terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Habitação: recuos demasiado habituais

No debate sobre a crise da habitação, um dos aspetos que ganhou relevância foi o do regime especial para Residentes Não Habituais (RNH). Este regime, que oferece taxas reduzidas de IRS às pensões de reforma (10%) e aos rendimentos do trabalho (20%) a cidadãos estrangeiros ou a cidadãos portugueses que tenham estado fora do país por mais de 5 anos, foi um dos esquemas criados para atrair capital estrangeiro no mercado imobiliário ao longo da última década.

O custo deste benefício tem vindo a crescer todos os anos, tendo atingido os 1360 milhões de euros em 2022, de acordo com o relatório da Autoridade Tributária. A perda substancial de receita fiscal para o Estado é provocada por um regime que constitui um tratamento desigual face aos salários e pensões de quem reside no país e é sujeito a taxas de imposto progressivas. Além disso, este é um dos esquemas que tem contribuído para a enorme subida dos preços da habitação, alimentado uma dinâmica que tem todas as características de uma bolha especulativa (não por acaso, o "eldorado fiscal" português é elogiado em sites como o Idealista).

Face às manifestações pelo direito à habitação, que têm mobilizado cada vez mais pessoas, António Costa anunciou no início de outubro o fim deste regime. A medida acabaria com a possibilidade de novas inscrições no regime, embora não retirasse o privilégio fiscal a quem já o tinha recebido (e que poderia continuar a usufruir de taxas reduzidas por mais dez anos).

No entanto, o governo recuou rapidamente e decidiu manter este regime para "atrair quadros qualificados na área da investigação científica". Nesta versão, os investigadores científicos que passem a trabalhar em Portugal beneficiam da taxa única de 20% de IRS durante dez anos, independentemente dos rendimentos auferidos (e muito abaixo da taxa que tipicamente incide sobre os trabalhadores neste tipo de funções). Num país com níveis muito baixos de financiamento público para a investigação e desenvolvimento, bastante abaixo da média europeia, e onde boa parte do trabalho científico é garantido por bolseiros com contratos precários, é difícil compreender a justiça desta medida.

Mas o recuo não fica por aqui: além do novo modelo de benefício fiscal, o grupo parlamentar do PS apresentou uma proposta para a criação de um "regime transitório" para o atual até ao fim de 2024. Na prática, a ideia é que as regras atuais se mantenham em vigor por mais um ano, de forma a não travar quem já planeava mudar-se para o país. Se se reconhece que o regime não deve ser aplicado, por que motivo se adia a sua revogação e se permitem mais inscrições?

O facto de o governo ter sido incapaz de tomar medidas sérias para combater a subida dos preços da habitação prende-se com um problema de fundo: a crise habitacional é o resultado do modelo de crescimento adotado no país ao longo dos últimos anos. A monocultura do turismo e do imobiliário foi vista como uma oportunidade para acelerar a criação de emprego e mascarar a fragilidade da recuperação económica pós-Troika, apesar de se multiplicarem os seus efeitos perversos, tanto no tipo de emprego criado (tipicamente precário e mal pago), como nos preços das casas e no próprio perfil produtivo da economia. Não surpreende que o governo não estivesse disposto a colocar em causa o modelo que abraçou. Mas a resposta à crise da habitação requer muito mais do que medidas curtas.

Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro (acesso livre).

1 comentário:

Anónimo disse...

"O custo deste benefício tem vindo a crescer todos os anos, tendo atingido os 1360 milhões de euros em 2022," -> Como é que este custo é calculado? É assumido que as pessoas vinham na mesma sem o beneficio?