segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Não é de Portugal


Com a autoridade política, intelectual e moral que só Cavaco Silva lhe reconhece, Carlos Costa, governador do Banco que não é de Portugal, mas que um dia voltará a ser, achou por bem juntar-se, logo no início do processo, aos coros das direitas, programaticamente contra a solução de governo que acabou por triunfar e que pretende virar a página em termos de austeridade: “todos os erros de política económica que se fizerem agora vão ser pagos em dois, três ou cinco anos, mas com muito mais dor (…) uma política económica sustentável requer um grande ajustamento, que é muito difícil de impôr à população”. Austeridade permanente.

Entretanto, Carlos Costa, em coerência com o espírito austeritário que é o seu, colocou Sérgio Monteiro a ganhar trinta mil euros por mês a vender o novo banco. Trata-se de uma recompensa, em linha com os hábitos das elites num país desigual, por aquilo que Monteiro sabe fazer melhor: vender o rectângulo a patacos, ajudando a destruir sectores inteiros, em negócios de que um dia, esperemos que próximo, se saberão todos os contornos, a começar pela TAP. Será que o Banco, que também é suposto regular o sector financeiro, não tinha entre os seus qualificados quadros ninguém que pudesse ser destacado para esta mais do que duvidosa missão, provavelmente condenada nos seus próprios termos, parte da crise bancária em câmera lenta a que estamos a assistir? É claro que a única forma de manter o sector bancário, bem como outros sectores estratégicos, em mãos nacionais, estabilizando-os e reconfigurando-os, é garantir o controlo público dominante, sendo que o Estado detém actualmente mais de um terço do sector bancário, mas não age em conformidade num sector socializado nos seus custos, sabendo ainda nós, pelo exemplo de outros, que o controlo estrangeiro da banca aumenta a propensão para crises financeiras.

Aproveito também para sublinhar o óbvio: estas instituições ditas independentes, de regulação conforme ao mercado, consequentemente pós-democráticas, são um exemplo de degradação intelectual, política e moral, um façam força que eu gemo permanente e bem remunerado, servindo muitas vezes de biombo para a acção política dos governos e/ou dos interesses. E não, isto não é “só neste país”. Em Bruxelas é igual ou pior, bem pior, dada a escala dos interesses capitalistas que aqui temos assinalado: agora é o “conluio entre Bruxelas e empresas de combustíveis fósseis”. Durante décadas, o neoliberalismo vendeu a ideia da separação multi-escalar entre condução da política económica e controlo democrático. Os resultados estão à vista todos os dias, em todas as escalas.

Tudo o que falta fazer para defender a escola pública

Ao longo dos últimos meses os vários partidos de esquerda denunciaram o financiamento injustificado do ensino privado com recursos públicos como um exemplo do que não se deveria fazer na Educação. Este não é um tema menor, pois traça uma linha vermelha entre quem defende um sistema público de educação universal e quem, escudando-se na retórica da "liberdade de escolha", considera que os colégios privados devem ser financiados em pé de igualdade com as escolas públicas. No entanto, apesar do seu peso simbólico, esta é apenas uma das inúmeras questões que afectam o futuro da educação pública em Portugal.

Nos últimos quatro anos e meio assistimos a um ataque sem precedentes à escola pública, com uma redução acentuada de recursos, uma sobrecarga do trabalho dos professores, um aumento de alunos por turma e o absolutismo da "pedagogia dos exames" e da "cultura da exigência" (que se traduziu em pouco mais do que a sujeição das aprendizagens à obsessão das metas curriculares). Antes disso foram anos a fio de burocratização da educação, de desconsideração pela profissão docente e de generalização de um modelo de gestão das escolas que parece tirado das teorias de gestão de empresas da década de 1920. Foi nestas condições que a escola pública teve de gerir todas as dimensões da crise social que se instalou em Portugal (desemprego, pobreza, subnutrição, problemas psicológicos, falta de cuidados médicos básicos, etc.), que lhe entram pelos portões adentro todos os dias sem excepção.

Os resultados estão à vista. A escolar pública portuguesa é hoje um local muito pouco atractivo para trabalhar e menos atractivo do que já foi para estudar. Hoje, muitas pessoas da classe média e com educação superior hesitam em pôr os filhos em escolas públicas - ou desesperam para garantir uma vaga para os seus filhos numa das poucas escolas da rede pública consideradas de excelência (o que frequentemente significa evitar de todas as formas possíveis os estabelecimentos da sua área de residência). Este é um indicador preocupante de insustentabilidade do ensino público. No dia em que os segmentos mais qualificados população recusarem o que o sistema de ensino público tem para lhes oferecer, o projecto de criação de uma educação promotora da igualdade de oportunidades tem os dias contados.

As escolas públicas têm de ter projectos pedagógicos claros e coerentes. Têm de ser locais de aprendizagem de conteúdos e de desenvolvimento de competências - científicas mas também artísticas, sociais e cívicas. Têm de proporcionar oportunidades de desenvolvimento a alunos com diferentes interesses e potencialidades. Têm de assegurar a segurança física e psicológica das crianças e jovens que as frequentam. E têm de ter condições logísticas, financeiras e, acima de tudo, humanas para o fazer.

Tudo isto vai requerer muito mais do que parar com o desvio de recursos a favor do ensino privado. Vai exigir muito empenho, inspiração e sensatez da nova equipa da 5 de Outubro. E também uma atenção e uma intervenção permanentes de toda a comunidade escolar - professores, gestores, técnicos, funcionários, alunos e encarregados de educação. Não tenhamos dúvidas: mudar de governo foi apenas um pequeno passo para tudo o que ainda é necessário fazer para defender a educação pública em Portugal.

domingo, 29 de novembro de 2015

Ladrões batem novo recorde



Neste mês de Novembro de 2015 o blog Ladrões de Bicicletas bateu o recorde mensal de visitas (mais de 130 mil) desde que foi criado em 17 de Abril de 2007. Estão de parabéns os que pedalam e os que acompanham a pedalada.

Para quem não sabe, foi aqui que tudo começou (com o João, o Nuno, o Pedro e o Zé): http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2007/04/os-dilemas-trgicos-que-os-indivduos-tm.html

Lambchop: I'm thinking of a number



sábado, 28 de novembro de 2015

A carta

«Exmo. Sr. Presidente da República,
Após a leitura atenta das seis condições que colocou para a minha indigitação como primeiro-ministro, posso garantir-lhe o seguinte:
a) Quanto à aprovação das moções de confiança, pode ficar descansado. Não lhe escondo que os meus acordos com os outros partidos são frágeis. Há, sem dúvida, divergências bastante profundas, e por vezes é complicado divisar um único ponto de encontro. Mas, nas alturas mais difíceis, PS, PCP, BE e PEV lembram-se sempre da única questão na qual estão cem por cento de acordo: que V. Exa. é tragicamente incapaz. Ninguém nos tira essa sólida base de entendimento, sobre a qual pretendemos edificar lindas convergências.
b) Quanto à aprovação de orçamentos de Estado que ainda não são conhecidos, os três partidos comunicaram-me que desejam tomar como inspiração o seu exemplo de aprovar cegamente orçamentos de Estado, inclusivamente inconstitucionais. Dizem que gostavam de ler os documentos antes de os aprovarem, se V. Exa. não se importa. Por outro lado, ficamos à espera que se submeta à mesma obrigação, em nome da estabilidade: que aprovará sem questionar qualquer orçamento que lhe apresentarmos. Aquele que estamos a preparar contém uma alínea muito gira sobre a reforma do Presidente da República. Acreditamos que apreciará a poupança que ali propomos;
c) Acerca do cumprimento das regras de disciplina orçamental, estamos em condições de garantir o seguinte: o meu governo respeitará tanto os tratados europeus quanto o governo anterior respeitou a Constituição. Sendo V. Exa. um admirador da governação de Passos Coelho, cremos que também apreciará a minha;
d) Em relação ao respeito pelo nosso compromisso com a NATO, e após conversa telefónica com o deputado Jerónimo de Sousa, posso dar-lhe a seguinte garantia: a consideração do PCP pela NATO é tão grande que os comunistas portugueses vão propor aos seus velhos camaradas do leste europeu a reactivação do Pacto de Varsóvia, só para que a NATO tenha o prazer de voltar a extingui-lo. Esta extinção do Pacto de Varsóvia pela NATO terá periodicidade semanal;
e) No que diz respeito ao papel do Conselho Permanente de Concertação Social, deixo-lhe outra promessa: o meu governo não tratará qualquer interlocutor como "força de bloqueio". Esses tempos negros de falta de diálogo já passaram;
f) Por último, quero sossegar V. Exa. acerca das medidas que o meu governo vai tomar no sentido de garantir a estabilidade do sistema financeiro. São elas: impedir que qualquer amigo de V. Exa. funde ou administre bancos; propor um aditamento à Constituição que impeça V. Exa. de fazer considerações acerca dos bancos nos quais os portugueses podem ou não confiar.
Creio que estas garantias satisfarão V. Exa. Agora, e como dizia o outro, deixem-me trabalhar.

Atentamente, António Costa»

A crónica de Ricardo Araújo Pereira na Visão desta semana (via Joana Lopes), que é bem mais que um excelente texto de humor (o que já não seria pouco).

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

De novo a Europa com o PS?


A direita está em pânico e não creio que seja apenas porque muitos boys vão ter de ceder os jobs a outros boys. O que mais inquieta a direita é o anúncio de uma política económica que vai tentar romper com alguns dos seus dogmas, que, contando com a cumplicidade dos media, nos foram apresentados como política séria e inevitável. Só o facto de o novo governo assumir a necessidade de um estímulo à procura interna para, fazendo crescer o PIB, mais facilmente alcançar um défice orçamental abaixo dos 3%, é motivo de escândalo. É certo que o impulso dado à procura interna será parcialmente canalizado para importações, exigindo medidas complementares para reduzir essa fuga de rendimento. Receio que a criatividade dos novos ministros para minimizar este efeito não evite um confronto com a Comissão Europeia (CE). Porém, a alternativa proposta pela direita – estagnação da procura interna e promoção das exportações – é ainda mais problemática porque as exportações contribuem pouco para as receitas do orçamento e, sendo essa a política preferida pela CE, não têm potencial para crescer significativamente. Dado que as exportações de uns são as importações dos outros, não admira que a política económica dominante na zona euro tenha produzido uma estagnação duradoura e o permanente risco da deflação, que o próprio BCE reconhece ter dificuldade em travar. Por isso, com a política que acaba de ser despedida, ainda seria mais difícil o cumprimento das metas propostas para o défice. Tudo isto sem questionar a estúpida exigência europeia de uma política orçamental recessiva em tempo de depressão.

Outro dogma em risco, cada vez mais discutido nos media, é o de uma reformulação da carga fiscal sobre o rendimento e o património das famílias no sentido de lhe conferir maior progressividade. Não faltam convites ao jornalismo dos negócios e aos fiscalistas para virem dizer, de preferência no horário nobre das televisões, que os ricos não são taxáveis porque põem o dinheiro fora do país, pelo que fica apenas ao alcance do fisco um pequeno segmento da classe média que, imagine-se, corre o risco da proletarização (“Jornal de Negócios”, 26 de Novembro). Como é evidente, para estes especialistas em fuga ao fisco, que no seu conjunto constitui um poderoso lobby ao serviço dos mais ricos e das grandes empresas, a redistribuição do rendimento por via de um sistema de impostos progressivo é anátema. A cada momento lembram que os impostos prejudicam o crescimento da economia e que, a haver redistribuição, será sempre mais tarde porque primeiro é preciso produzir. Quer dizer, nunca. Para melhor transmitirem a sua mensagem, contam com a cumplicidade dos media para não ser contraditados. De facto, não faltam estudos científicos de grande qualidade a comprovar que a redução da desigualdade na distribuição do rendimento ou da riqueza, para lá das considerações de justiça e bem-estar social, é um importante factor de crescimento económico (ver R. Wilkinson e K. Pickett, “O Espírito da Igualdade”, Ed. Presença; Bill Mitchell, “Rising income and wealth inequality –1% owns more than bottom 99%”). Outra questão é saber se a CE aceitará alterações progressistas de pequena escala, quase cirúrgicas, em nome de um potencial impacto negativo na confiança dos mercados. Tal argumento já é mencionado nas declarações dos fiscalistas quando declaram que “mexer sistematicamente na lei dos impostos quebra a confiança”. Em boa verdade, aos olhos desta classe profissional a mudança de política que a democracia proporciona é incompatível com os interesses dominantes nas economias dominadas pela finança global. Claro, sabemos qual é a sua escolha.

O novo governo vai enfrentar a breve prazo uma oposição feroz da direita, interna e da UE. Com o apoio do eixo Bruxelas-Berlim-Frankfurt, assistiremos nos próximos meses a uma reedição, adaptada às novas circunstâncias, da campanha que esmagou o ingénuo projecto grego de “mudar a Europa”. Talvez o PS conte com promessas de apoio de partidos europeus da sua família política. O mais provável é assistirmos a uma nova traição, mas oxalá esteja enganado.

(O meu artigo no jornal i)

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A propósito de bicicletas e das convergências à esquerda (II)


Cinquenta e três dias depois das eleições legislativas de 4 de Outubro, tomou hoje posse o XXI Governo Constitucional, liderado por António Costa, com apoio maioritário da esquerda parlamentar. Para a História ficará a quebra de um tabu - o do entendimento entre as esquerdas - e um processo muito interessante de confluência de vontades e de identificação de denominadores comuns, necessários à formulação de uma solução de governo que permita virar a página da austeridade e devolver a esperança ao país, com realismo e determinação.

Este é pois um bom dia para sublinhar e enaltecer o esforço de todos quantos, no Partido Socialista, no Bloco de Esquerda, no Partido Comunista Português e no Partido Ecologista «Os Verdes», contribuíram, com o seu empenho e abertura, para que se tivesse chegado aqui. Considerando a «prata da casa», uma menção especial ao José Gusmão e ao Pedro Nuno Santos, dois «ladrões» que estiveram sentados à mesa das negociações, como assinalava a Suzete Francisco no jornal «i», em meados do mês passado (recordando, de caminho, as origens deste blogue).

Da estrutura e da conjuntura

Portugal nunca pagou tão pouco pelas emissões de dívida como em 2015. No leilão de ontem, Portugal emitiu dívida a dez anos a uma taxa de juro de 2,3975% (2,4249% no penúltimo leilão e uma taxa de juro média ponderada nos dez leilões deste ano de 2,47%). Útil informação retirada do Negócios, um dos jornais que, durantes estas últimas semanas, deu espaço à desavergonhada linha de propaganda das direitas lapidarmente definida pelo Nuno Teles: os vossos desejos não são notícia.

Como acontece nas sociedades crescentemente dependentes, as dinâmicas internas são crescentemente sobredeterminadas pelo centro: neste caso, o registo da dívida deve-se à acção do soberano monetário estrangeiro, de quem enquadra e conduz as forças de mercado, do BCE. O que o BCE deu, o BCE pode tirar, claro. Tudo depende de uma avaliação política pós-nacional e pós-democrática, como já por várias vezes tivemos possibilidade de atestar. Isto é obviamente um problema. O problema, diria mesmo. O problema da soberania limitada e logo da democracia limitada.

É claro que enquanto o pau vai e vem, folgam as costas, ou seja, atenua-se a austeridade: é preciso aproveitar este momento para conseguir o máximo de ganhos socioeconómicos, para mudar tanto quanto for possível a correlação de forças, sem contudo esquecer as estruturas externas que nos governam, condicionam e que estão por superar, até porque se tudo correr bem teremos de nos confrontar com elas.

Creio que a actual solução política nacional está tão bem calibrada quanto é politicamente possível para aproveitar uma conjuntura marcada por taxas de juro baixas ou pela vontade francesa e italiana de declarar uma espécie de estado de excepção orçamental. Esta vontade foi ontem apoiada pelo editorial do Financial Times, um diário esquerdista ao pé da nossa imprensa económica intransigentemente direitista, dado que a política monetária é por si só, como qualquer economista keynesiano, qualquer economista razoável, sabe, incapaz de afastar das economias o espectro da deflação e da crise.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O novo lema: “Não podemos distribuir o que não temos”

Ouvir a Helena Garrido na Antena 1, esta manhã, fez-me perceber o mote dos próximos tempos para o combate ideológico da direita. Citando de memória, disse ela sobre o futuro Governo Costa:

1) Vai ser extremamente interessante ver como vai o Governo Costa quadrar a distribuição de mais rendimento com a redução do défice orçamental e do défice externo;

2) Que o que importa é que o emprego cresça e que as desigualdades diminuam;

3) Todos nós gostamos de ter mais rendimento, mas a economia tem destas coisas: tem consequências. E não podemos distribuir o rendimento que não temos;

4) "Esperemos que tudo corra bem porque é importante manter o PS no espaço político português".

A primeira frase é interessante porque a Helena Garrido foi das directores de jornais económicos e opinion makers económicos que, de 2010 a 2014, abraçou literalmente a vinda da troika e defendeu uma estratégia recessiva ("A recessão de que precisávamos vem aí. Falta chegar a governação que oriente o país para o regresso da prosperidade", 14/5/2010); pugnou por um corte dos apoios sociais como única forma de equilibrar as contas orçamentais ("o congelamento dos apoios sociais, como o Rendimento Social de Inserção, reclama de todos nós o regresso a atitudes mais solidárias e menos dependentes do Estado no combate à pobreza", 22/3/2010); sustentou com veemência uma redução da dimensão do Estado, criticou o Governo quando este titubeou na reforma do Estado ("Sabia-se há muito, há mais de uma década, que a correcção das contas públicas era impossível sem reduzir salários, pensões e apoios sociais. A troika chegada com a ajuda externa parecia ser a salvação para o bloqueio em que se encontrava o regime político. Foi essa a esperança de nós. Vã esperança", 26/11/2013); defendeu até em 2014 a redução salarial (mesmo dos rendimentos brutos) para aumentar a competitividade externa ("Os salários e as pensões terão inevitavelmente de ser reduzidos. É uma ilusão pensar que se consegue resolver o problema de outra forma. Não existe nenhuma despesa pública com dimensão suficiente para controlar a dinâmica da dívida pública", 19/6/2014; "Com inflação baixa, impedir que os preços e salários diminuam é condenar o pais ao desemprego, é colocar Portugal a produzir menos do que aquilo que consegue", 17/12/2013; "Proibir o despedimento, congelar rendimentos ou regras de aumentos salariais quando a empresa vende menos ou o Estado recebe menos impostos, ou tem de gastar mais para apoiar quem mais precisa, é reivindicar o direito a ter sol todos os dias", 7/3/2014). E defendeu a austeridade como forma de clarificação ("Nós não estamos a empobrecer. A questão é que nunca enriquecemos. Estamos basicamente a regressar à dura realidade do rendimento que tínhamos antes de entrarmos para a moeda única", 21/2/2014). Uma austeridade que deveria prosseguir mesmo sem troika ("É da capacidade em disciplinar as contas do Estado que depende agora o nosso futuro e o sentido total dos sacrifícios que fizemos durante os últimos três anos", 1/1/2014).

terça-feira, 24 de novembro de 2015

O que não existe pode ser o mais importante

Repitam comigo: a luta de classes não existe – “Nunca desde pelo menos desde os anos 60 do século XX os salários pesaram tão pouco face aos lucros, rendas e juros. O peso dos salários do PIB começou a cair na viragem do século. Portugal é o país da Zona Euro em que a queda foi superior desde 2000.” Uma oportuna peça de Rui Peres Jorge no Negócios da quinta-feira semana passada, que vale a pena repescar, permite-nos reafirmar que o que não existe pode ser mesmo o mais importante.

O recuo do trabalho registado é sobretudo um fenómeno institucional, relacionado com alterações políticas das regras que enquadram as relações sociais de produção, da quebra de poder dos sindicatos à erosão deliberada da contratação colectiva, passando pela mudança das prioridades da política económica, onde o desemprego e a precariedade são vistos como úteis mecanismos disciplinares. Tudo isto é parte da erosão do Estado social. Juntamente com o aumento do poder da finança, esta erosão é um dos mecanismos referidos na peça, citando a OIT, e que tendem ainda a ser subestimados pela economia convencional, ou não fosse esta, em última instância, a expressão das forças sociais triunfantes. É claro que em certas circunstâncias, as ideias têm uma autonomia relativa: o próprio FMI já reconhece que o aumento da desigualdade está associada ao enfraquecimento dos sindicatos, por exemplo, embora tal reconhecimento não tenha lugar nas suas prescrições.

Aqui está uma área, a das desigualdades, em especial entre trabalho e capital, onde há muito para reverter e para fazer num campo, o das políticas públicas, onde as lutas convergem e se cristalizam em regras: do salário mínimo à revitalização da contratação colectiva. Vamos a isso.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

A 6ª condição de Cavaco

Das seis condições enumeradas por Cavaco para indigitar Costa como primeiro-ministro, há quatro que não são novidade (estabilidade política, viabilização dos Orçamentos de Estado, compromissos europeus e NATO) e servem apenas para o ainda inquilino de Belém fingir que não está a perder a face.

Há outras duas condições que não haviam sido antes explicitadas: concertação social e estabilidade financeira. Ambas parecem ir ao encontro das preocupações que foram transmitidas ao PR pelas pessoas que quis ouvir nas audiências da semana passada: patrões e banqueiros.

No que respeita à concertação social, eu consigo perceber o que está em causa: os patrões querem ter uma palavra a dizer sobre a subida do salário mínimo, alterações às leis do trabalho, etc. - e Cavaco quis dar-lhes voz. Quanto à sexta condição - a estabilidade do sistema financeiro - não é para mim tão claro o seu propósito.

Sem dúvida que fica bem a Cavaco preocupar-se com a estabilidade do sistema bancário português, tanto mais tendo em conta o seu envolvimento pessoal com o BPN (cujo colapso custou milhares de milhões de euros aos portugueses) e as garantias que deu sobre o BES pouco tempo antes de também este colapsar (não sendo ainda claro quantos milhares de milhões de euros custará aos portugueses).

Na verdade todos temos razões para nos preocupar com a estabilidade do sistema financeiro português, a julgar pelo conteúdo do Relatório de Estabilidade Financeira publicado pelo Banco de Portugal na semana passada. Esse relatório dá conta da situação frágil em que se encontram os bancos portugueses (apesar das melhorias recentes na sua rendibilidade), bem como dos vários riscos que enfrentarão nos próximos tempos. A lista de riscos é longa: fracas perspectivas macroeconómicas, continuação das baixas taxas de juro, elevado endividamento de empresas e famílias, possibilidade de fuga dos investidores para paragens que garantam maiores retornos, peso excessivamente elevado de empréstimos imobiliários e de títulos de dívida soberana, exposição elevada a países como Angola, Brasil e China, etc.

Menos claro é o motivo específico pelo qual o PR considera que um governo do PS dá, a este nível, garantias inferiores às que seriam dadas por um governo PSD/CDS - a quem Cavaco não hesitou em dar posse, sem quaisquer condições. Note-se que os acordos entre PS e os partidos à sua esquerda não incluem quaisquer medidas relevantes neste domínio, o que é sinal de que os socialistas estão pouco dispostos a considerar penalizações fiscais específicas sobre a banca (como várias vezes foi defendido pelos partidos à sua esquerda). Note-se também que, embora o sistema bancário português esteja a precisar de uma limpeza semelhante à que aparentemente anda a ser pensada em Itália (o que implicaria perdas para os donos dos bancos), nada indica que o PS estivesse disponível para a fazer em Portugal. Por fim, o desafogo que os acordos entre os partidos de esquerda criam junto da classe média só pode ser boa notícia para uma banca que está afogada em crédito mal-parado, devido ao prolongamento da crise económica em Portugal.

Talvez os banqueiros tenham receio que o Estado português queira ter uma palavra a dizer sobre a gestão dos bancos cada vez que usar dinheiro dos contribuintes para lhes dar ou emprestar. É normal. Já não é tão normal que o Presidente da República Portuguesa pense da mesma forma que os banqueiros a este respeito.

Enfim, se calhar o problema é só meu. Provavelmente, continuar à procura de racionalidade nas acções de Cavaco é uma pura perda de tempo.

A geringonça e a avantesma


«A caracterização do eventual governo do PS como uma “geringonça” foi feita por Vasco Pulido Valente e repetida com evidente gozo por Portas, dando o mote para vários deputados do CDS que costumam repetir o chefe. Muito bem, não me parece que haja qualquer problema em aceitar a classificação, tanto mais que ela não é tão pejorativa como eles pensam. Mas proponho outra simétrica para o governo PSD-CDS, muito menos ambígua e que não há imaginação criadora que lhe encontre qualquer sentido positivo: a avantesma. A geringonça apareceu para que não nos assombre a avantesma.
Geringonça não é uma designação tão má como isso. É verdade que é "coisa mal feita, caranguejola, obra armada no ar". Mas perguntem ao MacGyver e dêem-lhe um canivete suíço. A primeira máquina a vapor, a primeira lâmpada, o avião dos irmãos Wright podiam ser designadas como geringonças, mas as máquinas a vapor, as lâmpadas e os aviões que vieram a seguir já não eram geringonças. É que, para uma maioria dos portugueses, que votou "contra o governo" – insisto a única interpretação sólida dos 62% de votos –, ficarem lá "os mesmos", seria o pior dos pecados e é essa força invisível e visível que permitiu a geringonça. É também por isso que o cimento da geringonça não está nos acordos, nos "papéis" como diz pejorativamente a direita, mas no que permitiu que eles se fizessem.
Vamos à avantesma. Os nossos dicionários são inequívocos "aparição de uma pessoa morta", "pessoa ou objecto assustador, disforme ou demasiado grande". Morto está, mas o Presidente da República ainda lhe permite que mexa, para ainda maior susto dos portugueses. Mete medo? Mete e ainda devia meter mais. Todo o processo da avantesma, o seu "conceito" como agora se diz, está bem explícito na história da devolução dos 35% da sobrecarga do IRS, que agora se verifica ser zero. Porque é que a história da devolução do IRS fantasma está na massa do sangue da avantesma? Porque foi isso que reiteradamente semana sim, semana sim, a coligação fez nestes últimos quatro anos e continua a fazer como quem respira.»

José Pacheco Pereira

sábado, 21 de novembro de 2015

De regresso, ao século XXI



«As intervenções do PSD e do CDS são reveladoras do ajuste de contas que PSD e CDS queriam fazer com o referendo de 2007 e com a decisão soberana do povo português relativamente à despenalização da interrupção voluntária da gravidez. À boleia da taxa moderadora, o que vem atrás é um aspecto revanchista, retrógrado e profundamente reaccionário relativamente à emancipação e autonomia social das mulheres. (...) Um governo que durante quatro anos atirou para o desemprego, para a precariedade, para a pobreza e para a emigração milhares de mulheres, no último dia da anterior legislatura aprovou uma outra medida que humilha as mulheres. Uma medida de menorização das mulheres e da sua livre escolha quanto à saúde sexual e reprodutiva. PSD e CDS quiseram impor um ajuste de contas com o que foi uma conquista progressista das mulheres e do país. O problema do aborto é uma matéria de saúde pública e por isso mesmo representou uma conquista civilizacional para o nosso país».

Rita Rato



«Neste dia, em que as crianças estão a ouvir-nos, estamos a reparar a ofensa que a casa da democracia lhes dirigiu na legislatura passada, negando-lhes o direito (...) de a lei reconhecer quem já é seu pai ou sua mãe. Contra o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, contra o consenso científico favorável à adopção e à co-adopção, contra a posição oficial do Instituto de Apoio à Criança, sujeitando tentativamente os laços afectivos permanentes de crianças de carne e osso a um referendo. (...) Agredindo famílias concretas, já existentes, desesperadas por segurança jurídica. (...) Aprovar este projecto de lei é acabar com o Estado que faz campanhas anti bulling homofóbico, ao mesmo tempo que, num bulling legal, diz a gays e a lésbicas e a crianças "tu não és pai", "tu não és mãe", "vocês não podem adoptar", "não reconhecemos a tua mãe como tua mãe", "não reconhecemos o teu pai como teu pai". Aprovar este projecto de lei é afirmar uma sociedade que integra e não expulsa, que abraça a diversidade e não impõe modelos únicos de família. Que respeita a diferença contra o medo da diferença».

Isabel Moreira

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Soberano


Do abismo certo ao caminho estreito

1. Se dúvidas existissem de que Cavaco Silva permanece fiel à receita da austeridade «além da troika» e do ajustamento «custe-o-que-custar», elas teriam ficado dissipadas com as declarações que produziu na passada terça-feira, quando se referiu: ao «acesso fácil aos mercados financeiros»; aos «cofres cheios» de Maria Luís Albuquerque; à «economia [que] está a crescer» e ao «desemprego a cair». Sobre a sangria migratória, o alastramento da pobreza e o aumento das desigualdades, nem uma palavra. Como quem vende a retalho banha da cobra fora de prazo, o presidente colou-se uma vez mais à propaganda da coligação sobre o sucesso da austeridade e do programa de «ajustamento».


2. Ao sugerir que o país deve continuar no trilho de uma economia assente em baixos salários e no «empobrecimento competitivo» - em nome da obediência doentia e acrítica às regras europeias de disciplina orçamental - Cavaco parece não dar conta de alguns sinais interessantes que chegam do exterior, e que se somam à naturalidade com que «os mercados» acolhem a formação de um governo PS, com o apoio da maioria parlamentar que resultou das eleições de 4 de Outubro. Neste sentido, talvez o presidente devesse prestar mais atenção a declarações como as de Vítor Constâncioa flexibilidade do PEC deve ser explorada totalmente»), ou ao recente reconhecimento, pelo BCE, de que «a política monetária está a falhar no essencial».

3. Mas não. Cavaco Silva prefere continuar a agitar fantasmas, rodeando-se em Belém de economistas - como Daniel Bessa - que se dispõem a rejeitar a vertente do «consumo interno», sem sequer reconhecer que a receita que defenderam, no início da crise, redundou num fracasso. Como bem lembra Pedro Lains, «repetir o repetido não faz uma verdade. A economia tem sempre pelo menos dois lados, oferta e procura, poupança e investimento, o interno e o externo e o que interessa são políticas equilibradas que tomem isso em consideração. É isso que o Programa económico do PS traz. O programa da troika adoptado com vigor pelo anterior Governo, esse, era seguramente para consumo externo. E falhou».

4. E «de onde vem o dinheiro?», perguntam muitos dos que querem que o eleitorado encare o acordo à esquerda como uma perigosa aventura de radicalismo e irresponsabilidade, congeminada na suposta capitulação do PS perante os devaneios do BE, PCP e PEV. O José Gusmão já respondeu, em artigo no Público que merece ser lido na íntegra. Detalhando as principais alterações introduzidas no programa eleitoral do PS, dele sobressaem, entre outras, três ideias essenciais: o acordo «foi negociado com base na premissa de que os compromissos financeiros de Estado português seriam observados»; as medidas acordadas «visam concentrar o estímulo económico nos rendimentos mais baixos, em detrimento de mais reduções contributivas para os empregadores»; «a folga orçamental obtida na TSU permitirá acomodar a mais do que provável derrapagem orçamental de 2015, protegendo por antecipação os rendimentos do trabalho e das pensões e o Estado social». Deixem pois de insistir em que não há alternativas consistentes e credíveis à agenda ideológica da austeridade. Elas existem, mesmo que o caminho seja estreito.

Queens of the Stone Age



Mais radical

Tudo indica que a coligação PàF ainda não percebeu bem o que lhe aconteceu. Que foi o seu neoliberalismo militante e radicalismo desenfreado que a puseram no lugar onde hoje se encontra. Descontente com Marcelo Rebelo de Sousa, por este não se comprometer com a realização de eleições antecipadas, parece que a direita anda à procura de um candidato «com um discurso mais radical», que dê voz à sua «indignação» e que também esteja disponível para adaptar os princípios democráticos e constitucionais às conveniências de cada momento. Isto é, à procura de um fato mais talhado à sua medida, igualmente radical, não percebendo que esse mesmo fato corre o risco de ficar arrumado a um canto, como sucedeu à própria coligação.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Enigma da economia portuguesa

O mais recente boletim estatístico publicado pelo Banco de Portugal tem um enigma. Em 2015, a economia cresceu, os resultados operacionais das empresas (EBITDA) melhoraram, as famílias estão numa posição financeira mais confortável e as taxas de juro caíram. A precariedade deste crescimento fica para outro texto. Neste contexto, o que impressiona é o contínuo crescimento do crédito bancário malparado de empresas e famílias. Não faz sentido.

A minha única explicação encontra-se na possibilidade de os balanços da banca continuarem repletos de activos “tóxicos”, cujas perdas são assumidas "às pinguinhas" de forma a não prejudicar resultados anuais. Nesta situação refinanciam-se empresas falidas, ao mesmo tempo que não se arrisca nada em novo crédito (daí a queda do volume de crédito neste contexto). Conclusão, temos uma banca “zumbi”, enorme lastro (mais um) a qualquer recuperação robusta da economia portuguesa, que, de vez em quando, cai, como aconteceu com o BES.

E, no entanto, é aos diferentes banqueiros, do Montepio à Caixa Geral, que o Presidente da República recorre para se aconselhar.

Memória (XXI)


«Desde 1982, com a revisão constitucional, os governos deixaram de responder politicamente perante o presidente da República. Ora, se um governo que passa na Assembleia, partindo da hipótese que passa na Assembleia, não responde perante o presidente da República - e só responde perante a Assembleia da República - então não fazem qualquer sentido governos de iniciativa presidencial».

Cavaco Silva, (Julho de 2013)

Jogos com fronteiras

“As medidas de segurança vão aumentar os gastos públicos, mas a segurança é mais importante do que as regras orçamentais da União Europeia”, afirmou Hollande, numa declaração de guerra, depois de ter decretado o estado de excepção. Tudo é mais importante do que regras estúpidas.

Como sublinha Jacques Sapir, a propósito do estado de excepção decretado por Hollande, estamos perante uma afirmação soberanista com amplas ramificações: soberano é quem define a regra e sobretudo a sua excepção, quem define e redefine as prioridades que valem para um certo território e para uma certa população num certo contexto. Isto não quer dizer que concordemos com as prioridades definidas, claro. Quer dizer que cabe a cada comunidade política, idealmente democrática, aos seus legítimos representantes, defini-las. A crise revela o valor da soberania.

Entretanto, fiquem com outra oportuna e complementar reflexão deste economista político sobre o papel das fronteiras: “Falar do regresso das fronteiras implica presumir que temos vivido num mundo sem fronteiras, o que não é evidentemente verdade. A questão está mal formulada. A verdadeira questão não é a de saber se estamos a favor ou contra as fronteiras, mas para que é que estas servem. A fronteira é, na realidade, a condição da democracia. É ela que permite associar decisão colectiva e responsabilidade.”

A decisão colectiva democrática sobre quem incluir e as razões para o fazer, sobre a gestão política democrática da integração internacional, sobre os fluxos económicos a controlar, pressupõe fronteiras. A utopia de um mundo sem fronteiras, sem Estados soberanos, é uma distopia custosa, que só serve para fomentar, na prática, o poder dos Estados mais fortes e o poder de um certo capital: perguntem às vítimas dos “estatocídios” cometidos pelo imperialismo, perguntem aos que são prejudicados pelo euro-imperialismo, pelas crises sucessivas causadas pela liberdade de circulação internacional de capitais, dada a abdicação de tantos países nesta área.

«os economistas» e «os analistas»


1. Nada de novo. Basta lembrar, entre muitos outros exemplos possíveis, um telejornal de Outubro de 2010, em que José Rodrigues dos Santos se referia às declarações de Ferraz da Costa, João Salgueiro, Fernando Ulrich e Mira Amaral como representando a opinião de «os economistas» (na altura a propósito da ausência de acordo entre o governo socialista e o PSD relativamente ao Orçamento de Estado). A tendência para tomar uma parte como o todo, escolhendo a dedo para reforçar o efeito de ressonância e assim favorecer a cultura do pensamento único, constitui de facto, desde há muito, uma poderosa fonte de alimentação do TINA (There Is No Alternative).

2. Oscilando igualmente entre a simples preguiça jornalística (associada ao mau hábito de convidar sempre os mesmos para falar) e um défice intencional de pluralismo no debate (com o objectivo de limitar, manipular e condicionar a informação que chega à opinião pública), é muito frequente encontrar também este tipo de enviesamentos na imprensa económica especializada, sobretudo na análise das oscilações da bolsa e dos mercados de capitais. Recorrendo-se nestes casos à figura, ainda mais obscura, de «os analistas».

3. Um exemplo recente, particularmente escabroso, foi protagonizado pelo Negócios, que tentou sugerir que a queda acentuada das taxas de juro da dívida portuguesa nos últimos dias, associada à manutenção do rating de Portugal acima de «lixo» (pela DRBS), se devia - segundo «os analistas» - à proposta «de Pedro Passos Coelho sobre "a revisão constitucional, de modo a permitir eleições antecipadas antes de Abril"»... Nada mais verosímil, claro.
O que nos vale é que temos, para estas coisas, jornalistas que não alinham em manipulações nem em fantasias e que vão mesmo à fonte. Tendo o Expresso contactado Adriana Alvarado (da própria DRBS), a resposta não podia ser mais clara: «Falámos com Mário Centeno do Partido Socialista na semana passada. Ele garantiu o compromisso com a União Europeia e a política económica europeia, [o] que foi crucial para a confirmação do rating".

O que mais impressiona já nem é, portanto, o despudor com que se fazem deturpações interesseiras e fretes políticos sinistros, sem qualquer escrúpulo de rigor «técnico» e credibilidade jornalística. O que mais impressiona é mesmo haver quem pense que não passamos todos de uma cambada de trouxas, incapazes de perceber as manobras mais toscas de desinformação deliberada.

Adenda: Ainda a propósito de «os economistas», atente-se na lista de nomes dos que vão ser hoje ouvidos por Cavaco Silva, na sua infindável operação de «consulta» e «recolha de informações»: Vítor Bento, Daniel Bessa, João Salgueiro, Luís Campos e Cunha, Teixeira dos Santos, Bagão Félix e Augusto Mateus. Julguem por vós mesmos, descontando um par de nomes que apenas servem para disfarçar o ramalhete de economistas que acham que o país real mora numa folha de excel. É caso para dizer: «diz-me a opinião queres ter e eu digo-te quem deves convidar para ouvir».

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Neoliberalismo


Porque o neoliberalismo não é um slogan, começa amanhã um oportuno e plural colóquio internacional na Universidade da Beira Interior. A convocatória e o programa estão disponíveis. A entrada é livre.

A memória é um país distante (II)

Refugiados polacos no Irão, em 1942 (foram 116 mil)

«Há um senhor na Polónia que diz que os refugiados sírios deviam "formar um exército" e "combater para libertar o seu país". Chama-se Witold Waszczykowski e parece que vai ser Ministro dos Negócios Estrangeiros. Gostaria de mandá-lo à merda. E de lhe dizer que, quando a Polónia voltar a ser atacada, farei tudo o que estiver ao meu alcance para que o país onde vivo acolha o máximo possível de refugiados polacos.»

Pedro Rodrigues

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Do nosso descontentamento


O euro só trouxe estagnação a Itália. O PIB real está agora ao mesmo nível do início de 2000, um ano depois do lançamento do euro. O PIB atual está 9%, abaixo do nível pré-crise, no início de 2008. Se o país fracassar a recuperar fortemente desta recessão, é difícil ver como é que poderá ficar na zona euro. A certo ponto pode bem ser do indiscutível interesse económico do país sair e desvalorizar a moeda. Por isso, quando perguntamos se a recuperação económica é sustentável, não estamos a ter uma conversa técnica sobre economia. Estamos a falar sobre o futuro da Itália na Europa. 

Wolfgang Munchau, A recuperação económica de Itália não é o que parece, Financial Times (tradução no DN).

Onde está escrito Itália, podia estar escrito, mais coisa, menos coisa, outro país. Qual é o país, qual é ele? Uma pista: uma década e meia também já perdida em termos de crescimento, mas acompanhada de um nível de endividamento externo sem precedentes e isto ao contrário do caso italiano, onde o endividamento é fundamentalmente interno (dívida para uns, activo para outros do mesmo país); ou seja, uma dependência ainda maior do que a italiana no seio do mesmo quadro económico e monetário disfuncional – ou, melhor, funcional só para uma dominante minoria…

Estudantes de economia põem um professor, um jornalista e cinco políticos da nova geração a discutir o futuro do país

É na 5ªfeira às 18h, são tod@s bem-vindos.


segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Lutas

O bilionário Warren Buffet disse um dia: “a luta de classes existe e a minha classe está a ganhá-la, mas não devia”. Devia e deve, garante implicitamente a reacção nacional, que vale a pena continuar a observar, desta vez pelo teclado de Paulo Ferreira. Este só tem de fazer um pouco mais de esforço para reconhecer explicitamente as tais lutas: “Os discursos são e serão continuamente contraditórios porque a CGTP e a audiência do Financial Times têm visões opostas do mundo e interesses divergentes.” Há até quem possa ocupar lugares contraditórios, mas não a reacção nacional: objectiva e subjectivamente aliada do capital financeiro maioritariamente estrangeiro; esta foi e é a sua força, ainda será um dia, tenhamos confiança, a sua fraqueza.

Entretanto, o Palácio de Belém até parece uma espécie de “câmara corporativa” e com um enviesamento de classe a condizer: é que por para cada confederação sindical ouvida por Cavaco no final da semana passada houve três associações patronais. Algumas nem sequer fazem parte da concertação social democrática. Vale tudo para criar desequilíbrio social e político.

Para desequilibrar mais, Cavaco ainda teve tempo para ouvir uma consultora internacional, que lhe apresentou os resultados do trabalho “Portugal: Escolhas para o Futuro”. Isto é tão simbólico: afinal de contas, foi Cavaco Silva que deliberadamente ajudou a destruir a inteligência colectiva de natureza técnica que havia na administração pública, nos ministérios ligados à indústria, por exemplo, para dar campo a este tipo de parasitas privados, os que se alimentam do, e alimentam o, esvaziamento do Estado.

Sim, as lutas de classes, assim no plural, têm muitas dimensões, protagonistas, fracções, alianças e símbolos. E não, não estou nada convencido que Cavaco vá cumprir a Constituição. Afinal de contas, Cavaco tem sido um protagonista político maior do seu esvaziamento desde os anos oitenta, um garante da dependência nacional: “Porque sei muito bem, muito bem o que aconteceu em Portugal quando as orientações adequadas não foram cumpridas”, afirmou hoje numa visita à Madeira que incluiu uma passagem pelo seu inferno fiscal. Também aqui houve e haverá lutas…

Vistos a partir do estrangeiro, os contornos de um golpe de Estado tornam-se ainda mais nítidos, não é?


«O presidente português, Aníbal Cavaco Silva, desencadeou na passada quinta-feira um debate sobre o futuro da democracia europeia ao reconduzir o primeiro ministro de centro-direita, apesar de os resultados eleitorais terem dado a maioria dos assentos parlamentares a três partidos de esquerda. No seu discurso, o presidente lembrou que o partido com mais votos sempre formou governo (...) [referindo] contudo que a sua decisão era determinada pelo desejo de evitar confrontos com a política fiscal da zona euro, mais do que por considerações sobre as tradições políticas portuguesas. (...) O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista são considerados "eurocépticos", mas o Partido Socialista, que se dispõe a formar governo, está firmemente comprometido com a permanência na zona euro. (...) António Costa Pinto, professor de Ciência Política, [considera que] "o presidente não pode excluir, da democracia portuguesa, dois partidos que representam um milhão de votos e 20% do eleitorado". Se o fizesse, isso significaria que "nos dias que correm, e em particular na periferia da Europa, os partidos que não apoiem as estritas orientações políticas da zona euro não contam".»

The Huffington Post, Brechas na democracia portuguesa sob o peso da austeridade

«Passados apenas onze dias após a sua constituição, o governo de Passos Coelho foi derrubado anteontem pela esquerda portuguesa, através de uma moção que deixou evidente o facto de os conservadores não terem uma maioria parlamentar suficiente. (...) Extravasando as funções de neutralidade que lhe são exigidas pelo cargo, o Chefe de Estado português teimou que seria o seu correligionário Passos Coelho a formar Governo. Neste momento, Cavaco tem duas opções: manter um executivo em funções até que se possam voltar a realizar eleições - em Junho de 2016 - ou atribuir o governo à esquerda. As regras do sistema parlamentar luso e o respeito pelos resultados obtidos nas urnas exigem que Cavaco tome esta segunda opção.»

El Mundo, Cavaco deve respeitar a maioria da aliança de esquerda

«O primeiro ministro lusitano, demitido pelo parlamento na passada terça-feira, solicitou uma revisão urgente da Constituição para permitir novas eleições. (...) A recusa da direita em aceitar a sua derrota no parlamento explica-se pelo sentimento de vitória na noite de 4 de Outubro. Mas os partidos de esquerda não podem ser considerados como agentes de um "golpe de Estado". É verdade que esse acordo [entre PS, BE, PCP e PEV] não foi anunciado durante a campanha, mas a direita portuguesa esquece-se que o PS descartou claramente qualquer governo de "bloco nacional" com a direita. A legitimidade de um governo minoritário, em votos e em deputados, não pode ser considerada superior à de um governo cujo apoio parlamentar assenta na maioria de mandatos e de votos. Mesmo que o projeto desse governo seja incerto. Nos sistemas parlamentares este tipo de alianças é bastante comum.»

La Tribune, Portugal: A direita quer alterar a Constituição para permanecer no poder

Para lá destes ecos, na imprensa internacional, sobre o destrambelhamento da direita e a lógica de golpe e sabotagem que tem norteado a actuação de Cavaco Silva, vale a pena ler este texto de Francisco Louçã, no Público de hoje. Procurando descortinar as razões que levam Cavaco a nada decidir, passados já 43 dias após as eleições, Louçã avança com algumas hipóteses para explicar a demora do presidente: «nunca ter incluído o [presente] cenário nos seus quadros perfeitos e exaustivos»; a «simples mesquinhez [em não admitir] um governo com alianças à esquerda»; a consciência de que «esta é a [sua] última decisão que ficará registada nos livros de história»; ou ainda a hipótese de que Cavaco simplesmente «não sabe mesmo o que fazer», sabendo apenas «o que não quer (um governo Costa)» ou «o que não lhe permitem (um governo Passos e Portas em gestão)». Prolongando assim, sem alternativa, «a angústia da dúvida».

domingo, 15 de novembro de 2015

As eleições antecipadas estão aí - as presidenciais

Tudo indica que a demora de Cavaco Silva visa mais irritar António Costa e a esquerda do que ter efeitos práticos. Pelo menos, é isso que fica ao ler os editoriais e os artigos de opinião no Expresso.

Pedro Santos Guerrreiro fala já do futuro programa do governo, Ricardo Costa aborda "o nervosismo da direita" e o seu pessimismo que não se concretizou. Daniel Bessa sempre tão encostado à direita nos últimos anos já começa a deslizar suavemente, em tom cordato e distante, para a aceitar como real o acordo entre PS, PCP, Bloco e PEV ("Lançados os dados, os resultados não tardarão; cá estaremos para os conhecer"). Martim Avillez discute os pormenores do imposto sucessório, aquele tema tão caro aos pobres ricos: "E a habitação? É considerada riqueza (e portanto taxada) ou património cultural da familia"? João Vieira Pereira dá conselhos ao futuro ministro das Finanças, Mário Centeno: "Escolha a sua própria equipa. Não deixe que seja o partido a impingir-lhe os secretários de Estado". Só Henrique Raposo fala ainda da incapacidade da esquerda em pensar em tempo de retracção e como transforma essa incapacidade em ódio - "A esquerda esta mergulhada em ira há vários anos". E não nota que até fez uma confissão: "O último mês deixou-me revoltado". O ódio é lixado.

The Durutti Column: La douleur



sábado, 14 de novembro de 2015

Triste Europa

Ainda há dias estive em contacto com uma antiga colega libanesa. Conversei com ela por causa das duas bombas que foram detonadas em Beirute. Foram mais de 40 mortos. Mas mais do que o atentado - queixava-se ela - é muito penoso o contínuo sofrimento causado pelo permanente estado de insegurança do país. Um sentimento profundo de depressão. E o Líbano nem sequer está em estado declarado de guerra.

E são tantos os exemplos dos crimes contra a Humanidade que não têm dias inteiros nas nossas, televisões, que passam uns minutos enquanto jantamos. Veja-se apenas este caso do Iraque para ver as manifestações que nunca fizemos: Body-count, de 2003 a 2015. Por arma, por incidente, por número de mortos, por origem de quem matou.

E depois assusta esta reacção instantânea de resposta pelo lado nacionalista. Aquela imagem das pessoas a sair do estádio a cantar a Marselhesa - acompanhada pela CNN a discutir se não se devem acelerar os esforços para colocar "botas no terreno" ou as tarjas nas imagens televisivas a dizer "Terror em Paris" (tal como aconteceu em 2001 - "guerra contra o terror") - lembra-me como milhões de franceses foram lançados para as trincheiras da 1ª Guerra Mundial, mal vestidos e mal preparados, animados pelo espírito nacionalista de defesa da pátria, para uma guerra que não era realmente sua.

Em cada época, cada guerra é devidamente preparada para enlevar a população. Agora é Hollande, um político socialista, que acaba de afirmar que a guerra foi declarada a França, quase se parecendo com George Bush em 2001, prometendo um castigo exemplar ("A França foi atacada cobardemente"). Espera-se mais uns milhões de contratos de armamento, uma expectável maior ousadia militar. Mais mortes a prazo. Sobre a triste figura feita pela França na Síria, leia-se o último número de Le Monde Diplomatique. Aqui pode ver-se como a diplomacia francesa arquiva a sua relação com a Síria.

E tudo isto acontece precisamente no mesmo momento em que terminavam as conversações internacionais em Viena, nomeadamente com a administração norte-americana e o governo russo, prevendo, num acordo de 3 páginas, esforços para um cessar-fogo na Síria, um governo de transição em 6 meses e eleições em 18 meses. Seguir-se-ão, como afirmou John Kerry, conversações para definir quem é terrorista ou não, mas que o grupo Estado Islâmico está "definitivamente nessa categoria". Como acabar com ele, ficou indefinido. Isto depois de 250 mil mortos e 11 milhões de refugiados!

Não sejamos como eles


«Perante o terror em Paris, o óbvio acontece. "Também pode acontecer cá porque abrimos as portas aos terroristas" - já li, em comentários, hoje. Há quem não consiga entender que é precisamente disto que os Refugiados fogem. Deste total desrespeito pela vida, desta violência absurda. E que os terroristas estão onde querem e não se deslocam de barco, arriscando morrer afogados. É isto que eles querem. Sabem que o medo gera comportamentos irracionais. Não sejamos como eles, por favor. Não cedamos ao medo e à desumanidade. Por favor. Sejamos gente.»

Rita Ferro Rodrigues

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O teste da "austeridade progressista"


O governo da direita caiu. Evidentemente, não passava pela cabeça dos líderes da coligação PàF que, tendo ganho as eleições, não pudessem governar o país. Muito mais reveladora foi a reacção dos media, com destaque para os jornalistas das televisões, que mandaram às malvas o seu código deontológico sem qualquer pudor ou disfarce. A falta de pluralismo na televisão é um problema que se arrasta há muitos anos. Porém, a viragem à esquerda do PS suscitou uma histeria que ultrapassou tudo o que já tínhamos visto. Recuperar o pluralismo nos media exige uma reforma estrutural que o novo governo – esperando que o bom senso prevaleça em Belém – deve iniciar no imediato, a bem da higiene no espaço público e da saúde da nossa democracia.

A conclusão de um acordo de incidência parlamentar que permita ao PS governar com o apoio da esquerda iluminou o rosto de muitos portugueses. Na expectativa do desanuviamento que se avizinha, é manifesta a alegria que invadiu inúmeras famílias de baixos rendimentos, para não falar dos militantes de base dos partidos da nova maioria e dos cidadãos que sempre sonharam com a “unidade das esquerdas”. Em largos sectores da população, a sensação de beco sem saída que os anos de chumbo da austeridade produziram na sociedade portuguesa, uma verdadeira anomia, está a ser substituída por um sentimento de esperança em melhores dias. Há até sinais de alguma euforia que só não é mais evidente porque ainda não conhecemos a decisão que vai tomar o Presidente da República.

Admitindo que a Constituição da República Portuguesa será respeitada, teremos em breve um governo a braços com uma tarefa muitíssimo pesada: a de virar a página da austeridade através de uma política orçamental que respeite os limites impostos pelas regras da zona euro. Como disse Mário Centeno, o muito provável novo ministro das Finanças, trata-se de seguir a trajectória exigida por Bruxelas, embora a um ritmo mais lento. O modelo dos economistas do PS diz-nos que a nova versão do seu programa mantém o saldo orçamental abaixo dos 3%, uma condição essencial para não despertar a fúria da Comissão Europeia, do Eurogrupo e das agências de rating. Por outro lado, sabe-se que os partidos da nova maioria aceitam rever as suas escolhas orçamentais para acomodar os impactos da crise bancária que se avizinha ou de outros imprevistos. Não acredito que a curto prazo surjam tensões sérias entre os signatários do acordo.

A maior dificuldade que o novo governo terá de enfrentar reside na orientação que Bruxelas dará ao Orçamento português. Admitindo que na actual conjuntura será aceite um deslizamento nas metas do défice, não parece muito difícil alcançá-las se o governo puder executar uma redistribuição dos sacrifícios da austeridade que resulte num aumento do rendimento disponível das classes sociais com maior propensão ao consumo. Contudo, não é seguro que Bruxelas aceite facilmente esta mudança para uma “austeridade progressista”. Importa lembrar que o ordoliberalismo inscrito nos tratados, e na prática da CE e do Eurogrupo, não aceita esta política económica com o argumento de que um crescimento económico apoiado no consumo agrava o desequilíbrio externo através do aumento das importações. Claro que o novo ministro pode sempre contra-argumentar que esse aumento do consumo ocorrerá sobretudo nas classes de rendimentos mais baixos, onde o conteúdo em importações será mais modesto. Mas, dado o enviesamento político dos economistas do eixo Bruxelas-Berlim-Frankfurt, não se espera um acolhimento favorável ao primeiro Orçamento português. Bem pelo contrário.

Acresce o facto de, no âmbito da supervisão dos orçamentos nacionais, a CE estar agora mandatada para exigir a execução de reformas estruturais que, do seu ponto de vista neoliberal, seriam favoráveis ao potencial de crescimento da economia portuguesa. A CE assumiu um compasso de espera nas suas exigências de reformas para favorecer a eleição da PàF mas, surpreendida e desagradada com o volte-face no governo do país, irá certamente voltar à carga com exigências que a esquerda dificilmente poderá aceitar.

Assim, o rumo que o país tomará nos próximos anos vai depender crucialmente da forma como a nova maioria vier a enfrentar o “mau ambiente” em Bruxelas e das escolhas que o governo alemão, com Merkel em baixa e Schäuble em alta, vier a fazer no quadro de uma quebra das exportações alemãs para os chamados países emergentes. Pretenderá recuperar o mercado europeu? Haverá tolerância para uma “austeridade progressista” na periferia?

(O meu artigo no jornal i)

Memória (XX)


«(Da série recordar é viver). A capa do Expresso a uma semana das eleições. Para todos quantos, e são quase todos à direita, passam os dias a dizer que nunca se falou na campanha num possível acordo entre os partidos de esquerda, nem na possibilidade de um governo minoritário de direita ser chumbado. Nunca, jamais. Todos sabemos que essas questões nunca foram tema de campanha porque, como se lembram, a última semana foi passada a discutir a existência de unicórnios e a importância dos gambozinos para a economia do país. Andamos é todos esquecidos.»

Pedro Sales (facebook)

Leituras


«A única praxe constitucional existente entre nós em matéria de formação de governos depois das eleições – ou seja, a de que “quem ganha as eleições tem direito a formar governo” - foi inteiramente respeitada. (...) O que não existe é uma outra alegada praxe, segundo a qual os governos têm o direito de "passar" na AR, mesmo quanto minoritários. Sempre houve moções de rejeição. O primeiro governo minoritário do PSD em 1985 foi alvo de uma moção de rejeição do PS, que só não vingou porque o PRD não a secundou. O PSD (salvo em 1999) e o CDS não têm proposto a rejeição de governos minoritários do PS pela simples razão de que nunca tiveram a necessária maioria absoluta para a aprovarem. Tal "convenção" é, portanto, uma conveniente invenção, sem nenhum fundamento.»

Vital Moreira, Uma nova "convenção constitucional"?

«Primeiro, era a Alternativa, onde está a Alternativa? Veio, através de um Grupo de Trabalho. Grupo de trabalho? Queremos é as contas, onde estão as contas? Vieram as contas, com “modelo macroeconómico” e tudo. Contas, mas quais contas? Queremos o Programa, onde está o programa eleitoral? Lá veio o Programa Eleitoral. Tudo a seu tempo, com o tempo de quem tem tempo. Depois, o Acordo onde está o Acordo? Nunca mais vem o Acordo? Lá vieram três acordos. E um Programa de Governo. Três acordos? Estão loucos? Irresponsabilidade! Queremos um Acordo, não três, não uma manta-de-retalhos. Onde está o Acordo? Queremos o Acordo! Já se está a ver que virá aí uma resposta à altura. Desta vez, possivelmente, dirigida em pessoa ao Presidente da República, que é o grande farol de tudo isto.»

Pedro Lains, Não facilitem tanto a vida ao Costa

«Uma coisa é não se querer uma solução que nos desagrada ou não se ter grande confiança nela, outra são as regras do jogo. Ou seja, podia-se desejar que o Presidente da República obrigasse o PS a votar de acordo com as vontades da PAF, mas Cavaco não o pode fazer. Também se pode querer muito que Cavaco obrigue o PS, o BE e o PCP a assinar um acordo como ele quer, mas, por muito que ele queira, não tem poderes para isso. (...) É certo, porém, que no caso de indigitar Costa a responsabilidade do que vier a seguir será do líder do PS e dos outros dois partidos; se mantiver a PAF no poder é Cavaco que tem de responder por tudo o que vier a acontecer nos próximos tempos. Faça favor de decidir, Sr. Presidente, mas rápido, por favor, as alternativas não são muitas.»

Pedro Marques Lopes, Desejos e realidade

«Cavaco Silva avisou os portugueses, em devido tempo, de que não estava no seu horizonte a opção por governos de iniciativa presidencial. Invocando a revisão constitucional de 1982 para lembrar que, desde então, os governos respondem perante, e só, a Assembleia da República, Cavaco Silva sublinhou que "não faz qualquer sentido" que, vinte anos depois, possa ser congeminado um governo indicado pelo chefe de Estado. Acresce que, em vésperas das eleições legislativas, Cavaco Silva entendeu que um acordo de incidência parlamentar daria a estabilidade necessária e suficiente para assegurar a governabilidade de que o país carece: "Em Portugal, o compromisso [para a formação do Governo] pode também revestir a forma de acordo de incidência parlamentar".»

Miguel Abrantes, Somos todos Cavaco

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Atenção, atenção

1. Atenção, atenção: não deixem de ler o artigo do Ricardo Paes Mamede no Le Monde diplomatique - edição portuguesa deste mês – Prioridades para um governo apoiado pelas esquerdas em Portugal. Na linha do seu livro, claro e distinto, este é um artigo sobre economia e política económica nacionais que articula e desenvolve três reflexões que o Ricardo já fez neste blogue e que vale sempre a pena revisitar neste novo e empolgante contexto: o triângulo das impossibilidades da política orçamental; a coligação de direita tem um projecto claro e coerente para o país; um terreno minado por todos os lados.

2. Atenção, atenção: o problema central, como sublinha Pedro Lains, não é um problema de finanças públicas, mas sim um problema relacionado com o constrangimento externo, da balança corrente ao endividamento externo brutal, um problema de falta de instrumentos para fazer com que a dinamização necessária do mercado interno, do consumo ao investimento, não se traduza numa deterioração de um saldo externo entretanto precariamente equilibrado à custa da degradação das capacidades produtivas nacionais e das condições de vida das classes populares.

3. Atenção, atenção: útil análise de Francisco Louçã neste contexto – “Faltam ainda respostas estruturais para o investimento, para gerir a conta externa e para melhorar a balança de rendimentos, o que só se fará com uma reestruturação da dívida. E, sem ela, não se vê como possa haver suficiente margem de manobra para resistir a pressões externas e para relançar o emprego. É preciso investimento e criação de capacidade produtiva e o Estado tem que ter um papel estratégico na resposta à prolongada recessão que temos vivido.”

4. Atenção, atenção: estamos sobretudo dependentes do pós-democrático BCE, o soberano monetário, o condutor dos mercados de dívida, por muito que jornais económicos se esforcem por destacar as reacções dos especuladores e as “análises” dos seus representantes bancários face ao efeito de um governo apoiado pelas esquerdas, disfarçando mal as suas preferências ideológicas (vejam como noticiam as subidas nos juros no mercado secundário e como noticiam as descidas): como sublinhou, o Nuno Teles, os vossos desejos não são notícia; isto não quer dizer que não possa existir algum efeito modesto; mal seria, aliás...

5. Atenção, atenção: está um golpista e sabotador em Belém. Neste momento, é a fonte primacial de instabilidade política.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Os limites da «economia do empobrecimento competitivo» (I)

Duas ou três notas adicionais, a propósito do «inverno demográfico» como pretexto para prosseguir a agenda dos baixos salários e do empobrecimento competitivo, em que a maioria de direita se empenhou ao longo dos últimos anos, sob a manto das «imposições» do memorando de entendimento assinado com a troika.

1. Para se ter uma noção mais precisa de como a crise e a austeridade tiveram um impacto relevante na demografia, acelerando e agravando de modo muito significativo tendências de evolução anteriores, compare-se o valor da emigração a que se chegou em 2014 (cerca de 135 mil), com as estimativas do valor que se teria previsivelmente atingido nesse mesmo ano sem políticas de austeridade (109 mil) e sem crise nem austeridade (85 mil).


2. Um dos aspectos que tem talvez sido pouco sublinhado, quando se analisam as dinâmicas demográficas recentes, decorre justamente do facto de essas dinâmicas ilustrarem os próprios limites da «economia do empobrecimento competitivo», que a direita gostaria de aprofundar nos próximos anos. O Luís Gaspar já o disse há uns tempos com notável clareza: «Baixam-se os salários no pressuposto que o trabalho é demasiado caro. O trabalho vai-se embora. Mesmo para o mais ortodoxo dos economistas, isto deveria querer dizer que o trabalho não estava caro. A única transformação estrutural da economia arrisca-se a ser esta: em vez de serem os salários que se "ajustam" à economia, é a economia que se ajusta aos salários baixos.»

3. Isto quer dizer que o aumento do salário mínimo «não é apenas uma questão de decência e dignidade, mas também de bom senso económico», como sublinha o Alexandre Abreu em artigo de leitura imprescindível, no Expresso de hoje. Em linha, aliás, de um comentário recente do Mário Estevam, a propósito das conversações à esquerda para virar a página da austeridade: «Não sei se o salário mínimo vai chegar aos 600 euros ou não... O que não podia continuar a acontecer era ter pessoas honestas a trabalhar e a viver na miséria porque o salário mínimo não paga o custo de vida.» Não perceber isto é não perceber o que aconteceu nos últimos quatro anos e, pior que isso, querer insistir numa receita desastrosa para o país.

Adenda: É inqualificável a decisão governamental de acabar com o financiamento do Observatório da Emigração por este ter revelado, em Setembro, os números relativos a 2014 (constantes do relatório anual concluído em Julho), quando o governo apenas os pretendia divulgar depois das eleições. A decisão de corte do financiamento foi comunicada já depois do dia 4 de Outubro, através de uma carta dirigida ao reitor do ISCTE–IUL. O relatório mostra que a emigração se manteve em patamares muito elevados, contrariando assim a tese governamental em torno de um suposto abrandamento das saídas, em ano de «retoma económica». Decisões deste teor não causam estranheza, apenas repulsa, quando provém de um governo que só foi sobrevivendo graças a uma poderosa máquina de desinformação e propaganda.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Portugal, 10 de Novembro de 2015

Constituição da República Portuguesa
Artigo 195.º (Demissão do Governo)

1. Implicam a demissão do Governo:
...a) O início de nova legislatura;
...b) A aceitação pelo Presidente da República do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro;
...c) A morte ou impossibilidade física duradoura do Primeiro-Ministro;
...d) A rejeição do programa de Governo;
...e) A não aprovação de uma moção de confiança;
...f) A aprovação de uma moção de censura por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções.
2. O Presidente da República só pode demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado.

Moção de rejeição do Programa de Governo da Coligação PàF aprovada com 123 votos a favor (PS, BE, PCP, PEV e PAN), e 107 contra (PSD e CDS/PP). A luta continua.

O «inverno demográfico» como pretexto

No seu programa de governo, a direita agora minoritária no parlamento volta a insistir na ideia de que o «inverno demográfico» se instalou no nosso país «há mais de três décadas», sugerindo acrescidamente que a recente sangria migratória nada tem que ver com austeridade nem com o «ajustamento», constituindo apenas uma espécie de prolongamento natural da dinâmica demográfica registada «ao longo da última década».

Procurámos já demonstrar (por exemplo aqui e aqui) que as políticas de austeridade agravaram de forma muito significativa o problema demográfico português, que passou a acumular - a partir de 2011 - saldos naturais e migratórios negativos. A queda a pique do saldo demográfico, responsável pela diminuição da população residente em 1,5% na passada legislatura, apenas seria invertida em 2014, sobretudo graças ao travão colocado pelo Tribunal Constitucional ao desejo do governo em proceder a mais cortes e sacrifícios e assim aprofundar a austeridade «além da troika», «custe o que custar».


Não se iludam porém quanto às reais motivações do ainda governo para inscrever, entre os cinco pontos essenciais do seu programa, o «combate ao "inverno demográfico"». A receita não é nova e destina-se apenas, sob o manto de propaganda em torno de uma súbita sensibilidade social, a prosseguir a agenda neoliberal de transformação da economia e da sociedade portuguesa. Do iníquo quociente familiar em sede de IRS (dirigido às famílias numerosas, sem ter em conta o seu nível de rendimento), ao aumento da cobertura na rede de creches «nomeadamente através da rede social e solidária», passando pela flexibilização de horários, pelo reforço do «voluntariado intergeracional» e até (pasme-se) pela reabilitação do programa VEM, está lá tudo, nas linhas e nas entrelinhas.

A ideia é convencer as pessoas de que basta fazer umas cócegas ao dito «inverno demográfico» para ele se ir embora. Sem enveredar por loucuras próprias da social-democracia ou até da democracia cristã como a subida do salário mínimo, o combate à pobreza e à exclusão, a redução das desigualdades nos rendimentos ou a generalização do horário de trabalho de 35 horas semanais. E, de caminho, continuar a estiolar o mercado de trabalho, transferir recursos para as IPSS e fingir que se está a promover o regresso ao país daqueles que foram forçados a partir nos últimos quatro anos.