sábado, 30 de novembro de 2013

Tempo

Vamos falar do tempo: está frio. Mas quando se fala de frio aparece a questão social que não tem nada de natural: “Um estudo efectuado em 2004 pela Universidade de Dublin conclui que Portugal era um dos países da União Europeia onde se morria mais por falta de condições de isolamento e aquecimento nas casas.” A dificuldade em aquecer a casa é mais um indicador de privação material em que Portugal se destaca. Fala-se pouco destas coisas, que mais não seja porque, a fazer fé na casta, estamos num país onde “as pessoas” viveram acima das suas possibilidades e passaram demasiado tempo ao sol...

Assuntos da troika

Dado que estamos a falar de Bruno Maçães, a avaliação da imprensa grega não me surpreende nada: Secretário de Estado português [dos assuntos europeus] foi à Grécia e saiu de lá como..."o alemão". No fundo, representa todo um governo ao serviço de interesses que não são de cá.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A espiral segue dentro de semanas


Defendendo na Assembleia da República a proposta de Orçamento para 2014, a Ministra das Finanças afirmou que "a recuperação da autonomia financeira perdida exige um processo de ajustamento que vai além das condições do programa". Para os que ainda suspiram pelo fim do protectorado, a ministra lembra que o ajustamento não decorre apenas dos compromissos com o Memorando, decorre também dos compromissos assumidos com a participação na zona euro e da necessidade de restabelecer a confiança dos mercados financeiros. De facto, quem não questiona a participação de Portugal na zona euro tem de aceitar estes constrangimentos. Mais, tem de aceitar as novas exigências do Tratado Orçamental quanto aos défices e à dívida pública, bem como o escrutínio prévio dos orçamentos dos estados--membros no âmbito do "semestre europeu". Em suma, tem de abdicar da política orçamental como instrumento de estabilização dos ciclos económicos e de promoção do investimento público em ordem ao desenvolvimento. Evidentemente, é sempre possível acreditar que um dia o ordoliberalismo alemão será expurgado dos tratados e da legislação europeia. É sempre possível acreditar que o objectivo do pleno emprego será um dia a prioridade da política económica europeia. É sempre possível acreditar no Pai Natal.

Com o novo pacote de redução de salários e pensões, o Orçamento retoma a espiral recessiva iniciada em 2011. É verdade que, após a terapia de choque inicial, a economia tem dado ténues sinais de poder vir a retomar o crescimento. Daí que, tanto o governo como os ideólogos do regime, se tenham apressado a lembrar que estavam errados os economistas radicais que clamaram contra a espiral recessiva em que o país tinha mergulhado. Para falarem assim, omitem dois elementos essenciais: primeiro, a austeridade teve um compasso de espera em 2013, deixando extinguir os efeitos multiplicadores sobre o produto; segundo, tendo as famílias (no seu conjunto) aumentado muito a poupança, e estando a relação com o resto do mundo em equilíbrio, então forçosamente o sector público terá um défice elevado. Esta última relação é contabilística, não é uma opinião. Infelizmente, a ministra das Finanças não parece conhecer as identidades básicas da macroeconomia porque, no debate parlamentar, se atreveu a relacionar a austeridade com o "equilíbrio efectivo das finanças públicas". Porque esta identidade contabilística é mesmo irrevogável, em 2014 voltaremos a ter um orçamento rectificativo para reconhecer que o défice se recusa a baixar e teremos mais encarniçamento nos cortes. Ou nos impostos, se o Tribunal Constitucional decidir que todos os portugueses, e não apenas os funcionários públicos, têm de pagar pela política errada e cruel de quem nos governa, aqui e em Bruxelas, Berlim e Frankfurt.

O que mais espanta é a forma como altos responsáveis de partidos da esquerda, acompanhados por alguns comentadores da mesma área política, aceitam o quadro teórico que informa os termos do debate orçamental formatado pelo governo e seus ideólogos. É frequente aceitarem a necessidade de reduzir os défices, como se estes não fossem um instrumento de política económica de que um governo de esquerda não pode prescindir. É frequente acusarem o governo de ter falhado as metas do défice por incompetência quando o que está em causa é a impossibilidade de tal acontecer num contexto em que não é possível a desvalorização externa da moeda e a chamada "desvalorização interna" não só é socialmente insustentável como nunca permitirá aos exportadores vender numa moeda forte e competir com países de baixos salários. É triste a pobreza do discurso das oposições, e também é por essa razão que não se vê luz ao fundo do túnel. Razões de sobra para criar uma alternativa.

(O meu artigo no jornal i; fui buscar a figura aqui)

Quem manda aqui?

Durantes meses a fio tivemos de suportar os euro-iludidos com a narrativa das eleições alemãs. Aguentem, depois é que pode começar a mudança na Europa, diziam. Agora que o SPD deu prioridade à frente interna, como se esperava que fizesse, até porque o consenso ordoliberal na Alemanha sobre a política europeia é sólido, qual é a próxima ilusão desmobilizadora com escala europeia? Talvez a mudança seja para depois das Europeias e assim sucessivamente. Enfim, repito-me:

A verdadeira mudança, a ocorrer, não será desencadeada à escala europeia, ao contrário do que insistem muitos europeístas. Terá de ocorrer, dada a lógica do desenvolvimento desigual e combinado, pelas periferias, país a país, ali onde a crise económica e social se faz sentir com uma intensidade impar e onde o esfarelamento das soluções políticas convencionais é plausível a prazo. Mais tarde ou mais cedo, aí será eleito um governo que tenha a coragem de um acto soberano democrático, recusando a chantagem austeritária e desobedecendo às regras europeias que bloqueiam tudo menos o neoliberalismo. Aí sim, as coisas começarão a mudar na escala de que a Europa ainda é feita, por contágio político e por acção inconsciente das forças económicas. O melhor é então agir como se tudo dependesse dos que aqui vivem, sem esquecer as articulações possíveis com outros na mesma situação, mas sem ilusões sobre a sobreposição da escala, internacional, das solidariedades mais ou menos abstractas com a escala, nacional, onde ocorrerão as mudanças concretas.

Foi por estas e por outras que colaborei na redacção deste guião político.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A austeridade mata


«Com a aprovação do Orçamento para 2014, novas e severas medidas de austeridade vão ser adoptadas e penalizar, ainda mais, a generalidade da comunidade, levantando dúvidas quanto aos seus efeitos sobre os ténues sinais de recuperação económica.
A insistência na política de austeridade ocorre num momento em que as críticas a esta opção de política económica crescem de tom e ganham cada vez mais aderentes, levando-nos a colocar as perguntas: A Austeridade Cura? A Austeridade Mata?»

Organizado pelo Prof. Eduardo Paz Ferreira, coordenador do Centro de Investigação de Direito Europeu, Económico, Financeiro e Fiscal (IDEFF), da Faculdade de Direito de Lisboa, realiza-se amanhã, a partir das 9h30, a conferência «A austeridade cura? A austeridade mata?», que conta, entre outros, com a participação de Ferreira do Amaral, Francisco Louçã, Ricardo Paes Mamede e Mark Blyth, autor do livro «Austeridade: A história de uma ideia perigosa», recentemente traduzido pela Quetzal.

Está na hora?

Tomando como pretexto a decisão favorável, por maioria de sete contra seis, do Tribunal Constitucional (TC), em relação ao absolutamente perverso aumento do horário de trabalho na função pública, Elisabete Miranda e Catarina Pereira do Negócios fizeram ontem umas contas bem úteis, jornalismo citado pelos melhores, e concluíram que o TC deixou passar 82% da austeridade em valor, obrigando o governo a rever 18% dos seus destrutivos planos, concentrados em 2013, minorando ainda assim este ano os efeitos destrutivos, o que até acabou por ajudar ao suposto milagre da recuperação. Segundo Reis Novais, se alguma crítica se pode fazer ao TC é a de não levar os direitos sociais suficientemente a sério. A correlação de forças, no plano socioeconómico, é a que é. Para usar uma metáfora perigosa: a infraestrutura tem muita força. Daí que a guerra de posição tenha de ter várias trincheiras, sendo a esfera constitucional apenas uma delas, sem bem que muito importante. Suspeito que o governo da troika terá de encontrar rapidamente outro bode expiatório superestrutural...

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Economia humana?

Así como el mandamiento de «no matar» pone un límite claro para asegurar el valor de la vida humana, hoy tenemos que decir «no a una economía de la exclusión y la inequidad». Esa economía mata. (...) En este contexto, algunos todavía defienden las teorías del «derrame», que suponen que todo crecimiento económico, favorecido por la libertad de mercado, logra provocar por sí mismo mayor equidad e inclusión social en el mundo. Esta opinión, que jamás ha sido confirmada por los hechos, expresa una confianza burda e ingenua en la bondad de quienes detentan el poder económico y en los mecanismos sacralizados del sistema económico imperante. 

Papa Francisco, Evangelii Gaudium

A Doutrina Social da Igreja, se for levada a sério, e às vezes parece não o ser por essa hierarquia acima, oferece sempre pistas interessantes, mesmo para os que não são crentes, para uma crítica ao capitalismo neoliberal alinhada, por exemplo, com o que se sabe sobre os determinantes sociais da saúde em contexto de austeridade ou sobre a economia política da desigualdade crescente. Desigualdade e austeridade ferem e matam. Trata-se, pelo contrário, de buscar, com todas as ambiguidades que este termo contém, uma economia solidária. De resto, as suas hipóteses antropológicas da pessoa como ser relacional, em oposição à ficção influente do homo economicus, apontam, entre outros, para os perigos do egoísmo alimentado pelas instituições e exortações prevalecentes em tempos de neoliberalização.   

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Petição pela manutenção dos CTT no Estado


«Para muitos portugueses os CTT, para além dos serviços postais, funcionam como uma pequena entidade financeira de proximidade, onde têm acesso às suas pensões e reformas. Esta proximidade ficará em causa se a privatização for executada. No lugar das antigas estações de correios, instalam-se já agências postais em lojas nas quais as regras mínimas não são sequer respeitadas: não é garantida a presença permanente das agências, a confidencialidade das operações não está assegurada. A submissão da presença postal às exigências de rentabilidade levará, inevitavelmente, a uma degradação ainda maior das condições da empresa, da sua presença territorial e da qualidade do serviço prestado.»

Do manifesto «Pela manutenção dos CTT no Estado», promovido pela ATTAC Portugal e a partir do qual surgiu uma Petição Pública (a enviar a Cavaco Silva), que se encontra em curso e pode ser subscrita aqui. O processo de privatização dos CTT é mais um exemplo obsceno de deliberada «irracionalidade económica» (a empresa acumula, desde 2005, mais de 440 milhões de lucros que revertem para os cofres do Estado) e de despudorada mercantilização de um serviço cuja natureza é instrinsecamente pública. Não é por acaso, aliás, que 8o% dos correios na Europa se encontram nas mãos do Estado.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Um guião para um debate informado

O guião político para as Europeias de 2014, escrito pelo Alexandre Abreu, pelo João Rodrigues e por mim, pretende intervir no debate sobre a questão nacional, socioeconómica e política, mais importante - a europeia - e sobre a estratégia da esquerda que não desiste para as eleições do próximo ano. Sendo escrito por quem tem e toma partido, intervém numa discussão ampla para convergências tão amplas quanto possível. Ideias centrais: a campanha de uma força de esquerda que queira ser portadora de um projeto de esperança para os que aqui vivem tem de saber articular três grandes linhas - desobediência e recusa das perdas passadas e futuras de soberania, renegociação da dívida e exigência de saída do Euro. O documento pode ser descarregado aqui. Que a discussão prossiga!

Jacobinos

No espírito do meu último post, quero partilhar uma descoberta recente: a revista norte-americana Jacobin, “uma revista de cultura e polémica” resolutamente socialista. Nem tudo está disponível gratuitamente na sua bem desenhada página, mas do último número podem ler um artigo sobre a economia convencional e a sua ofuscação da desigualdade e dos conflitos de classe no centro do capitalismo actual, uma recensão ao livro de um dos historiadores críticos, Vijay Prashad, que mais tem feito para construir uma história global da possível ascensão do Sul global ou um ensaio sobre Maurice Dobb, um dos injustamente esquecidos economistas e historiadores do século XX, um marxista na “corte de Keynes”. Trata-se de voltar, contra modismos debilitantes à esquerda, de qualquer forma trucidados pela crise, aos grandes e clássicos temas da prática teórica socialista, com arrojo renovador e alguma intransigência estratégica, tentando manter a distinção entre dois planos articulados, mas autónomos, entre derrota e vitória políticas, questão de poder, e vitória e derrota intelectuais, questão de validade. Não é fácil esta distinção, mas se não a mantivermos em tempos sombrios estamos mesmo condenados a perder tudo.

domingo, 24 de novembro de 2013

Duas décadas de propinas no ensino superior



«Faz esta semana 20 anos que alguns de nós levaram a maior carga de pancada das suas vidas. E isto porque defendiam o preceito de que o financiamento da educação deve ser assumido pelo Estado em todos os graus de ensino. O mandante da carga policial, de nome Dias Loureiro, umas semanas antes tinha dado uma entrevista ao Expresso em que defendia o lento mas firme desmantelamento do Estado Social, e as propinas e o ensino superior iriam ser apenas a primeira etapa. Sabe-se hoje o que esse senhor realmente queria e, mais do que isso, sabe-se também o que andou a fazer nos empregos por onde passou. E o Estado, todos nós, a pagar a factura de "ter vivido acima das nossas possibilidades". É importante relembrar hoje esse episódio (...) porque se deve partilhar que o que defendíamos e dizíamos há vinte anos continua actual e manifesta-se hoje em trágicas consequências. A cada dia que passa mais estudantes são obrigados a interromper ou a nem sequer iniciar os seus estudos superiores dado ao estrangulamento que as propinas provocam. (...) A cada dia que passa uma geração perde os seus sonhos, o seu futuro. A cada dia que passa o país empobrece.»

Nuno Bio, «Propinas - Há 22 anos a estragar a sociedade»

A geração de estudantes do ensino superior público do início dos anos noventa soube intuir, com grande clareza, que o que estava verdadeiramente em causa nessa altura, com a introdução das propinas, ia muito para lá do então propalado "contributo dos estudantes para o reforço da acção social e melhoria da qualidade do ensino". De facto, a desconfiança dos alunos perante a salvaguarda oficial de que as respectivas receitas jamais serviriam para substituir as transferências do Orçamento de Estado viria a confirmar-se plenamente, nos termos de um hábil processo de «inconstitucionalidade progressiva». Do que se tratava era apenas de dar o primeiro golpe, o golpe essencial e decisivo para se poder levar a cabo o plano de desinvestimento e mercantilização do ensino superior, cuidadosamente preparado e sistematicamente aprofundado, de cada vez que a direita regressou ao poder.

Hoje percebemos que o ensino superior possa ter sido encarado como um dos mais promissores laboratórios de experimentação das estratégias neoliberais de erosão e desmantelamento do Estado Social. Em duas décadas, a fronteira supostamente intransponível foi de facto, sem que quase se tenha dado por isso, manifestamente violada: o Estado já deixou de garantir que nenhum aluno ficasse impedido de frequentar o ensino superior por razões de carência económica e o preceito público da igualdade de oportunidades, "no acesso aos mais elevados níveis de instrução", já não passa hoje de uma miragem: Portugal tem, actualmente, valores de propinas que se encontram entre os mais elevados da Europa.

Nada disto teria sido possível sem uma ardilosa narrativa, engendrada para convencer, passo a passo, a opinião pública quanto à justeza das medidas que iam sendo adoptadas. Começa-se por apresentar a introdução das propinas com o já referido "contributo dos estudantes para a melhoria do ensino e reforço da acção social" e prossegue-se, entre outros, com o argumento da "dinamização das instituições de ensino superior" através do "estímulo à obtenção de receitas próprias" (desencadeado, para esse efeito, pela redução progressiva das transferências do OE). E em tempos de desbragado «ir ao pote», não deveremos esperar que as coisas fiquem por aqui. As agendas estão em cima da mesa e os interesses manifestam-se nos «oráculos do costume»: ou não fossem a Fundação Pingo Doce e o excelso Dr. António Barreto a patrocinar, neste âmbito, uma das maiores e mais oportunistas fraudes científicas da nossa história recente.

Hayekianos

Já por várias vezes aqui tenho manifestado a minha admiração por um dos intelectuais mais importantes da chamada direita intransigente no século XX – Friedrich Hayek. Ter passado uma parte dos últimos anos a ler e a escrever em torno deste fundador do chamado colectivo intelectual neoliberal ajudou. Bom, este texto sobre os intelectuais e o socialismo, escrito em 1949, numa altura em que, como disse o historiador Tony Judt, poucos eram os que acreditavam na “magia do mercado”, é exemplar de uma atitude intelectual com a qual os socialistas devem aprender, agora que estão mais ou menos onde Hayek estava nessa altura, num canto. Até para podermos ter esperança de sair dele. Um excerto para pensarmos nas coisas, tendo em conta as coisas com que muitos estão preocupados: “Aqueles que têm estado exclusivamente preocupados com o que parece politicamente possível, dado o estado da opinião existente, descobriram constantemente que mesmo isso rapidamente se tornou politicamente impossível em resultado de mudanças, que nada fizeram para guiar, nessa mesma opinião pública”.

sábado, 23 de novembro de 2013

Da falta de cuidado

Ficámos a saber esta semana que, entre 2009 e 2012, mais de meio milhão de crianças e jovens perderam o acesso ao abono de família e que isto ocorre num país onde a despesa pública com a família representa 1,5% do PIB, contra 2,3% do PIB de média na UE. A falta de cuidado, bem enraizada em sociedades muito desiguais, é transversal: por exemplo, só a Grécia gasta menos do que Portugal nos cuidados continuados de saúde entre os países da OCDE e isto apesar de, até 2011, termos crescido nesta área.

A austeridade é a falta de cuidado elevada a princípio geral e permanente de política pública através da destruição do Estado social: do desemprego de massas aos cortes nas prestações sociais, que aumentam a vulnerabilidade de tantas crianças num país com níveis elevadíssimos de pobreza infantil, passando pela fragilização das crianças com necessidades especiais e sem apoios nas escolas para desespero de pais. O resto, que também destrói a família, chega por via da regressão laboral necessariamente associada à austeridade: os horários cada vez mais longos e baralhados dos pais são só mais uma forma de fragilizar as crianças, de fragilizar o cuidado.

O decisivo agravamento da falta de cuidado deve politicamente muito ao facto de sermos governados por uma casta que só responde e responderá perante estranhos pouco bondosos e nada cuidadosos, até porque estes definitivamente não respondem perante os que aqui vivem, os que fazem deste país a sua casa. A falta de cuidado está inscrita no esvaziamento da democracia na escala onde esta pode florescer.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Pressupostos para uma base de entendimento à esquerda?

Considerem-se os seguintes pressupostos:

1. É errado passar o tempo tentando procurar exclusivamente um responsável interno por uma crise que é europeia. Trata-se de uma crise do euro nas suas várias vertentes: processo que levou à sua criação, regras e instituições disfuncionais, forma desastrada como a crise foi gerida e estratégia errada de resolução.

2. A diminuição do crescimento foi a causa dos problemas de contas públicas e não o contrário. O atual Governo ignorou este facto e alinhou a sua estratégia com a visão de que a única questão a resolver era o problema de contas públicas. A diminuição da despesa pública devia corrigir o défice público e garantir a redução da despesa interna e da procura de trabalho que, pelo aumento do desemprego, conduziria à diminuição dos salários. A redução da procura interna substituiria a desvalorização, contribuindo para reduzir as importações e para aumentar a competitividade, pela redução dos salários, promovendo uma aceleração das exportações. A rigidez do mercado laboral podia atrasar a descida dos salários e a redução do custos unitários de trabalho (CUT). Daí a prioridade dada à reforma da Lei Laboral e à liberalização dos despedimentos.

3. A realidade mostra que a teoria do empobrecimento não resultou. A correção do défice externo aconteceu, mas foi baseada crescentemente mais na queda da procura interna e das importações do que na expansão das exportações. O nível de recessão imposto à economia acabou por minar os esforços de consolidação orçamental. A redução do défice em 2012 e 2013 juntos foi metade da verificada em 2011. A economia caiu muito e o défice pouco. O empobrecimento da base fiscal assim o impôs. Apesar dos sacrifícios exigidos, o crescimento do rácio de endividamento não abrandou, puxado tanto pelo aumento da dívida como pela baixa do PIB. É preciso alterar as prioridades e perceber que só uma retoma sustentada pode permitir consolidar as contas públicas e estabilizar o endividamento.

4. O ajustamento seguido está a causar uma perda de capacidade produtiva. O País não está apenas a produzir menos num contexto de recessão. Nestes dois anos Portugal viu descer o seu PIB potencial. Como é que isso aconteceu? Portugal perdeu mão de obra, perdeu capital e perdeu confiança nas instituições. A retoma vai ser feita sem estes recursos, a partir de um patamar mais baixo. Afundar a economia não pode ser parte da solução, pois só agrava o problema.

5. Há algo que justifique que cortar ainda mais a despesa pública, sobretudo a de natureza social, seja a grande prioridade? Há evidência de que o modelo neoliberal subjacente à "reforma do Estado" é o que melhores resultados dá em termos de desenvolvimento das economias? A resposta a estas questões é não e não. A "reforma do Estado" é, um dia, pretexto para impor mais recessão cortando transversalmente na despesa pública, outro dia agenda para cumprir o velho sonho de privatizar serviços públicos.

6. O desenvolvimento do País requer mais investimento, mais qualificações, melhores instituições e sensibilidade social. Em termos de presença do Estado na economia, se olharmos sem cegueira ideológica para as experiências de maior sucesso nos últimos cinquenta anos (Alemanha, Coreia, Japão, China, etc.) verifica-se que o modelo dominante são economias mistas onde o Estado está presente na economia, seja como parceiro estratégico das empresas, seja mesmo enquanto acionista.

7. Em teoria, Portugal pode ultrapassar a crise se flexibilizar as metas orçamentais ao mesmo tempo que a Alemanha estimule a sua procura interna, se as regras do euro evoluírem, nem que seja gradualmente, no sentido positivo, se a Europa compreender a vantagem de um plano Marshall para Portugal desenvolver os sectores em que tem uma vantagem competitiva, se a requalificação dos adultos e a educação dos jovens tornar a ser a ser um objetivo prioritário, se for possível estancar a hemorragia de jovens a emigrarem para o estrangeiro, se não houver uma surpresa negativa no sistema bancário, se for dada importância à manutenção da coesão social recuando em várias medidas extremas que já foram tomadas. Se tudo isto acontecer, então em teoria é possível. O problema é a prática. O problema da Europa é político, não é económico.

8. É fundamental definir claramente a fronteira que o país não está disposto a ultrapassar.


Quem lê este conjunto de pressupostos sobre a situação actual pode chegar a pensar que são retirados daqui. Não é o caso: com pequenos arranjos (nada que desvirtue o essencial da análise), o texto acima reproduz passagens da série de cinco artigos que Manuel Caldeira Cabral (antigo assessor dos Ministros da Economia e das Finanças do anterior governo) e Manuel Pinho (ex-Ministro da Economia) escreveram esta semana no Diário de Notícias.

Daqui a um programa de governo de esquerda é um longo percurso, bem sabemos. Mas se fosse aceite de forma inequívoca pelo conjunto das forças que se opõe à estratégia actual, estes pressupostos poderiam ser uma boa base de conversa.

«Atacar a iniquidade, a injustiça, o desprezo e o cinismo dos poderosos»



«Não se espere de mim nem a mais pequena palavra de justificação por aqui estar. Bem pelo contrário. Farei a muitos a pergunta "por que razão não estão cá". (...) Custa-me a ideia de que o papel dos que aqui estão seja apenas defender, como se estivessem condenados a travar uma luta de trincheiras. Não, os que aqui estão não estão a defender coisa nenhuma, mas a atacar: a iniquidade, a injustiça, o desprezo e o cinismo dos poderosos, para quem a vida decente de milhões de pessoas é irrelevante, é entendida como um custo que se pode poupar.
(...) A transformação da palavra austeridade numa espécie de injunção moral, que serve para um primeiro-ministro, apanhado de lado pelo sucesso dos celtas que muito gabava, sorrir cinicamente para nos dizer que a lição desses celtas e da Irlanda é que ainda precisamos de mais austeridade, ainda precisamos de mais desemprego, ainda precisamos de mais pobreza. E o pior de tudo é que, ao dizer isto, sorri, muito contente consigo mesmo.
O discurso de continua mentira e falsidade, que nos diz - como se fosse uma evidência - que as empresas ajustaram, que as famílias ajustaram, só o Estado não ajustou, como se as três entidades fossem a mesma coisa e o verbo ajustar significasse o retorno a uma espécie de estado natural das coisas, que só o vício de querer viver melhor levou os portugueses a abandonar. (...) As empresas ajustaram. Sim, algumas ajustaram. Mas a maioria ajustou falindo e destruindo emprego. (...) As famílias não ajustaram, empobreceram. E estão a empobrecer muito para além daquilo que é imaginável. E têm que ouvir como insultos os méritos de perderem a casa, ou o carro, ou a educação para os seus filhos e o valor moral de deixarem de comer bife e passarem a comer frango.
É para não termos esse remorso que estamos aqui, não à defesa, mas ao ataque. Ao ataque por todos os meios constitucionais, por aquilo a que chamávamos no passado (...) - e muitas vezes nos esquecemos - a nossa Pátria amada.»

Da intervenção de José Pacheco Pereira, ontem na Aula Magna, no encontro promovido por Mário Soares, «Em defesa da Constituição, da Democracia e do Estado Social».

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Partilhas

Apesar de alguns pontos críticos, como um "todos colaboraram no problema, todos devem participar na solução" ou umas mecânicas referências a "leis da economia", que se podem prestar a equívocos, é com contentamento que leio um dos artigos no DN dos economistas Manuel Pinho e Manuel Caldeira Cabral - uma entrada desastrada para o euro. Vejo que alguns dos argumentos, expostos, por exemplo, por vários de nós em Portugal no Contexto Europeu ou no livro A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes são cada vez mais partilhados na área do, digamos, social-liberalismo. O diagnóstico é essencial para uma avaliação crítica das alternativas, para distinguir as consequentes das inconsequentes.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Amanhã, na Aula Magna, em Lisboa


Promotores: Mário Soares, Alberto Costa, António Arnaut, Armando Farias (CGTP), Boaventura de Sousa Santos, Carlos Silva (UGT), Manuel Alegre, Maria do Rosário Gama, Pacheco Pereira, Pilar del Rio, Sampaio da Nóvoa e Vítor Ramalho.

«Um orçamento contraproducente, desonesto e cobarde»



«Quatrocentos e cinquenta mil postos de trabalho depois, com 30% das empresas em risco de incumprimento, nós não estamos hoje mais perto de pagar a dívida do que estávamos há três anos atrás. Este orçamento é a continuidade de uma trajectória contraproducente. E é desonesto (...), ao ser baseado num conjunto de pressupostos e de cenários macroeconómicos que são irrealistas, que não serão cumpridos. (...) E vem envolto numa retórica (...), a retórica do "milagre económico" (...) que está, supostamente, em primeiro lugar, no crescimento das exportações. Vale a pena termos presentes estes dados: 70% do aumento das exportações, entre Janeiro e Agosto, deveram-se apenas a um factor, (...) o investimento da Galp em Sines. E o crescimento do turismo contribuiu mais para o crescimento das exportações do que todos os outros sectores de actividade económica juntos (se retirarmos a refinação de petróleo). (...) Um sector que é sazonal e que é extremamente volátil. (...) Mas este orçamento também é desonesto. (...)O governo, o que nos diz hoje, é que este é o orçamento para a recuperação do nosso espaço de soberania política. E isto é um embuste lamentável. (...) Nós temos que perguntar se aquilo que o governo pensa que vai acontecer - a ideia de que vamos ter um apoio para regressar aos mercados, sob a forma de um programa cautelar - (...) nos vai permitir resistir (...) mais a pressões externas para que se proceda à reconfiguração da economia e da sociedade portuguesa. E a resposta é não. (...) Este é um orçamento que é cobarde, porque o governo sabe que, daqui a uns meses, a economia portuguesa vai continuar moribunda, que o desemprego vai aumentar e que nós não vamos estar com melhores perspectivas sobre a sustentabilidade da dívida do que estamos hoje. (...) O governo optou por produzir um Orçamento de Estado cujas probabilidades de ser chumbado pelo Tribunal Constitucional são mais que muitas. E não tinha efectivamente necessidade de o fazer. O governo, mesmo aderindo cegamente ao paradigma da austeridade, tinha formas de prevenir os riscos constitucionais e, já agora, os riscos macroeconómicos, os riscos de acelerar a recessão. E optou por não o fazer. E isto significa basicamente que o governo está a proteger-se para os dias que aí vêm. Quer esconder-se atrás do chumbo, mais que provável, do Tribunal Constitucional, para fazer tudo aquilo que não teve coragem para fazer até agora.»

Intervenção de Ricardo Paes Mamede, no encerramento do debate promovido pelo CDA, «Rejeitar o Orçamento, afirmar alternativas», realizado no Liceu Camões, em Lisboa, no passado dia 31 de Outubro. A ver e ouvir, na íntegra.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Contra el euro


Este livro, diz-nos Juan Francisco Martín Seco na introdução, foi escrito com “raiva”, dada a destruição evitável que está sendo gerada na economia, no Estado social e na democracia espanholas. Felizmente, a “raiva” foi posta ao serviço de uma argumentação clara e racional. As grandes linhas do argumento contra o Euro são conhecidas e o livro apresenta-as claramente, tendo a vantagem adicional de nos mostrar como a atitude das elites económicas e políticas espanholas em relação ao Euro e à integração neoliberal que lhe esteve indelevelmente associada foi tão semelhante à das castas portuguesas: o mesmo egoísmo, a mesma miopia, a mesma arrogância, os mesmos complexos do bom aluno e a mesma atitude moralista imoral depois da crise rebentar – vivestes acima das possibilidades, agora é altura de pagar.

As causas estruturais da dívida externa elevada são claramente identificadas: o Euro, uma moeda sem Estado, desligado das finanças públicas, e que aumentou as assimetrias entre os Estados realmente existentes, não serve as economias europeias menos desenvolvidas e agora sem meios decentes para gerir a sua inserção internacional. A acumulação de défices da balança corrente foi um sintoma da perda de competitividade, de uma moeda demasiado forte. Agora, os défices são provisoriamente debelados pelo destrutivo e injusto, até porque só recai sobre os assalariados, mecanismo da desvalorização interna. Este deixa um lastro institucional, social e laboral, pesado, tal como a construção do euro, por via essencialmente da liberalização financeira, já o tinha feito. O trabalho de neoliberalização ficaria completo.

Parte do livro é constituída por um impressionante corpo de autocitações de escritos do autor, fundamentalmente dos anos noventa: um bem vos avisei sem falsas modéstias. Não se trata de mais um oráculo, mas sim de ter tido a capacidade de identificar, com a ajuda de história racionalizada, por exemplo das desvalorizações cambiais quando a coisa apertava, mecanismos e padrões emergentes, mas ignorados pela sabedoria convencional euro-contente.

Seco, um economista entre a alta administração pública e a academia e que rompeu com o PSOE na década de noventa, insiste que a União Europeia saída de Maastricht e confirmada nos Tratados subsequentes, baseada numa moeda disfuncional e numa lógica de expansão sem fim das forças do mercado capitalista, não é união, já que reforça os mecanismos de polarização e não é europeia, já que destrói o Estados sociais e as democracias. Os mecanismos nesta altura são muito claros: sem moeda própria e controlada pelos poderes públicos democráticos, sem algum tipo de controlo de capitais, não existe, nem existirá, o grau soberania que é condição necessária para que as constituições democráticas e sociais anti-fascistas, ainda tão temidas pelo capital financeiro, e por potenciais boas razões, possam ser cumpridas nas suas dimensões essenciais. Um bom contributo para que as forças sociais e políticas que se dizem progressistas se possam ver livres, também do outro lado da fronteira, das custosas ilusões do Euro.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Atrelados ao euro alemão


"É evidente que a criação do euro foi um erro pelo qual os países europeus estão pagando caro. A solução racional é a descontinuação acordada do euro. Assim se salvará a UE.

Mas, para isso, é necessária coragem nos países do sul, principalmente no seu principal país, a França, e a disposição da Alemanha de fazer um acordo. Nem uma coisa nem outra parecem hoje disponíveis na Europa." 

Quem escreve isto é Luiz Carlos Bresser-Pereira, economista brasileiro heterodoxo, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, ex-ministro das finanças do Brasil. Ver aqui a totalidade do artigo na Folha de S. Paulo.

domingo, 17 de novembro de 2013

Dois gráficos, a mesma história


Dois gráficos ilustrativos do sucesso da recuperação na Zona Euro numa perspectiva comparada. O primeiro gráfico de Paul Krugman compara a evolução da produção industrial europeia nos anos da Grande Depressão com a evolução da produção industrial da Zona Euro nos anos que já leva a sua presente crise. O segundo gráfico, via Câmara Corporativa, compara a evolução do PIB real na Zona Euro e nos EUA desde o início de 2008. A mensagem é a mesma: ao contrário da narrativa dominante até certa altura, segundo a qual o Euro seria um escudo contra a crise oriunda dos EUA (lembram-se de uma das muitas fraudes do euro-liberalismo?), esta zona monetária não passa de um sistema cambial rígido e disfuncional, tendo por efeito impedir a mobilização de instrumentos de política económica que nos permitam sair tão rapidamente quanto possível da crise aí gerada, em especial nas periferias particularmente atingidas, que isto do desenvolvimento desigual tem ainda mais força num quadro monetário austeritário. Romper com sistemas cambiais rígidos é também hoje uma condição necessária para superar a oscilação entre recessões profundas e duradouras e recuperações tímidas e breves: quando é que os países, em especial as periferias, tiram a ilação política destas histórias económicas?

sábado, 16 de novembro de 2013

«Há uma grande tarefa que nós temos que fazer, à esquerda»



«Nós não conseguiremos travar a austeridade se não reestruturarmos a dívida. (...) Esse é o nosso principal problema. (...) Os portugueses ainda olham para nós, à esquerda, com a sensação de que não temos alternativa. (...) Nós sabemos como chegámos até aqui: (...) o processo de integração europeia, a forma como decorreu, (...) foi um processo que prejudicou alguns países e beneficiou outros. (...) E aquilo que hoje estão a pedir à Europa é que sejam os países devedores sozinhos a fazer o ajustamento. Como se os credores não tivessem também responsabilidades em fazer o ajustamento. (...) Um debate da reestruturação da dívida implica (...) entrar na guerra. Na guerra não armada que nós hoje vivemos, uma guerra pela nossa defesa. (...) Nós não temos edifícios destruídos, mas temos coisas mais importantes do que edifícios destruídos: temos vidas destruídas. (...) Um país devedor tem armas. E tem que as saber usar. (...) Uma das armas é a dívida (...), que nós temos e que devemos usar (...). Não digo também que o próprio euro não deva ser usado como arma negocial. Porque a Europa não pode prescindir do euro nem pode aceitar, ou tem dificuldades em aceitar, que (...) a muralha do euro comece a quebrar. (...) Mas nós não podemos ficar por aqui. As pessoas têm que sentir que nós, para além disso, temos uma estratégia de desenvolvimento do país. E é por isso que a esquerda tem que ser capaz também de saltar do debate sobre o ajustamento das contas públicas e passar também para o debate do desenvolvimento industrial do país. (...) O Estado só terá força - e a comunidade só terá força - se nós também tivermos poder sobre a economia, sobre a produção. (...) É impossível conseguirmos derrotar a direita continuando a achar que é possível estarmos de costas voltadas.»

Intervenção de Pedro Nuno Santos, no debate promovido pelo CDA, «Rejeitar o Orçamento, afirmar alternativas», que teve lugar no Liceu Camões, em Lisboa, no passado dia 31 de Outubro. São cerca de 15 minutos, que vale muito a pena ver e ouvir, na íntegra.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

É a dívida externa, estúpido!

Parece que Cavaco Silva tem dificuldade em perceber por que motivo a Irlanda dispensa o recurso a 'assistência' externa para se financiar, considerando mesmo que "Portugal até tem uma realidade mais favorável que a Irlanda". Das duas uma: ou este presidente-economista, depois de ter andado com o governo ao colo, está aflito por ficar associado a uma estratégia fracassada; ou então não anda a ler os Ladrões de Bicicletas.

A mesma rigidez de sempre

Em resposta às recomendações do FMI, Paulo Portas declarou ontem que o governo não acredita no modelo de salários baixos, ao mesmo tempo que tenta manter a artificial divisão público-privada. A lata deste fulano não tem fim, já que este governo faz de tudo para baixar os salários da maioria dos trabalhadores: dos cortes salariais no sector público, cuja função também é a de contagiar as negociações no sector dito privado, às alteração regressivas na legislação laboral, passando pelo ataque à contratação colectiva, pela redução da duração e montante do subsídio de desemprego, pelos despedimentos na função pública ou pelo congelamento do salário mínimo. Ufa, que não têm feito outra coisa.

Em contraste com a hipocrisia da elite nacional do poder, que ainda tem a maçada de ser escrutinada democraticamente, o FMI apresenta o programa de austeridade permanente em toda a sua violência laboral, dizendo abertamente o que hoje só por descuido as elites nacionais reconhecem: trata-se mesmo de promover uma economia sem qualquer pressão salarial, um desigual modelo de baixos salários, que é para isso que serve a austeridade permanente e as permanentes mudanças na legislação laboral e social no mesmo sentido, patrocinados também pelos Consensos de Washington e de Bruxelas.

Trata-se sempre, mas sempre, de promover a quebra continuada dos salários, isto num país onde, por exemplo em 2012, mais de metade dos trabalhadores viu o poder de compra dos salários diminuir, quer porque a evolução nominal dos salários estagnou, quer porque ocorreram reduções nominais dos salários. Isto esteve associado à destruição maciça de emprego, explicando um declínio das renunerações de 7,2% nesse ano, ao mesmo tempo que os rendimentos de propriedade e de empresa cresciam 7,5%, em termos nominais (p. 112 deste relatório do BndP).

Estes dados, que aparecem em relatórios do Banco que não é Portugal, são escamoteados pelo Fundo. O Fundo recorre à fraude ideológica, a do uso da flexibilidade salarial e laboral, positiva, versus a rigidez laboral e salarial, negativa: positiva e negativa para quem? E que tal falarmos de rigidez e de flexibilidade patronais, de liberdade para uns à custa da liberdade de outros, de destruição da procura, de medo, insegurança e stress no trabalho, de relações laborais cada vez mais assimétricas, de menos incentivos para a formação e para a inovação, de uma economia cada vez mais medíocre e geradora de custos sociais tendencialmente ignorados pelos preços de mercado?

Leituras


«A estratégia do governo é clara, sobreviver até ao final de Junho de 2014 para poder proclamar a "libertação" de Portugal. Pouco importa que a austeridade continue a ser imposta ao nosso país ou que nos venhamos a encontrar no final do primeiro semestre de 2014 pior do que estávamos no início do programa de assistência financeira em Junho de 2011. (...) Ninguém acredita nas projecções macroeconómicas, nem no cumprimento das metas orçamentais estabelecidas. (...) É por isso que o governo amplifica alguns sinais positivos e abafa os negativos. (...) Os últimos dados do Eurostat sobre o comércio a retalho na União Europeia mostram-nos que a queda em Portugal foi a segunda maior em termos homólogos (-2,2%) e a maior em cadeia (-6,2%). (...) Também no que ao investimento estrangeiro em Portugal diz respeito as notícias não são nada animadoras. Aliás, pela primeira vez desde o início da série (1995) o investimento estrangeiro líquido será negativo. (...) Estes dados recomendariam prudência e cautela ao governo mas isso pouco importa quando o objectivo é apenas sobreviver politicamente no presente.»

Pedro Nuno Santos, Sinais

«Uma profunda mudança estrutural da economia portuguesa? Devem estar bêbados. O exemplo da Irlanda? O volume das exportações irlandesas cresceu 7,5% - é verdade - nos anos do programa. Teve um superavit nos últimos 4 anos, verdade. Mas, o PIB caiu 8,5%. Eis o sucesso. (...) Não tivessem os celtas imposto a resolução das promissórias a seu contento (transformando-as em dívida de muito longo prazo) e hoje estariam a penar a mendigar um "cautelar" e a levar com mais "condicionalidades" do Óllio de Rhena e do rapaz holandês dos óculos. Não tivessem mantido o truque do IRC e a capacidade reexportadora e de emissão de facturas teria ido ao ar. Foi isso que perceberam os investidores internacionais na dívida (pedem 3,5% para transaccionar os títulos a 10 anos). Sim, sim, foi mesmo por causa das "reformas" da austeridade. Acreditem na Virgem.»

Jorge Nascimento Rodrigues (via facebook)

«Durão Barroso garante que não ameaçou ninguém, limitou-se a informar o TC das "implicações de determinadas decisões" e a dizer que, se as medidas constantes do Orçamento de Estado para 2014 forem chumbadas, terão de ser substituidas por outras, "provavelmente mais gravosas". Como é evidente, não estamos perante uma ameaça, mas apenas perante uma advertência de um Durão Barroso, que (...) nos oferece, generosamente, uma reinterpretação (...) da Constituição da República Portuguesa: a validade das leis em Portugal não depende da sua conformidade com a Constituição, mas da sua conformidade com as conveniências da Troika e do governo português em funções.. (...) A Comissão Europeia de Durão Barroso não se comporta como a guardiã de Tratados que respeitam a igualdade entre Estados e que tem como um dos seus pressupostos constitutivos a existência de um Estado de Direito Democrático em cada um dos seus Estados Membros. Faz, sim, o seu exacto oposto agindo contra (...) o espírito dos tratados e contribuí[n]do para criar uma comunidade de desiguais que é incompatível com qualquer ideia (aceitável) de Europa.»

João Galamba, Esta Europa contra nós

«Como a reestruturação da dívida grega em 2012 mostrou, uma dívida é sustentável até o lado credor decidir quando ela deixa de o ser: só quando o Norte da Europa estimou que um 'haircut' da dívida produzia estragos inferiores aos que um 'default' inicial provocaria no seu setor financeiro é que aceitou perdas para os seus bancos. No limite, uma dívida será "sustentável" enquanto o credor puder manipular o timing da solução e o devedor aceitar impôr ao seu povo os sacrifícios que julgar necessários para a pagar. Talvez seja uma questão de tempo até que a pergunta "como reestruturar a dívida?" mobilize todos os partidos. Resta saber qual o nível da devastação socioeconómica até lá (...) e como avaliar as consequências: seria aceitável trocar uma redução da dívida por uma perda punitiva de soberania? Talvez fique então à vista o trilema com que Portugal pode vir a confrontar-se: entre desenvolvimento económico, níveis mínimos de autonomia democrática e pertença à zona euro, poderemos ter dois destes elementos, mas não os três. Resta saber de qual abdicamos.»

Hugo Mendes, Elefante na sala

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Sair do euro para sair da crise


A pressão dos mercados financeiros sobre um país crescentemente endividado, a tutela do Tratado Orçamental e a fragilidade da nossa economia não desaparecem com o fim do Memorando. Nem o processo de germanização da zona euro é suspenso. Por outro lado, a federalização da UE está fora de questão, já que a esmagadora maioria dos alemães nem sequer imagina correr o risco de se sujeitar a leis que obriguem o BCE a financiar os estados ou os países excedentários na balança de pagamentos a apoiar os deficitários. Veja-se a crescente perda de confiança dos alemães na política monetária do BCE, apesar dos evidentes riscos de deflação, e a tenaz resistência do governo alemão ao projecto de uma autoridade bancária supranacional com poder para decidir a falência de algum dos seus bancos.

Sair da zona euro tem custos, mas é bom lembrar que nela permanecer impõe uma perda decisiva, a dos instrumentos de política económica indispensáveis ao desenvolvimento. Sair implica uma subida inicial dos preços de bens importados provocada pela desvalorização do novo escudo. Neste contexto, lembro que a subida do preço dos combustíveis seria muito inferior ao da desvalorização já que esta apenas incide sobre o custo da matéria-prima; impostos e taxas representam mais de metade do preço de venda ao público. Quanto aos salários e às pensões, seria possível actualizá-los sem gerar uma espiral inflacionista. Um acordo de Concertação Social seria facilitado pelo clima de confiança gerado pelo lançamento de um programa de criação de milhares de empregos socialmente úteis, envolvendo entidades locais de diferentes sectores e financiado por emissão monetária. Segundo as simulações de Jacques Sapir, o impacto da desvalorização nos preços reduzir-se-ia substancialmente ao fim de dois anos.

Apesar de entretanto já ter saído do país muito dinheiro, chegado o dia seria necessário encerrar os bancos e introduzir o controlo dos movimentos de capitais. Uma estratégia de introdução da nova moeda, de uma só vez, implicaria a conversão imediata dos depósitos bancários em novos escudos no mesmo montante. O mesmo aconteceria às dívidas contraídas ao abrigo da lei nacional. Os preços seriam também os mesmos, em novos escudos. Provisoriamente, as notas e moedas em circulação seriam aceites nos pagamentos como sendo novos escudos. É verdade que os bancos teriam de ser recapitalizados mas isso teria solução imediata e sem custos. O governo criaria um fundo de recapitalização financiado pelo Banco de Portugal (moeda electrónica) que, entrando no capital social dos bancos, os transformaria em bancos públicos. Recentrado no mercado nacional, em devido tempo o sistema bancário teria de ser redimensionado e sujeito a novo enquadramento jurídico.

A dívida externa contraída ao abrigo da legislação nacional ficaria convertida na nova moeda, como prevê o direito internacional. Os casos da EDP e da Petrogal teriam de ser tratados de forma particular, para evitar rupturas. A dívida externa pública que permanecesse em euros seria objecto de uma moratória que reduziria a saída de divisas e forçaria a sua renegociação.

Ponto importante: as pensões e os salários dos funcionários públicos seriam repostos ao nível anterior ao Memorando através de financiamento monetário. Sendo as importações agora muito mais caras, além de administrativamente mais controladas, a economia seria fortemente estimulada por esta medida, reforçando o já referido programa público de criação de empregos.

Finalmente, não há qualquer risco de isolamento do país. A saída de um membro da zona euro, além de precipitar a saída de outros, conduzirá (após alguma turbulência inevitável) a uma UE a várias velocidades. A Alemanha começaria a pagar o preço do seu mercantilismo agressivo, ao mesmo tempo que o crescimento e o emprego regressariam ao Sul da Europa.

Está nas nossas mãos a saída da crise. Lembrando Roosevelt, "a única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo".

(O meu artigo no jornal i)

Debate sobre «A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes» na Biblioteca da Assembleia da República



«Este livro, do meu ponto de vista, é um livro que deve ser lido e estudado por todos os que queiram compreender, independentemente de opções ideológicas, quais são as origens efectivas da crise. As causas efectivas e estruturais da crise a que chegámos nos últimos anos.» (Octávio Teixeira)

«É excelente como narrativa explicativa da crise, como narrativa de crítica à resposta à crise.» (João Cravinho)

«Aquilo que é a visão, uma visão do percurso "crise-troika-alernativas" à esquerda, segundo os autores, está aqui escrito. E portanto isso limita o debate político desde logo a quem esteja do outro lado, o que é naturalmente o meu caso, não é surpresa para ninguém.» (João Almeida)

«Eu também acho que este livro devia ser lido por toda a gente. Aliás, se fosse possível fotocopiar milhões de exemplares, eu voluntariava-me para ir pelas ruas oferecer nas paragens de autocarro e nos sinais de trânsito e ia distribuir por toda a gente.» (Isabel Moreira)

«Quando confrontado com os erros sucessivos dos cenários macroeconómicos desenvolvidos pela troika, em parceria com o governo português, ele [Olli Rehn] disse: "para nós o que é importante não é o cumprimento das metas do ajustamento orçamental, para nós o que é importante é o empenho do governo no prosseguimento, na concretização da agenda de reformas estruturais". E portanto é disso que se trata: o objectivo do Memorando de Entendimento é conseguir uma reconfiguração do regime económico, social, e portanto político, da sociedade portuguesa.» (José Guilherme Gusmão)

Breves excertos das intervenções e comentários na sessão de apresentação e debate do livro «A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes», promovido pelo Congresso Democrático das Alternativas e que teve lugar na Biblioteca da Assembleia da República no passado dia 6 de Novembro. Disponibilizaremos aqui, brevemente, os vídeos com as intervenções de todos os oradores.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Catástrofes

No momento em que se prepara mais um choque de austeridade para Portugal, é bom lembrar o exemplo grego. Por mais que conheçamos a situação grega, os números são sempre chocantes.

A cobaia da Europa continua a sofrer os efeitos das escolhas políticas da Troika e continua a provar-nos a cegueira de uma Europa que corre (e muito bem!) a ajudar as vítimas de catástrofes naturais inevitáveis, enquanto continua a provocar e agravar as suas tão deliberadas e desnecessárias catástrofes humanitárias internas.

O desemprego massivo acompanhado da redução drástica dos serviços públicos é um problema humanitário dramático na Grécia, e cada vez mais em Portugal. A austeridade mata!

Amanhã: Debate da ATTAC sobre a privatização dos CTT


«O Governo prepara-se para vender uma empresa pública que garante a coesão social e territorial, é um dos maiores empregadores nacionais e garante lucros anualmente.
O Governo justifica a venda com motivos ideológicos, o PS inscreveu-a no memorando da troika, os trabalhadores não desarmam na luta pela manutenção da empresa na esfera estatal.»

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Dos silêncios convenientes dos rankings de escolas

1. Pelo segundo ano consecutivo, o Ministério da Educação disponibilizou - a par dos resultados dos exames que permitem elaborar rankings de escolas - indicadores de caracterização do contexto socioeconómico dos alunos (profissões e habilitações escolares dos pais e recurso à Acção Social Escolar). E também pelo segundo ano consecutivo, o Ministério da Educação recusou-se a disponibilizar estes mesmos dados para os estabelecimentos do ensino privado. De facto, nem sequer no caso dos colégios e escolas particulares que beneficiam de apoio estatal o acesso a estes elementos de caracterização de contexto foi assegurado pelo ministro Nuno Crato.

2. Como se explica esta duplicidade de critérios e a sonegação deliberada de informação? O que temem Nuno Crato e os interesses que o ministro representa? Se é por mérito próprio - e não pela selectividade social que resulta da liberdade de poderem escolher os seus alunos - que os colégios e as escolas privadas tendem a obter melhores resultados nos rankings, porque razão se fecham a sete-chaves os dados de caracterização socioeconómica de quem os frequenta? A resposta a estas questões torna-se por demais evidente: no dia em que for divulgada informação sobre as origens sociais dos alunos dos colégios e escolas particulares, sobretudo das que obtém melhor posicionamento nos rankings, desfaz-se o mito da supremacia intrínseca do ensino privado. Isto é, no dia em que se tornar possível aceder a estes dados, os idiotas úteis ao serviço do uso fraudulento dos rankings serão obrigados a abdicar da ligeireza com que hoje os analisam e enaltecem. Aliás, enquanto não lhes fosse dado acesso à mesma informação de que hoje já dispõem para as escolas públicas, os órgãos de comunicação social que se dedicam anualmente a estabelecer as ordenações de escolas deveriam recusar-se a incluir os privados nesse exercício.

3. Mas esta duplicidade de critérios na gestão da informação revela também, com particular eloquência, os termos em está a ser concretizado o reforço inaudito do «Estado paralelo» a que Pedro Adão e Silva se referiu recentemente, a propósito do guião de Paulo Portas. A criação de novos mercados, que parasitam o Orçamento de Estado através da contratualização de serviços públicos com privados, padece deliberadamente de um mal que não é sequer novo: a mais que escassa «transparência e ausência de regulação e escrutínio». De facto, para os ideólogos do «ir ao pote», os privados são bons quando se trata de os considerar como parte integrante dos sistemas de política social pública. Mas ficam dispensados, na hora da prestação de contas, do rigor e do escrutínio, das mesmas obrigações a que se submetem os organismos públicos. Até um dia, em que talvez venhamos finalmente a perceber onde estavam as verdadeiras gorduras do Estado e o quanto elas nos custaram em ineficiência, em desigualdade e no desvio, para bolsos privados, do dinheiro de todos nós.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Sobre fraudes, ameaças, ameaças fraudulentas e fraudes ameaçadoras

1. Rui Peres Jorge sublinha bem como a austeridade está inscrita nas regras do jogo europeu, entre as quais está o pacto orçamental, o que, na perspectiva da política orçamental, faz com que não possamos esperar nenhuma alteração relevante neste quadro, seja num programa cautelar, num resgate ou noutra coisa qualquer, expondo indirectamente a fraude do sobressalto soberanista que percorre uma parte das elites do poder num país sem instrumentos de política relevantes.

2. A The Economist está preocupada com a deflação à japonesa, que ameaça a zona euro, em geral, e as suas periferias endividadas, em particular, que isto do desenvolvimento desigual é uma realidade em todos os campos, vítimas de um fenómeno que aumenta o fardo real da sua dívida. O enviesamento deflacionário das políticas inscritas no euro, a forma como beneficia os credores, é conhecido há muito e a interacção perversa entre dívida e deflação, o segredo de todas as grandes depressões ou estagnações, também.

3. A Comissão prepara-se para abrir uma investigação, que se diz aprofundada, à Alemanha devido aos seus excedentes sistemáticos e elevados de balança corrente. O governo alemão deve estar mesmo preocupado com uma suposta pressão, que, a existir, só pode ser de "natureza moral", digamos, ao contrário das formas de pressão imorais que o centro exerce na periferia. A natureza assimétrica dos ajustamentos, no centro e na periferia, aí está a revelar a natureza assimétrica do poder nas relações económicas internacionais e o preço que os países menos desenvolvidos pagam por ficções europeias, como a da partilha de soberania no campo monetário e não só.

domingo, 10 de novembro de 2013

Um jornal das crises e das alternativas

O Estado que este Orçamento consagra é um Estado refém. Mas não o é apenas de uma dívida que tem de ser profundamente reestruturada nem de um desvio de recursos públicos que têm de ser reorientados para o Estado social, saibamos nós ocupar e defender, mais do que nunca, os serviços públicos. Desde a década de 1980 que o neoliberalismo está a ganhar força contra o bem-estar comum. Aqui chegados, não podem ser adiadas respostas corajosas que lhe abalem as estruturas e o façam soçobrar. Quem não tiver esta coragem limitar-se-á a tentar gerir uma tragédia ingerível.

O artigo mensal de Sandra Monteiro - Um Estado refém - funciona como uma excelente introdução ao dossiê sobre o Orçamento do Estado que consta da Edição de Novembro do Le Monde diplomatique - edição portuguesa e que conta com artigos dos Ladrões de Bicicletas José Castro Caldas e Nuno Serra, bem como de Eugénio Rosa e Luís Bernardo. Não percam. 

«Não há uma redistribuição de sacrifícios»



«Quando nós vamos ver a realidade dos cortes, vemos é que 70% dos cortes são salários e pensões. E ainda diminuem este limite para os 600€ brutos. É a isto que se chama aumentar a equidade. (...) O resto são cortes tranversais em serviços públicos, sem nome, sem cara, sem que ninguém diga onde é. Pegam em 580 milhões e dizem e dizem vamos distribuir, vamos cortar transversalmente em serviços públicos. Isto é destruir, por dentro, o funcionamento dos próprios serviços. É precisar de uma máquina e não a ter, é precisar de uma impressora e não a ter, é precisar de um instrumento para fazer um diagnóstico ou um exame médico e não ter. (...) Isto equivale a 96% dos cortes na despesa. Os outros 4% é banca e sector energético. O orçamento equitativo que nos apresentam é um orçamento que nos diz que 250 milhões é a banca e as grandes empresas de energia; 3.184 milhões são salários, pensões e cortes nos serviços públicos. E isto é um orçamento supostamente sobre as "gorduras" do Estado. E há um extra: é que os 250 milhões que a banca e a energia pagam, para contribuir para o Orçamento de Estado, são os 250 milhões que o Lobo Xavier previa de perda de receita fiscal pela baixa do IRC. E portanto retira-se do lado do IRC, baixa-se o IRC a estas empresas e depois cobra-se uma taxa mínima, com uma contribuição mínima para o Orçamento de Estado, que no fundo torna a contribuição destas empresas e destes sectores para a tal consolidação orçamental perfeitamente neutra. Não há uma redistribuição de sacrifícios: há um ataque cerrado e muito direccionado a salários, a pensões e a serviços públicos.»

Intervenção de Mariana Mortágua, no debate promovido pelo CDA, «Rejeitar o Orçamento, afirmar alternativas», realizado no Liceu Camões, em Lisboa, no passado dia 31 de Outubro.

sábado, 9 de novembro de 2013

Privatês


A jornalista Ana Leal da TVI está de parabéns. A Verdade Inconveniente sobre os colégios privados, que passou esta semana na TVI, é reportagem no seu melhor. Se ainda não viram, não percam:

“Uma equipa da TVI percorreu o país e encontrou escolas públicas vazias, em risco de fechar, cercadas por colégios privados que nunca deveriam ter tido autorização para serem construídos. Uma teia de cumplicidades que abrange ex-governantes que, depois de exercerem os cargos, passaram a trabalhar para grupos económicos detentores de muitos desses colégios, ou ex- diretores regionais de educação que fundaram depois colégios que são pagos com o dinheiro dos contribuintes.”

É a economia política da ida ao pote, o tal Estado paralelo, o neoliberalismo, ou seja, uma engenharia política de demolição do que é público e de construção e decisivo reforço de interesses capitalistas, em todo o seu esplendor na educação. O privatês de Crato precisa mesmo de um contramovimento político à altura, o que requer a multiplicação das análises críticas sobre invenções políticas neste campo, de que são exemplos o novo estatuto do ensino particular e cooperativo e o planeado cheque-ensino, sendo que algumas destas tecnologias deseducativas têm por aqui sido escalpelizadas nas suas perniciosas consequências, em especial pelo Nuno Serra.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O desemprego e a precariedade não são estruturais...

Pelo menos é o que o Nuno Teles irá defender numa das sessões deste fórum contra-hegemónico. Podem inscrever-se aqui.

A questão

Ana Sá Lopes, a propósito do livro A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes, coloca a questão: Quer austeridade para sempre ou aceita o risco de sair do euro?

Ulisses: Relançar a Europa a partir do Sul



«Ulisses e os seus marinheiros vaguearam durante dez anos no mar até chegar a casa. Pelo caminho, várias paragens. Uma delas na ilha de Circe. Intrigados por um fumo na floresta, alguns marinheiros embrenham-se na ilha e encontram a inebriante Circe. A deusa abre a porta resplandecente e convida-os a entrar na sua casa. Ardilosa, dá-lhes a beber uma droga que lhes tira a memória. E com um toque de magia transforma-os em porcos. Euríloco é o único que consegue fugir e avisa Ulisses. O herói, ajudado por Hermes, ataca a deusa e obriga-a a desfazer o feitiço. Refeitos do susto, seguem viagem rumo a Ítaca.
Que semelhanças há entre esta história e a realidade dos países em crise? (...) Tal como os marinheiros, também Portugal, a Irlanda, a Itália, a Grécia e a Espanha foram transformados nos porcos da União Europeia. PIGS, chamaram-lhes. E tal como estas personagens, que viveram dez anos de guerra e depois dez anos de viagem, também estes países estão em crise há dez anos, desde a introdução do euro. E precisam de dez anos para recuperar e relançar as suas economias. O mais importante, contudo, é que eles podem ser salvos da Circe. Ou melhor, da crise. Como? O Projecto Ulisses é a ideia. (...) É a defesa de um modelo de desenvolvimento para os países a que chamaram PIGS (...), baseado na valorização e não na desvalorização desses países. E é um projecto de integração europeia, baseado nas virtudes que associamos normalmente a Ulisses, que são as da imaginação, da inovação, do diálogo e da busca de soluções que são vantagem mútua para todas as partes.»

Quando puderem, dediquem uma hora do vosso tempo a esta apresentação do Projecto Ulisses, concebido por Rui Tavares. Tomando a Odisseia como metáfora, é aqui proposta uma viagem às verdadeiras causas da crise e aos impactos económicos e sociais que esta provocou nas periferias europeias. A que se segue uma outra viagem: a viagem a um  futuro da Europa pensado a partir de uma estratégia de desenvolvimento que nasce no Sul. Com contributos, entre outros, de Yanis Varoufakis, James K. Galbraith, José Reis e Stuart Holland, esta é uma perspectiva sobre a crise e a sua superação que deve fazer parte do debate europeu.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

«Aquilo que aconteceu tinha mesmo que acontecer, era sabido»



«(...) Por cada euro "poupado" no défice desapareceu no PIB um 1,25€. (...) Por cada euro "poupado" no défice, a dívida pública aumentou 8,7€. É por estas e por outras que eu acho que a primeira reacção que se tem, quando se fazem estas contas simples, é que a austeridade é estúpida. Não consegue sequer fazer aquilo que tem como objectivo, ou que apresenta como objectivo. (...) Mas tem mais coisas. Também é cruel, como nós sabemos. Porque durante o mesmo período, de 2011 a 2013, desapareceram 10% dos empregos em Portugal. Durante o mesmo período, em 2011 e 2102, houve 220 mil portugueses que tiveram que sair do país. (...) E o pior de tudo é que aquilo que aconteceu era mesmo o que tinha que acontecer. Nós (...) sabíamos perfeitamente que uma consolidação orçamental, num contexto de uma recessão económica, produz necessariamente uma amplificação da recessão económica e pode ter como efeito não a consolidação que é desejada, mas a derrapagem permanente, em que os défices não se reduzem, ou se reduzem muito menos do que era procurado. Isto era sabido. É Economia básica. A questão que se pode perguntar é esta: eu comecei por dizer que eram 20 mil milhões de euros de consolidação orçamental; eles conseguiram na realidade reduzir 6 mil milhões ao défice... Há aqui uma diferença interessante, de 14 mil milhões. Para onde é que eles foram? Ardeu, desapareceu, foi queimado, foi desperdiçado, puro desperdício. Puro desperdício. (...)»

Intervenção de José Maria Castro Caldas, no debate promovido pelo CDA, «Rejeitar o Orçamento, afirmar alternativas», que teve lugar no Liceu Camões, em Lisboa, no passado dia 31 de Outubro. Para ver e ouvir na íntegra.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O problema está na procura ou nos impostos?

No final do programa Prós & Contras do passado dia 21 de Outubro, eu e o Ricardo Arroja envolvemo-nos num breve e acalorado debate sobre os fatores determinantes da quebra contínua do investimento que se vem verificando em Portugal há vários anos e que se acentuou no período do austeritarismo (-10,5% em 2011, -14,3% em 2012, -8,5% em 2013).
 
O meu homónimo defendia que a prioridade da política económica para fazer relançar o investimento deveria estar centrada na descida dos impostos sobre as empresas. Eu contrapus, chamando a atenção para os resultados do Inquérito de Conjuntura ao Investimento do INE, que há vários trimestres indica que a “deterioração das perspetivas de vendas” constitui, de longe, o principal factor limitativo ao investimento empresarial (sendo 5 a 6 vezes mais importante do que a “incerteza quanto à rentabilidade dos investimentos” ou as “dificuldades em obter crédito bancário”).

A minha conclusão é clara: o principal entrave ao investimento no momento presente é a falta de procura. Ou seja, a política de austeridade em tempos de crise não se limita a destruir empregos no imediato, mas adia também a recomposição e modernização da capacidade produtiva da economia portuguesa.

O Ricardo Arroja regressou hoje aos temas do Prós & Contras, num artigo no Diário Económico com o sonante título “A manipulação”. Embora não refira explicitamente o debate que tivemos, os temas abordados deixam poucos equívocos, merecendo aqui a devida resposta.

Refere o autor que está de regresso “uma certa argumentação segundo a qual não são as empresas que criam emprego; nesta linha de pensamento, quem cria emprego são os consumidores”, o que tem como corolário “que é a procura interna que deve ser estimulada, e não o investimento”.

Não sei se é manipulação sua ou se o Ricardo Arroja não percebeu o argumento. Se na ciência económica se fala em oferta e em procura é porque uma não faz sentido sem a outra. Há produção e há emprego porque há quem produza (já agora, não são só empresas que o fazem) e porque há quem consuma o que se produz. Quando as coisas não estão bem, pode ser porque há problemas num dos lados, no outro lado, ou em ambos. O meu argumento é que, no momento actual, não há investimento porque não há procura. Qual é a dúvida?

Ricardo Arroja refere um “segundo corolário” segundo o qual “o nível da fiscalidade é somente secundário em matéria de incentivo ao investimento”. Para criticar este suposto corolário, o autor socorre-se de um relatório do Fórum Económico Mundial, segundo o qual as taxas de imposto e as leis fiscais constituem o principal obstáculo à competitividade internacional de Portugal. Aqui, o Ricardo dá vários passos em falso.

Desde logo, o conceito de competitividade é tudo menos unívoco, sendo utilizado tanto de um modo restrito e referindo-se ao curto-prazo (e.g., estando a competitividade refletida nos custos reais do trabalho – esta é a interpretação habitual do FMI, por exemplo), como de um modo amplo e referindo-se ao longo prazo (e.g. envolvendo a capacidade sustentada de criação de riqueza e de emprego numa economia – esta é uma interpretação frequentemente utilizada pela OCDE, por exemplo), sendo por vezes as duas dimensões incompatíveis. Logo, interpetar a ideia de “obstáculo à competitividade” como correspondendo a um determinante do baixo investimento num momento específico é, no mínimo, excessivo.

Em segundo lugar, percebe-se mal por que motivo Ricardo Arroja dá mais importância aos resultados de um inquérito baseado numa amostra de 100 responsáveis por empresas de grande e média dimensão (ver cap. 3 do dito relatório, aqui), do que a um inquérito estatisticamente representativo do INE. Afirma o Ricardo sobre o tal relatório que “Estes resultados derivam de inquéritos realizados a empresários e gestores sediados em Portugal, cujas empresas reflectem a estrutura empresarial típica do nosso País”. Tenho dificuldade em perceber como é que uma amostra estatisticamente não representativa, construída a partir de uma lista inicial escolhida a dedo e que exclui as micro e pequenas empresas (que representam 97,5% do tecido empresarial português), pode ser considerada um argumento de autoridade.

Finalmente, não sei se propositadamente ou não, o Ricardo Arroja ignora a distinção entre determinantes do investimento em diferentes horizontes temporais. A fiscalidade (e a incerteza sobre a mesma) é, seguramente, um dos (muitos) factores que as empresas têm em conta nas suas decisões de investimento. Mais, podemos afirmar com um elevado grau de certeza que uma economia onde os impostos sobre as empresas se mantenham muito elevados durante muito tempo tende a atrair menos investimento do que uma economia de características semelhantes em que os impostos são sistematicamente mais reduzidos (principalmente quando estão em causa empresas que podem escolher a sua localização).

Mas a nossa discussão não é abstracta. O que temos de saber é: no momento actual, é ou não possível recuperar o investimento sem relançar a procura? É aqui ou na descida de impostos sobre as empresas que deve estar a prioridade das políticas públicas, se o objetivo é relançar o investimento e o emprego?

Se tivermos em conta (i) que cerca de 30% das empresas portuguesas se encontram em situação de incumprimento de créditos bancários e (ii) que a esmagadora maioria das empresas em Portugal (como, aliás, na maioria dos países do mundo) depende da procura interna como principal fonte de receitas (e isto aplica-se a grande parte das empresas exportadoras e não só aos setores não-transaccionáveis…), não nos restarão muitas dúvidas quanto à resposta àquelas questões. A não ser que acreditemos que a descida de impostos sobre as empresas vai convencer quantidades imensas de investidores estrangeiros a instalar capacidade produtiva num país à beira da falência e que vive sob a promessa de uma austeridade prolongada. Aí, estamos no domínio da fé. Cada um tem a sua e há que respeitá-la.

Hoje: Debater a Crise, a Troika e as Alternativas

Liberdade para poucos


O guião para a reforma do Estado apresentado pelo Vice-Primeiro-Ministro, não é apenas um documento com generalidades e redigido de forma juvenil. É um guião para uma reforma ideológica do Estado, que descreve por escrito uma agenda, cuja concretização já se iniciou, de entrega ao mercado de importantes funções sociais do Estado. Não tem como objectivo prestar serviços públicos com mais qualidade, nem sequer reduzir a despesa do Estado. As propostas para a educação são um dos melhores exemplos do que está em causa. A criação de "escolas independentes", o reforço dos contratos de associação com escolas particulares ou a criação do cheque-ensino, são propostas que a pretexto da "liberdade de escolha" têm como único objectivo entregar a educação ao mercado e utilizar fundos públicos para financiar negócios privados.

A revista "The Economist" desta semana, por coincidência, aborda este debate a propósito do sistema de ensino sueco e dos maus resultados que tem apresentado ao longo da última década. A reforma que a direita portuguesa deseja fazer no sistema educativo português é parecida com a reforma que a Suécia fez há já 20 anos. Os pais suecos podem escolher entre escolas municipais e escolas independentes, todas elas financiadas pelo Estado. O objectivo era promover a concorrência entre escolas e, como consequência, a qualidade do ensino.

Fiquemos, para já, com alguns factos: a Suécia não diminuiu os gastos públicos com educação - continua a ser um dos países do mundo que mais gasta com educação, segundos dados da OCDE; os resultados dos alunos suecos nos estudos do PISA (o mais importante estudo internacional sobre os diferentes sistemas de ensino no mundo) têm vindo a cair desde que este foi feito pela primeira vez no ano 2000; e a diferença de qualidade entre escolas tem aumentado e com ela a segregação - os melhores alunos concentram-se e fluem para as melhores escolas. É uma reforma que não poupa, não melhora os resultados e acentua a desigualdade. Só nos promete a ilusão de uma liberdade que nunca se chega a concretizar.

(Artigo publicado às quartas-feiras no jornal i)