo, chegando a fazer capas para a revista Vértice que o lápis azul marcou. 

Quando cheguei ao Centro onde se faz trabalho político reconheci a outra candidata independente da CDU, que também ia tirar a foto: Vanda Pereira trabalha como operadora de caixa num supermercado onde me abasteço regularmente e é uma valorosa dirigente sindical. É um setor feminizado e onde “sabe bem pagar tão pouco”. Este é o feminismo que conta. Já tivemos oportunidade de falar sobre lutas de classes. O espírito da Constituição da República Portuguesa de 1976 passa por aqui: nunca se desiste da “sociedade sem classes”, da igualdade cidadã baseada nos valores do trabalho com utilidade social, da distribuição ao ensino. 


Entretanto, um admirável intelectual catocomunista convidou-me para escrever um breve artigo para o site Terra da Fraternidade, uma coincidência curiosa, dado que a minha reaproximação a uma certa ideia de comunismo se dá ao mesmo tempo que quero cada vez mais sublinhar as convergências com o cristianismo do Papa Francisco, acreditando tanto nos que acreditam que chego a julgar que esta aí a essência de uma qualquer fé partilhada por todos os que tentam ter boa vontade. Escreverei sobre socialismo cristão e cristianismo socialista, então. 

Na passada sexta-feira, participei no jantar-comício com Paulo Raimundo e Fernando Teixeira, que reuniu meio milhar de pessoas em Arzila, na sede do grupo folclórico: comeu-se uma sopa de legumes, um rancho e um arroz doce muito bons. Como se cozinha assim para tanta gente? Mistérios da criação coletiva. Tive lugar à mesa e isso é o mais importante. Atentai sempre nas mãos visíveis, mas que uns poucos, muito poderosos, querem invisibilizar. Certamente inspiradas pela comida e pelo ambiente, as intervenções tiveram uma toada justa: 103 anos de combate a todas as direitas. No fim cantou-se a Grândola e a Portuguesa. Ninguém passa bem sem rituais. 

Lembrei-me de repente que há mais de um quarto de século, em 1995, acabado de entrar na JCP aos 18 anos, andámos por ali em campanha com Álvaro Cunhal. Falou em cima de uma carrinha de caixa aberta, “o cavalo branco ainda está em forma, bolas”, contaram-me que vociferou alguém, sem simpatia política, mas com admiração pela fibra. Nesse dia, almocei em frente dele na Figueira da Foz. Era setembro e estava aquela luz inconfundível da Figueira. Fui feliz e soube disso.


Ontem, domingo, fiz campanha na Feira de Lorvão, junto ao famoso mosteiro, que já foi hospital psiquiátrico. Estava pouca gente, mas se calhar até por isso deu para conversar calmamente com um concidadão, com quem de outra forma não falaria. Sair da minha bolha: “agradeço ao partido, porque graças a ele não termino em mim mesmo”, já dizia Pablo Neruda. 

Desculpai, mas é que, paradoxalmente, sai-me ultimamente este registo mais pessoal no meio da ação coletiva. O nós, a intencionalidade coletiva, é mais do que a soma de eus, bem sei. 

Também sei por introspeção que, para lá da medicina e da psicoterapia, não há, como magnificamente defendeu Mark Fisher em Realismo Capitalista, melhor antídoto para a melancolia política e a depressão do que a convergência com os outros, abrindo para a esperança mesmo em tempos sombrios: “um homem sozinho não é nada”, já dizia Manuel da Fonseca e disse mesmo bem.

Isto vai, amigos, isto vai.

Encontrar a economia política


A prolongada crise do capitalismo neoliberal enquanto mudança estratégica das formas económicas, políticas e ideológicas do processo de acumulação deixou um rasto de destruição global: o agravamento das desigualdades, o alastramento da pobreza, o desastre ambiental, a guerra e a nova corrida aos armamentos, o declínio das democracias, a insegurança e o medo feitos política num tempo sem política como razão estratégica. Um presentismo conformista difuso que digere e normaliza o processo de regressão em curso e é diligentemente fabricado pelas novas máquinas de formatação do senso comum.

Excerto inicial da estimulante intervenção do historiador Fernando Rosas, que abriu o VII Encontro da Associação Portuguesa de Economia Política, ao qual de resto presidiu (25-27 Janeiro 2024, ISEG-UL). 

Com cerca de 200 comunicações, este sétimo encontro foi de resto a demonstração da crescente vitalidade deste campo de estudos cada vez mais interdisciplinar e plural.

domingo, 28 de janeiro de 2024

Algarve: não há água sem justiça


Agora que chegou o momento em que o território apresenta a fatura, o governo corta cegamente e a eito em todos os consumos sem qualquer distinção entre as responsabilidades e as alternativas. A água para beber e a água para encher piscinas, a água para produções sustentáveis e a água para a monocultura intensiva. Entretanto, nada muda. A água para consumo doméstico será racionada, os aumento de preços já foram anunciados e até vão ser anunciadas multas para os prevaricadores. Mas nada disso impede a autorização de mais 722 hectares de abacatal ou a impunidade das explorações que nem autorizadas foram. As famílias vão apertar o cinto para que tudo fique na mesma.

É nessa realidade que esbarra a justiça ilusória do corte cego. Nem no meio da mais completa catástrofe o governo trata do que interessa: converter todas as monoculturas intensivas em produções sustentáveis, converter uma parte das explorações em culturas de sequeiro, obrigar hotéis e campos de golfe a investir no aproveitamento de águas residuais num curto espaço de tempo. Para o governo, obrigações, aumento de preços, racionamento, multas e ameaças estão reservadas para quem usa a água para beber, cozinhar e tomar banho.

É claro que não tem de ser assim. Quem há muito tempo aprendeu a trabalhar com os recursos de que o seu território efetivamente dispõe, quem não está de malas aviadas para ir explorar outros recursos quando estes forem exauridos, quem há muito alerta para o beco sem saída do modelo atual, não vai ficar calado a ver isto acontecer. Se no fim houver sacrifícios a fazer para salvar a região, as pessoas estarão certamente disponíveis. Desde que não seja para ficar tudo na mesma.

Artigo completo no Setenta e Quatro.

Choques chineses


Dois livros estimulantes e contrastantes, escritos por economistas políticos brasileiros, para rever.

Neoliberalismo com características chinesas, capitalismo restaurado, socialismo com características chinesas, socialismo com (ou de) mercado, capitalismo de Estado, capitalismo político, economia mista, formação económico-social com orientação socialista: termos usados para caracterizar a China pós-maoista e só na economia política crítica, com orientação histórico-institucional, dos últimos anos. 

É complexo, realmente. Mas algumas coisas são relativamente simples neste contexto histórico, que também é de incerteza sobre o futuro económico chinês, mesmo depois da maior transformação económica alguma vez registada na história da humanidade (quantidade/qualidade). Por exemplo, o regime financeiro chinês ainda está sob controlo estatal, da banca pública ao controlos de capitais, passando pelo papel do todo-poderoso banco central, sendo parte da atual incoerência produtiva do sistema financeiro internacional. As crises financeiras têm primado pela ausência na República Popular. 


Atentai num gráfico, com duas semanas, sobre a mudança na orientação do crédito do imobiliário para a indústria. Foi retirado de uma The Economist que me pareceu algo assustada com a capacidade de ajustamento do sistema chinês, ao mesmo tempo que temia maiores reações protecionistas ocidentais à grande frota elétrica chinesa. O medo até pode ser sadio numa economia política internacional ainda demasiado liberal. Pode, note-se.

Desmascarar o programa económico da AD em menos de 2 minutos


«Eu vou dar os exemplos… Não é dar os exemplos, é fazer a listagem das medidas que nós conhecemos. É reduzir o IRC. Reduzir o IRS. Aumentar o Complemento Solidário para Idosos. Aumentar os vouchers para consultas e cirurgias de especialidade no Serviço Nacional de Saúde. Ter um Médico de Família para todos. Repor de forma faseada o tempo de serviço dos professores. Universalizar o ensino Pré-escolar. Alargar a Ação Social Escolar. Isentar de IMT e Imposto de Selo a aquisição de habitação para menores de 35 anos.
Ou seja, reduzir os impostos 'a la' Iniciativa Liberal, aumentar as despesas públicas 'a la' PCP e Bloco de Esquerda. E, ao mesmo tempo, reduzir a dívida pública 'a la' Mário Centeno. Isto é o programa da AD. É um programa miraculoso. E conta com aquela «fada da confiança» que mais ou menos a senhora Liz Struss propôs no Reino Unido: a gente desce aqui os impostos em 6 pontos percentuais, o IRC em 6 pontos percentuais, e não imaginam a explosão de crescimento económico que daí vem... Isto não faz sentido nenhum
».

Em mais uma edição do «Tudo é Economia», da RTP3 (excerto roubado aqui), Ricardo Paes Mamede desfaz o programa da nova AD, que propõe aos eleitores leite e mel, o melhor de cada mundo: uma generosa redução de impostos a par do aumento da despesa social e da redução da dívida pública. Nada de novo, na verdade. Vimos a mesma contradição entre a campanha de 2011 e a governação da maioria PSD-CDS/PP, certo?

sábado, 27 de janeiro de 2024

Os vende-pátrias


Os vende-pátrias da extremada direita lusa, os tais economistas do cortejo fúnebre da economia portuguesa, agora com a fugaz aparição pública de Álvaro Santos Pereira - talvez o mais incapaz e lesivo ministro da economia do pós 25 de Abril - tentam recuperar a enganosa tese de Wolfgang Schäuble, uma tese falida e usada contra o interesse nacional, segundo a qual a intervenção externa que o país sofreu, em 2011, foi o resultado da incapacidade de o Estado se financiar - a mentira da bancarrota - em consequência de taxas de juro incomportáveis então exigidas pelos mercados, taxas essas que pretensamente seriam função do alto nível de endividamento público do país.

A dívida pública, no fim de 2011, rondava os 114% do PIB; em janeiro de 2012, os juros das obrigações do tesouro de Portugal a 10 anos atingiram os 16,4%. Foi no que deu a golpista inação do BCE.


A dívida pública, no fim de 2020, cifrou-se em 135,1% do PIB; em janeiro de 2021 ano o Jornal de Negócios noticiava que “Portugal coloca dívida a 10 anos com juros negativos pela primeira vez”.

Lição inequívoca: o banco central controla sempre as taxas de juro da dívida denominada na moeda por si emitida.

Desculpem se nos repetimos, mas o mantra enganoso e sedicioso da bancarrota não pode ser reabilitado. A economia das idade das trevas tem de ser combatida, que o país não a comporta. É o nosso futuro coletivo que está em causa.

Que política económica depois de 10 de Março?

A convite de Basílio Horta e do Conselho Estratégico Empresarial de Sintra, participei esta semana num debate com o Fernando Alexandre, moderado por António Pires de Lima, sobre o tema “Que futuro e propostas para a economia portuguesa depois de 10 de Março”.

Foi uma sessão estimulante (a parte do debate anda mais do que as intervenções iniciais), fica aqui o vídeo da sessão.


Coro antifascista


Sempre que fico com medo das hordas fascistas, lembro-me deste coro e o medo quase que desaparece.

Perguntar sempre


Faz hoje 79 anos que o principal campo de industrialização da morte nazifascista foi libertado pelas valorosas forças da vida soviética. 

É então caso para perguntar sempre já não o que é que os romanos fizeram por nós, mas agora: o que é que a Revolução de Outubro e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, criada em 1922 e extinta em 1991, fizeram por nós? 

Para lá de terem metido medo aos ricos, obrigando-os a integrar os de baixo nas sociedades capitalistas ocidentais, assim menos limitadamente democráticas, para lá de terem dado o contributo decisivo para a derrota do nazifascismo ou para lá de terem ajudado a inscrever o anti-imperialismo e o anticolonialismo nas dinâmicas de um sistema internacional eventualmente menos hierarquizado?

E os seus fracassos, crimes e derrotas, não impedem outra pergunta: será que o mundo ficou melhor depois de 1991?

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Diga as palavras, homem

«Teremos de introduzir provas de aferição no 4º ano e no 6º ano de escolaridade», disse há dias Alexandre Homem Cristo, candidato a deputado pela AD e putativo novo mininstro da Educação, caso a direita ganhe eleições. Acrescentando que, «para ser eficaz, a monitorização da aprendizagem deve ser feita no final dos ciclos do ensino básico e com resultados publicados».

Como é óbvio, Homem Cristo sabe que as Provas de Aferição têm um propósito claro e distintivo. Visam identificar matérias e competências em que os alunos revelam ainda dificuldades, de modo a que as mesmas possam ser trabalhadas pelos docentes e pelas escolas no ano seguinte. É por isso, e não por acaso, que as Provas de Aferição se realizam durante os ciclos do ensino básico (no 2º, 5º e 8º ano) e não no final, quando já não haveria tempo, nem o mesmo contexto, para recuperar e melhorar.


Provas de Aferição realizadas no final de ciclo significam outra coisa, cuja designação é diferente. Chamam-se exames finais e correspondem ao que Alexandre Homem Cristo pretende implementar, evitando contudo chamar os bois pelos nomes. Percebe-se: trata-se de um regresso a Nuno Crato, que introduziu exames finais no 4º e 6º ano. O que faria de Portugal, novamente, uma exceção retrógrada no quadro europeu, onde a realidade que prevalece é a da realização de provas de aferição durante os 6 primeiros anos de escolaridade.

Por isso, se realmente defende a reintrodução de exames finais, que já ninguém realiza há muito tempo no 4º e 6º ano por essa Europa fora, conviria que Alexandre Homem Cristo revelasse com clareza ao que vem. Que dissesse, sem dissimulações nem ofuscações, as palavras.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Novos keynesianos


Foi notícia ontem que a AD apresentou o seu cenário macroeconómico, com um corte de impostos estimado em 5000 milhões de euros “e a introdução de medidas que pretendem aumentar a produtividade da economia”. 

De acordo com este cenário, esta descida de impostos paga-se a si mesma. Com menos impostos cobrados, aumenta “o rendimento disponível das famílias e a capacidade financeira das empresas, conduzindo a uma aceleração do consumo privado e do investimento”.

Estamos a falar, portanto, do nosso velho conhecido multiplicador orçamental keynesiano, ou seja, o fator que multiplica cada 1€ que o Estado cobra ou despende na economia. Este multiplicador pode ser negativo, o que significa que uma descida de impostos faria descer o PIB; entre 0 e 1, o que significa que cada 1€ a menos de impostos teria um efeito modesto, menor do que 1€ no PIB; ou maior que 1, o que significa que significa um efeito largamente positivo no PIB. Portanto, no cenário macroeconómico da AD, cada 1€ a menos de impostos será multiplicado por um valor (bem) acima de 1 no consumo e no investimento, de tal forma que desta forma se compensará a descida inicial dos impostos.

A direita adora apresentar o multiplicador das descidas de impostos. Mas esquece sempre que o mesmo princípio pode ser aplicado aos aumentos da despesa e do investimento públicos. 

A importância do multiplicador é tanta que me surpreende este não ser mais discutido. Por exemplo, o programa de ajustamento imposto pela Troika, com uma grande descida da despesa pública e "colossal aumento de impostos", apenas tinha sentido num cenário onde o multiplicador fosse menor que 1, ou seja, onde apesar do efeito negativo esperado na economia, este efeito fosse pequeno comparado com o efeito positivo na consolidação das finanças públicas. Mas era gravíssimo se o multiplicador fosse maior que 1. Nesse caso, cada aumento de impostos fazia descer ainda mais o PIB (menos investimento, mais desemprego, etc.), fazendo crescer o défice e a dívida ao invés de os diminuir, levando a novas rondas de aumento de impostos que nunca mais atingiam o seu fim. Foi este o caso e, em 2013, era claro, até para Olivier Blanchard e para o FMI, que os multiplicadores tinham sido fortemente subestimados no início dos programas de ajustamento, sendo esta mesma conclusão confirmada por outros estudos, como este de Philipp Heimberger que, em 2016, calculou que o multiplicador orçamental se encontrava entre 1,4 e 2,1, concluindo que o esforço de consolidação orçamental aprofundou ainda mais a recessão na área do Euro.

No fim de contas, é claro que não existe apenas um multiplicador, mas sim efeitos variados e mecanismos de transmissão variados para cada medida de política económica. As descidas de impostos não são iguais aos aumentos da despesa e do investimento, e as despesas e investimentos também não são todos iguais. As estimativas são, portanto, difíceis. 

Apesar disso, num artigo de 2022, Vicente Ferreira calcula um multiplicador positivo para o investimento público em Portugal. Ou seja, este investimento tem um efeito positivo no crescimento do PIB, de tal forma que pode compensar um correspondente aumento de impostos e manter o país numa trajetória de consolidação orçamental. Portanto, o investimento pode também pagar-se a si próprio. O multiplicador da despesa e do investimento público seria, portanto, maior, do que o multiplicador dos impostos. 

Esta conclusão é comum a grande parte da literatura sobre multiplicadores orçamentais, por exemplo neste artigo de Sebastian Gechert, ou neste de Gechert e Rannenberg, ou também neste de Emiliano Brancaccio e Fabiana de Cristofaro.

Para lá da potencial discussão técnica, as escolhas entre diferentes medidas e os seus potenciais efeitos dependem, principalmente, dos pressupostos ideológicos de partida. As declarações de Luís Montenegro (LM) são elucidativas a esse respeito: “Para o PS, o Estado deve intervir na economia dizendo em que sectores deve haver investimento. Temos um entendimento contrário. É verdade que o Estado tem políticas públicas que têm impacto no privado e poder regulatório, mas o Estado tem o dever de respeitar a livre iniciativa”. Portanto, tudo se dá pela “aposta na iniciativa privada, confiança nas empresas e mais liberdade económica”. 

É isto, este salto de fé na “iniciativa privada”, que garante a LM que os 5000 milhões de euros a menos em impostos não teriam um efeito mais positivo se fossem aplicados em investimento público no SNS, nas escolas, nos transportes ou em habitação pública, contra o que a investigação mais recente demonstra. Ao invés, há que dar espaço à iniciativa privada porque essa garante aquilo a que os economistas chamam de “alocação eficiente de capital”, como se viu com a PT, CTT, BES, etc. 

Porque já sabemos o que tudo isto significa: mais uma enorme transferência garantida para o capital rentista, à espera do eventual crescimento. Sabemos quem cresce com o negócio, mas dificilmente será a economia portuguesa e quem nela trabalha. 

Combates intelectuais

Em certa intelectualidade de esquerda há várias manias preguiçosas que me fazem perder a paciência. Uma delas é a ideia de que a inteligência, a cultura histórico-política, a fineza argumentativa são valores monopolizados pela esquerda. Pobre aristocracia decadente. 

O interesse intelectual não é função do posicionamento ideológico, como nos ensinou o grande historiador marxista Perry Anderson, que escreve com mais entusiasmo sobre pensadores reacionários do que sobre pensadores ditos progressistas. Nada do que Anderson tem escrito está editado em Portugal, tirando os seus trabalhos dos anos 1970, o que é revelador.

Digo isto sobre posições intelectuais também com conhecimento de causa, e nem gosto deste momento ensimesmado, dado que passei vários anos a estudar Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Francis Fukuyama ou o bem menos interessante Milton Friedman. 

Miguel Morgado é professor da Universidade Católica Portuguesa, tradutor de Montesquieu e ideólogo do PSD que é definitivamente de Passos Coelho. E é liberal até dizer chega, como se viu no último episódio de violenta convergência à direita. Houve um tempo em que passei muitas e boas horas a estudar na biblioteca João Paulo II. A quantidade de livros sobre socialismo e marxismo que ali havia foi uma das coisas que me surpreendeu e ensinou. 

Estudar o adversário, tentar suspender por algum tempo o juízo crítico, assumir que fizeram o melhor que conseguiram, sentir empatia até. Afinal de contas, na Viena vermelha, nas mais radicais condições dos anos 1920, eles discutiam uns com os outros em seminários. Falo dos austromarxistas e dos proto-neoliberais, antes de os últimos usarem a força das armas para suportarem o argumento económico, como denunciou Karl Polanyi.  

E, claro, sujeitar tudo à razão crítica, sabendo que alguma coisa se pode levar para o outro lado sempre. O inimigo tem ganho, e não só por questões de poder, afinal de contas. E nem os mortos estão à salvo, meus amigos, nem os mortos estão a salvo.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Ao cuidado do «-Liberdade»: a Europa está cheia de dependentes do Estado

Ainda sobre o requentar da ideia peregrina de Vítor Bento, formulada no contexto das legislativas de 2022 e que já foi entretanto também reciclada pelo «menos-factos-menos-liberdade» (assinalando que «61% dos adultos portugueses tem rendimentos dependentes do Estado»), vale a pena proceder a um exercício comparativo à escala europeia.

Recorde-se que, para Vítor Bento, o facto de «a larga maioria [dos portugueses] vive[r] na dependência que o seu rendimento tem do Estado», torna muito difícil «mobilizar uma coligação eleitoral capaz de ganhar e reformar o país». De onde se deduz, portanto, que essa «coligação eleitoral capaz de ganhar e reformar o país», de que a que IL faria certamente parte, poria fim a esta nefasta dependência, direta ou indireta, de tanta gente face ao Estado.

Ou seja, é legítimo pensar que a dita coligação, entre outras medidas, poria fim à gestão pública das pensões (privatizando a Segurança Social), acabaria com a fixação do salário mínimo (cada empregador passava a pagar o que bem entendesse) e extinguiria a função pública (num país em que o peso relativo dos funcionários do Estado no emprego total fica abaixo da média europeia).

Empobrecimento puro e duro, portanto, proposto por quem ainda não percebeu que o Estado também é economia, rendimento, emprego e prestação de serviços à comunidade.


Vale por isso a pena verificar se este alegado desperdício de recursos - em pensões, prestações sociais e salários da função pública - também acontece «lá fora». Para estes liberais, o panorama torna-se ainda mais desolador. De facto, não só a percentagem dos tais «dependentes do Estado» supera, na média europeia, o caso português como, pasme-se, é ainda mais significativa em países como a Finlândia, Suécia, Dinamarca, França, Áustria ou mesmo a tão aclamada Irlanda. Que irresponsabilidade, não é? Como diacho se terão desenvolvido estes países?

Saída, voz e lealdade

15 mil pessoas sairam à rua em Salamanca, uma cidade do tamanho e feitio universitário de Coimbra, para exigir o comboio rápido com ligação a Portugal. Tiago Gonçalves, que divulgou esta manifestação, assinalou o círculo virtuoso espanhol, trinta anos à nossa frente neste campo: “um país onde o comboio tem importância social e económica é um país onde as pessoas saem à rua para exigir mais”. 

Não passa um dia em que não me lembre de Exit, Voice and Loyalty, a propósito de tudo e de nada. Penso sempre nas articulações, por vezes até complementares, entre a “voz” na democracia e a “saída”, tantas vezes silenciosa, no mercado. A questão da lealdade complica, mas não excessivamente, as dinâmicas das diferentes formas de economia sempre política. 

Não há ano que passe em que não recomende este livro a estudantes de todos os cursos e níveis a que leciono. É mesmo o livro de ciências sociais e humanas que mais me influenciou e que não está editado em Portugal. Escrito por um dos economistas políticos e morais de eleição, em 155 páginas forjou um quadro de análise tão sofisticado quanto simples e abrangente; um feito científico por um defensor da economia mista.

Combater os liberais até dizer chega em todas as plataformas



terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Temos um problema com a emigração, mas não é aquele que a direita nos quer vender

 

Mais de metade dos jovens a trabalhar em Portugal admite emigrar, de acordo com uma sondagem recente da Aximage. Entre os mais de oitocentos jovens entre os 18 e os 34 anos que responderam ao inquérito, a instabilidade financeira e os problemas no acesso à habitação são os principais motivos de preocupação. Daí que os números da emigração mereçam maior atenção no debate público, principalmente em vésperas de eleições legislativas.

A direita elegeu a emigração como um dos temas prioritários do seu discurso. Tanto o PSD como a Iniciativa Liberal se têm referido aos números da emigração como um reflexo do insucesso das “políticas socialistas”. Apontam o peso do Estado e dos impostos em Portugal como o principal fator responsável pela saída permanente de jovens. Este discurso é intuitivo e tem ganho adesão no debate, mas não sobrevive a um confronto sério com os factos.

O resto do artigo pode ser lido no Setenta e Quatro (acesso livre).

Os tempos financeiros não são verdes


“O número de dias de neve nos Alpes caiu mais nos últimos vinte anos do que nos 600 anos anteriores”, destacava o Financial Times, a pretexto do Fórum Económico Mundial, que se realizou em Davos, Suíça, entre 15 e 19 de janeiro. 

Quem ler regularmente o Financial Times, que dá grande destaque às alterações climáticas, conclui duas coisas: o capitalismo fóssil entranhado é o problema; o neoliberalismo esverdeado não é a solução. 

Retomo o que disse no artigo A política monetária do BCE não é verde

O agora ex-editor de energia do insuspeito Financial Times é perentório: “o capitalismo não conseguirá concretizar a transição energética com a rapidez necessária”. Terão de ser os governos a liderar este novo “Plano Marshall”, acrescenta, o que implicará incorrer em “défices orçamentais significativos”.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Decência e coragem


«Impressionou-me ver o número de crianças feridas que estavam em trânsito para fora de Gaza. Crianças amputadas, crianças desfiguradas e com um olhar resignado, crianças de seis anos com um olhar como se tivessem 80 e muitos anos. Mais de 50% das casas estão destruídas e 85% da população não vai ter para onde ir, quando a guerra terminar. (…) Morreram mais crianças nos últimos 100 dias do que em todos os conflitos no mundo nos últimos cinco anos. Portanto, estamos perante uma catástrofe humana sem precedentes. Não quero poupar nas palavras. É uma catástrofe humana sem precedentes porque, ao contrário de outras catástrofes humanas, as pessoas não têm para onde fugir. As pessoas fogem da guerra para salvar a vida. No caso de Gaza, não há refugiados porque não podem sair.
[A população de Gaza] está presa num triplo sentido. Está cercada por um contexto de guerra e, portanto, está a ser bombardeada, (…) Por outro lado, já se notam surtos de doenças do foro diarreico porque não há água potável, não há medicamentos, muitas doenças do foro respiratório. (…) Há uma casa de banho para cada 400 pessoas e um chuveiro para cada 1850 pessoas. (…) Temos 50 mil grávidas sem qualquer tipo de cuidado que vão dar à luz. Eu já nem sei que adjectivos usar porque nos últimos 100 dias utilizei todo o dicionário de adjectivos.
(…) Depois, vi uma coisa surpreendente: vi produtos a serem rejeitados. Há uma lista de produtos rejeitados por Israel porque considera que podem ser de uso duplo e, portanto, que podem ser utilizados para outros fins, como a construção de armas ou coisas que possam ameaçar. Eu vi painéis solares, frigoríficos solares, lanternas solares, brinquedos, bonecas, livros para colorir, botijas de oxigénio que são um suporte de vida básico, tudo rejeitado. Quando se rejeita uma caixa porque tem um item supostamente proibido, todo o camião é rejeitado. Portanto, repare como as dificuldades que estão a ser colocadas a ajuda humanitária tornam esta guerra ainda mais indigna e ainda mais imoral, ainda mais ultrajante quanto aos direitos básicos
».

Da pungente entrevista de Jorge Moreira da Silva, Subsecretário-geral das Nações Unidas, ao Público e à Renascença, no esteio da decência, coragem e perseverança de António Guterres, perante a gravíssima e inaceitável situação em Gaza. A contrastar com o silêncio e a complacência (e até indecência), que continuam a prevalecer nas direitas.

Do mamonismo

O que têm em comum o ataque aos beneficiários do RMG, o alinhamento com os EUA na guerra do Iraque, os submarinos, tantas fotocópias, o Governo da Troika, a Confederação de Comércio e Indústria de Portugal, a Mota Engil, os Petroleos de Mexico, a Nova SBE, a Emirates Diplomatic Academy, a TVI ou a nova PaF? 

O irrevogável Paulo Portas e a sua pulsão mamonista são a resposta óbvia. Está cada vez mais amolecido e pesado pelos milhões que anda a ganhar com tantos negócios estrangeiros. Este grande facilitador – “the best brains that money can buy” (o melhor cérebro que o dinheiro consegue comprar) – falou na convenção da “AD” e depois foi comentar para a TVI, coadjuvado pelo pequeno e médio facilitador, Marques Mendes, na SIC. 

Não há ninguém de esquerda nesta posição, sem contraditório, em sinal aberto. A ERC e a CNE fazem o quê mesmo? Esta poluição ideológica deveria pelo menos ser taxada, ao invés de ser subsidiada... 

domingo, 21 de janeiro de 2024

Ebulição


A transição para as energias renováveis não resultará, automaticamente, na concretização do direito universal à energia renovável ou na gestão democrática do sistema energético. Ao invés, perante a ausência de transformações sociais, económicas e políticas estruturais, assiste-se a uma transferência da lógica do capitalismo fóssil – baseada na mercantilização da energia, na acumulação de riqueza e na maximização dos lucros – para os sistemas energéticos assentes em fontes renováveis. O capitalismo fóssil está a reconverter-se, rapidamente, em capitalismo verde – apenas mudam as fontes de energia, já que as relações sociais de produção permanecem, no essencial, inalteradas.

Excerto do artigo As escalas da democracia energética: um debate sobre futuros energéticos renováveis, escrito em coautoria com Guilherme Luz, e que sai no primeiro número da revista Ebulição, uma nova publicação digital bimensal que pretende “debater a crise climática, as suas declinações e estratégias de transformação social”. 

O lançamento da revista é hoje, às 15h, na Caso do Comum, ao Bairro Alto, em Lisboa, com debate entre mim e Joana Guerra Tadeu, moderado por Joana Bértholo.

sábado, 20 de janeiro de 2024

Apelo


Cada democrata tem uma obrigação e uma só obrigação nas próximas semanas: tratar as eleições de março como um combate de vida, apoiando um dos partidos fiéis ao melhor da Constituição da República Portuguesa, com uma imensa alegria militante, todo o otimismo da vontade, sem elitismos

Sendo independente, tomo partido, não alardeio neutralidades, o importante, creio, é mesmo apoiar um dos partidos de esquerda em concreto e sempre pela positiva, com fraternidade de frente popular, digamos. E fazer campanha, na medida das disponibilidades, claro. 

 E, já agora, evitemos os treinadores de bancada, sempre prontos a dar a linha ou a fazer exigências a partidos em que não militam ou que não apoiam publicamente, como se estivessem num qualquer lugar acima. 

Neste blogue, como sabeis, há gente que apoia o BE, o PCP-PEV e o PS. Talvez me atreva a dizer: aqui estamos, prontos para a luta, com respeito pela inteligência das pessoas e com respeito pelas palavras, que procuramos que sejam justas e certeiras. E se não forem, digam, que estamos sempre prontos a tentar melhor. 

Isto vai, isto vai.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

As máscaras de Ventura


Num dos seus discursos no último congresso do PS, Pedro Nuno Santos criticou o Chega por já ter defendido a destruição da escola pública, do Serviço Nacional de Saúde ou da segurança social. São propostas que agora o Chega esconde, mas mal. O manifesto do partido de extrema-direita, citado no mesmo discurso, não podia ser mais claro: “o Chega irá reduzir drasticamente o Estado, colocando-o dentro dos estreitos limites que o liberalismo clássico desde sempre lhe traçou”. 

A conclusão é óbvia: o Chega é um partido liberal autoritário no caminho para o fascismo. Em coerência, quer atrofiar o Estado social para dar músculo ao Estado penal, programa de resto partilhado com os liberais até dizer chega da IL. Na realidade, nunca se trata de “reduzir” o Estado, trata-se antes de mudar os interesses e os valores que o Estado protege. 

Este programa de regressão, que no fundo pretende retomar e levar mais longe o trabalho sujo da troika, tem interesses, como o PCP não se cansa de sublinhar: de facto, Chega e IL são duas faces da mesma moeda, emitida pelas frações mais reacionárias do capital. É uma má moeda que entrou em circulação política, graças a Passos Coelho e ao PSD. A estratégia é sempre a mesma: trata-se de comprimir o salário direto e indireto, também por via da destruição do Estado social. 

Combater estas forças brutas implica começar pela base, ou seja, pela defesa da valorização da força que trabalha, num quadro de pleno emprego. A desorganização das classes trabalhadoras, de que se aproveitam, não ajuda. Daí que Paulo Raimundo tenha sido claro: se o PS aprovar as propostas laborais comunistas, há acordo no próprio dia. 

Entretanto, tem-se falado muito da presença maciça do Chega nas redes sociais. Sem descurar esta dimensão da reação, é mesmo preciso atentar na rede social mais importante e que está a montante, a do capital que é grande, a dos financiadores cada vez mais numerosos do Chega. Mariana Mortágua e o BE têm revelado os nomes, em linha com a tradição intelectual de Os Donos de Portugal: por exemplo, o Champalimaud dos CTT é um dos financiadores do Chega e daí que Ventura já tenha saído em sua defesa, mesmo que estejamos em presença de uma privatização ruinosa.

O resto do artigo pode ser lido no setenta e quatro.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Combate pela memória


Graças a Catarina Coutinho, pude recordar um pungente depoimento de Maria Rosa do Couço, a circular pelas redes sociais, sobre as lutas camponesas pela jornada de oito horas. É parte de um combate pela memória de 1962. 

Há a economia política do fascismo, e do liberalismo que o alimenta, e há a economia moral das que lutam. É terrivelmente simples a um certo nível. E porque é dos Couços do heroísmo que falamos, recomenda-se o livro de Paula Godinho, notável antropóloga e historiadora, aqui recenseado pelo historiador José Neves, servindo bem para abrir o apetite de quem ainda não leu.

Adenda. E porque é 18 de janeiro, deixo aqui uma canção de A Garota Não sobre a revolta operária da Marinha Grande de 1934. É sempre necessário lembrar: aliança operária, camponesa e de amplas camadas intermédias contra os fascismos de ontem e de hoje - “raiva de um país inteiro”.

Requentar teses oportunistas em tempo de eleições

Recuperando um gráfico que Vítor Bento produziu antes das legislativas de 2022, e que serviria de mote a um ensaio posterior no Observador, João Maria Condeixa, no twitter, regressa à tese do autor, segundo a qual «a larga maioria [dos portugueses] vive na dependência que o seu rendimento tem do Estado», tornando por isso muito difícil «mobilizar uma coligação eleitoral capaz de ganhar e reformar o país».

Fazendo estimativas para 1980 e 2020, Vítor Bento concluiu, nessa altura, que a «população dependente do Estado» passara de 34% para 61% em quatro décadas, desprezando, contudo, várias coisas:
  • Que os descontos das empresas e dos trabalhadores para a Segurança Social (e não do Estado, já agora, que apenas as gere e garante), a par do envelhecimento demográfico, permitem que os reformados tenham hoje uma pensão;

  • Que o aumento do peso relativo de funcionários públicos (de cerca de 7% para 9%), bem abaixo da média da UE, tem um significado muito claro: entre outros domínios, a universalização do acesso à saúde (médicos e outros profissionais) e à educação (professores), no âmbito do Estado Social tardio que o nosso país edificou desde o 25 de Abril, com destaque para o SNS e a Escola Pública;

  • Que o aumento da proporção de trabalhadores abrangidos pelo salário mínimo, de 3% para 10% (o qual, já agora, também não é pago pelo Estado), reflete a exigência da sociedade, através das suas escolhas políticas, em fixar um limiar mínimo de decência na remuneração do trabalho, num país que chegou a 1974 com níveis de pobreza e desigualdade insuportáveis;

  • E por falar em pobreza, note-se por fim a ausência de um equivalente ao RSI em 1980, suscetível de servir de comparação com os 3% da população abrangida em 2020 por esta prestação social, que representa um salto face ao assistencialismo caritativo e humilhante até aí prevalecente.


É verdade que Vítor Bento, no seu ensaio de 2022, assinala não ter «nenhum intuito moralista» com o exercício a que deitou mão, dizendo que «as coisas são o que são». Mas é ao mesmo tempo indisfarçável que não só encara de forma negativa esta alegada «dependência» das pessoas face ao Estado (como quando, por exemplo, se refere aos cidadãos enquanto «consumidores de impostos»), mas também quando a interpreta como um obstáculo à concretização das «reformas transformacionais» de que, no seu entender, o país precisaria.

Reformas essas que, como facilmente se deduz, iriam no sentido da retração do papel do Estado, tanto ao nível do desmantelamento e privatização dos serviços públicos como ao nível da desregulação da legislação laboral e da rarefação dos direitos sociais, no melhor esteio da «economia do pingo» (mas que depois nunca pinga). Isto é, em linha com as propostas programáticas que já se vislumbram à direita, do PSD ao Chega, passando pelo CDS e IL.

Não estranha por isso que João Maria Condeixa tenha repescado no seu twitter, para o atual quadro eleitoral, o ensaio de Vítor Bento. E afirme, a partir dos dados do referido gráfico, que «o partido que ignorar esta estrutura de rendimentos não será eleito» e que «o partido que dela ficar refém não servirá o país», lamentando-se, ainda, pelo facto de «o dinheiro atirado para o problema» contentar apenas «eleitorado e partidos».E quem deveria já agora, que mal se pergunte, contentar?

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Os dezassete escolhidos

Luís Montenegro, qual construtor de mamarrachos políticos de Espinho, veio anunciar que tem consigo os melhores 17 economistas para colaborar na derrota da PaF (vulgo AD, graças ao PPM). Quem são? Escolho por agora 8, representativos do autêntico cortejo fúnebre da economia portuguesa.

1. Havia tanto para dizer sobre Maria Luís Albuquerque, mas não temos tempo, como diria Cândido Mota em A Roda da Sorte. Sucessora de Vítor Gaspar, esta liberal com iniciativa transitou depois para uma empresa internacional de cobrança de créditos duvidosos de Manchester: muita literacia financeira, muito pouca cultura económica. Uma palavra em inglês e um acrónimo bem português: Swap e BES.


2. Conhecido coautor de um estudo, digamos assim, para a Associação Portuguesa de Seguros, onde defendeu a privatização da segurança social, Fernando Alexandre advoga há décadas o atrofiamento do sistema público de pensões. Governante no tempo de Passos, mas na Administração Interna, menos Estado social, mais Estado penal, lá está, tem estado consistentemente errado nas últimas décadas por convicção e interesse, certamente. 


3. Segue-se Manuela Ferreira Leite, uma respeitável glória do cavaquismo: quem não se lembra da sua devoção à educação, com uns safanões a tempo? Desde aí, não há festa nem festança a que não vá esta Dona Constança austeritária. Suspenda-se a democracia, porque isto não lhes vai correr bem.


4. Começou como Secretário de Estado num Governo de Guterres social-liberal e acaba como apoiante indefectível de Passos e de Montenegro. Pelo meio, acumulou mais cargos em conselhos de administração de empresas do que qualquer outra pessoa que conheço, um estudo de caso da tal verdadeira rede social de classe. Falo obviamente de António Nogueira Leite, um economista da mão invisível, título da série coletiva de crónicas no defunto Semanário, na década de oitenta, muito relevantes para a história lusa do neoliberalismo, que não é um slogan. A última crónica foi dele e foi sobre a liberalização das rendas, em 1989, com os lindos resultados que se conhecem.

5.  Outra velha glória do cavaquismo, este antigo assessor de Cavaco anda há muito desaparecido. Julgo que foi por causa da desilusão com a solução governativa à esquerda. Felizmente, está de regresso para mais prescrições e previsões. De facto, o abominável João César das Neves escreveu um livro, em 2016, garantindo que Portugal estava à beira de entrar em derrocada financeira por causa de coisas. 


6. Chicago Boy, dado que se doutorou por Chicago, Moreira Rato sempre preferiu dedicar-se a aventuras financeiras. De facto, do BES ao Banco CTT, é todo um percurso a dar livre curso ao que Veblen chamava de instinto predador, promovido por uma cultura institucional pecuniária. Gosto da palavra mamonismo.

7. E que dizer mais de Joaquim Miranda Sarmento que já não tenha sido dito neste blogue? Um sobrevivente de Rio, que Montenegro não purgou. Acha, e é mesmo achismo, que a atualização do salário mínimo em níveis decentes é uma maçada e que tudo correrá bem, pelo melhor dos mundos, se acreditarmos muito que os salários convergem espontaneamente com a produtividade. 



8. E por falar em lógica antilaboral, fechamos com chave de ouro, com um professor da LSE, My God, de seu nome Ricardo Reis, igualmente velho conhecido dos leitores deste blogue. Garantiu na televisão que a produtividade e os salários estão sempre alinhados. Só que não. Tudo isto é triste, tudo isto é mesmo antilaboral.
 
E os restantes economistas? Tudo como dantes no quartel general de Abrantes, ou seja, velhas glórias do cavaquismo, quando começou esta desgraçada economia política, mais figuras do Triângulo das Bermudas da democracia económica, ou seja, do Banco que não é de Portugal, da Católica, que não é de Santiago do Chile, mas que podia ser, e da Nova School, tudo com muitos parceiros corporate. Não há mesmo almoços grátis nesta luta ideológica.  
 
Adenda. Este texto começou com uma série de notas no Twitter, seguindo e comentando o trabalho de escrutínio de Otília Gradim, a quem agradeço as ideias e as fotos: Quem são os 17 economistas que Montenegro vai ouvir para preparar o programa eleitoral?