quarta-feira, 11 de julho de 2018

Tinha de mudar


Deixo aqui o meu artigo no Le Monde diplomatique - edição portuguesa do mês passado:

O passado económico tinha de mudar

No prefácio ao livro de José Reis sobre A Economia Portuguesa, recentemente publicado, o jornalista de economia Nicolau Santos afirma que «se trata da mais importante análise sobre o tema desde “A economia portuguesa desde 1960”, de José da Silva Lopes».[1] Aproveitando a boleia da sugestiva e justa frase de Nicolau Santos, pode ser útil comparar dois livros que, publicados respectivamente em 2018 e em 1996, também são de história recente da economia portuguesa: o passado económico pode e deve mudar, quer em função de dois presentes muito diferentes, quer dos distintos quadros analíticos implícita ou explicitamente mobilizados e da forma como ordenam o amplo material empírico disponível, quer das contrastantes circunstâncias intelectuais de dois economistas comprometidos com este país.

Um «economista antigo» na convergência 

O livro de José da Silva Lopes (1932-2015) apresenta a perspectiva, naturalmente hegemónica em meados dos anos noventa, segundo a qual «[e]m 1960 Portugal estava no limiar de uma fase de desenvolvimento económico sem precedentes da sua história»; desenvolvimento é aqui fundamentalmente medido pelo crescimento económico acelerado, associado à mudança estrutural, e logo de convergência do produto interno bruto (PIB) per capita com o centro europeu, sobretudo no período dito «glorioso», que teria ido de 1960 a 1973 e que teria estado associado à «abertura ao exterior», reconhecidamente faseada e então desencadeada sobretudo pela adesão à Associação Europeia de Livre Comércio (AECL/EFTA).[2] Coincidindo com a revolução democrática e com a turbulência política que lhe teria estado associada, as dificuldades económicas internacionais dos anos setenta foram em larga medida responsáveis por um período de enormes desequilíbrios macroeconómicos, no período de 1974 a 1985, tendo o país sido, segundo Silva Lopes, em grande medida resgatado pela adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), num quadro de expansão económica internacional, e pela estabilidade política do cavaquismo, garantindo-se assim uma convergência de novo relativamente vigorosa na segunda metade dos anos oitenta. A política macroeconómica de desinflação, associada à convergência nominal no quadro do reforço da integração a partir do início da década de noventa, mergulhou o país de novo numa crise, que acabaria por ser superada. Apesar de todas as dificuldades e contradições internas e externas, a economia portuguesa moveu-se no sentido ascendente. A sua europeização teria sido relativamente feliz.

Entretanto, é importante notar que Silva Lopes não nos apresenta um quadro analítico claro. O seu livro apresenta-se num formato descritivo, o que só a um olhar desatento significa ausente de escolhas, sendo servido por uma periodização balizada por mudanças económico-políticas salientes, aprofundada em capítulos temáticos: da análise sectorial clássica – agricultura, indústria e serviços – às relações económicas internacionais ou às questões monetárias e de finanças públicas, concluindo com dois capítulos sobre «enquadramento institucional e regulação económica» antes e depois do 25 de Abril de 1974.

Silva Lopes tinha a seu favor um saber económico também feito de uma vasta experiência técnica e política no centro de decisões importantes de política económica de conjuntura e de mudança na estrutura, quer no período da ditadura, quer, talvez de forma bem mais intensa e comprometida, no período democrático: da participação nas negociações da EFTA a ter sido governador do Banco de Portugal num período particularmente interessante – de 1975 a 1980 –, só para dar dois exemplos. 

Sempre politicamente ambíguo, embora sem esconder aqui e ali um certo conservadorismo orçamental e monetário, Silva Lopes escreveu um livro que estava simultaneamente dentro e fora do consenso neoliberal dos anos noventa: dentro, porque não deixava de vincular o progresso económico à liberalização económica, sendo uma versão com nuances da celebração então em curso do capitalismo português na segunda metade do século XX; fora, porque não deixava de sublinhar os défices socioeconómicos variados da fase autoritária, então claramente subestimados entre alguns economistas que viam a história económica como mera contabilidade do crescimento. A vantagem de Silva Lopes, face às versões celebratórias sem nuances, pode também ser vista numa certa prudência keynesiana em relação às virtudes dos ímpetos de desregulamentação, em particular na esfera financeira. Como declarou, já em 2007, não sem ironia, «sou um economista antigo, vejo as regulações que tínhamos e que hoje já não existem e fico um bocado preocupado».[3] Havia e há muitas e boas razões para estar bastante preocupado, mas também para revisitar o passado à luz dessas e de outras preocupações. Esta é precisamente uma das tarefas que o livro de José Reis se propõe realizar.

Um economista político na divergência

Tal como a obra de José Silva Lopes, o livro de José Reis debruça-se sobre a economia portuguesa no seu conjunto, com uma ambição de sistematização que se furta aos cânones de uma certa especialização académica fragmentadora, ainda para mais numa área, a ciência económica, que não tem propriamente privilegiado nas últimas décadas o estudo historicamente informado da economia nacional. Se Silva Lopes beneficiava de estar fundamentalmente fora da academia para se furtar a algumas das suas convenções recentes, José Reis beneficia de uma longa inserção académica, mas numa tradição interdisciplinar crítica, associada ao Centro de Estudos Sociais e à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, de que tem sido um dos protagonistas, e que tem persistido na análise da sociedade portuguesa enquanto semiperiferia do sistema mundial e, mais recentemente, periferia de um cada vez mais condicionador sistema europeu.

A chave para se compreender o quadro analítico explícito que estrutura o contributo de José Reis está logo no transparente subtítulo do seu livro: «formas de economia política numa periferia persistente (1960-2017)». As formas de economia política são o modo de o primeiro presidente da Associação Portuguesa de Economia Política, constituída em 2017, defender um programa de investigação que passa por compreender «o modo como os processos económicos foram estruturados em diferentes momentos da evolução, tomando em conta os respetivos contextos institucionais, históricos e geográficos e as formas de poder aí presentes».[4] No fundo, trata-se da materialização de um programa de investigação em Economia Política, enquanto história racionalizada da mudança institucional, ou seja, da mudança nas regras do jogo que estruturam as relações sociopolíticas de provisão numa economia territorialmente delimitada e singular. A periferia persistente diz respeito às formas que as relações de dependência foram assumindo, acabando por revelar a ilusão intelectual e a perversidade política da tese celebratória da convergência.

Este último ponto diz muito também sobre as circunstâncias materiais objectivas do trabalho intelectual. Se é verdade que em 2018 constitui ainda uma heresia económica voltar a falar-se de formas de dependência, também é verdade que a realidade da divergência é ineludível no novo milénio, talvez até mesmo para os que se têm esforçado tanto para proteger a ciência económica das incómodas e condicionadoras questões do poder em múltiplas escalas. A economia política é o método, mas o objectivo é rever o passado para abrir novas possibilidades para o futuro.

Este livro começa então por nos ajudar a reconhecer que nos anos sessenta «se ensaiou uma tentativa de industrialização que cedo se revelou limitada e inconsequente».[5] Sendo a primeira de cinco circunstâncias identificadas ao longo dos cinco capítulos deste livro, esta é a que mais poderosamente faz implodir a celebração da fase tardia do fascismo em Portugal, indicando como o controlo dos grupos económicos num regime autoritário configurou uma forma de economia política, de acumulação de capital, absolutamente medíocre em termos de criação de emprego. A emigração maciça neste período é um dos sintomas de uma economia desigual e subdesenvolvida, incapaz de integrar pelo emprego, e que tinha na força de trabalho pouco qualificada e pobre uma das suas compelidas exportações.

Contra modismos intelectuais que secundarizam as relações laborais, José Reis insiste que a economia «é um sistema produtivo e de provisão», sendo «a inserção pelo trabalho no sistema de emprego (…) o mais poderoso mecanismo de inclusão da nossa contemporaneidade».[6] A segunda circunstância da economia portuguesa alvo de análise é precisamente a economia política do 25 de Abril, ou seja, o sucesso registado pela democracia portuguesa nas mais difíceis circunstâncias externas: a criação de centenas de milhares de postos de trabalho, num contexto que também foi de afirmação política, ainda que temporária, de uma nova centralidade do trabalho e do salário directo e indirecto, associada também à construção do Estado social, de que o direito do (e ao) trabalho foi uma peça central. Ao invés de expulsar força de trabalho, a economia portuguesa importou-a e integrou-a, como atestam as centenas de milhares de «retornados». Contra os que só viram irracionalidades nesta forma de economia política, José Reis valoriza empiricamente as racionalidades da deliberação democrática, sendo este o segundo grande contributo do seu livro para a mudança do nosso passado recente. Cruzando uma análise dos ciclos económicos com os arranjos institucionais em cada momento dominantes, mostra-nos de seguida, entre outras coisas, como o ciclo de expansão do cavaquismo não foi nada de especial, quando comparado com o anterior já depois do 25 de Abril, embora as circunstâncias externas, como Silva Lopes também havia sublinhado, fossem inusitadamente favoráveis ao cavaquismo.

A terceira circunstância tem precisamente a ver com a forma como uma integração europeia aparentemente feliz no seu início passou a sobredeterminar grande parte das transformações internas, rumo a uma forma de economia política cada vez mais neoliberal, coexistindo precariamente com uma economia política do 25 de Abril com cada vez menos influência institucional. 1986 e 1993 são duas datas-chave, quer por causa da adesão à CEE, quer por causa do início do chamado «ciclo da integração monetária», numa economia desde aí sem instrumentos decentes de política económica e sujeita aos humores da finança. José Reis articula explicitamente ciclos económicos e transformações institucionais. Estas duas datas apontam para a quarta circunstância: a financeirização e a estagnação prolongada, tornando esta periferia um prenúncio de tendências internacionais, visíveis depois da crise internacional iniciada em 2007-2008.

Finalmente, temos a quinta circunstância, onde, com optimismo da vontade, se fala de uma reconhecidamente frágil «economia política da recuperação», superando alguns elementos de uma anterior «economia política do empobrecimento», e que está associada à solução governativa de base nacional encontrada em 2015 em reacção ao governo da Troika. O elefante que está na sala é, entretanto, apontado: «esta Europa que nos deprime», subtítulo de um capítulo algo melancólico sobre o que a integração podia ter sido, mas clara e definitivamente não foi. É claro que da União Europeia, em geral, e da Zona Euro, em particular, já só vêm problemas, mesmo que a ruptura com esta ordem seja uma questão que este livro não coloca, talvez porque se considere neste caso que não vale a pena colocar uma questão intelectual a que não se está politicamente em condições de responder ou talvez porque se considere a ruptura demasiado custosa. Seja como for, as questões respondidas sobre um passado agora em mudança foram mais do que muitas.

[1] Nicolau Santos, «Prefácio: O homem que lutou contra a TINA – e marcou pontos», em José Reis, A Economia Portuguesa – Formas de Economia Política numa Periferia Persistente, Almedina, Coimbra, 2018, p. 9.
[2] José Silva Lopes, A Economia Portuguesa desde 1960, Gradiva, Lisboa, 1996, pp. 13-17.
[3] Diário Económico, 7 de Agosto de 2007.
[4] José Reis, pp. 15-16.
[5] José Reis, p. 13. 6 José Reis, p. 25.

3 comentários:

Jose disse...

E a dívida, senhor?
E as intervenções do FMI?
Tudo altos exemplos das potencialidades das políticas de abril.
Mas havendo provisão, que mais desejar?

Anónimo disse...

Potencialidade das políticas de Abril?

Por acaso potencialidades da política neoliberal. De direita claro Do estado do desenvolvimento do Capital.

Será que isto basta para aprovisionar este José?

É que este perpétuo estremecimento face à derrocada do fascismo, mostra que jose confunde a queda da tralha infecta, com o que sucedeu após esta. Para os mais extremistas, Cavaco, Durão, Santana, Portas ou Coelho são perigosos abrilistas.

Mas estes episódios sobre a governança da direita no pós Abril, levantam memórias curiosas. Em relação ao FMI nem sequer vale a pena agora falar disso. Talvez recordar o apoio entusiasta da fina flor do entulho à vinda da troika. José até foi um dos que não queria que esta de cá saísse,numa demonstração patente que há vende-pátrias para todos os gostos
.

Anónimo disse...

Mas há outro pormenor a lembrar.

No tempo de Salazar, este também andou por aí sob empréstimos. O caso do plano Marshall é mal conhecido e mostra o volte face que o fascismo foi obrigado a fazer quando se viu encurralado. Isto contrariando a propaganda néscia da turba, que apresentava Salazar como um tipo que sabia de economia e que pagava as suas contas

Há um episódio cómico que mostra como ainda hoje os saudosos do estado novo não se coíbem de mentir e deturpar a verdade histórica, numa patética demonstração da falta de escrúpulos ou de ingenuidade. É precisamente o caso do “ empréstimo” Marshall e das idiotices espalhadas a tal propósito por este José.

Se for necessário, refrecar-se-á a memória sobre esta verdadeira pérola do bas fond salazarento