Dois debates, para os tempos que correm. Hoje, a partir das 18h00, organizado pelos Cidadãos por Lisboa, um debate online sobre a Governação da Cidade no pós-Covid, com a participação de Giovanni Allegreti, Marta Silva e João Paulo Saraiva (com moderação de António Avelãs).
segunda-feira, 29 de junho de 2020
Hoje a amanhã
Dois debates, para os tempos que correm. Hoje, a partir das 18h00, organizado pelos Cidadãos por Lisboa, um debate online sobre a Governação da Cidade no pós-Covid, com a participação de Giovanni Allegreti, Marta Silva e João Paulo Saraiva (com moderação de António Avelãs).
Quase lá, mas ainda longe: porque precisamos de um imposto digital?
Pode parecer estranho, mas é essa a tendência dos últimos anos. Numa entrevista à Visão, Pascal Saint-Amans, o diretor do Centro de Política e Administração Fiscal da OCDE, destacou o caso da Netflix, que “normalmente não tem trabalhadores nem escritório onde tem consumidores, como Portugal ou França”, para defender que os gigantes digitais devem ser sujeitos a tributação direta. Saint-Amans deixou uma pergunta no ar: “Onde é criado o valor da Netflix? Na Califórnia, onde estão as pessoas que fazem a programação e concebem as séries ou em Portugal, onde estão as pessoas que veem?”.
Esta é uma das questões mais complicadas. Apesar de aparentemente não pagarmos pelos serviços fornecidos pelo Facebook ou a Google, a verdade é que somos a sua fonte de receitas principal. A razão para isto prende-se com a importância da informação que os utilizadores fornecem às empresas sobre os seus interesses, preferências e hábitos de consumo e de lazer. A informação é crucial para o modelo de negócios destas empresas, que registam enormes lucros com os serviços de intermediação (casos da Uber ou do Airbnb), publicidade online personalizada e transação de dados (como no caso do Facebook e da Cambridge Analytica). A The Economist não se enganou quando classificou a informação como “o petróleo dos dias de hoje”.
Embora operem um pouco por todo o mundo, tem sido difícil estabelecer um sistema de tributação eficaz sobre os gigantes digitais. Em 2017, os ministros das Finanças de França, Alemanha, Espanha e Itália defenderam um “imposto harmonizado sobre o volume de negócios gerado na Europa pelas empresas digitais”. A Comissão Europeia viria a avançar com duas propostas nesse sentido: uma de curto prazo, para criar uma taxa de 3% sobre serviços digitais, e outra de longo prazo, com o objetivo de rever o conceito de “estabelecimento estável” (tradicionalmente utilizado para efeitos fiscais e que liga tributação das empresas ao local onde a atividade é fisicamente desenvolvida) e incluir uma componente relacionada com a “presença digital significativa”. No entanto, não foi suficiente para superar a oposição da Holanda, Irlanda e Luxemburgo, paraísos fiscais que a União Europeia se recusa a reconhecer dentro de portas.
Depois de a OCDE ter anunciado a intenção de 129 países chegarem a acordo sobre um imposto digital até ao final do ano e de alguns meses de trabalho, os EUA anunciaram recentemente a sua saída das negociações. O anúncio controverso motivou protestos de outros países – Bruno Le Maire, ministro das Finanças francês, considerou-o uma “provocação” – e reacendeu o debate sobre a tributação dos gigantes digitais.
No Financial Times, Martin Sandbu foi lapidar: “O atual sistema para evitar a dupla tributação de atividades empresariais transfronteiriças foi desenhado para um mundo que já não existe”, sendo certo que “apenas a inércia e o lobbying empresarial o mantiveram até agora.” O problema de fundo, para Sandbu, é a facilidade com que as multinacionais podem alterar a sua sede para países ou estados onde as taxas efetivas de imposto são mais baixas. O facto de poderem operar em múltiplos países sem precisarem de uma presença física dificulta a tributação e leva à perda de receita nos países onde a atividade é desenvolvida. Exemplo disso é o estudo de Gabriel Zucman, Thomas Torslov e Ludwig Wier, que estimaram que os EUA e as principais economias da Europa perdem entre 14% e 28% da receita fiscal do setor empresarial devido às práticas de transferência de lucros para outras jurisdições. E isso tem uma consequência: menos receita fiscal implica menos financiamento dos serviços públicos ou mais impostos para o resto da sociedade.
O cenário é pouco auspicioso, já que a elisão fiscal está longe de ser um fenómeno pontual. Em 2017, dois investigadores do FMI, Philip Lane e Gian Milesi-Ferretti, olharam para os fluxos internacionais de capital e procuraram perceber as principais tendências. Os autores focaram-se no Investimento Direto Estrangeiro (IDE), o tipo de fluxo considerado mais desejável pelos países, por estar associado a investimentos de longo prazo, transferência de tecnologia e conhecimento do exterior e ser mais estável do que os investimentos de carteira. No entanto, o cenário encontrado por Lane e Milesi-Ferretti foi bem diferente: boa parte dos fluxos de IDE constituía investimento “fantasma”, isto é, movido pela engenharia financeira do setor empresarial.
A investigação recente do FMI e da Universidade de Copenhaga confirmou esta tendência e estimou que mais de 1/3 dos fluxos de IDE (cerca de 15 biliões de dólares) “passam por empresas fantasma vazias” sem qualquer “atividade empresarial real”, de acordo com os investigadores. Os principais beneficiados são a Holanda e o Luxemburgo, que recebem quase metade do investimento fantasma identificado pelo estudo. Alex Cobham, da Tax Justice Network, esclareceu que práticas como a transferência de lucros se tornaram dominantes na economia global: “É simplesmente a forma de fazer negócios hoje em dia”.
Sem surpresa, o objetivo das empresas é pagar o mínimo possível em impostos. Daí que a criação de um imposto digital internacional seja tão importante: é o que permite travar a corrida para o fundo na tributação das empresas e a perda de receita para paraísos fiscais. Numa altura em que pandemia fez disparar as necessidades de financiamento dos Estados, pode ser que o contexto ajude a forçar um debate sério sobre o papel da política fiscal nas nossas sociedades. Há quem diga que nunca se deve desperdiçar uma boa crise.
domingo, 28 de junho de 2020
Pessoas Muito Sérias
Em Portugal, temos o nosso espaço público cheio de Pessoas Muito Sérias. A decadente SEDES é um dos seus centros. Agora é liderada por um “liberal de esquerda”, o que em Portugal é nome de código para Pessoa Muito Séria do Bloco Central, naturalmente anti-socialista e que milita no PS.
Há dias, ouvi então Álvaro Beleza por breves instantes num programa de e para Pessoas Muito Sérias chamado Negócios da Semana a dizer que o liberal de esquerda está sempre certo, porque reconhece que o Estado tem de intervir onde é necessário, o que me pareceu uma ideia de uma seriedade tão profunda que não aguentei e tive logo de mudar de canal.
Hoje repete, em entrevista ao Público, que costuma dar palco a estas Pessoas Muito Sérias, o novo mantra da “reindustrialização”, na linha marcelista.
Com que instrumentos? Aparentemente com instrumentos europeus, está-se mesmo a ver. Trancados numa moeda forte, com as seletivas regras do mercado interno, com a Alemanha a concentrar sozinha metade do total de apoios à economia na UE em tempos pandémicos, esta é uma ideia mesmo muito séria.
Dado que Beleza acaba na entrevista por tomar por referência séria o modelo low cost da irlandesa Ryanair, de resto como a actual Ministra do Trabalho já o tinha feito em visitas de cortesia à Irlanda, é caso para dizer que os pouco sérios trabalhadores portugueses é que terão de continuar a aguentar.
Seja como for, a reindustrialização é uma ideia que vem do centro e que agora pode fazer parte da sabedoria convencional para Pessoas Muito Sérias do extremo-centro pós-industrial numa periferia sem instrumentos de política, juntando-se ao Euro, à “partilha de soberania”, às privatizações, à austeridade expansionista ou às parcerias público-privadas, outras tantas ideias muito sérias.
Tudo é possível. Vá lá, façam força, as Pessoas Muito Sérias, naturalmente anti-populistas ou lá o que é, continuarão a gemer em organizações como a SEDES.
sábado, 27 de junho de 2020
Leituras
«A pandemia de covid-19 funcionou como um martelo de Thor, mandou-nos uma pancada que ajudou a perceber melhor o que já cá estava antes. Anos de ostracismo dos velhos fez crescer lares por todo o lado, frágeis e sem defesas, em muitas zonas suburbanas, vive-se miseravelmente, trabalhadores estrangeiros como os nepaleses, africanos, ciganos, com formas diferentes de marginalidade e exclusão, vivem em guetos onde pouco mais do que a Igreja penetra, e a disciplina do confinamento foi facilmente substituída por actos como o daqueles imbecis que resolveram fazer uma festa em Lagos e infectar-se colectivamente. Quando se vê a geografia dos últimos surtos na região de Lisboa, percebe-se esse mapa social.»»
José Pacheco Pereira, O martelo de Thor
«O vírus espalhou-se mais pelos concelhos com mais industrialização e níveis socio-económicos mais baixos. Era de esperar. O que não era de esperar é que o discurso da culpabilidade dos pobres, erigidos de novo a classes perigosas, fosse tão rápido a voltar. (...) Há séculos que os poderes instituídos tratam assim os problemas de saúde quando descem na escala social. (...) De repente esquecemos que estas pessoas e estas freguesias continuaram a ir trabalhar, vivem precariamente, pelo que o vírus correria necessariamente o risco de as apanhar, como em tantas pandemias passadas. É altura de olhar mais para os seus locais de trabalho, para as condições em que têm que lá chegar, para as condições em que vivem.»
Paulo Pedroso, A Covid-19 e o elitismo
«É confrangedor olhar para o mapa das freguesias da Área Metropolitana de Lisboa - um cordão infecioso em torno da capital que só exclui Oeiras e Cascais - onde está inscrita toda uma trajetória de segregação espacial de classe. De que é que estou a falar? De processos de décadas, recentemente muito acelerados pelo frenesim turístico e imobiliário, de expulsão das populações trabalhadoras e de imigrantes para as periferias de Lisboa. Essas populações estão sujeitas a penosas mobilidades diárias casa-trabalho-casa que acrescentam horas de incómodo aos horários de trabalho já de si longos, à vida em urbes degradadas onde não há condições para garantir os direitos fundamentais. Em muitos casos têm domicílios sem condições de higiene e habitabilidade.»
Manuel Carvalho da Silva, Devíamos estar no mesmo barco
«Precisamos de pôr mais comboios a funcionar, de arranjar desdobramentos rodoviários, de reforçar a resposta do metro, de garantir equipamentos de proteção nas empresas, de ter uma Autoridade para as Condições de Trabalho que fiscalize as condições de trabalho e de higiene e segurança nas empresas, de reabilitar os espaços onde a ausência de contacto é impossível, de dar oportunidades de realojamento a famílias cujas precariedade da habitação não permite as condições de salubridade e de dignidade necessárias, de alargar os apoios sociais a todas as pessoas que nunca puderam parar e que ficaram sem nada quando pararam. E precisamos de fazer isso não pelo pânico classista que vem agora exigir medidas sobre realidades às quais nunca prestou atenção e que sempre estiveram lá, mas sim porque é um dever do Estado e da comunidade, porque estamos a falar de direitos humanos e do respeito pelas pessoas cujos quotidianos são normalmente condenados à invisibilidade mediática e social.»
José Soeiro, As “novas classes perigosas” e o discurso moral da pandemia
«Walter Scheidel (...) publicou em 2017 um livro que desenvolve um argumento bastante trágico: que ao longo da história da humanidade, os episódios mais eficazes de redução generalizada dos níveis de desigualdade envolveram a ação de acontecimentos catastróficos. O argumento é trágico porque conduz à conclusão que um objetivo que a maioria de nós considera meritório (mais igualdade e mais justiça social) dificilmente pode ser alcançado de forma eficaz sem a intervenção de um dos quatro “cavaleiros do apocalipse”: guerra, revolução (em geral violenta), colapso do Estado ou epidemia. (...) [Mas este argumento] pode ser recuperado para uma leitura mais otimista: em última instância, todos estes processos materiais são mediados pela política, o que significa que deixamos a esfera das inevitabilidades e introduzimos variabilidade e indeterminação histórica em função da capacidade de mobilização, organização e persuasão.»
Alexandre Abreu, Pandemia, catástrofe e desigualdade
sexta-feira, 26 de junho de 2020
Para uma economia política do cuidado
Nas duas décadas deste século, e sobretudo depois de a austeridade ter desabado sobre nós, Portugal teve a maior convulsão territorial da nossa contemporaneidade. Refiro-me a uma alteração profunda das relações entre as regiões, cujas evoluções se tornaram assimétricas e contrastantes como nunca. Isso resultou de algo muito preciso: uma forma de crescimento unipolar, apenas centrado na Área Metropolitana de Lisboa (AML), com definhamento de todos os outros espaços, sejam eles urbanos, rurais, litorais ou interiores. A consequência mais significativa de tudo isto foi o que se passou com as cidades médias, que generalizadamente regrediram em termos demográficos, deixando-nos sem um sistema urbano nacional capaz. Inversamente, assistiu-se ao crescimento demográfico explosivo das periferias da região lisboeta.
Nos finais da década de setenta e inícios da de oitenta, a economia lisboeta e da sua cintura industrial esteve sob fortes impactos, em resultado dos problemas das indústrias pesadas e da ausência de formas de economia minimamente dinâmicas que as sustentassem localmente. Os salários em atraso, o desemprego, as bandeiras negras da fome ocuparam a agenda daqueles tempos. Contudo, esta crise foi apenas local, não se tendo generalizado ao conjunto do país. Porquê? Porque de forma descentralizada havia outras capacidades estruturadas que foram criando emprego, riqueza e capacidade exportadora. Quer dizer, havia “país”, havia mecanismos de compensação que reequilibravam do ponto de vista nacional o que estava desequilibrado localmente. A pergunta de hoje é a seguinte: se (quando) houver uma crise grave em Lisboa haverá agora “país” que compense os problemas da capital? A resposta é não, não há!
Três excertos do último livro de José Reis, Cuidar de Portugal: Hipóteses de Economia Política em tempos convulsos, que saiu sob a forma de ebook no mês passado. Espero que a Almedina tenha a sensatez de editar o livro propriamente dito, a melhor tecnologia até hoje inventada para ler.
Estamos perante um conjunto de ensaios, escritos antes e durante a pandemia, alguns deles publicados em jornais como o Público e o Le Monde diplomatique – edição portuguesa, que prolongam reflexões de economia política anteriores, aqui recenseadas, com particular incidência para a análise dos desenvolvimentos territoriais desiguais deste país assim deslaçado, com as consequências que agora todos podem ver.
O todo é mais do que a soma das partes. Para lá de um diagnóstico, que está longe de estar adquirido, como vê nas propostas governamentais bizantinas para um arremedo de regionalização, de resto alvo de críticas, José Reis avança com alternativas, sobretudo no campo da política regional e industrial, para uma economia nacional mais auto-suficiente e logo menos vulnerável.
Cuidar deste país é de facto atentar nas suas vulnerabilidades e nos meios de as superar. Não deixem de ler.
quinta-feira, 25 de junho de 2020
Hoje
É já daqui a pouco, às 16h00, Mesa Redonda online (em inglês), com um conjunto de primeiras reflexões sobre «Desigualdades territoriais e a pandemia». Promovida pela Associação Portuguesa de Economia Política, esta sessão conta com a participação de José Castro Caldas (CES e CoLabor), Kevin Morgan (Universidade de Cardiff), Kirsi Pauliina Kallio (Universidade de Tampere) e Teresa Sá Marques (Universidade do Porto). O evento, transmitido em zoom, pode ser acompanhado aqui (informações de acesso na página da APEP).
quarta-feira, 24 de junho de 2020
Da agilidade
No caso das empresas públicas de transporte, as decisões puderam ser tomadas de forma mais imediata, porque, por exemplo, não houve recurso a layoffs. No caso das empresas privadas, o problema é mais delicado porque muitas delas recorreram a esse mecanismo de suspensão de actividade e, mesmo que lhes fosse solicitado, teriam dificuldade em reforçar a oferta, por exemplo, por falta de motoristas.
Esta notícia do Público, da autoria de Luísa Pinto, assinala um problema que não está circunscrito a este sector tão crucial para a vida da comunidade: quando as empresas privadas estão envolvidas em áreas estratégicas há mais entraves a uma resposta pública pronta e coordenada e o interesse público corre sempre mais riscos. O Estado, nas suas várias escalas, torna-se menos ágil e capaz. E o povo é que paga.
Desde a década de noventa, quando assumiu funções governativas, que António Costa aceitou o essencial do discurso fraudulento da Terceira Via, o que dizia que o Estado social-democrata não tinha de controlar sectores estratégicos. Era a metáfora do peso, do Estado pesado.
O Primeiro-Ministro tem agora pateticamente de apelar ao “sentido de interesse nacional” das empresas privadas, perante transportes sobrelotados em plena pandemia. As empresas buscam o lucro não o interesse nacional. E este é só um exemplo de um processo mais vasto de erosão da governação, dado que cresce o sentimento de impotência.
Em contexto de incerteza radical, o controlo público de bens e serviços essenciais, onde se inclui também a banca, como é evidente, é fundamental para uma resposta adequada e coordenada, capaz de evitar a catástrofe. Até os liberais da The Economist reconhecem isto em modo excepcional, afiançando que a canalização do crédito é mais fácil quando o Estado controla os bancos, como é mais fácil e rápida a mobilização de recursos na área da saúde quando há um serviço nacional da dita. Ou quando há um robusto sector público de transportes.
Um Estado que perdeu instrumentos de política económica, também graças às privatizações, é menos ágil e rápido e logo menos confiável em demasiadas áreas. E a europeização obrigou a tratar muito do que é público como se fosse privado.
Aqui reside o segredo da rapidíssima erosão futura da popularidade de António Costa. As suas habilidades táticas não substituem a falta de consistência ideológica e de pensamento estratégico e muito menos a falta de agilidade de um Estado que perdeu soberania.
Escutar Francisco
Numa declaração à imprensa sobre a existência de casos positivos de Covid-19 no Santuário de Fátima (ver a partir do min 11'10''), a Direção de Comunicação daquela instituição confirmou ter tido conhecimento que «um colaborador estava infetado com o Coronavírus SARS-Cov-2», decidindo «fazer testes a todos os colaboradores internos do Santuário, bem como aos membros do Coro». Num comunicado posterior, o Santuário confirma terem terminado «os testes a todos os colaboradores e aos coralistas», assegurando que «os colaboradores da instituição não têm qualquer contacto com os peregrinos».
As palavras são importantes. E por isso vale a pena lembrar - como fez aqui o João Ramos de Almeida - que «colaborador é um conceito político-ideológico que não consta do Código do Trabalho nem da jurisprudência judicial relativa aos contratos por conta de outrem», servindo apenas a «tentativa ilegal e fraudulenta de "transformar" trabalhadores em falsos prestadores de serviços» e, desse modo, desvalorizar o trabalho e as relações laborais. Aliás, a substituição bem-sucedida de «trabalhadores» por «colaboradores» (que se entranhou a ponto de já quase não estranhar, colonizando até a linguagem dos bem-intencionados), faz parte de um processo mais amplo de «ofuscação ideológica da realidade» pela sabedoria convencional, como bem ilustrou, aqui e aqui, o João Rodrigues.
Mas é também por tudo isto que vale a pena escutar o que diz Francisco sobre o trabalho e a dignidade do trabalho, na melhor linha da doutrina social da Igreja. Não é por acaso que, na homilia proferida no passado 1.º de Maio, em nenhum momento o Papa se refere a «colaboradores», à «colaboração» ou ao «Dia do Colaborador». Como se quisesse dizer, nas entrelinhas, para não termos medo de falar em trabalhadores.
terça-feira, 23 de junho de 2020
Insónias improdutivas
"O PR diz que a Europa tem de se reindustrializar e é já. Seria bom começar por perceber por que motivos a Europa em geral - e Portugal em particular - se desindustrializou. E por identificar tudo o que terá de ser mudado para que a reindustrialização aconteça (e em que medida tal é desejável). Escrevi sobre isso há uns 7 anos, no Ladrões de Bicicletas. Essas 5 ideias sobre a 'reindustrialização' não perderam actualidade. Talvez Marcelo queira dar uma olhada."A frase é do Ricardo Paes Mamede num post no Facebook de hoje.
A intenção do Ricardo é boa. Mas tenho a pior das expectativas.
Porque Marcelo Rebelo de Sousa acorda, de repente, para uma evidência de anos, décadas. E, sobressaltado, estremunhado, vem à janela gritar - "a Europa tem de se reindustrializar e é já". Gosto sobretudo do "já!": tem muito daquele apelo revolucionário, mas no fundo apenas repete aquilo que, em Bruxelas, já se diz como novo mantra comunitário. Não há pensamento original, não há ideias, não há visão. Apenas e tão somente soundbyte autorizado.
Marcelo bem pode propagar o mito de que passa horas da madrugada acordado, mas o que lê não lhe serve para pensar ou escrever. Apenas faz selfies e repete o que vem do centro europeu.
Outra entrevista a não perder
Depois de José Castro Caldas, o Perguntar não Ofende foi falar com outro dos economistas «que se têm dado ao trabalho de tentar compreender o caminho que a nossa economia foi seguindo nas últimas décadas, e em especial desde que se integrou na moeda única», como sublinha Daniel Oliveira no enquadramento da entrevista a José Reis, professor na FEUC, investigador do CES e atual coordenador do Observatório sobre Crises e Alternativas.
Duas obras recentes do entrevistado, «A Economia Portuguesa - Formas de Economia Política numa periferia persistente (1960-2017)» e «Cuidar de Portugal: Hipóteses de Economia Política em tempos convulsos» (ebook editado pela Almedina há cerca de um mês) ajudam a conduzir a conversa, que combina escalas (a Europa, Portugal e a base territorial em que assenta a economia e a sociedade), trajetórias (com referência aos principais ciclos de desenvolvimento do país) e processos de Economia Política. Não deixem de ouvir.
segunda-feira, 22 de junho de 2020
Tendências
No entanto, mais importantes do que os que “transacionam ideias em segunda mão”, para usar a fórmula de Hayek, são os economistas de quem muitos políticos são escravos, para relembrar Keynes: no que diz respeito ao papel causal das ideias económicas, estes dois intelectuais idealistas até convergiam.
Desde os anos noventa, é então difícil encontrar um economista neoliberal mais influente do que Lawrence Summers: de economista-chefe do Banco Mundial a Secretário do Tesouro de Clinton, responsável pelo desmantelamento do que restava da regulação financeira do New Deal, passando pela presidência da Universidade de Harvard ou pelo cargo de principal conselheiro económico de Obama, garantindo o salvamento de Wall Street, mas não da Main Street, ou não tivesse também ganho imenso dinheiro na primeira. Agora é o principal economista mobilizado por essa refrescante novidade chamada Joe Biden.
Desde a Grande Recessão, Summers vem reconhecendo os efeitos negativos das políticas que preconizou, sublinhando as tendências do capitalismo neoliberal para a estagnação secular ou defendendo um nacionalismo responsável, dados os efeitos deletérios da globalização também por si promovida. No contexto da atual crise, até veio reconhecer as vulnerabilidades geradas pelas cadeias de valor globais e tudo.
O culminar deste percurso intelectual ao arrepio da política que preconizou é um longo artigo, publicado em coautoria com Anna Stansbury no National Bureau of Economic Research (NBER), sobre luta de classes e seus efeitos macroeconómicos. A sério. É realmente inacreditável.
Obviamente, a realidade ainda é peneirada pela economia convencional, mas o mecanismo está lá. Em resumo, “argumentamos que o declínio do poder dos trabalhadores – com a queda do sindicalismo e do seu poder no sector privado, o declínio do valor real do salário mínimo, o incremento do activismo dos accionistas e as táticas de gestão agressivas – redistribuíram rendimento dos trabalhadores para os proprietários do capital”. Ou como dizia Warren Buffett, “a luta de classes existe e a minha classe está a ganhá-la”.
Tanta sofisticação convencional e o estudo acaba a convergir explicitamente com a hipótese de John Kenneth Galbraith, formulada em 1952, sobre as virtudes do chamado poder compensatório, exercido por exemplo pelos sindicatos. A reabilitação das teses de Galbraith é cada vez mais evidente, como bem antecipou José Madureira Pinto. Hayek abominava de resto este economista keynesiano e institucionalista radical seu contemporâneo. Percebe-se bem porquê se lerem este crítico incisivo das ficções de mercado. Há realmente muitos economistas políticos do passado que têm de ser salvos da barbárie económica.
A tendência é cada vez mais clara, da financeirização do capitalismo à economia política da redistribuição de baixo para cima: o melhor que a economia convencional consegue fazer é chegar atrasada umas décadas à identificação dos mecanismos reais, por comparação com as tradições institucionalista, marxista e keynesiana sem abastardamentos que procurou tantas vezes proscrever, tendo de resto alcançado grande sucesso nesta redução do pluralismo. Não os identifica com a mesma clareza. E só o faz, quando o faz, depois de ter flagrantemente andado a influenciar a política económica numa direcção perniciosa para a maioria.
domingo, 21 de junho de 2020
Uma cerimónia reveladora
O triste espectáculo dado pelas mais altas figuras do Estado português esta semana já foi alvo de muitas e justas críticas. Creio que existem duas ou três dimensões em que vale a pena insistir.
Em primeiro lugar, a UEFA é das principais encarnações institucionais da corrosão do carácter do futebol pelo dinheiro. As suas decisões devem sempre ser olhadas com a máxima desconfiança e jamais celebradas.
Em segundo lugar, num país sem instrumentos de política decentes, furtados pela integração europeia com a cumplicidade das elites locais, estas figuras comportam-se como o equivalente político do organizador de eventos, actividade de resto em crise profunda. Temo bem que o esforço político para perpetuar o medíocre modelo Flórida da Europa dos últimos anos possa estar a minar a autoridade das responsáveis pela saúde pública.
Em terceiro lugar, um dos subprodutos deste contexto estrutural é a degradação intelectual e ético-política dos discursos dominantes, o que esteve bem patente na forma como António Costa apresentou esta fase final da Liga dos Campeões. Quem fala de um prémio para os profissionais de saúde perdeu as referências, perdeu toda a noção do que o reconhecimento implica neste difícil contexto.
Foi, de facto, uma cerimónia reveladora.
sábado, 20 de junho de 2020
Nem milagre, nem tragédia (I)
«Tenho o cuidado de não acompanhar as mudanças de humor, que saltam do milagre português para a tragédia portuguesa. Não é para o número de infetados que olho. Portugal é dos que mais testa e isso tem um preço. E mais infetados seriam inevitáveis, com o desconfinamento. É para os óbitos, internados em cuidados intensivos e internados em geral que temos de olhar. Porque isso é que é objetivo, não dependendo do universo de testados. E isso é que me diz que o SNS está a responder, objetivo primeiro da contenção. Os números de quarta-feira, divulgados ontem, causaram alarme – aumentando com a morte de um médico – e é provável que esse alarme se agrave. Falemos deles, só para perceber a excitação mediática. Houve mais 417 infetados e isso parece assustador. Mas até houve mais recuperados (430). Houve menos 19 internados num sistema que ainda está muitíssimo longe da sua capacidade máxima (tem 416 internados por covid). Houve menos dois internados em cuidados intensivos (67). Houve um óbito. São estes os números que nos interessam, porque são os únicos com uma função prática e uma base rigorosa. Olhando para estes números, preocupam-me mais os mortos colaterais com outras doenças, por não recorrerem ao SNS, anunciados pela ENSP. Isto não quer dizer que as coisas não derrapem. Mas temos de ser consequentes. Queríamos mais testes, temos de saber lidar com os efeitos disso. Queríamos desconfinar e isso levaria sempre a mais infetados. Queríamos que o SNS conseguisse responder e ele está a responder. Nunca houve um milagre, não há uma tragédia.»
Daniel Oliveira, Do milagre à tragédia, da tragédia ao milagre
Dualidade cega
sexta-feira, 19 de junho de 2020
Conselho Europeu: receios, incertezas e um quê de Torre Bela
Três notas muito breves sobre as declarações do PM acerca da reunião do Conselho Europeu.
1. Não se entende como é que o Primeiro-Ministro de um país do Sul da Europa aceita classificar os países que se opõem a uma resposta concertada à crise como “os países frugais”. Esses países até podem gostar de ser assim classificados, porque a frugalidade tem sempre um sentido implícito de virtude e precaução. Essa pode até ser a terminologia que entrou no espaço mediático. Mas assentir nesta visão é perder logo à partida, alimentando a eterna e falsa dicotomia entre frugais e despesistas.
2. Apesar do tom entusiástico do primeiro-ministro, há a confirmação do que já se sabia ser provável: a condicionalidade existe e será monitorizada pelo Semestre Europeu. Costa adiantou até que os critérios se pautariam pelos habituais fins de “convergência e da competitividade”. Quem já tenha lido os relatórios de acompanhamento do semestre europeu e esteja habituado a “Bruxelês”não pode ficar descansado ao ouvir estas declarações. Nada nos garante que essa condicionalidade não venha mais uma vez acompanhada de pressão para implementar reformas de sentido liberalizador. Trata-se, sobretudo, de uma grande incógnita. Não é certo que os montantes envolvidos sejam suficientes para uma saída indolor da crise. Não é certo que a linha política não mude a meio do caminho, como aconteceu em 2010, exigindo um esforço orçamental irracional aos Estados. Não é certo que qualquer dinheiro que passe a fronteira não venha associado a um pacote político a la consenso de Bruxelas, onde não há espaço a estratégias alternativas de desenvolvimento além das que nos transformam na "Flórida da Europa."
3. Sobre o domínio não pouco relevante de como se financia este programa, sucedeu tudo na linha do que o José Gusmão já tinha previsto num post anterior (aqui). Sem o recurso à emissão monetária, o financiamento tem advir do aumento das contribuições dos Estados ou de recursos próprios. Como António Costa mencionou, embora de forma habilidosa, nenhum dos dois está garantido. Apesar dos grandes anúncios, ainda estamos no domínio do "futuro dará". Como naquele famoso segmento do filme Torre Bela, onde o elemento do MFA diz: "vocês primeiro ocupam, a lei há-de vir", também a proposta da Comissão Europeia se mostra muito célere em dar contornos a uma proposta sem que exista no Conselho Europeu acordo sobre como ela vai ser financiada. Mas na segunda, ao contrário da primeira, pouco de auspicioso há a esperar da experiência histórica.
Um Conselho pouco amigo
O Conselho Europeu reúne hoje no que deverá ser um primeiro confronto sem conclusões. O grupo dos quatro colocará a sua proposta em cima da mesa e o debate centrar-se-á entre a sua proposta (que é nada) e a proposta insuficiente da Comissão. Qual é o ponto da situação?
1. O que temos neste momento com a proposta da Comissão é 100% dívida. Vou repetir: 100% dívida. Os recursos próprios estão fora da proposta. Sem recursos próprios, a dívida agora emitida será paga por orçamentos futuros, ou seja, não há financiamento a fundo perdido nenhum.
2. O que a Comissão vai pôr em cima da mesa é emissão de dívida agora e o resto logo se vê. Para que essa dívida no futuro venha a ser paga pelos Estados na mesma proporção em que agora é distribuída, bastará aos frugais chumbar os recursos próprios e o aumento de contribuições.
3. Sem recursos próprios e sem contribuições adicionais, a amortização da dívida será feita por orçamentos futuros, o que significa que os países da coesão recebem mais agora e pagarão mais no futuro. A dívida não entra nos livros dos Estados-membros agora, mas fica lá.
4. Sobre o aumento de contribuições, nem vale a pena falar. Não vai acontecer. Pensar que os quatro Estados forretas vão aceitar aumentar as suas contribuições para amortizar esta dívida, no que constituiria um aumento das transferências entre Estados, é do domínio da ficção.
5. Quanto aos recursos próprios, nenhuma proposta conhecida tem aprovação garantida. O Imposto Digital é a proposta mais fácil porque incide sobretudo sobre empresas norte-americanas, mas nem esse é garantido, sobretudo se a proposta for abrangente e apanhar empresas europeias.
6. Quanto ao imposto sobre o plástico que, tal como esta proposta, é uma proposta típica de austeridade verde, recairá sobre os consumidores e servirá muito possivelmente para refrear propostas de proibição do plástico descartável que obrigassem as empresas a mudar a sério.
7. As propostas mais interessantes (Imposto sobre Transações Financeiras e Imposto Transfronteiriço sobre o Carbono) são muito mais justas mas também mais improváveis. A primeira, de resto, tem sido discretamente metida na gaveta pela Comissão.
8. Acresce que o Fundo de Recuperação está a servir como manobra de distração para um facto gravíssimo que é a proposta de um Quadro Financeiro com cortes gigantescos na coesão e agricultura. O Governo e o PE disseram que jamais aceitariam essa proposta. Vão aceitar agora?
9. Finalmente, a proposta da Comissão tem muito cuidado em não pronunciar a palavra maldita "condicionalidade", mas está lá tudo o que interessa. Os entusiastas dizem que as recomendações da Comissão estão melhores, mas nada garante que fiquem assim...
É por tudo isto que me parece que a energia que tem levado a comparações como o "novo Plano Marshall" ou o "momento Hamiltoniano" da União Europeia seria melhor direcionada para olhar com mais atenção para as letras pequenas (e números pequenos) da proposta realmente existente.
quinta-feira, 18 de junho de 2020
As notícias sobre a apetência pelo teletrabalho são bastante exageradas
Está porém longe de ser esta a conclusão do estudo da ENSP e, até, do corpo das notícias com estas parangonas e que, naturalmente, reportam os seus resultados. Entre os inquiridos (um universo limitado às pessoas em teletrabalho), cerca de 63% dizem-se insatisfeitos no que respeita à conciliação do teletrabalho com a vida pessoal, 59% consideram estar a trabalhar mais horas que o habitual e 42% reconhecem não conseguir desligar do trabalho para descansar.
Nas condições de trabalho, entre outros dados, 45% não tiveram qualquer apoio ou equipamento da entidade patronal para trabalhar à distancia e 95% não contaram com nenhuma comparticipação dos gastos acrescidos em internet. Questionados sobre se, no regresso à normalidade, gostariam que o teletrabalho fizesse parte da sua atividade profissional, 59% dos inquiridos respondem que apenas a tempo parcial e 22% apenas de forma esporádica. O que obriga a relativizar, evidentemente, a propalada ideia de que «os portugueses estão satisfeitos com o teletrabalho».
É claro que para os deslumbrados da inovação-porque-sim e da uberização da vida, a par dos que vêem as crises sistematicamente como um mero banquete de oportunidades (para já nem falar da contabilidade mesquinha e estúpida, que vê no teletrabalho a redução de gastos das empresas em luz, água, etc.), estes títulos caem como sopa no mel. E é por isso que é preciso refletir sobre as implicações que uma mudança desta natureza comporta, com perdas relevantes nas dimensões relacionais e de organização da vida, acautelando desde logo tudo o que é necessário ao nível da regulamentação do trabalho à distância. Em contrário, o «avanço» irrefletido para «novos paradigmas» não é compatível com discursos sobre a conciliação entre a vida profissional e familiar, o empenho no combate à precariedade ou o ensejo de criar perspetivas de futuro para os jovens e de inverter o declínio demográfico.
Um cabaz de serviços
Excerto do oportuno artigo de João Bau, em defesa do direito de acesso a um cabaz de serviços que satisfazem necessidades básicas das famílias nas suas casas.
Respondendo afirmativamente à relevante questão final, e superando a ideia da condição de recursos que tem presidido à política social nesta área, sublinho também que a garantia de acesso universal a este tipo de serviços de rede requer um controlo público de sistemas de provisão que são literal e metaforicamente parte das fundações públicas da economia.
quarta-feira, 17 de junho de 2020
Para quem foi a borla?
O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais explicou o racional desta medida: a pandemia não deveria prejudicar as empresas apenas porque aconteceu um tsunami sanitário. O Estado arcaria com esse encargo nos dois anos em que se estima que a pandemia crie problemas às empresas.
terça-feira, 16 de junho de 2020
Novo banco, velhos hábitos
No jornalismo escreve-se a primeira versão da história. Cristina Ferreira escreveu mais um bom capítulo da história do Novo Banco: baseados na avaliação de uma auditora internacional, o Banco de Portugal e o BNP Paribas, um banco multinacional francês, garantiram, num memorando confidencial de 2015, que o Novo Banco tinhas as “contas limpas”.
Perante isto, volto a colocar a questão ao Ministério das Finanças e ao Banco de Portugal:
Como querem que haja confiança no sistema se aparentemente não têm capacidade técnico-política para auditar e inspeccionar os bancos de forma autónoma, sem dependerem de empresas internacionais de imparcialidade mais do que duvidosa?
A resposta é parte de um problema institucional mais geral de enfraquecimento das capacidades do Estado, de construção de uma dependência que também é cognitiva. A nomeação de António Costa Silva para fazer um plano tornou este problema ainda mais claro.
Entretanto, confirma-se o que a lógica dos incentivos já permitia antecipar desde o início: os abutres que foram colocados no Novo Banco por Mário Centeno, Carlos Costa e pelos burocratas do eixo Bruxelas-Frankfurt, com a ajuda bem remunerada de Sérgio Monteiro, preparam-se para comer o fundo de resolução até ao último euro.
Hoje ficámos a saber que “a injecção no Novo Banco em 2021 é automática em ‘cenário de extrema adversidade’”. Se não fosse a pandemia seria outro pretexto adverso qualquer: “ora, o que acontece é que essa imprevisibilidade não nos permite dizer quanto é que vamos buscar”. Vão buscar tudo. António Ramalho teve um aumento salarial avultado para poder falar com esta desfaçatez. Há muito mérito nisto, parece.
E por falar em mérito: se a Assembleia da República não conseguir travar, o Governo prepara-se para substituir Carlos Costa por Mário Centeno na sucursal de Frankfurt. É, na realidade, uma solução de continuidade, dado que ambos têm experiência em transações com infernos fiscais, ambos aplicaram o princípio do pagam, mas não mandam, e ambos pensam como se estivessem no centro, estando numa periferia monetária e financeiramente colonizada.
O que pode correr mal neste novo contexto depressivo?
Hoje, videoconferência Práxis: «Teletrabalho com direitos»
Participam no debate (clicar para ampliar) os especialistas da área do trabalho João Leal Amado (FDUC), João José Abrantes (FDUNL), Manuela Santos Silva (Advogada Sindical) e Teresa Moreira (EDUM), e os ativistas do trabalho Áurea Bastos (CT da REN), Daniel Bernardino (CT da FAURECIA), Gonçalo Leite Velho (SNESUP) e Luís Simões (Sindicato dos Jornalistas). A moderação está a cargo de Henrique de Sousa (Práxis).
A transmissão da videoconferência será feita através do facebook da Práxis, estando a participação no webinar sujeita a inscrição (aqui), até ao limite dos lugares ainda disponíveis.
segunda-feira, 15 de junho de 2020
Falsos argumentos socialistas
“no âmbito da emergência de saúde pública de âmbito internacional e tendo em consideração a necessidade de acautelar a protecção social dos trabalhadores e a recuperação das empresas a operar em todo o território nacional, o Governo português não adoptou uma solução semelhante à de outros países”. E foi assim porque a Comissão Europeia não incluiu “qualquer referência expressa/incentivo à exclusão de entidades sediadas em jurisdições consideradas não cooperantes para efeitos fiscais e jurisdições offshore de quaisquer apoios à economia”.
domingo, 14 de junho de 2020
Números manipuláveis
Os números têm destas coisas: se distribuirmos os pedidos por escalão de dimensão de empresas, sim, a maioria esmagadora veio de micro e pequenas empresas. Mas se compararmos o peso que esses pedidos tiveram no total de empresas de cada um dos escalões, vemos que foram as grandes e as médias empresas quem mais beneficiou.
E agora lembre-se de outra coisa: os salários médios nas médias e grandes empresas são mais elevados do que os das micro e pequenas empresas. Isso quer dizer que - tendo em atenção o peso do emprego de cada um dos grupos de empresas - mais de metade dos apoios públicos foram para as médias e grandes empresas.
Isto é uma dedução porque o Ministério de Ana Mendes Godinho continua a não divulgar os números de trabalhadores envolvidos e os valores dos apoios concedidos.
sábado, 13 de junho de 2020
Nem básico e incondicional, nem de inserção
Claro que importa não desvalorizar o facto de nenhum país estar preparado para lidar com um fenómeno desta natureza, constituindo a preservação do emprego e dos rendimentos o bom princípio para enfrentar a paralisação da economia e facilitar a retoma. Mas tudo indica, de facto, que as medidas adotadas (como o lay-off e os apoios às empresas, a par do reforço dos apoios sociais e outras respostas específicas), não foram capazes de responder a todas as situações de carência nem de evitar o aprofundamento das desigualdades. Essencialmente vocacionadas para proteger o lado formal da economia e do emprego, estas respostas deixaram a descoberto muitas situações de precariedade e informalidade, indissociáveis, por exemplo, da crescente «uberização da economia» e de sucessivas políticas de redução dos direitos laborais.
Sendo previsível que novas crises pandémicas, ou de idêntica natureza disruptiva, venham a repetir-se, faz todo o sentido começar já a equacionar a criação de uma nova medida de proteção social, mais simples, ágil e abrangente, que assegure a todos um rendimento mínimo em situações de emergência. Ou seja, uma medida na linha de várias propostas que têm vindo a ser apresentadas, debatidas e aprovadas (como esta, esta, esta, ou esta).
Uma medida desta natureza, não pode nem deve, contudo, ser confundida com as propostas orientadas para a implementação de um Rendimento Básico Incondicional (RBI), nem com o atual Rendimento Social de Inserção (RSI). No primeiro caso, em virtude de se tratar de uma resposta temporária e não universal (complementando medidas como o lay-off, entre outras). No segundo caso, porque não pressupõe a condicionalidade subjacente aos contratos de inserção (pois não é disso que se trata), que caraterizam o RSI.
sexta-feira, 12 de junho de 2020
A sabedoria convencional continua
Continuação da lista sobre o que se deve dizer, segundo a sabedoria convencional, ou seja, segundo a ofuscação ideológica da realidade na economia política:
Não se diz protecionismo dos mais fortes, diz-se comércio livre.
Não se diz política económica deflacionária ao serviço dos credores, diz-se política económica credível.
Não se diz política económica orientada para o pleno emprego, diz-se populismo macroeconómico.
Não se diz captura privada de rendas fundiárias, diz-se promoção imobiliária.
Não se diz capitalismo monopolista, diz-se livre concorrência.
Não se diz Estado desenvolvimentista ou empreendedor, diz-se génios que começaram numa garagem.
Não se diz capitalismo monopolista digital e de vigilância, diz-se sociedade digital.
Não se diz uberização das relações laborais, diz-se economia da partilha.
Não se diz desigualdade de classe, diz-se meritocracia.
Não se diz classe operária, diz-se indivíduos sem qualificações.
Não se diz lutas pelos direitos laborais, diz-se defesa de interesses corporativos.
Não se diz interesses políticos capitalistas, diz-se sociedade civil.
Não se diz compra de influência política, diz-se filantropia.
Não se diz aumento da arbitrariedade patronal, diz-se liberdade económica.
Não se diz educação, diz-se capital humano.
Não se diz comunidade, diz-se capital social.
Não se diz impotência política pós-nacional, diz-se cosmopolitismo.
Não se diz democracia limitada, diz-se democracia liberal.
Não se diz democracia plena ou avançada, diz-se democracia iliberal.
Não se diz imperialismo, diz-se internacionalismo liberal.
quarta-feira, 10 de junho de 2020
Regabofes
Duas décadas de estagnação, indissociáveis do Euro, não existiram. A maior crise desde a Grande Depressão, a iniciada em 2007-2008, não existiu. E o saldo orçamental não é uma variável fundamentalmente endógena, mais dependente do andamento da economia do que das habilidades dos Ministros das Finanças, como se confirma outra vez com uma previsão de um défice de 6,3% para este ano.
Além disso, a austeridade relativamente suave do primeiro governo Sócrates e a mais intensa dos PEC do segundo governo não existiu. E, claro, também não existiu a versão muito mais violenta do governo da troika. A desmemória está aí.
Mais à frente, virá exigir novas doses de austeridade, que nunca terá existido, a somar à desvalorização salarial já em curso.
Para lá do moralismo, dada a lógica dos saldos financeiros num país com instrumentos decentes de política económica, contas certas só querem dizer o saldo do sector público necessário para criar o maior volume de emprego possível e assegurar a solvabilidade do sector privado, sem descurar o único equilíbrio que conta, o do saldo externo, para não se cair em dependências externas.
Entretanto, o argumento da melhoria das condições de financiamento, putativa contrapartida da política económica dos credores, já engana menos gente, dado que ficou mais claro que as taxas de juro são um preço político, sendo determinadas pelo Banco Central e não pelos mercados.
Mas, como sabemos, a austeridade é um meio para transferir recursos para os mesmos de sempre. Carvalho deu a linha hoje: “os custos deste orçamento vão andar muitos anos a atormentar-nos”. O que nos atormenta é a crise e falta de instrumentos para a debelar na nossa escala.
Entretanto, Centeno não deixa saudades. Como bem se resume em título do Público: “o homem que sai quando o excedente acaba”. Para lá de um nível de investimento público que atrofiou as capacidades do país, legou um princípio que corre o risco de ser aplicado para lá da banca: pagam e não mandam. Isto, sim, é um regabofe.
terça-feira, 9 de junho de 2020
Algo tem de mudar na economia
Quem conheça a história da britânica The Economist, brilhantemente esmiuçada pelo historiador Alexander Zevin, sabe que é difícil encontrar melhor repositório das convenções liberais ao longo do tempo. De facto, desde a sua fundação, em 1843, foi do anti-democrático imperialismo de comércio livre, dominante no longo século XIX, até ao pós-democrático neoliberalismo desde o final do breve século XX, passando por um certo consenso keynesiano no centro, dado o medo de alternativas mais radicais.
Esta pandemia tem perturbado algumas certezas desta sofisticada voz da City com um pé em Wall Street e outro em Hong-Kong, o que de resto já aconteceu noutras alturas, da Grande Depressão ao Brexit.
Desde Março, já não é a primeira vez que leio na The Economist elogios ao Estado indiano de Kerala e ao Vietname, justamente considerados exemplos na área da saúde pública no mundo em vias de desenvolvimento. Esta revista sempre foi visceralmente anti-comunista, favorável a todas as bombas lançadas pelos EUA na Indochina, ao “método de Jakarta” por estes patrocinado. Zevin documenta este padrão com grande rigor.
Já não é a primeira vez que leio apelos a todos os estímulos monetários e orçamentais possíveis e imaginários, num contexto em que se reconhece que a dívida pôde ser gerida no passado, por exemplo através do que estes liberais chamam de “repressão financeira”, vigente a seguir à Segunda Guerra Mundial, um período que até à liberalização financeira dos anos oitenta foi de reconhecida tranquilidade financeira, um padrão inaudito na história do capitalismo. Esta revista deu sempre para todos os peditórios anti-keynesianos desde os anos oitenta, embora tenha chegado a estes um pouco tarde, como é sublinhado por Zevin.
É verdade que é por vezes pragmática, em modo bombeiro, quando as crises, de novo cada vez mais frequentes, atingem o centro. Foi sempre selvagem na periferia, favorável a todo o liberalismo armado, como aconteceu recentemente na Bolívia.
Mas esta semana, que me recorde, foi a primeira vez que este baluarte anti-sindical, sempre muito favorável ao aumento de direitos patronais, reconhece de passagem uma das consequências desta transformação institucional, abandonando um certo esforço de naturalização do aumento das desigualdades:
“Em alguns países a desigualdade estava a aumentar antes da pandemia, em parte por causa da liberalização das regras laborais. Na Alemanha, a percentagem do rendimento dos 10% mais bem remunerados era igual à dos 50% que ganhavam menos quando as reformas laborais de 2004 foram aprovadas [pelo governo SPD]; em 2017, os 10% mais bem remunerados ganhavam mais.”
Se falo desta revista semanal no singular é porque os artigos não são assinados, salvo um ou outro caso, quando a rainha faz anos, o que, reconheça-se, é uma afirmação de um projeto colectivo, neste caso ao serviço do individualismo possessivo, agora a atravessar um daqueles momentos excepcionais.
E, já agora, aposto que não há uma publicação tão influente entre os nossos editorialistas, do Expresso ao Público, passando pelo Negócios, embora na periferia haja muito menos flexibilidade ideológica, também aí imitando a lógica do centro liberal para os países subalternos.