terça-feira, 31 de julho de 2018

No horizonte

Através de Carlos Cipriano, um jornalista especializado que nos lembra para que servem os jornais, ficamos sempre com uma ideia do que se passa na ferrovia: “Aluguer e compra de comboios rápidos foram proibidas por Pedro Marques. No horizonte pode estar a privatização do serviço de longo curso.”

De facto, “a liberalização [imposta pela UE] do serviço ferroviário de passageiros terá aberto o mercado português às empresas estrangeiras, nomeadamente, à Renfe, mas também à DB (através da Arriva), à SNCF e até a operadores portugueses de que a Barraqueiro (que já é um grupo rodoviário, ferroviário e de transporte aéreo) é um exemplo.”

Confirma-se que, no fim da história, a privatização continua a ser o horizonte intransponível da política. Confirma-se que, no fim da história, se depender também deste governo, fica pouco mais do que aquilo que for interessante para a lógica predadora do capital multinacional.

Neste contexto, vale a pena atentar na declaração de Rui Braga sobre o sector ferroviário. A sistematização, feita neste caso pelos comunistas portugueses, dos passos que têm de ser dados para reconstruir os caminhos-de-ferro de Portugal indica-nos ao mesmo tempo a extensão do dano infligido, o esvaziamento deste velho Estado, confirmando que o neoliberalismo é toda uma engenharia política, tão multi-sectorial quanto multi-escalar.

Por sua vez, a política alternativa concreta para um sector de provisão concreto tem de ser parte de um projecto de reinício de uma história para, e por, um país concreto.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Três embaixadores

Por que razão tem o Governo uma proposta de revisão do Código do Trabalho que, ao mesmo tempo que propõe limitadas medidas de combate à precariedade, vai além do acordo na concertação social e fica mais próximo do pensamento patronal, sobretudo na contratação colectiva? (ver a análise feita ao acordo e à proposta de lei).

Esta inconsistência fica por explicar. Mas convém acrescentar que não foi caso único nos últimos tempos. 

A legislação laboral foi mexida em 2003 (Bagão Félix), em 2009 (Vieira da Silva) com claro acordo patronal e condenação sindical. Em 2010,  houve tentativas de mudança - por pressão continuada da Comissão Europeia  - que redundaram num acordo de concertação social em Março de 2011 (Helena André), que foi "embrulhado" com medidas de combate à crise. Esse acordo veio a ser ampliado - e já sem nada "embrulhado" pelo Governo PSD/CDS, em plena troica, em janeiro de 2012 (Mota Soares e Álvaro Santos Pereira), com o entusiasmo de toda a equipa governamental.

Esta instabilidade permanente da lei - diga-se - em pouco contribuiu para a competitividade da economia, como se pretendia.

Sobretudo desde 2010, a mexida na lei laboral tem sido a tónica de pressão da Comissão Europeia e das instituições multilaterais, sem que se pretenda em algum momento aferir dos seus resultados, e sem se preocupar com a vida das pessoas. É apenas um instrumento de uma teoria errada que sustenta uma guerra pelo poder laboral. Visa uma contenção salarial a todo o custo e uma redução do poder sindical, sem olhar a meios.

Nos momentos de fragilidade, Portugal sofreu essa pressão. E essa pressão foi eficaz. Porquê?  

Para isso, contribuiu o facto de todos os ministros de Finanças, pelo menos desde a crise 2007/8 aceitarem essa componente da teoria errada. Centeno tem uma visão articulada do mundo do Trabalho em numerosos documentos que vão nesse sentido e acabou à frente do Eurogrupo. Vítor Gaspar foi a cara da política pura e dura da austeridade e acabou no FMI. Fernando Teixeira dos Santos (FTS) foi um verdadeiro embaixador das teses de Bruxelas em matéria laboral. E já nem se fala de Jorge Braga de Macedo (ministro entre 1991 e1993), absoluto defensor do errado Tratado de Maastricht; ou de Vítor Constâncio ex-governador do Banco de Portugal e dirigente reformado do BCE que sangrou a Grécia; ou de Carlos Costa, economista chefe da REPER em 1992, homem de confiança de Cavaco Silva, quadro defensor da estratégia portuguesa de 1992 e um eficaz elemento de pressão sobre o Governo socialista (2009-2011).   

Repesquece-se o livro Resgatados, de David Dinis, ex-director do Observador e do Público, e de Hugo Filipe Coelho. Os relatos são elucidativos de como se fez, insidiosamente ou de forma brutal, a penetração em Portugal das ideias de Bruxelas - em matéria laboral - através do ministro português das Finanças e do Banco de Portugal. Tal como na Grécia, caso se leia o livro de Yanis Varoufakis Comportem-se como adultos: o stablishment sempre pugnou por uma intervenção externa que impedisse os bancos alemães e franceses de perder dinheiro nos investimentos em dívida pública grega, irlandesa, portuguesa, pagos a preço de ouro. E pelo caminho, aproveitando a fragilidade, mexia-se na legislação laboral.

Um dia também, conhecer-se-á os pormenores palacianos da actual iniciativa legal. E resta saber se não está a ser como o que se passou em 2010/11.

Ora, leia-se uns apanhados do livro:     

domingo, 29 de julho de 2018

Portugal não é a Grécia? Não. Portugal é Moçambique


Em 2007, as Estradas de Portugal apresentavam uma situação financeira “preocupante”. Precisavam de cerca de 10 mil milhões para fazer face aos compromissos financeiros de médio e longo prazo. O objectivo do executivo de José Sócrates era resolver o problema de endividamento das Estradas de Portugal, tendo escolhido Almerindo Marques para liderar o novo modelo de gestão e financiamento da rede de infra-estruturas rodoviárias e da transformação da EP em sociedade anónima.

Em 2009, o governo de José Sócrates decidiu avançar com a adjudicação de 11 concessões rodoviárias, financiadas em regime de parcerias público privadas (PPPs). Esta modalidade de financiamento público tem a particularidade de conciliar o esforço de desorçamentação e contenção da dívida pública imposto pela União Europeia, mesmo que isso implique um custo mais elevado para o erário público, com a pressão da banca nacional e estrangeira e dos grupos económicos para criar oportunidade de acumulação de lucro, mercadorizando a criação de infraestruturas e a provisão pública de serviços.

Ditam as regras que nos concursos públicos existam duas fases, servindo a segunda para melhorar custos ou aspectos técnicos, contudo, sem ser possível aumentar o custo do financiamento. Acontece que a crise financeira 2007-2009 veio debilitar a banca nacional, dadas as perdas que a actividade da banca de investimento impôs sobre os balanços, e dificultar o acesso aos mercados financeiros, causando uma erosão de liquidez e aumentando substancialmente o seu custo de financiamento. Neste contexto, existia uma pressão imensa por parte dos vários envolvidos para avançar com as PPPs, mesmo que o momento não se afigurasse o melhor e a sua implementação representasse um agravamento dos custos. Entre a fase inicial e a fase final do concurso público, esta deterioração das condições de financiamento representava, para 7 das PPPs, um agravamento dos custos em €705 milhões, considerando, em 2009, o valor presente dos fluxos de remuneração futura ocultos.

É neste contexto que a viabilização do chumbo ao visto prévio do Tribunal de Contas para aqueles projectos passa pelo recurso à mais habilidosa e perigosa engenharia financeira: cartas de acompanhamento (side letters) assinadas entre as três partes (governo, concessionárias e banca) que estipulam os termos e as condições financeiras dos contratos paralelos de swap que agravam os juros e permitem aos bancos adquirir a remuneração desejada. Para que os concursos fossem aprovados pelo Tribunal de contas, os contratos foram revistos e “corrigidos”. O agravamento das condições financeiras foi remetido para um anexo que não foi entregue ao Tribunal de Contas, aspecto agora denunciado em relatório da polícia judiciária.

Trata-se de um expediente usado para camuflar o agravamento dos custos e impor uma solução contrária aos interesses dos cidadãos portugueses. Em suma, uma situação de dívida ilícita e ilegítima, que recorre a expedientes onerosos, ilegais e imorais, não muito diferente do que acontece em países em desenvolvimento em situação de sobreendividamento do soberano, que pode mesmo conduzir ao incumprimento, como no caso de Moçambique.

Moçambique tinha o reconhecimento dos parceiros bilaterais e multilaterais, sendo considerado um país que maximizava a ajuda e o financiamento ao desenvolvimento. A sua reputação foi fortemente abalada por episódios que reportam a 2013 e 2014. Naquele período, três empresas públicas moçambicanas contraíram dívida no valor de USD 2.2 mil milhões para financiar projectos ligados à proteção e segurança costeira. A Proindicus com USD 622 milhões, a Moçambique Asset Management (MAM) com USD 535 milhões e a Empresa Moçambicana de Atum (EMATUM) com USD 850 milhões. A colocação destes empréstimos bancários foi intermediada pelos bancos Credit Suisse e VTB Capital, dois bancos de investimento de nacionalidade Suíça e Russa, que receberam cerca de USD 60 milhões em comissões. No caso da ProIndicus e da EMATUM, foram ainda pagas “contractor fees”, que não eram mais nem menos que compensações a pagar aos bancos membros do sindicato para dessa forma manter a taxa de juro artificialmente baixa (Libor+3.2%/3.7%, contra Libor+7% no caso da MAM).

Para libertar o balanço dos bancos membros do sindicato, os bancos que montaram as operações, possivelmente porque ficaram com parte substancial da dívida, procederam, em conjunto com o BNP à securitização da dívida da EMATUM, colocando lotes fracionados de dívida titulada em investidores privados – entre eles, em bancos moçambicanos. Perante os maus resultados da EMATUM, o governo Moçambicano foi confrontado com a necessidade assumir a dívida garantida desta empresa. Para se refinanciar lançou, em Abril de 2016, um eurobond com vencimento em 2023, designado “tuna bond”, aumentado substancialmente o stock de dívida pública. Esta solução não daria grandes frutos dado que posteriormente, em Janeiro de 2017 e seis meses depois em Julho, o governo moçambicano foi incapaz de fazer o pagamento dos juros, entrando em incumprimento.

Na mesma altura do lançamento do Eurobond, uma auditoria do FMI descobriu USD 1.4 mil milhões de dívida oculta da ProIndicus e MAM, levando a uma crise de confiança entre o governo moçambicano, parceiros internacionais, doadores e investidores. Mediante pressão internacional e doméstica, numa tentativa de reposição da confiança, em Outubro de 2016 o governo aceita realizar uma auditoria à dívida ilícita, tendo contratado a Kroll, uma auditora internacional.

O relatório Kroll revela USD 2.2 mil milhões (20% da dívida pública) em dívida desaparecida que o povo moçambicano tem de pagar. O caso mais gritante é o da dívida contraída pela EMATUM, no valor de USD 850 milhões. Não só este valor é substancialmente superior às necessidades, tendo duplicado no espaço de seis meses, como existem suspeitas de “invoice mispricing”, relativos a uma sobrevalorização do valor dos activos em USD 700 milhões. Neste contexto o auditor não consegue esclarecer o destino dado a USD 550 milhões dadas a declarações contraditórias entre o ministério das finanças, defesa e o fornecedor do material.

A ilegalidade [1] e ilegitimidade [2] das operações é clara. A contratação desta dívida ilícita beneficiou da garantia ilimitada do Estado, sem, contudo, observar os procedimentos legais [3]. O parlamento moçambicano não aprovou as operações, os parceiros internacionais, FMI e BM entre outros, não foram informados, e a dívida contingente não foi contabilizada no Orçamento de Estado. A própria selecção dos bancos e das empresas de fornecimento violou as normas de contratação pública e a execução dos contratos não foi sujeita à aprovação do Tribunal Administrativo, encarregue da auditoria da despesa pública. Por outro lado, foi contratada dívida que não era necessária e para a qual o país não tinha capacidade de cumprir o serviço da dívida, havendo mesmo necessidade de camuflar o seu verdadeiro custo yield-to-maturity com o reembolso de “contractor fees” aos credores. Finalmente, os proceeds (desembolso de capital líquido) nunca chegaram a entrar no país dado que o dinheiro foi automaticamente transferido dos lead-managers da operação para o fornecedor de equipamento.

Este parece ser também o entendimento das autoridades. O governador do Banco de Moçambique, Rogério Zandamela referiu ao Jornal Verdade a 27 de fevereiro que a dívida era ilícita e ilegal não devendo ser paga, enquanto o actual Presidente, Filipe Nyusi, criticou, na Chatam House, a 17 de Abril, o comportamento dos bancos, acusando-os de “loan pushing”, forçando a contratação de empréstimos que não eram necessários e para os quais Moçambique não comportava arcaboiço para proceder ao seu pagamento, e apelando a uma co-responsabilização da sua actuação predatória.

Voltando ao princípio e à privatização das Auto-estradas de Portugal recorrendo ao financiamento por PPPs, situação agora investigada pela polícia judiciária. Tal como em Moçambique, o processo de emissão desta onerosa dívida não seguiu os trâmites legais e regulamentares, violando as regras da contratação pública. O processo também não foi transparente nem responsável, e os lucros das empresas privadas e da banca foram ilícita e ilegitimamente obtidos resultando em despesa acrescida para o erário público. Como tal, à semelhança das autoridades moçambicanas, insta-se as autoridades portuguesas a proteger os contribuintes, denunciando a situação e anulando o acordo secreto que carece de legitimidade e validade legal e moral.
____________________

[1] Dívida que não respeita o enquadramento legal nacional e internacional, os procedimentos regulamentares ou atenta contra a Constituição ou que resulta de má conduta por parte dos credores ou promotores da operação.

[2] De acordo com o Relatório Preliminar do Comité Grego para a Verdade sobre a Dívida Pública, trata-se de dívida viola os direitos humanos, que não beneficia o interesse da população ou que resulta da assunção de dívida privada por parte dos poderes públicos com o objectivo de resgatar esses credores privados. Por outro lado, o New Economic Foundation propõe uma tipologia que agrega, sob a designação de dívida ilegítima, a dívida ilegal, odiosa, onerosa, insustentável e mesmo dívida moral – dívidas ambientais e históricas devida pelos países do Norte aos do Sul.

[3] Algumas das garantias assinadas pelo Ministro das Finanças ou pela directora do Tesouro não apresentavam o montante máximo a que o estado se vinculava.

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Desembrulhar


Eu bem sei que um jornal de terça-feira já só serve para embrulhar peixe, mas quero chamar a atenção para duas peças do Público desse dia.

“Isto é de pessoas para pessoas”, resume de forma ternurenta uma empresária do alojamento local numa reportagem. Da autoria de Cristina Moreira, esta reportagem podia ter sido escrita pela Associação do Alojamento Local, ou por uma empresa de comunicação contratada por esta, de tal forma assume apenas as dores dos proprietários e, implicitamente, das multinacionais de um sector “que trouxe aspectos positivos, aos quais, como em tudo, se agarram alguns negativos”. Como em tudo, notem. Como em tudo, há aqui uma perspectiva de classe associada ao nexo turismo-imobiliário. Os interesses dos que necessitam de uma casa para nela viver, e cuja vida tem sido dificultada, não são tidos nem achados. Como em tudo?

É impressão minha ou as lógicas do suplemento comercial do imobiliário, que sai à quarta-feira no Público, e dos interesses do sector que nele se manifestam a favor dos direitos de certa propriedade, desprovida de obrigações e de limitações, parecem cada vez mais invadir o resto do jornal? E esta operação de propaganda, centrada no romance dos pequenos empresários do alojamento local, como se mesmo estes não pertencessem a grupos relativamente privilegiados, destina-se a combater alterações legislativas, que eventualmente se traduzirão num certo regramento municipal deste sector.

Por falar no poder ideológico do capital, veja-se a entrevista ao novo “director de estudos” da fundação pingo doce, “que promete pôr o país a pensar”, garante-nos a jornalista; a pensar, por exemplo, sobre a privatização do Estado social, ou seja, sobre a transferência de riscos para os indivíduos assim vulneráveis. Afinal de contas, “as pessoas terão de contar muito mais consigo próprias”. As pessoas, sempre as pessoas. No fundo, à boleia de um suposto destino demográfico, quer colocar mais pensões no casino da especulação. Em modo de pilares do Banco Mundial no ponto alto da confiança neoliberal, com mais custos de transação e de instabilidade económica, tal solução tornaria tudo pior.

À boleia “de uma corrida global pelo talento”, Gonçalo Matias defende também o aprofundamento da lógica vergonhosa subjacente aos vistos gold e ao regime fiscal do residente não habitual. Uma corrida para o fundo em termos fiscais só possível porque se aceita o predomínio do capital sem fronteiras. E depois diz que o Estado não terá capacidades, nem recursos. Nada que deva surpreender, dada a autonomia cada vez mais diminuta dos campos. Afinal de contas, em última instância, por trás de uma fundação com milhões está um império económico, de milhares de milhões, sediado na Holanda: sabe mesmo bem pagar tão pouco. E saberá bem entrar em sectores ainda muito socializados. Já têm clinicas e certamente que são de pessoas para pessoas. A crise do SNS, induzida pelo austeritarismo com escala europeia, é uma oportunidade também. A crise induzida na escala certa é sempre uma oportunidade.

Em duas peças, toda uma economia política desembrulhada. Embrulhe-se de novo?

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Lembrem-se

A crise nos caminhos-de-ferro portugueses lembrou-me um dos últimos ensaios do insuspeito historiador Tony Judt: se perdermos os caminhos-de-ferro, “estaremos a reconhecer de que nos esquecemos de como se vive colectivamente”.

A destruição deste velho Estado, desta comunidade nacional, passa pela desorganização e desvitalização das instituições que nos habituam a viver colectivamente. No caso deste crucial sector de provisão, o jornalista Carlos Cipriano, no Público, tem sido o melhor cronista da desgraça. Este processo, como se vê, não foi no essencial interrompido e muito menos revertido.

No fim da história, graças a directivas liberalizadoras da União Europeia austeritária, que isto está tudo ligado, só restará o que for interessante para a lógica predadora do capitalismo multinacional.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Quem (não) tem medo da geringonça II?

Os acordos que sustentam a actual maioria parlamentar vão ficar para história da democracia portuguesa por três motivos: o primeiro é um facto; o segundo, uma probabilidade; o terceiro, uma incógnita.

(O resto do meu artigo no DN de ontem pode ser lido aqui.)

Centeno (2) As regras

Entrevista de Mário Centeno, Público, 18/7/2018
Há um problema com as "regras" no Partido Socialista e seus independentes ou na direita.

Presentemente, parece iniciar-se em Portugal um debate - que se espera seja sério e profundo - sobre o que fazer à arquitectura europeia e os seus tratados.

O primeiro-ministro já assumiu a sua posição no debate parlamentar do Estado da Nação: "Eu não concordo com o Tratado Orçamental. Não concordava, não concordo e desejo que um dia seja mudado. Até que seja mudado, nós temos de cumprir o Tratado Orçamental". 

Recorde-se: o Tratado Orçamental obriga os países cujas contas públicas estão longe das estúpidas metas (Vítor Constâncio dixit) do Tratado de Maastricht (défice de 3% do PIB e dívida pública de 60% do PIB) a assumir uma trajectória constante anual até chegar lá, o que obriga a uma política de austeridade violenta, sobretudo para os países que foram intervencionados e que viram, por isso, a sua dívida subir significativamente. 

Centeno entrou para o Governo em 2015 criticando o carácter erróneo da política de austeridade, para agora achar que tem de cumprir "as regras". O ministro adjunto do primeiro-ministro Pedro Siza Vieira, em quem Costa deposita confiança, foi mesmo mais além, ao fechar o debate do Estado da Nação, defendendo o virtuosismo das "boas contas" públicas e colocando o Estado no centro do problema. O Estado não estará bem fomentando ou promovendo políticas mobilizadoras ou impulsionadoras, mas sim com as suas contas austeras, amigas do crescimento e do emprego. Um encadear de ideias em tudo semelhante ao que faria um Vítor Gaspar, uma Maria Luis Albuquerque ou um Cavaco Silva. 

A direita por sua vez tem a mesma atitude de António Costa, mas simétrica. Algo como: "Eu sou a favor do Tratado Orçamental, sempre fui e sempre serei, até quis colocar um limite de despesa na Constituição, mas não quero que seja aplicado enquanto não estiver no governo". Basta ouvir Rui Rio, todos os deputados do PSD e do CDS para acreditar que, para eles, faz sentido esta dissonância, incongruência, divergência ou populismo.  


Tudo isto lembra aquela posição dúplice do actual presidente da República, caricaturada pelos Gato Fedorento, sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Nesse caso, a duplicidade foi vencida em referendo em 2011, mas Marcelo Rebelo de Sousa acabou em Presidente...

Mude-se as palavras.

Está contra o Tratado? "Estou". Mas continua a aplicá-lo. "Sim". Mas está contra? "Estou". Mas continua a aplicar. "Continuo".

Ou à direita: É favor do Tratado? "Sou". Mas acha que o Estado deve gastar mais? "Acho" Mas é a favor do Tratado? "Sou". Mas com Tratado devia gastar-se menos. "Devia" Mas quer gastar mais? "Quero". Mas é a favor do Tratado. "Sou".

Ridículo, não é? É o que há e o que temos.

terça-feira, 24 de julho de 2018

A memória é um país distante (IV)


«A política é linguagem. Quando a linguagem muda, é também a natureza da política que muda. A brutalização dos actos começa com a brutalização das palavras: estupefação, ressentimento, exclusão, racismo, frieza, criminalização e, finalmente, a política da morte, aceite ou planeada. Tudo o que os seres humanos fazem é preparado por palavras. É disso que hoje se trata, numa escala idêntica ao que se passou há oitenta anos. Em 1938, os representantes de 32 Estados reuniram-se na cidade termal francesa de Evian, entre 6 e 15 de julho, para discutir como poderiam ser distribuídos 540 mil judeus oriundos da Alemanha e da Áustria. A conferência foi um fracasso e, poucos meses depois, durante as perseguições de novembro, muitos judeus foram assassinados, as suas lojas saqueadas e as sinagogas incendiadas. A comunidade dos povos tinha falhado.»

Georg Diez, Monsterworte

Apesar das manifestações de simpatia pelos judeus perseguidos pelo Terceiro Reich, os delegados da Conferência de Evian, em julho de 1938, não chegaram ao acordo que permitiria a sua distribuição e acolhimento nos respetivos países (sendo invocada, entre outras razões, a incapacidade para receber mais refugiados ou os perigos raciais que daí adviriam). Meses depois, em novembro, muitos destes judeus encontravam-se entre as vítimas da Noite dos Cristais.
Em 1979, lembrando a reação de Hitler às notícias sobre a conferência («eu espero que o outro mundo, que tem uma profunda simpatia por esses criminosos, seja realmente generoso e converta essa simpatia em ajuda concreta. Da nossa parte, estamos prontos para colocar todos esses criminosos à disposição destes países (...), em navios de luxo se necessário»), o vice-presidente dos EUA, Walter Mondale, sublinhou o que estava em causa: «vidas humanas e a decência e respeito próprio do mundo civilizado. Se cada nação em Evian tivesse naquele dia concordado em receber 17 mil judeus, todos os judeus que foram vítimas do Reich poderiam ter sido salvos. (...) Evian começa com grandes esperanças. Mas falha o teste da civilização».

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Ao serviço do porno-riquismo


Se as ideias dominantes são as ideias da elite dominante, se estamos numa forma de capitalismo histórico com desigualdades de novo pornográficas e com formas correspondentes de consumo ostentatório – o porno-riquismo –, então não é de espantar que os centros (re)produtores de conhecimento traduzam de formas cada vez mais variadas o estado de coisas fixado pelo dinheiro concentrado.

Por exemplo, já temos actividades ditas de formação para executivos na área do luxo, marcas de luxo, casas de luxo, todo o conhecimento ao serviço do egoísmo a que os ricos são atreitos, da emulação consumista assim gerada, do desperdício sistemático, da busca incessante, e de soma nula, de distinção e de posição sociais, em que para uns terem outros têm necessariamente de ser excluídos. Trata-se de um conhecimento ao serviço do porno-riquismo. Este tipo de conhecimento, ainda que de formas por vezes menos directas, é, na realidade, apanágio de toda a sabedoria económica convencional.

Existe hoje toda uma imprensa moralmente corrosiva que ecoa este conhecimento, idolatrando os ricos cada vez mais ricos, os que circulam frequentemente em busca de vantagens fiscais, os grandes beneficiários de paraísos fiscais, dos chamados vistos gold e de outras prebendas associadas à circulação sem entraves do capital. Esta liberdade de circulação foi reconquistada nos anos oitenta e noventa graças à integração europeia, não se esqueçam. A liberdade de uns é a submissão de outros. Os cada vez mais exigentes standards pecuniários dos ricos cada vez mais ricos infectam cada vez mais este país.

Numa homenagem certamente inadvertida ao economista institucionalista Thorestein Veblen, o Diário de Notícias (DN), em versão agora minguada, tem um suplemento mensal dedicado ao luxo chamado Ócio. Veblen foi o autor, em 1899, do agora clássico A Teoria da Classe Ociosa, que será em breve editado entre nós, cunhador aí da noção de consumo conspícuo e um dos seus analistas críticos mais lúcidos. Um livro de uma era anterior de porno-riquismo que nos deixa pistas bem úteis para esta nova era de desigualdades pornográficas.

Entretanto, a coordenadora de cursos universitários dedicados ao luxo, Helena Amaral Neto, que já naturalmente escreveu para este suplemento, tinha antes afirmado ao DN que a arrancada do luxo no país data por sinal do ano dois da troika, 2012, estando associado ao “movimento do imobiliário, que depois gerou turismo”. Todo um país desigualmente pornográfico, em modo Florida da Europa, começava a ser literal e metaforicamente reconstruído.

Aqui chegados, e para atar provisoriamente as pontas soltas, sugiro que revisitemos a declaração de Miguel Sousa Guedes, CEO da Amorim Luxury e marido da milionária-herdeira Paula Amorim: “não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classificados”. É preciso não esquecer que o apelido Amorim está associado ao luxo, mas também ao rentismo fundiário e à especulação imobiliária, tendo a Herdade da Comporta agora na sua mira, sem esquecer o fundamental: a Amorim Energia, empresa sediada na Holanda para receber dividendos, com o mínimo de impostos, da Galp. Ou seja, estão sempre a beneficiar fiscalmente. E isto está tudo pornograficamente ligado pela integração europeia, o nome da globalização mais intensa em parte deste continente.

Centeno (1): Sai uma sondagem

Entrevista ao Público, 23/7/2018
Antes de ir aos casos mais graves, apenas um aspecto anedótico.

Na entrevista que o ministro das Finanças deu ao Público, Mário Centeno refere por diversas vezes que as suas opções estão sustentadas no apoio dos portugueses, através de... estudos de opinião que foram realizados.

Para já, a referência aos estudos de opinião parece ter subjacente a ideia mirífica (e populista) de que é possível contornar o Parlamento e as instituições democráticas representativas - para governar em nome de "todos os portugueses". Essa ideia parte de outra: a de que a pessoa que escolhe as perguntas é aquela que é a mais capaz e competente de interpretar o espírito de "todos os portugueses". E assume assim um poder bem superior a "todos os portugueses": o de impor a sua pergunta.

Geralmente, porque essa pessoa "interpreta" o sentir do povo, tende a não levar a "votos" aquilo que pode ser realmente determinante para "todos os portugueses", quando não haja qualquer referência explícita nos programas partidários. Foi o caso do Tratado de Maastricht, da criação da moeda única - aliás, baseada num frágil estudo de impacto que convinha revisitar... - o Tratado de Lisboa ou o Tratado Orçamental. Nunca esses tratados foram a votos.  

Finalmente, convinha lembrar que a fiabilidade dos estudos de opinião depende muito da forma como as perguntas são feitas. Veja-se o caso já citado noutro post deste blogue, em que, na série britânica Yes, minister, se mostra como se dirigem entrevistas para obter certos resultados.

Centeno fez o mesmo. No estudo de opinião que citou, perguntou-se aos portugueses: "Qual dos três eventos" - gosto muito da palavra eventos - "mais aumentavam a sua auto-estima: ganhar o campeonato europeu de futebol, a saída do Procedimento por Défice Excessivo (PDE) ou ganharmos a Eurovisão". Não se percebe muito bem a escolha do conceito auto-estima, mas tudo bem. A resposta da maioria dos portugueses recaiu evidentemente em... PDE. A conjunção de três palavras pesadas como procedimento, défice e excessivo parece mesmo mau e então se sairmos disso, parece bem mais importante do que "ganharmos" a Eurovisão.

Agora, faça-se outra sondagem: "Qual dos casos lhe parece ser mais importante para si: ganhar como prémio uma tablete de chocolate Regina, beneficiar de um Serviço Nacional de Saúde eficaz ou que o défice orçamental suba umas décimas do PIB?"

Pois é...

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Entre a desvalorização do clima e as «verdades» de senso comum

Pelo menos duas questões continuam hoje a dificultar a compreensão do problema dos incêndios florestais no nosso país. A primeira não é de agora e prende-se com a ideia, que os dados há muito refutam, de que a maioria dos fogos tem origem em mão criminosa. A segunda, mais recente, prende-se com a desvalorização da importância crescente do clima e da meteorologia, apesar das evidências nesse sentido que os grandes incêndios do ano passado nos deixaram.

Vale por isso a pena reter um dado essencial, relativo aos grandes incêndios de 17 de junho e 15 de outubro, indissociáveis da ocorrência de fenómenos atmosféricos extremos e excecionais, na sua natureza e intensidade (como o downburst em junho ou as dinâmicas associadas à passagem do furacão Ofélia, em outubro): se descontarmos a área ardida nestas duas datas, 2017 pode ser considerado um ano «normal», face a anos anteriores. Isto é, em vez dos históricos 248 mil hectares de área ardida, sem os grandes incêndios destes dois dias passamos a falar em menos de metade desse valor: cerca de 170 mil hectares, em linha com os 160 mil de 2016 ou os 150 mil ardidos em 2013.


De forma mais circunstancial, a relevância dos fatores climáticos fica aliás patente na diferença abissal entre o primeiro semestre deste ano e o primeiro semestre de 2017, em termos de temperatura, precipitação e humidade no solo, permitindo compreender por que razão, até agora, 2018 é um ano à partida muito menos propício à propagação rápida e desgovernada de focos de incêndio. De facto, ao contrário do que sucedeu em junho de 2017, quando a maior parte do território nacional se encontrava em seca severa e extrema, no mesmo mês de 2018 nenhuma parcela do continente está em situação de seca, graças a um inverno e primavera mais pluviosos que no ano anterior.


Uma melhor perceção, pela opinião pública, do peso relativo das diferentes causas dos fogos (em que se destacam os comportamentos negligentes, mais que a criminalidade deliberada) e da relevância crescente dos fatores climáticos (que colocam novos problemas e desafios muito mais complexos), é pois essencial tanto na perspetiva da prevenção como do combate. Mas, para isso, seria importante que o debate público não continuasse tão centrado na discussão das «falhas» e valorizasse também, para além do que é profundo e estrutural, as alterações climáticas e os fenómenos que se lhes associam (que os relatórios dos incêndios de 17 de junho e 15 de outubro analisam e documentam).

Bem sabemos que nem tudo interessa à vertigem sensacionalista da comunicação social. Mas se um dia se proceder a uma análise, objetiva e sistemática, da cobertura mediática dos grandes incêndios de 2017 (e, em especial, das notícias que se seguiram à divulgação dos relatórios técnicos então produzidos), talvez se perceba que a sobrevalorização das «falhas» - o tema primordial dos noticiários, diretos e programas de comentário e debate - não ajuda a uma compreensão mais ampla, e a um alcance mais pedagógico, do significado dos grandes incêndios do ano passado.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Porque não sobem os salários (3): As reformas laborais


(Este é o terceiro artigo da série sobre a distribuição de rendimento nas últimas décadas. É possível ler os anteriores aqui e aqui.)


Há pouco mais de um ano, na sua intervenção no Fórum do BCE realizado em Sintra, Mario Draghi constatou que “as reformas estruturais [do mercado de trabalho] podem ter tornado os salários mais flexíveis para baixo, mas não necessariamente para cima”. A afirmação surpreende pela franqueza de quem sempre defendeu a necessidade de reduzir os direitos do trabalho – afinal, estas reformas apenas permitem a compressão dos salários em períodos de crise, dificultando o crescimento dos mesmos em períodos de recuperação do emprego.

No entanto, as reformas laborais não são um fenómeno recente. A implementação de medidas hostis à negociação coletiva, aos sindicatos e aos direitos laborais remonta aos anos 80, período no qual o monetarismo se tornou a doutrina dominante entre os governos dos países ocidentais. Com esta viragem, o objetivo de atingir o pleno-emprego foi substituído por um compromisso com o controlo da inflação e o equilíbrio orçamental, o que motivou a necessidade de conter o crescimento dos salários.

Um dos aspetos a ter em conta é a redução da importância dos sindicatos. Ao dificultar a associação de trabalhadores, através de variados mecanismos em diferentes países, a taxa de sindicalização diminuiu consideravelmente, como podemos observar no gráfico. Estas medidas tiveram, por isso, o efeito desejado – reduzir o poder da negociação coletiva.


Outro dado importante está relacionado com as medidas de desregulação do mercado de trabalho, com o objetivo de combater a sua “rigidez” e de o tornar mais “flexível” (isto é, mais precário). As reformas laborais, concretizadas através da facilitação dos despedimentos e da contratação a tempo parcial ou sob novas formas de contratação precária, foram defendidas pela doutrina económica dominante, por vários governos à direita e ao “centro” e pelas instituições europeias como necessárias para diminuir o desemprego, aumentar a produtividade e promover o dinamismo da economia (algo que já foi criticado aqui, ou aqui).

A crise financeira de 2007-08 agravou esta tendência. As alterações à legislação laboral impostas, por exemplo, nos acordos entre a troika e os países que recorreram ao financiamento externo são conhecidas no nosso país: facilitar os despedimentos, reduzir a duração e o montante dos subsídios de desemprego e enfraquecer a contratação coletiva, limitando deste modo o poder de negociação dos trabalhadores.

Entre os efeitos da flexibilização do mercado de trabalho podemos assinalar o aumento sem precedentes do emprego a tempo parcial, temporário, ou a proliferação de contratos “atípicos”, como os contratos zero-horas (por cá menos habituais, mas de grande relevância, por exemplo, no Reino Unido). Estes contratos permitem às empresas manter trabalhadores sem lhes oferecer trabalho nem remuneração, podendo a qualquer momento convocá-los para tarefas, pagando à hora. Um verdadeiro exército de reserva de trabalhadores – onde é que já o tínhamos lido?

Em Portugal, estas reformas contribuíram para agravar a desigualdade de rendimento, sobretudo a partir da crise. É por este motivo que devemos olhar não apenas para as estatísticas do emprego e desemprego, mas também para a sua evolução qualitativa. Para este efeito, o indicador da subutilização do trabalho, que o INE voltou recentemente a publicar, dá-nos uma ideia mais clara da evolução do mercado de trabalho. Este indicador junta aos desempregados oficiais o subemprego de trabalhadores que gostariam de trabalhar mais horas, os inativos que não procuraram emprego, mas que se encontram em condições de trabalhar, e os inativos sem disponibilidade para trabalhar (à data do inquérito). O resultado é revelador: a taxa de subutilização do trabalho em Portugal, no final de 2017, estava fixada em 15,5%, quase o dobro da taxa de desemprego à mesma data (8,1%). A precariedade tornou-se um dos traços principais do mercado de trabalho, em Portugal como no resto dos países da OCDE.

Como vemos, décadas de degradação dos direitos do trabalho diminuíram o poder de negociação dos trabalhadores e enfraqueceram a sua posição face a quem emprega, o que ajuda a explicar o fraco crescimento dos salários nos últimos anos e a preocupação das mesmas instituições que promoveram este processo.

Podemos concluir este conjunto de artigos reconhecendo que, ainda que errado no diagnóstico, o relatório da OCDE acerta ao identificar um importante problema. Embora seja destacado pelo governo, o ligeiro crescimento económico dos últimos tempos não se tem refletido na evolução dos salários reais, pelo que a riqueza continua a não ser distribuída de forma igual por todos. E crescer sem distribuir serve de muito pouco.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Números errados

O presidente do PSD defendeu que o Serviço Nacional de Saúde está mal e que, por isso, algo terá de mudar.

Disse ele sobre o SNS:

"O Estado está a cumprir a Constituição? Está a oferecer o acesso a todos de forma tendencialmente gratuito ou o Estado ele próprio não está a cumprir a Constituição?". "Se fizermos um diagnóstico do Serviço Nacional de Saúde, seguramente que temos dificuldade em achar que a Constituição está a ser efetivamente cumprida".

E qual era a prova disso? Diz Rui Rio:

"a melhor prova desse incumprimento é o facto de 2,7 milhões de portugueses terem seguros de saúde." 

Ora, estes valores não são correctos. De acordo com a Associação Portuguesa de Seguradores, que representa as companhias seguradoras, existiam em Março de 2018 apenas 686.172 apólices de seguros de saúde, das quais 631.313 individuais. O que havia era 54.859 apólices de grupo, ou seja, feitas por empresas, que abrangem 1,43 milhões de pessoas. As apólices individuais cobrem 909.986 pessoas.

Mas o exemplo é mau: Se as apolíces individuais são uma minoria da população (não chega a 10%), as apólices de grupo têm vindo a subir, sim, porque são promovidas pelo Estado desde o início de 2015, com benefícios fiscais, aprovados pela então maioria de direita (ver mais aqui). Este, sim, é um bom exemplo do tipo de solução que Rui Rio defende para o SNS.

Queremos mesmo pagar às pessoas para se reproduzirem?

"De acordo com os dados do Banco Mundial, Portugal apresentava em 2016 a sexta taxa de fertilidade mais baixa do mundo. As previsões do INE apontam para que a população do país se reduza em mais de 2,5 milhões de habitantes até 2080, caso as tendências recentes se mantenham. Segundo os dados da OCDE, entre os países com economias mais avançadas Portugal é dos que gastam menos com políticas de apoio à família. Face a estes dados, a conclusão parece óbvia: é preciso que o Estado dê mais incentivos financeiros aos portugueses em idade reprodutiva para que tenham mais filhos.

A conclusão parece óbvia, mas não é. Há três perguntas que importa responder antes de dar o debate por encerrado: (1) O país precisa de manter os níveis de população actuais? (2) Aumentar o número de nascimentos é a solução para os desafios demográficos? (3) Os incentivos financeiros à natalidade são a política adequada? As respostas são: não, não e não."

(O resto do meu artigo no DN de ontem pode ser lido aqui.)

terça-feira, 17 de julho de 2018

O João era dos nossos, o João era de todos


Inteligente, generoso, casmurro, impaciente, o João começou bem cedo a tomar partido, antes do 25 de abril, pela democracia. Foi assim a vida toda.

Em todos os lugares da sua política, mostrou que é possível fazer um combate sem se acantonar. Escolher um lado e construir pontes. Ser dos nossos e ser de todos.

É bonito e significativo que o combate maior da sua vida tenha sido a saúde pública. O João combateu com toda a esquerda para construir e defender um Serviço Nacional de Saúde público e universal. De todos. Como o João.

João Semedo (1951-2018)


Sabemos que para o capitalismo moderno tudo é uma mercadoria, tudo se pode pôr à venda. O sucesso está em saber promover e vender o produto, seja um bem ou um serviço. Esta cultura mercantil e consumista alastra, perverte todos os domínios da sociedade e adultera os nossos modos de vida e de estar. Ela é, precisamente, o contrário do humanismo que reclamamos para o SNS. Uma cirurgia não é uma mercadoria e muito menos um espectáculo para ter público. Deixemos as nossas coronárias, vesículas e fígados de fora dessa cultura que degrada o ser humano. Saibamos proteger a saúde, as grávidas e as crianças. Precisamente em nome da humanização dos cuidados prestados pelo SNS. 
9 de Janeiro de 2016

A primeira coisa a fazer para resolver um problema é conhecê-lo. Procurar as suas causas, ver os seus contornos, perceber como evolui, avaliar a sua dimensão e os impactos que pode provocar. Não creio que seja apenas no domínio do pensamento científico que deva proceder-se assim. Pelo contrário, tal método é o melhor, seja qual for a natureza da situação com que nos defrontamos (...) Julgo que o governo, as autoridades e os profissionais de saúde – na esmagadora maioria dos casos – têm estado bem. Mas é preciso ir mais longe nas medidas: não basta as escolas informarem os centros de saúde dos alunos sem vacinas ou obrigá-los a uma quarentena, é preciso responsabilizar e dotar os centros de saúde dos meios que lhes permitam contactar as famílias, ir ao seu encontro, explicar as vantagens da vacinação, convencer pela persuasão e aplicar as vacinas em falta. Não acredito que haja uma mãe ou um pai que recusem. Não se pode é ficar à espera que eles apareçam. Ou que os filhos apanhem sarampo. 
27 de Abril de 2017

Dois excertos que ilustram o cuidado de João Semedo, aquilo que sabia tão bem: as pessoas fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são as suas; a política que conta trata precisamente da humanização das suas circunstâncias e do desenvolvimento das suas capacidades. Esta fórmula, que aqui se costuma usar, não é uma abstração.

De facto, o Serviço Nacional de Saúde, ao qual dedicou uma parte importante, talvez a mais importante, da sua vida profissional e política, é um esforço colectivo, assente na provisão pública, que concretiza este conhecimento humanista.

João Semedo vai fazer muita falta neste e noutros esforços colectivos.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Escrever na praia


À medida que a legislatura se aproxima do fim, começam a surgir textos de balanço sobre o que representou a experiência da actual maioria para o país e para a esquerda. Um desses balanços foi proposto pela Catarina Príncipe, num texto na Jacobin.

Porque este debate é importante e porque as questões levantadas são pertinentes, gostaria de participar nele. Usarei como referência o texto da Catarina, com tradução minha dos excertos citados.

Resumindo a minha leitura do texto, diria que o texto da Catarina avança com alguns diagnósticos correctos, outros forçados e outros ainda contraditórios para chegar a uma conclusão… a que depois não chega.

Bifurcação

Fonte: Marktest
Olhando para este gráfico, o PS sentir-se-á muito confortável. Mas pode ser enganador.

A diferença para o PSD é enorme, mas já foi maior. Em Julho/Agosto de 2017, essa diferença atingiu o ponto máximo: 16,8 pontos percentuais. A política à esquerda vingava. Mas desde aí, tem vindo a decair: em Junho passado já era de apenas 9,5 pontos percentuais. E isto a um ano das eleições legislativas. Ou seja, caiu 7,3 pontos percentuais num ano.

Este desgaste foi fruto de duas frentes.

À direita,  primeiro, os fogos e o assalto a Tancos foram os temas que martelaram o Governo. Só depois, é que cavalgaram as queixas nos serviços públicos de Saúde e Educação, quando foram os seus principais responsáveis desde 2011/2015. Para isso, contribuiu - e de que maneira! - a intervenção por vagas do presidente da República, arrastando a comunicação social a retomar o tema em cada aniversário mensal. Para exemplificar este caso, tente responder à questão onde é que Marcelo Rebelo de Sousa vai passar férias? Segundo o jornal Expresso, vai para Oliveira de Hospital e Pedrógão. Porquê? Porque "o Presidente quer chamar a atenção dos portugueses a fazerem férias nos locais afectados pelos fogos de 2017"... O próprio jornal Expresso voltou a retomar o tema de Tancos em manchete. Marcelo exigiu esclarecimentos, (claro!), a tal ponto que o Governo se colou à reivindicação de esclarecimentos pelo Ministério Público, "concordando com o presidente da República". Não é óbvio?

Expresso, 14/7/2018
Tão descarado é o papel de Marcelo que até - segundo o mesmo jornal (pag.2 e 3) - interveio junto de Pedro Santana Lopes para que não avance com o seu novo partido, o qual virá sapar o eleitorado de direita. Até para o jornal e seus jornalistas tudo isto é natural, a ponto de abordar o tema abertamente, sem qualquer menção de enviesamento do PR. António Costa fez o mais que pôde para parecer que se dava bem com Marcelo, que estavam sintonizados, mas Marcelo tudo faz para o minar. 

À esquerda, os partidos apoiantes do Governo PS, sublinharam-se os efeitos da aplicação de uma política de prudência orçamental, mais papista do que o Papa, que - apesar das melhorias feitas na política de rendimentos - pouco atenuou as machadadas feitas pelo Governo PSD/CDS nos serviços públicos - Saúde, Educação, investimento público. E mantém uma política estranha de sedução à direita, por exemplo, na Saúde - ao nomear para o grupo de trabalho sobre a Lei de Bases quem está intrínsecamente ligada ao sector privado - e no mundo do Trabalho, ao assinar um acordo de concertação social que adere às teses patronais, nomeadamente na contratação colectiva.

A crítica de esquerda e da direita ao Governo beneficia - como se vê no mapa - sobretudo a subida da direita. Desde o ponto mais alto em Julho de 2017, o PS perdeu 4,7 pontos percentuais, o PSD ganhou 2,6 pontos, o BE 1,2 pontos, o CDS 0,7 pontos e a CDU perdeu 0,5 pontos. Em conjunto, os partidos à esquerda (BE e CDU) registaram uma subida de 17,3% para 18% em Junho de 2018.

Mas essas duas subidas - à esquerda e à direita - revelam o quanto o PS - se quer manter uma política de esquerda - precisa dos partidos à esquerda (cada vez mais) e quanto uma política à esquerda, sem tergiversações à direita, pode continuar a ter - como teve nos anos de 2016 e 2017 - um apoio maioritário.

Veja-se este mapa. Caso se compare os "votos" nas sondagens no PS com os dos partidos de direita, o PS está quase a ser submerso. Está a uns míseros 3 pontos percentuais a um ano das eleições. Claro que se pode dizer que o PSD nunca se coligará com o CDS, porque a crítica ao Governo - venha de onde vier - beneficia o PSD. Mas essa diferença é reveladora da correlação de forças que o PS poderá encontrar no próximo Parlamento. Costa arrisca-se a ser novamente humilhado nas eleições. E no PS.

Já uma aliança à esquerda pode revelar que essa força está a uma distância de 21 pontos percentuais dos partidos da direita coligados e de 27,5 pontos percentuais do PSD. Algo que se tornaria humilhante, sim, mas para Rio e Cristas.

António Costa tem, pois, de fazer opções claras. A sua política de navegar ora à esquerda ora à direita não está - nem mesmo eleitoralmente - a ser eficaz. Pelo menos em Portugal.

domingo, 15 de julho de 2018

Porno-riquismo


Há um novo estilo emergente de reportagens dedicadas ao porno-riquismo dos novos donos estrangeiros, ou como se o fossem, disto tudo. O porno-riquismo é a nova fase do consumo conspícuo num tempo de capitalismo com desigualdades pornográficas.

Atente-se na capa da última revista do Expresso: “Jantares de 550 euros por pessoa, relógios que custam mais de 20 mil euros, casas alugadas por 1750 euros ao dia. Este é o mapa de um país que está a aprender com os estrangeiros a amar o luxo”.

Um país, realmente. E não se esqueçam de repetir com o Primeiro-Ministro: não há dinheiro.

A reportagem – Portugal, império do luxo –, da autoria de Catarina Nunes, termina com uma pergunta que é todo um programa: “Será que entre a sofisticação de Lisboa e a autenticidade da província, Portugal é o barómetro mundial do novo luxo?”. Será?

E pelo meio temos pérolas de classe como esta:

“Esta cidade da vida de muitos estrangeiros, fervilha alheia à gentrificação, ao desalojamento dos lisboetas e aos preços exorbitantes do imobiliário. Miguel Guedes de Sousa concorda que a capital não pode perder a vivência genuína que cativa os estrangeiros, mas ‘não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classificados’. A solução para o CEO da Amorim Luxury passa por a Câmara Municipal de Lisboa arranjar alternativas.”

Nesta altura, lembrei-me de Warren Buffet – “a luta de classes existe e a minha classe está a ganhá-la”.

Guedes de Sousa, como nos informa a reportagem, é casado com Paula Amorim. E daí a Amorim Luxury. Paula Amorim é uma das herdeiras da maior fortuna nacional. Como todas as grandes fortunas, esta foi construída com recurso a expedientes duvidosos. Não é só a fase de acumulação original que os tem. Duvidoso é também, como indica o insuspeito Thomas Piketty, este capitalismo cada vez mais de herdeiros. Guedes de Sousa tem o mérito de resumir numa frase, para a questão da habitação, a que condensa todas as contradições de classe, a arrogância do dinheiro quando está concentrado em poucas mãos, quando não tem qualquer medo, nem freios e contrapesos políticos à altura.

Eu bem sei que é fácil uma pessoa deixar-se dominar pelo desespero perante este império do capital. Mas é preciso nunca perder a esperança. As coisas já foram diferentes e podem voltar a sê-lo. Não estamos condenados ao porno-riquismo e ao capitalismo que lhe subjaz. Não podemos estar.

Alterei o texto, colocando um hífen na palavra nova para um tempo de desigualdades pornográficas: porno-riquismo.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Que lição aprendeu o PS?

O ministro dos Negócios Estrangeiros deu ontem uma entrevista ao jornal Público. E a certa altura, afirmou Augusto Santos Silva: “Espero que este tenha sido um período de aprendizagem muito importante para os partidos".

A pergunta que esteve na base desta frase, como as que se seguiram, mereceriam um comentário sobre os seus pressupostos. Nomeadamente por se centrar o foco nos partidos à esquerda do PS. Porque a questão essencial é saber o que foi que aprendeu o PS, partido que esteve na oposição e agora está  Governo, com tudo o que viveu desde 2011 até hoje. 

Quando este acordo parlamentar se iniciou, havia - e há - duas visões opostas quanto à política europeia, nomeadamente quanto ao Tratado Orçamental e dívida pública. Bloco, PCP e Os Verdes defendem que as metas impostas pelo Tratado inviabilizam o Estado Social, porque representam um espartilho: privilegia o pagamento aos credores de Portugal, penalizando os portugueses por uma dívida insustentável gerada por um desequilíbrio estrutural criado pela Europa e que apenas se paga com o apoio do BCE. O Governo - ainda hoje António Costa o disse no Parlamento - apoia esse diagnóstico, mas ao mesmo tempo e - sem duplicidade, afirmou - considera que é possível tudo conciliar, basta ser "prudente":
"Se me pergunta se eu concordo com o Tratado Orçamental", respondeu António Costa, "eu não concordo com o Tratado Orçamental. Não concordava, não concordo e desejo que um dia seja mudado. Até que seja mudado, nós temos de cumprir o Tratado Orçamental"
O Governo foi viabilizado - quero eu pensar do PS - até para testar estes limites. Mas passados quase três anos, vive-se todos os dias os limites dessa contradição. A direita, reformatando-se, cavalga as dificuldades do Serviço Nacional de Saúde, apoia os professores, aponta as “falhas do Estado”, sem nunca dizer o que faria se fosse Governo nem se respeitaria o Tratado. Também ninguém lhe pergunta. O Bloco, PCP e Os Verdes repetem o seu ponto de vista, mostrando a insanável contradição. E o que foi que o PS retira de tudo isto?

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Porque não sobem os salários (2): Financeiri...quê?


(Na sequência do primeiro artigo sobre a distribuição de rendimento nas últimas décadas, este é o segundo em que abordo o tema. Ver o terceiro)


O termo financeirização tem sido utilizado para descrever o aumento do poder económico, social e político do setor financeiro nas últimas décadas. Podemos confirmar a ascensão da finança ao observar, por exemplo, a evolução do valor registado dos ativos financeiros.


O gráfico revela o impressionante crescimento do valor dos ativos financeiros em percentagem do PIB, no caso dos EUA, sobretudo a partir dos anos 80 do século passado. O crescimento da finança traduziu-se em alterações profundas do regime de acumulação de capital e das relações sociais, que por cá têm sido tratadas de forma brilhante em algumas publicações (como aqui, ou aqui).

Por trás deste processo de financeirização esteve a vaga de desregulação do setor financeiro (que inclui a redução do controlo sobre a atividade dos bancos, tanto ao nível do tipo de operações efetuadas, como do tipo de produtos financeiros criados) e de liberalização dos movimentos internacionais de capitais iniciada durante os anos 80. Entre os seus promotores, destacam-se Ronald Reagan, nos EUA, e Margaret Thatcher, no Reino Unido, seguidos nas décadas posteriores por sucessivos governos. Outros intervenientes importantes foram Paul Volcker ou Alan Greenspan (na Reserva Federal norte-americana). Exemplo da sua atitude em relação à regulação é a frase proferida por Greenspan em 1997: “Ao entrarmos num novo século, os mecanismos privados de auto-regulação do mercado devem substituir gradualmente as várias estruturas e normas do governo, pouco eficientes.” Foi esse o caminho que seguiram.

Desregular foi, como vemos, a palavra de ordem. É neste contexto histórico que devemos enquadrar a financeirização. Embora este seja um processo complexo e se tenha desenvolvido de forma diferente em diferentes países, podemos destacar duas consequências importantes do crescimento da finança sem travões.

Por um lado, observamos a crescente orientação das empresas para gerar retornos aos seus acionistas. Pressionadas pela concorrência dos mercados de capitais (fonte cada vez mais importante de financiamento), as empresas têm de procurar formas de aumentar o seu valor na bolsa, seja através de pressões sobre os salários, aumento da intensidade do trabalho, ou até mecanismos especulativos (como as operações de recompra das próprias ações, para aumentar artificialmente o seu valor). Por outro, o aumento dos ganhos com dividendos, juros e lucros financeiros, reforça a posição do topo da pirâmide social. O aumento da desigualdade, referido no primeiro artigo desta série, é um dos traços principais dos últimos quarenta anos.

A ascensão da finança foi acompanhada pela intensificação da integração das economias no mercado mundial, marcada pelo aumento do grau de abertura da maioria dos países ao comércio, e consequentemente das transações entre países. A circulação sem entraves do capital foi determinante para a integração económica e social.

Percebem-se os efeitos deste processo. A deslocalização da produção, ou a sua mera ameaça, reduzem de forma significativa o poder negocial dos trabalhadores. Além disso, a competição internacional, motivada pelo comércio entre países com estruturas produtivas e remunerações da mão-de-obra profundamente heterogéneas, incentiva os países a entrarem numa espiral descendente no que diz respeito aos salários que pagam, procurando com isso fornecer produtos mais baratos e obter vantagens nas trocas (o argumento da competitividade da economia, de má memória no nosso país). Todos estes fatores contribuem para explicar porque tem diminuído a parte dos salários no rendimento total, e porque têm aumentado as desigualdades.

A evolução do capitalismo contemporâneo e a proliferação do capital financeiro são, assim, parte importante de uma explicação sobre a estagnação dos salários. No entanto, precisamos ainda de olhar para outro fator determinante – as alterações da legislação laboral. Serão o tema do artigo que se segue.

A graça do dia... sem graça


Tradução: "800 mil expatriados deixaram a Arábia Saudita, criando uma crise de contratação: "Empregadores dizem que os jovens homens sauditas e mulheres são preguiçosos e não estão interessados em trabalhar".

Para ler a notícia, clique aqui

Como se vê, um argumento nacional que tem muitos apoios internacionais, além do centro da Europa. Se olharmos para as mãos dos príncipes sauditas, salta a vista os dedos calosos do manejo da picareta.

Passada a provocação, olhe-se para o caso em concreto. Dele, retira-se várias ilações. A Arábia Saudita continua uma taxa de desemprego elevada, mas a contratação externa invadiu o emprego (um terço da mão-de-obra), sem que se consiga baixar o desemprego. Outro problema - que é outra ilação - é que a Arábia Saudita é um país dependente de um sector e, como se lê no artigo, há tentativas de diversificação, nem sempre fáceis. A crise do imobiliário de aluguer e nos centros comerciais faz parte do mesmo problema.

A solução foi criar quotas para a contratação de sauditas, mas as enpresas acabaram por criar falsos empregos e pagar-lhes falsos salários, apenas para cumprirem a quota, sem que nada mudasse. Agora, as organizações patronais já falam de uma saudização do emprego, de 100%. Taxam-se os estrangeiros, o que parece aumentar o ritmo de saída. E são oferecidos postos de trabalho públicos (dois terços do emprego doméstico) de pouca qualificação.

"A taxação de expatriados, antes que a Arábia Saudita se transforme numa economia produtiva que depende da indústria, é como colocar o carro na frente do cavalo", disse Tariq A. Al Maeena, comentarista de Jeddah, no Gulf News em outubro. Karen E. Young, do Instituto Árabe dos Estados do Golfo em Washington, escreveu no blog do instituto em fevereiro, que levará uma década ou mais para criar uma classe trabalhadora de sauditas.

Mas entretanto os jovens não querem aceitar baixos salários que consideram ser abaixo do seu estatuto. Lá, como em muitos sítios, torna-se evidente que um baixo salário será sempre um apelo ao direito à preguiça. E que não é solução para os problemas de fundo.

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Tinha de mudar


Deixo aqui o meu artigo no Le Monde diplomatique - edição portuguesa do mês passado:

O passado económico tinha de mudar

No prefácio ao livro de José Reis sobre A Economia Portuguesa, recentemente publicado, o jornalista de economia Nicolau Santos afirma que «se trata da mais importante análise sobre o tema desde “A economia portuguesa desde 1960”, de José da Silva Lopes».[1] Aproveitando a boleia da sugestiva e justa frase de Nicolau Santos, pode ser útil comparar dois livros que, publicados respectivamente em 2018 e em 1996, também são de história recente da economia portuguesa: o passado económico pode e deve mudar, quer em função de dois presentes muito diferentes, quer dos distintos quadros analíticos implícita ou explicitamente mobilizados e da forma como ordenam o amplo material empírico disponível, quer das contrastantes circunstâncias intelectuais de dois economistas comprometidos com este país.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Austeridade perpétua?


Se as sociedades se comportassem de acordo com os modelos que construímos, em particular de acordo com as simulações na folha de cálculo feitas em Bruxelas, teríamos austeridade para mais de 20 anos. Porquê? Para fazer convergir o peso da dívida pública de 126% para 60% do PIB.

Contudo, sabendo nós que as sociedades são sistemas vivos que também procuram sobreviver, a única atitude sensata é tratar esses exercícios como pura engenharia social. O conceito de saldo estrutural do orçamento do Estado é um desses exercícios. Para uma análise crítica do conceito que é o alicerce teórico da nova austeridade que nos está a sufocar, ver neste blogue aqui e aqui. No blogue de William Mitchell, ver este texto.

Importa lembrar que, quando sujeitas a pressões intoleráveis, as sociedades recorrem às forças políticas que estiverem disponíveis para pôr em causa o sistema, usando-as como instrumento de recuperação das condições da sua sobrevivência enquanto comunidade. Mesmo que a saída acabe por se revelar falhada e destrutiva, o caso da saída pelo fascismo. É disso que fala Karl Polanyi no início do capítulo XX de A Grande Transformação:
Se existiu alguma vez um movimento político que respondia às necessidades de uma situação objectiva e não era resultado de causas fortuitas, esse movimento foi o fascismo.
Tendo em conta que os países do centro da Zona Euro recusam liminarmente uma reestruturação da dívida pública das periferias, a alternativa seria a ruptura com a moeda única. Contudo, na Zona Euro, a esquerda tem-se recusado a ser o instrumento político para a recuperação das condições de sobrevivência das sociedades. Recusando o fim do euro, a esquerda está a pagar o preço eleitoral dessa escolha e tornou a extrema-direita no único instrumento disponível para a sobrevivência das sociedades europeias.

Em Portugal, no debate parlamentar, os benefícios líquidos de uma ruptura com a moeda única nem sequer são invocadas pelos partidos da esquerda quando se discutem as consequências da nova austeridade. Portanto, resta-nos esperar que, na Itália, a direita faça de forma competente o que a esquerda se recusou sequer a admitir. E, por isso mesmo, deixou de ser eleitoralmente relevante.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Pormenores tramados

Lendo o recente acordo de concertação social ficava-se já com a percepção do pouco que o Governo  quer fazer na frente laboral contra a precariedade.

Mas analisando a proposta de lei do Governo - que será votada a 18 de Julho - verifica-se que ela foi bem além do acordo e - salvo melhor interpretação de jurista -, dá uma ideia do que o PS pensa sobre o momento actual, ou das pressões a que tem sido sujeito, e às quais cedeu.

Ou, pior, o que foi que colocou na proposta para ser cortado na negociação, para conseguir o que realmente quer. O que será que o Governo realmente quer?  

É entendimento deste Governo que a contratação colectiva é o fórum adequado para conseguir mais igualdade e impedir vácuos legais como os criados com a legislação aprovada desde 2009 (com o Governo PS e este ministro Vieira da Silva), prolongada desde 2011 com o Governo PSD/CDS. António Costa afirmou estar sensibilizado para essa realidade e o ministro Vieira da Silva sublinhou por diversas vezes (6/7/2018, ver 51m58s) os efeitos positivos de haver um número crescente de trabalhadores abrangidos. 

Por isso, muito se estranha aquilo que sobressai da proposta de lei do Governo. Nomeadamente quanto à contratação colectiva.

De todas, esta é a mais chocante:

Porque não sobem os salários? (1)

 

(Este é o primeiro de um pequeno conjunto de artigos sobre a evolução da distribuição de rendimento nas últimas décadas, entre os países desenvolvidos. Ver o segundo e o terceiro.)


Na passada quarta-feira, a OCDE publicou o Employment Outlook 2018, relatório anual em que analisa as tendências verificadas no mercado trabalho, sublinha as principais novidades e avança algumas perspetivas para o futuro.

O relatório deste ano conclui que, no final de 2017, o número de pessoas empregadas nos países membros da OCDE superou pela primeira vez o nível que se registava antes da crise financeira de 2007, prevendo-se que o emprego continue a aumentar nos próximos anos. Em relação à taxa de desemprego, esta encontra-se abaixo ou próxima do seu nível pré-crise na maioria dos países que compõem o estudo. No caso português, a taxa de desemprego encontra-se atualmente em 7,3% (estimativa do INE para Maio deste ano), o que constitui uma melhoria face a 2007 (quando se encontrava perto de 8%, antes de ter disparado para mais de 17% durante a crise).

Contudo, a conclusão mais relevante do estudo é a de que o crescimento dos salários não acompanha a evolução favorável do emprego. Na verdade, os redatores do estudo referem que “no final de 2017, o crescimento dos salários nominais na OCDE era apenas metade do que era há dez anos”. Como seria expectável, a estagnação salarial afeta principalmente os países mais afetados pela crise (como Espanha, Itália ou Portugal).

Os redatores do relatório prosseguem: “O sinal mais preocupante é que a estagnação salarial tem mais impacto negativo sobre trabalhadores mal remunerados do que sobre os do topo.” O relatório revela que o crescimento dos salários reais tem sido substancialmente superior para o 1% do topo dos assalariados. São apontados como fatores explicativos para esta tendência a baixa inflação e a desaceleração da produtividade, bem como o aumento do emprego mal remunerado.

Contudo, para identificar as causas fundamentais que explicam a estagnação dos salários, precisamos de recordar que este não é um fenómeno recente entre os países desenvolvidos, mas antes uma tendência de longo prazo que se tem verificado desde meados dos anos 70 do século passado. Uma análise da distribuição funcional do rendimento (que, traduzido do economês, significa a divisão do rendimento total entre quem contribuiu para a produção, ou seja, trabalho e capital) permite-nos observar a tendência de diminuição da parte destinada aos salários (sobretudo no Japão e nos países da Europa continental), como nos mostra o gráfico:


Além disso, se olharmos para a distribuição dos salários encontramos também uma tendência para o aumento da desigualdade, mais acentuado nos países anglo-saxónicos. Veja-se a evolução da desigualdade de rendimento no caso norte-americano:



A tese que reúne maior consenso entre os economistas convencionais é a de que a distribuição funcional do rendimento é explicada pelo progresso tecnológico. Esta tese insere-se na visão neoclássica acerca da distribuição do rendimento, segundo a qual os salários e os lucros são determinados pela produtividade marginal de trabalhadores e capital, ou seja, pelo seu contributo relativo para a produção. Apesar de depender de um conjunto de hipóteses pouco realistas (mercados perfeitamente competitivos e pleno emprego dos fatores em economias cuja produção pode ser descrita por um determinado tipo de funções matemáticas), esta é a visão que possui maior destaque na literatura sobre o tema.

Por este motivo, alguns relatórios (por exemplo, da Comissão Europeia e do FMI, 2007) têm procurado explicar a tendência de diminuição da parte dos salários no rendimento total com base na ascensão das tecnologias de informação e comunicação (TIC), que terá favorecido os trabalhadores mais qualificados e o capital físico utilizado na produção, em detrimento dos trabalhadores de baixa qualificação. Esta é também a linha de raciocínio seguida pela OCDE na análise e nas recomendações do relatório publicado este ano.

Ao contrário desta tese, argumentarei que existem outras causas que ajudam a explicar de forma mais consistente a longa estagnação dos salários reais nos países desenvolvidos:

1. Financeirização e globalização
2. Reformas laborais

Um estudo completo destes fatores implica a sua contextualização histórica e uma análise da sua evolução e das suas consequências. Por outras palavras, implica que procuremos identificar as raízes do problema. Será esse o foco dos próximos artigos.