segunda-feira, 31 de julho de 2023

Querido diário - Auf wiedersehen 2

Público, 3/7/2013

[Para já, ficam as desculpas por este filme estar a ser apresentado com lapsos temporais tão alargados que é elevado o risco de o leitor perder o fio à meada. Mas tentemos retomá-lo...]

Público, 3/7/2013

Ainda mal refeitos da demissão do todo poderoso ministro das Finanças Vítor Gaspar, alma e coração da aplicação do programa político mais (neo)liberal de sempre, estilo rolo-compressor apadrinhado pelas ideias da troica (ver aqui), eis que novo espanto surge logo no dia seguinte, aquele que, segundo o Público, seria “o dia mais confuso de que há memória na democracia portuguesa”. 

Se Vítor Gaspar se demitira por considerar não haver condições políticas para aplicar as suas ideias (neo)liberais sem hesitações políticas - fruto dos fracassos económicos já estarem, desde 2012, a ser travados na rua e no Tribunal Constitucional (TC), atingindo até a coligação; o nº2 do Governo Passos Coelho demite-se precisamente por considerar que a substituição de Gaspar por Maria Luís Albuquerque era ... a continuidade dessa política suicidária de austeridade

Paulo Portas entrega a sua carta de demissão que diz ser “irrevogável”, ameaçando com ela a queda do Governo. Foi um torpedo violento lançado na pior altura (a duas semanas da oitava avaliação pela troica).  Pedro Passos Coelho fez de conta de que este “caso” não existiu e passou a batata quente para o CDS/PP, obrigando-o a decidir se o Governo continuava ou não.   

As dificuldades políticas então sentidas, mesmo por parte de um Governo de direita, eram perfeitamente naturais. Poderá ser até uma reacção humana de quem se vê a aplicar um programa sociopata de classe do BCE, Comissão Europeia e FMI, embora - depois - acabe por nunca retirar as devidas ilações dos seus actos irresponsáveis e esteja disposto a repeti-lo:   

1) Obrigar um Estado a resolver a situação irresponsável gerada pela banca privada nacional, socializando os seus prejuízos, em nome de um potencial efeito sistémico da falência de alguns bancos; 2) Para solver a dívida gerada, obrigar esse Estado a financiar-se nos mercados financeiros (deixando que essa dívida de elevadas taxas de juro seja adquirida nomeadamente pela banca francesa e alemã); 3) Deixar esse Estado sem rede protectora quando se vê sob ataques especulativos; 4) Quando, na sequência desses ataques, a dívida se torna impagável, afectando já os credores, forçar politicamente - leia-se: chantageando - o governo desse Estado a ter de pedir um empréstimo ao FMI, BCE e Comissão Europeia; 5) Quando o Governo resiste, fazer o BCE fechar a torneira de financiamento aos bancos desse Estado - vulgo golpe de misericórdia; 6) Quando o Governo se senta para negociar as condições do empréstimo (Memorando de Entendimento) - o qual permitirá pagar aos credores que assim investiram sem risco! - condicionar o empréstimo a que este seja pago pelos trabalhadores e pensionistas, através de um programa recessivo que os fará sentir os malefícios do desemprego, da pobreza e das desigualdades sociais, através de cortes de salários e de serviços públicos, ao mesmo tempo que impõe a esse Estado a venda aos desbarato de activos públicos estratégicos a investidores estrangeiros. “As dívidas são para ser pagas” disse algo assim o então PM Passos Coelho.

Tudo isto, quando esta desgraça social poderia ter sido evitada, como aconteceu mais tarde, quando o BCE pôs temporariamente de lado os cânones (neo)liberais e, intervindo nos mercados financeiros, defendeu "custe o que custar" os Estados dos selvagens mercados financeiros. Mas isso foi apenas mais tarde. Agora voltemos a Paulo Portas. 

Paulo Portas demitiu-se pela impopularidade social da austeridade. Mas fê-lo antes de apresentar a famosa reforma do Estado que a direita (neo)liberal defendera na campanha eleitoral de 2011, e a que Portas se obrigara perante os seus colegas de Governo. Porque não o fez? Porque era difícil? Porque era impraticável ao delapidar um Estado já no osso? Porque, na realidade, representaria ainda mais austeridade e mais impopularidade? Porque seria ainda mais um fracasso económico? 

Não se sabe. Preferiu demitir-se. Por ora... 


Michael Walzer nunca foi do extremo-centro


Só mesmo uma crónica de Nuno Severiano Teixeira para transformar ingredientes intelectuais da melhor qualidade num caldo sensaborão. O teórico político Michael Walzer, que passou uma vida na instituição que Oppenheimer dirigiu e de que Einstein foi um dos primeiros investigadores, merece muito melhor por seis razões. 

Em primeiro lugar, o liberalismo de Michael Walzer, como o da “sua” revista Dissent, sempre foi um liberalismo socialista, no sentido em que viu o socialismo, assente numa economia pós-capitalista, com controlo democrático das empresas pelos trabalhadores, por exemplo, como parte do pleno aprofundamento e da plena distribuição das liberdades. 

Em segundo lugar, Michael Walzer é um nacionalista liberal, entendendo a nação como o espaço privilegiado para a realização dos seus ideais e como a bateria cultural e política adequada para alimentar comunidades coesas, capazes de distribuir bens sociais de forma justa. 

Em terceiro lugar, Walzer é um “comunitarista”, no sentido em que a sua teoria da justiça, oposta à de Rawls, é social e historicamente situada, sendo anti-individualista do ponto de vista metodológico e ético-político. As Esferas da Justiça, obra muito bem traduzida, é um dos meus livros de eleição. Devo-lhe ter-me obrigado a pensar sobre fronteiras, em sentido literal e metafórico, incluindo com o que designou por “arte liberal da separação”. 

Em quarto, e agora problemático, lugar, Walzer é um sionista. Quando combinado com a ideia de guerra justa e sobretudo com avaliações equivocadas da situação internacional, isto pode levar a posições repreensíveis, como aconteceu a seguir ao 11 de Setembro, por exemplo. 

Em quinto lugar, Walzer pensou também sobre uma política externa para a esquerda de recorte anti-imperialista. Dada a escassez de reflexões nesta área, é um contributo que deve ser lido e discutido. 

Em sexto lugar, Walzer está nos antípodas da atitude de extremo-centro de Severiano Teixeira: uma vida de dissidência em relação à sabedoria convencional e em momentos decisivos, concorde-se ou discorde-se.

domingo, 30 de julho de 2023

Tragédias e farsas políticas


A plebe tem que ser mais pobre, os bancos merecem os lucros .Já estivemos à beira da implosão da zona euro e, na época, o BCE percebeu o risco que corria. Que não entenda agora que uma população empobrecida e com baixos salários (em sociedades profundamente desiguais como a portuguesa) vai engrossar o descontentamento que um dia irá rebentar com tudo, é uma tragédia. 

Final de uma crónica de Ana Sá Lopes que vale a pena ler, até porque contém um raro ângulo de classe na crítica à política monetária do BCE. 

A tragédia, como se viu na Grécia, em 2015, não é a potência plebeia, a revolta contra o regime austeritário. A tragédia é que o BCE controla os instrumentos de política para organizar um “golpe de estado financeiro” (Varoufakis) e pode contar com a rendição das elites políticas supostamente radicais, mas na realidade europeístas. 

O BCE sabe que com as direitas, hoje uniformemente euro-disciplinadas, não corre riscos e com a esquerda dominante também não. Não há qualquer tragédia para si, só a farsa das procissões a Frankfurt ou dos pedidos para que Frankfurt venha a Lisboa.

Entretanto, recordo que Keynes defendeu a “eutanásia do rentista”, mas que o sadomonetarista BCE existe para defender o rentista: juros rendem 1800 milhões de euros aos grandes bancos no primeiro semestre.

E não, não nos podemos esquecer da história da economia política mais ou menos recente.

sábado, 29 de julho de 2023

Só falta mesmo dizer o nome dos responsáveis

O jornal britânico The Guardian traz hoje um texto cristalino sobre a crise de habitação em Portugal, que envergonha o país e, acima de tudo, os responsáveis políticos (que têm cara e têm nome, mesmo que o texto não os refira) que para ela contribuíram ao longo da última década.

Fica aqui um excerto, mas vale a pena ler o resto.

“A recuperação económica de Portugal, alimentada pela desregulamentação e por uma série de esquemas destinados a atrair o investimento estrangeiro, distorceu o mercado imobiliário de forma irreconhecível, num país onde o salário mínimo mensal é de 760 euros e onde 50% das pessoas ganham menos de 1000 euros por mês.

A liberalização do mercado de arrendamento, a emissão de "vistos dourados", que conferem autorizações de residência em troca da compra de imóveis de valor igual ou superior a 500 mil euros, a introdução de um "regime de residentes não habituais" para estrangeiros, que permite poupar impostos, e, mais recentemente, a criação de um visto de nómada digital, que permite aos estrangeiros abastados trabalhar à distância e pagar uma taxa de imposto de apenas 20%, contribuíram para isso. Também o é, talvez de forma mais óbvia, a compra de apartamentos para serem convertidos em alojamento local [o número de camas no centro de Lisboa é mais de duas vezes superior ao do centro de Barcelona, uma das cidades com maior pressão turística do mundo].

A crise que se vive atualmente em Lisboa, no Porto e noutras cidades portuguesas não era propriamente uma surpresa."

sexta-feira, 28 de julho de 2023

BCE: nas mãos dos dados ou com os dados na mão?

"Estamos nas mãos dos dados económicos", explica a presidente da instituição cujas análises empíricas mostram que não há nenhum risco de uma espiral inflacionista por via do crescimento dos salários enquanto prossegue a política de contenção dos salários.

Das chamadas boas práticas


A Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência (DGEEC) divulgou recentemente a publicação «75 anos de Estatísticas da Educação», que reúne séries longas de dados essenciais do sistema educativo português. Em formato pdf e com tabelas associadas, permite constatar, por exemplo, que em 1944 havia apenas 973 crianças no pré-escolar (mais de 250 mil em 2020) ou que os docentes do básico e secundário passaram de 58 mil (1971) para 133 mil (2020). Ou, ainda, que os inscritos no ensino superior passaram de 11 mil para 411 mil, entre 1944 e 2020.

O hábito de constituir séries longas estatísticas não é comum na Administração Pública portuguesa, mesmo que parte deste tipo de informação acabe por ser centralizada pelo INE (instituto que apenas tardiamente começou a divulgar séries estatísticas). E, contudo, esta boa prática da DGEEC (à semelhança do GEP), é fundamental em democracia. Não se trata apenas de assegurar um acesso fácil à informação a investigadores (ou jornalistas) de diferentes áreas. É também importante para que o cidadão comum tenha à sua disposição dados que permitam avaliar as mudanças do país ao longo do tempo e, nessa medida, os resultados e impactos das políticas seguidas em cada momento.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Isto não é uma crítica de cinema


Para pessimismo da inteligência, vá ao cinema ver o Oppenheimer. Para optimismo da vontade, vá ver a Barbie. Esta é a boa ordem de visionamento, creio. 

O primeiro filme, com impecável argumento político, em particular no que à questão comunista nos EUA diz respeito, ficou, no entanto, abaixo das expectativas elevadas: demasiado tonitruante, com música omnipresente quase insuportável, sobretudo na primeira parte, e com aquela lógica, muita norte-americana, de onde a predestinação não está ausente, de repetir n-vezes as teses e de forma por vezes bem estridente. 

O segundo filme, acima das expectativas, é impura diversão, com algumas boas hipóteses políticas, incluindo a intuição da Barbie de que o fascismo é uma forma de proprietarismo. Mas, sobretudo, o filme é mesmo muito divertido e despretensioso, sem deixar de ser resolutamente feminista e também nesta sua forma contribui para quebrar preconceitos arreigados. 

Não dei as cerca de quatro ou cinco horas por desperdiçadas, antes pelo contrário. A morte da boa cultura de massas norte-americana é como o lugar do dólar no sistema monetário internacional: francamente exagerada.

Da divisão política do trabalho intelectual


Quem segue as publicações do brinquedo ideológico herdado por pequenos grandes ditadores, vulgo Fundação Francisco Manuel dos Santos, já deve ter reparado no seguinte padrão: por um lado, entregam os tópicos sumarentos, onde o capital está investido – segurança social, saúde, relações laborais, habitação – a intelectuais neoliberais com visões de mercado, por outro lado, para poderem alardear pluralismo, entregam os tópicos mais imateriais, digamos, a intelectuais de esquerda. É a divisão política do trabalho intelectual.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

É só copiar e colar a lição galega

 Santiago de Compostela, 25 de julho de 2023, na celebração do Dia da Pátria Galega.

Iniciativas liberais, iniciativas predadoras


A PT foi uma grande empresa forjada pelo Estado democrático português, refletindo o “instinto do trabalho bem feito (workmanship)” de que falava Veblen no início do século XX, a ação coletiva, enraizada num tempo e num lugar, de milhares de engenheiros e de outros trabalhadores.

O Estado Empreendedor foi perdido, para recuperar a análise da República dos Pijamas, pela saga da sua irresponsável privatização. Foi a saga da entrega a um capital financeiro, onde o instinto predador, que Veblen contrapunha ao do trabalho bem feito, é assim favorecido institucionalmente.

A passagem de PT a Altice foi só a tradução simbólica deste processo de destruição de valor, que agora culmina na “operação Picoas” e em medidas de coação sempre mais leves para quem tem muito dinheiro (e dívidas). Sim, as iniciativas liberais causaram danos que nos vão custar muito a reparar.

terça-feira, 25 de julho de 2023

As iniciativas liberais têm décadas


É possível contar a história da economia política nacional das últimas décadas só com este gráfico, retirado da excelente World Income Data, alimentada por estudiosos da desigualdade como Thomas Piketty.

O fascismo garantia rendimentos relativamente elevados ao 1% no topo, a revolução democrática reduziu o seu poder, por via das nacionalizações ou do significativo incremento da progressividade fiscal; os anos 1980-1990, com a intervenção do FMI, as privatizações ou a redução da progressividade fiscal, reverteram essa tendência igualitária. No final do cavaquismo, a minoria tinha reconquistado posições que nunca mais largou.

Sim, as iniciativas liberais têm décadas. E os resultados estão à vista. Dizem que o liberalismo económico nunca existiu em Portugal apenas porque não têm qualquer ética da responsabilidade.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

domingo, 23 de julho de 2023

Campanha Setenta e Quatro


«O Setenta e Quatro ocupou um espaço que sabia estar livre no jornalismo sem fins lucrativos. Fortaleceu a pluralidade informativa e a democracia. Fez um jornalismo rigoroso e progressista. Fê-lo com uma equipa de quatro jornalistas e sem ser orientado para o lucro. Depende de quem o subscreve e a motivação da redação é o serviço público. A informação que o Setenta e Quatro publica é de livre acesso por isso mesmo. Só contribui quem pode e quer.»

Está em curso, desde o início de julho, uma campanha de angariação do Setenta e Quatro, que visa garantir a redação nos próximos dois meses e dar um novo fôlego ao projeto (estabelecendo novas parcerias de jornalismo colaborativo, avançando com novas investigações e procedendo a uma melhoria do site e dos métodos de subscrição). Num país com um manifesto défice de pluralismo, tanto no plano editorial como da opinião publicada, é por isso importante que o Setenta e Quatro mantenha a sua atividade (podendo as contribuições ser feitas aqui).

Depende



O sociólogo Pedro Góis garante ao Expresso que “se não chegarem mais imigrantes, a economia deixa de funcionar”. Neste assunto, como noutros de economia política da integração internacional e social, a melhor resposta talvez seja: depende. Também na sociologia económica se aprende a perguntar: que economia estamos social e politicamente a construir e para quem e para o quê?

Neste contexto, aproveito para deixar de novo por aqui uma crónica que escrevi para o setenta e quatro.

Não podemos aceitar a globalização neoliberal

Chama-se arbitragem laboral à forma como os capitalistas, num contexto de fronteiras abertas a todos os fluxos pela liberalização, atiram os trabalhadores de diferentes países uns contra os outros, numa corrida laboral para o fundo. Este contexto nunca pode ser perdido de vista, nem naturalizado.

Simplificando, há duas formas de organizar a corrida laboral para o fundo: deslocalizar ou ameaçar deslocalizar o capital para os países onde os trabalhadores são mais pobres, ou trazer os trabalhadores mais pobres para onde o capital precisa deles, tendencialmente com as condições de trabalho dos países de origem. Deslocalizam-se os capitais ou deslocalizam-se os trabalhadores.

Num contexto de globalização neoliberal, a situação laboral piora muito nos países com condições de trabalho mais favoráveis e não melhora nos países mais pobres. Por outras palavras, a convergência nunca se faz por cima.

No caso português, reforçou-se desde a troika uma economia de baixa pressão salarial, demasiado concentrada em sectores como a construção, o agronegócio ou o turismo, onde os patrões exigem uma força de trabalho barata e abundante.

Surge, por isso, o discurso de origem patronal, medíocre e reacionário: “não há quem queira trabalhar”, “os portugueses não querem fazer certos trabalhos” (mal pagos), “estamos em pleno emprego”, entre outras fraudes nada inocentes. Claro, o problema são as remunerações e as ultrajantes condições de trabalho oferecidas por esse mesmo patronato, mas disso quase não se fala. Ou, quando se fala, pelo conhecimento público de uma situação de exploração mais flagrante, não se faz a ligação àquele discurso e à prática correspondente.

Para uma certa procura, seria mesmo bom que não houvesse oferta, de modo a obrigar quem precisa de força de trabalho a garantir salários e condições de trabalho decentes, incentivando, no processo, investimentos geradores de aumentos de produtividade. Caso contrário, estamos a perpetuar a selvajaria laboral, trancados num modelo económico medíocre.

Isto requer regras laborais exigentes para os patrões, que são quem tem mais poder, rigorosamente cumpridas. Mas também exige regulação dos fluxos migratórios por uma dupla razão: para defender quem cá está e quem quer vir para cá trabalhar, de modo que ninguém fique vulnerável perante o patronato. A dignidade do trabalho é para todos.

Do ponto de vista social e político, os que estão em profissões com barreiras à entrada, da língua à regulação – e que, por isso, atenuam a concorrência internacional de todos contra todos –, por exemplo, professores universitários, advogados, médicos, jornalistas, gestores, deveriam estar mais atentos aos que estão mais expostos às consequências da abertura irrestrita de fronteiras a todos os níveis.

Sem fronteira económica, não há responsabilização política, nem democracia ou Estado social para todos. Por isso, os neoliberais sempre quiseram tornar a fronteira política economicamente irrelevante.

A fórmula de Dani Rodrik, um economista político social-democrata, é justa neste contexto: os países subdesenvolvidos devem poder copiar as práticas desenvolvimentistas dos países hoje ricos, incluindo o protecionismo; os países desenvolvidos devem poder evitar a erosão dos seus padrões laborais ou ambientais, bloqueando formas de concorrência e de chantagem do capital consideradas ilegítimas.

E, sim, claro: um certo discurso pretensamente cosmopolita, mas complacente com a globalização neoliberal, também alimenta a extrema-direita.

sábado, 22 de julho de 2023

Esperanza en nuestra España


Esclarecimento


Divulgam-se autores, ideias e práticas social-democratas genuínas da história da economia política e autores, ideias e práticas marxistas, sem esquecer quem procurou fazer pontes entre as duas, incluindo na tradição cristã. Sim, o espírito intelectual é o da tradição, sempre por reinventar, de frente popular, aquela internacionalista e que enraizou nos solos nacionais. O antifascismo foi e será um programa negativo, de combate a um inimigo, e positivo, de criação das condições para que este não ressurja. Nada mais, nada menos.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Antídoto contra a sabedoria convencional


Se o britânico John Maynard Keynes (1883-1946) foi o principal economista da primeira metade do século XX, o norte-americano John Kenneth Galbraith (1908-2006) foi o principal economista da segunda metade, ou pelo menos o principal a não ganhar o prémio que passa por Nobel em Economia. Atribuído pelo Banco Central da Suécia, este prémio serviu sobretudo para consolidar academicamente o neoliberalismo, sendo esta uma forma de economia política contra a qual este keynesiano-institucionalista lutou até ao último sopro. 

Este ano, a editora Actual editou um dos seus livros, A Sociedade da Abundância, publicado originalmente em 1958 e alvo de reedições, com alterações aqui e ali, até 1998. Numa ciência económica desmemoriada, graças à limpeza curricular de quase tudo o que possa colocar os estudantes de licenciatura a pensar criticamente sobre o mundo que os rodeia, e num panorama editorial dominado por iniciativas liberais, é sempre bom ver um livro social-democrata destes nas livrarias. Oferece-nos uma elegante caixa de ferramentas, afiadíssimas pela ironia e por um estilo exemplar de escrita.

O resto da crónica pode ser lida no setenta e quatro.

E como se explica isto?


Numa peça noticiosa sobre a recente sondagem da Universidade Católica, emitida na passada quarta-feira, e numa parte dedicada à popularidade dos líderes da oposição (ver a partir do minuto 4'20''), a RTP apresenta a imagem que se reproduz aqui em cima, fazendo surgir os respetivos rostos, um-a-um, pela ordem que se observa (não incluindo Luís Montenegro, separado do conjunto pelo facto de ser o líder da oposição).

Isto é, uma sequência que faz surgir André Ventura logo no início, apesar de ter a menor pontuação (7,0), deixando para o final Rui Tavares, que obtém a segunda melhor nota (10,2), a seguir a Mariana Mortágua (10,7), que detém o índice de popularidade mais elevado no conjunto. Sequência e resultado gráfico final que se tornam ainda mais estranhos pelo facto de a voz-off referir corretamente a posição relativa de cada líder partidário.

Não se percebe, de facto, o critério. Sendo certo que não se trata de uma ordenação decrescente dos valores obtidos (pois nesse caso Ventura surgiria em último lugar), poderia pensar-se que a lógica é a de uma sequência da direita para a esquerda, em termos de espetro político. Mas de imediato se constata que Inês Sousa Real está mais afastada de Ventura e de Rui Rocha que Paulo Raimundo e Mariana Mortágua.

Agora imaginem que estão num café, sem conseguir perceber a voz-off e acompanhando apenas a sequência de imagens (20 segundos). Com que ideia ficam da popularidade relativa alcançada por estes líderes da oposição, segundo os resultados da sondagem? Se isto não é desinformação subliminar, por ligeireza ou intenção, é o quê?

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Estado da Nação


Já está disponível a 5ª edição do relatório «Estado da Nação», elaborado pelo Instituto para as Políticas Públicas e Sociais do Iscte. Dedicado à questão das «Reformas Estruturais», conceito cuja ambiguidade e apropriação política são discutidas na introdução por Ricardo Paes Mamede, que coordena a obra, o relatório de 2023 inclui contributos críticos sobre Emprego (António Monteiro Fernandes), Justiça (Alexandra Leitão), Habitação (Teresa Costa Pinto), Segurança Social (Ricardo Barradas), Proteção Social (Paulo Pedroso), Imigração (Rui Pena Pires, Cláudia Pereira e Alexandra Ortiz), Saúde (Julian Perelman e Alexandre Lourenço), Educação (Isabel Flores) e Ciência e Ensino Superior (Maria de Lurdes Rodrigues).

De leitura fácil e apelativa, dada a dimensão contida dos artigos e o recurso a frases-chave em cada tema, o relatório é complementado por uma base de dados setoriais (O Estado da Nação em números), resultante de uma parceria entre o IPPS-Iscte e o CoLABOR (Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social). Uma boa sugestão de leitura no dia em que, precisamente, se debate o Estado da Nação na Assembleia da República.


Impressão

Na praia da ilha da Culatra passa uma avioneta com um anúncio à “cidade do automóvel”. Diz que o nível médio das águas do mar vai subir. Vagamente distópico ou é impressão minha? Não seria de proibir esta e outras formas de publicidade direta e indiretamente poluidoras, como as que atafulham as nossas estradas e as nossas cidades, conspurcando as nossas paisagens?

quarta-feira, 19 de julho de 2023

A inflação combate-se com a subida dos salários

Esta frase parece-lhe com pouco sentido? Acha mesmo que, aumentando os salários, se vai alimentar "uma espiral inflacionista"? 

Então isso quer dizer que está impregnado da lógica oficial e que precisa de ler este texto do Diogo Martins e do Vicente Ferreira (ver aqui, Caderno nº18) e, depois, vir ouvi-los apresentar o seu estudo e os comentários de Ana Costa, João Ferreira do Amaral e Nuno Aguiar.  Vai ser que depois terá outra opinião. 

É amanhã, dia 20, às 18h15. Divulgue e participe. 


Os liberais até dizer chega querem matar a cultura


‘Fecharam a “segunda Casa da Música do Porto”: “É matar a cultura”’, titula o Público. Matar a cultura é um dos objetivos dos liberais até dizer chega, como Rui Moreira. É por estas e por muitas outras que este cartaz, empunhado no 25 de Abril, é, à luz da história da economia política, de uma enorme sensatez.  

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Com toda a imparcialidade de que sou capaz


O melhor texto que li sobre o atual processo inflacionário foi este opúsculo, que tem Costas Lapavitsas, um dos nossos economistas de referência, como um dos seus coautores. Está centrado no caso do Reino Unido, mas tem ensinamentos gerais.

Foi, mas já não é, uma vez que tive a felicidade de ler o texto de Vicente Ferreira e de Diogo Martins sobre a inflação, que vai ser apresentado na quinta-feira, em Lisboa. Não percam o estudo e o debate. A sabedoria económica convencional não está mesmo à altura.

Crocodilos que voam

É conhecida a anedota - adaptada para diversos ambientes políticos - em que um professor primário pede à turma um exemplo de um animal que voe. Depois dos óbvios condores, canários, corvos e patos, um dos meninos lembra-se de outro: o crocodilo. “Crocodilo?!” indigna-se o velho professor. “Quem foi que lhe ensinou tamanha burrice?!”. "”Foi o meu pai”, responde o petiz. “E o que é que faz o seu pai?” “É da polícia.” O professor atalha de imediato: “Bem, voar, voa, mas baixinho”.
Não sei porquê, mas ao ler os posts do Nuno Serra, do Paulo Coimbra e do Vicente Ferreira lembrei-me de uma sugestão a dar ao economista e professor Ricardo Reis, para que possa sair da situação em que está, ao insistir - como disse na RTP, no programa É ou não é? - que “os salários acompanham o que é a produtividade” (ver aos 22m33s, mas convém ver o programa inteiro).

Da próxima ver, talvez possa responder: “Bem, lá acompanhar, acompanham, mas por baixo...”

Nota para leigos

A questão de saber se os salários acompanham ou não a produtividade não é discipicienda. É, aliás, uma questão fulcral. Trata-se de definir como se reparte entre trabalhadores e capital o bolo do rendimento criado. Basta ouvir os deputados à direita e os dirigentes das confederações patronais para perceber a importância que lhe é dada. Dizem eles:
“Os salários não podem subir mais do que a produtividade”, “não se pode distribuir o que não se tem”, “primeiro cria-se e depois distribui-se”, “as empresas é que criam emprego”.
Porque dizem isto? 

Os aumentos salariais vão cair do céu?

O anúncio de nova subida das taxas de juro por parte do Banco Central Europeu (BCE) voltou a animar o debate sobre a resposta à inflação em Portugal. Apesar de ter reconhecido que “os trabalhadores ficaram, até à data, a perder com o choque inflacionista”, a presidente do BCE, Christine Lagarde, justificou a subida dos juros com o argumento de que se “está a desencadear um processo sustentado de convergência em alta dos salários” e que o banco central tem de atuar para conter as “pressões sobre os custos unitários do trabalho”, de forma a “garantir que não conduz a uma espiral” de aumentos dos salários e dos preços.

A argumentação dos economistas que, por cá, se têm pronunciado em defesa da atuação do BCE é a de que o processo inflacionário tem momentos distintos: numa primeira fase, registou-se uma subida acentuada dos lucros das empresas, mas, numa segunda fase, os salários começarão a crescer e recuperarão naturalmente as perdas. No Expresso, Ricardo Reis escreveu que “faz parte do processo normal inflacionista as margens aumentarem”, uma vez que “os preços sobem mais depressa do que os salários” no início e que “naturalmente, nos próximos dois anos, os salários vão subir mais do que os preços, e as margens das empresas vão descer”. No entanto, há vários problemas com este raciocínio.

Começando pelo início: ao contrário do que afirma Reis, a inflação não foi causada pela expansão monetária dos bancos centrais (que já vinha a ocorrer há mais de uma década sem efeitos visíveis no nível geral de preços), mas sim pela subida de preços sistemicamente importantes, isto é, preços de produtos que representam uma parte importante dos custos de quase todas as empresas e setores de atividade e que, por isso, têm um impacto na evolução da maioria dos preços. Foi isso que aconteceu com a subida dos custos da energia, que rapidamente se alastrou a outros setores.

Face a um choque inflacionista, é expectável que as empresas tentem pelo menos manter as suas margens e que os trabalhadores tentem manter os seus salários reais. O desfecho desse conflito distributivo não tem nada de "natural", como afirma Reis, já que depende das relações de forças e do poder relativo de cada parte. Num contexto em que a taxa de sindicalização se encontra em mínimos históricos e a negociação coletiva continua a ser muito pouco expressiva, facilmente se percebe porque é que as empresas conseguiram proteger-se (ou mesmo aproveitar-se) do choque enquanto os trabalhadores suportaram os custos. Mais difícil será antever um crescimento “natural” dos salários em condições de negociação tão adversas para o trabalho.

Ao mesmo tempo que garante que os salários subirão “naturalmente” ou em linha com a produtividade (coisa que não tem acontecido), Reis defende a atuação do banco central e a subida das taxas de juro como resposta para a inflação. Acontece que a subida dos juros serve precisamente para restringir a procura através da compressão da atividade económica e do emprego. A própria presidente do BCE explicou que a ideia é produzir “um aperto suficiente” na economia. O desemprego e a quebra de rendimentos não são um dano colateral, são parte integrante desta política.

Ou seja, os economistas que nos dizem que os salários recuperarão “naturalmente” as perdas registadas são os mesmos que apoiam a subida das taxas de juro, cujo objetivo é precisamente comprimir os rendimentos e, com isso, a procura, em nome do combate a uma espiral inflacionista que a realidade tem desmentido nos seus próprios termos: a taxa de inflação está a baixar de forma consistente em Portugal justamente no período em que os salários começam a recuperar alguma da perda registada no último ano.

Mais: as garantias de que os salários crescerão “naturalmente” contrastam de forma clara com a oposição a medidas que têm como objetivo garantir aumentos salariais efetivos. Basta ver as críticas que economistas como Ricardo Reis (aqui) ou António Nogueira Leite (aqui) se apressaram a fazer à proposta de indexação dos salários à inflação, omitindo casos como o da Bélgica, que tem um esquema de indexação (com diferenças entre setores) e onde os trabalhadores do setor privado tiveram aumentos que permitiram proteger boa parte do poder de compra, sem que a taxa de inflação no país tenha sido muito diferente das do resto da Zona Euro.

Quando se chega ao cerne da questão – a repartição dos custos da crise – os economistas liberais colocam-se invariavelmente do lado mais forte. Felizmente, o debate económico não se resume a esta posição. No Financial Times, Adam Tooze questiona: “Reduções marginais da inflação devem ter prioridade sobre o desemprego? Se vemos nos sindicatos uma linha de defesa da democracia e de combate à desigualdade, não devíamos estar a apoiá-los em vez de condenar espirais preços-salários?” É a discussão que devíamos estar a ter por cá. 

Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.


domingo, 16 de julho de 2023

A ideologia económica de Ricardo Reis foi revelada?


Ricardo Reis (RR) afirmou recentemente que «os salários acompanham a produtividade». Trata-se de uma ideia falsa, desmentida pelos factos.

Quando primeiro lho dissemos, bloqueou-nos

Agora, em nova liça na sua coluna no Expresso, e sem nunca nos nomear, ao invés de reconhecer o problema que apontámos, RR atira para canto: «há muitos conceitos diferentes de produtividade». 

Se é verdade que há diferentes conceitos de produtividade, também me parece ser verdade que RR desconversa e que, ao contrário de Jesus Caraça, receia o erro. Porque será? 

A medida que usei para contrariar a afirmação de RR pode ser obtida diretamente na Ameco extraindo a série RVGDE que traz consigo a definição de “PIB por pessoa empregada, a preços constantes”, ou seja, PIB nominal descontado de inflação e dividido pelo número de trabalhadores que o produziram. Deve ser, talvez, a série mais usada por quem se dedica, académica ou profissionalmente, a estudar Economia. 

Digamos que é “apenas”, a título de exemplo, a variável usada em 2013 por Mario Draghi, quando este tentou, com um êxito que quem vive do seu trabalho não merecia, evangelizar a zona euro com a ideia de que as reformas ditas estruturais e a moderação salarial são o caminho para o sucesso, enquanto a alegada ‘rigidez estrutural’ e os sindicatos conduzem ao fracasso. 

De facto, se os salários reais aumentam na mesma proporção da produtividade, as percentagens dos salários e dos lucros no rendimento nacional permanecerão constantes. 

Se. 

Ao contrário do que leio nas afirmações de RR, nada há neste processo que possa assemelhar-se a uma imutável lei económica que, no médio longo prazo, acaba sempre por se materializar. 

A verdade é que depende. Se os salários reais aumentam, ou não, na mesma proporção da produtividade, depende da forma como evolui o conflito distributivo, da força relativa objetiva dos seus atores e da sua determinação volitiva, das circunstâncias políticas e institucionais. 

Depende disto e pouco, ou nada, da fórmula económica que postula que os salários reais são iguais à produtividade marginal do trabalho. Pode ser uma surpresa para alguns, mas há, de facto, economia para lá dos manuais convencionais.

Tudo sobre a inflação em Portugal


É na próxima quinta-feira. Se quiserem conhecer o mais completo estudo sobre a inflação, da autoria de Diogo Martins e Vicente Ferreira, sobre as políticas oficiais e a sua ineficácia, e sobre as políticas alternativas, venham a este colóquio do Observatório sobre Crises e Alternativas.

18h15: Abertura - Vicente Ferreira - Doutorando em Economia na Universidade de Roma La Sapienza

18h30: Comentários:

* Ana Costa - Professora Associada do ISCTE-IUL / Presidente da Associação Portuguesa de Economia Política 

* João Ferreira do Amaral - Professor Catedrático aposentado do ISEG 

* Nuno Aguiar - Jornalista das revistas Visão e Exame.

19h15: Notas Finais - Diogo Martins - Doutorando em Economia na Universidade de Massachussets Amherst; membro do núcleo permanente do Observatório sobre Crises e Alternativas.

19h30: Debate

20h00: Encerramento

Aconselha-se a pré-inscrição. Vejam mais pormenores aqui.

E por falar em “fim da História”

Por favor, alguma editora que traduza, mas bem, a autobiografia de Lea Ypi, filósofa marxista de origem albanesa, professora na LSE. Só apetece adjectivar esta não-ficção literária sobre a infância na Albânia socialista e a adolescência na caótica transição para o capitalismo: tocante, comovente, brilhante, etc. 

De livros de memórias, que tivessem marcado assim, só vem à memória o Confesso que Vivi, de Pablo Neruda. Outra geração, outra idade, outro contexto, claro, mas a mesma penetrante consciência da substância do tempo e do espaço que lhe coube concretamente habitar, história e geografia sentimentais; e a nós, graças a eles.

sábado, 15 de julho de 2023

Memórias dos anos do “fim da História”


Esta foto, obtida através de Carmen Granja, fez-me recuar um quarto de século. 

Depois de uma manifestação multitudinária no Porto, em solidariedade com Cuba, no contexto da Ciméria Iberoamericana, fomos para um pavilhão em Matosinhos. Um concerto de solidariedade estava programado para aí. Havia muitos companheiros galegos à mistura. Já era bem de noite. 

De repente, há uma grande agitação, é anunciada uma surpresa, um filho de emigrante galego entra em palco, Fidel entra em palco, a multidão explode de alegria pura: Fidel, Fidel! Cuba vencerá, Cuba vencerá! 

Mais de duas horas depois, o entusiasmo prevalecia, apesar de tudo. E Fidel falou de tudo o que era importante na economia política internacional da altura. E estava lá outro imprescindível chamado José Saramago. Estavam lá muitas e muitos imprescindíveis, dos que lutaram todos os dias, na realidade. 

Éramos jovens e ainda havia gigantes nos anos do “fim da História”.

Repita connosco, sr. professor: «os salários não acompanham a produtividade»


Depois da participação recente num «É ou não é» da RTP, onde afirmou, sem pestanejar, que «os salários acompanham a produtividade» (tendo depois partilhado, no twitter, o excerto em causa), esperar-se-ia que Ricardo Reis aproveitasse o seu espaço de opinião no Expresso desta semana para corrigir a afirmação (ou tentar justificar, de algum modo, por que razão difundiu uma ideia factualmente falsa, como ilustra o gráfico).

Mas não, nada disso. No seu artigo, o economista da London School of Economics prefere, numa opção pouco séria (desde logo na perspetiva do salutar debate científico), assobiar para o ar. Isto é, não deixando outra interpretação que não seja a de que continua a pensar, e a assumir, que «os salários acompanham a produtividade». Na verdade, aliás, até vai mais longe, sugerindo que os que dizem que «a produtividade não tem nada a ver com os salários» (quem disse isso, sr. professor?) fazem uma «leitura incorreta» da informação. É preciso ter lata.

Não estamos, sublinhe-se, a tratar de uma questão menor, lateral ou irrelevante, na argumentação de Ricardo Reis. Estamos a falar de uma ideia («os salários acompanham a produtividade») que sustenta todo um programa que é político, além de académico. Trata-se de um pilar do seu pensamento que, uma vez posto em causa, faz desmoronar todo o edifício. E não é nada plausível que Ricardo Reis não tenha noção disso.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Querido Diário - Auf Wiedersehen! 1


Público, 2/7/2013 

Não foi precisamente há dez anos. Mas trata-se de um aniversário que não se pode deixar passar em claro. 

No início de Julho de 2013, o país assistiu espantado à apresentação do pedido de demissão do então todo poderoso ministro de Estado e das Finanças, o homem que era o garante europeu para o cumprimento integral do Memorando de Entendimento. Na partida, o então ministro alemão das Finanças Wolfgang Schauble não lhe poupou elogios. E não sem razão - Gaspar era um dos "filhos" da troika.

Nos anos 90, Vítor Gaspar foi um membro fáctico dos governos Cavaco Silva. Foi membro do Comité Monetário Europeu de 1989 e 1998 (seu chefe de 1994 a 1998). Foi representante pessoal do ministro das Finanças Jorge Braga de Macedo na conferência inter-governamental que conduziu ao Tratado de Maastrich. Foi conselheiro de Cavaco Silva quando o seu governo forçou, em prejuízo de trabalhadores e empresários, um caminho recesssivo de convergência nominal para a adesão ao euro. 

E assim contribuiu para a recessão de 1993.

Gaspar foi conselheiro especial do Banco de Portugal e director-geral da área de investigação do BCE de 1998 a 2004. Chefiou o Departamento de Estudos e Estatísticas (DEE) do Banco de Portugal e foi director dos Estudos Económicos do Ministério das Finanças. Foi membro do Gabinete de Consultores Políticos da Comissão Europeia de 2005 a 2006 (em 2007, chefiou esse gabinete). De Janeiro de 2007 a Fevereiro de 2010 foi director do Gabinete de Conselheiros de Política Europeia da Comissão Europeia em Bruxelas. De Março de 2010 a Junho de 2011 foi consultor do Banco de Portugal.

Quando assumiu o lugar nº2 do Governo Passos Coelho, em Junho de 2011, a sua preparação foi elogiada na comunicação social como característica ideal para servir de âncora do Governo. Quem apoiou os partidos da direita (neo)liberal sorriu. Tudo ia correr bem. E, do ponto de vista de quem beneficiou da acção do Governo, correu.  

O rápido e pesado rolo-compressor legislativo aprovado - baseado na  teorial (neo)liberal - visava uma descida pronunciada dos salários nominais como único factor de competitividade externa. Com o respaldo do FMI, a arma usada para o conseguir foi provocar uma subida de desemprego. E isso foi conseguido e, por acaso, ainda subsiste: a direita (neo)liberal chora agora lágrimas de crocodilo face à realidade laboral em que medram os baixos salários. Mas nada faz para alterar essa situação.

A compressão orçamental, visando reduzir a dívida pública, abriria - segundo a mesma teoria - novos campos de acção ao sector privado. Na realidade, substimou-se o efeito multiplicador das despesas públicas e foi necessário a aplicar o dobro da austeridade para obter as mesmas metas, porque a sua acção provocou a retracção económica. 

E veio a histórica recessão de 2012-2013, fazendo explodir o desemprego e a emigração. 

Gaspar - num típico exercício (neo)liberal em que as asneiras políticas justificam o seu aprofundamento - começou em Abril de 2012 por justificar a situação descontrolada. 

A política monetária do BCE não é verde


No final da semana passada, o Ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAAC) publicou a primeira versão da revisão do Plano Nacional Energia e Clima 2021-2030 (PNEC 2030), o principal instrumento de política energética e climática para esta década. O documento, que terá de ser avaliado pela Comissão Europeia e posteriormente alterado em função dessas recomendações, fixa em 85% a meta de incorporação de energias renováveis na produção de eletricidade em 2030 (o objetivo inicial era de 80%). 

O governo pretende duplicar a capacidade instalada de produção de eletricidade a partir de fontes renováveis até ao final da década. O maior crescimento virá do solar fotovoltaico (centralizado e descentralizado): Portugal tem, atualmente, 2,6 GW em operação, o objetivo para 2030 é de 20,4 GW (14, 9 GW de produção centralizada e 5,5 GW de produção descentralizada) – esta meta duplica os valores previstos na versão prévia, aprovada em 2020. De acordo com o comunicado do governo, a estratégia de transição energética representa um investimento de 75 mil milhões de euros em projetos de produção de energia verde (eletricidade e gases renováveis, como o hidrogénio verde e o biometano). 

Também na semana passada, Christine Lagarde, aquando da sua participação no Fórum do Banco Central Europeu (BCE) que decorreu em Sintra, atribuiu à recuperação dos salários reais (não do seu, evidentemente) a responsabilidade pela eventual persistência da inflação acima dos valores considerados adequados pelo BCE. Mais do que declarações polémicas que “incendiaram” as redes sociais, as afirmações erróneas de Christine Lagarde são sintomáticas de uma política monetária, assente na combinação perniciosa de taxas de juro elevadas e de compressão salarial, que poderá condenar a transição energética ao fracasso. 

Não se espera, obviamente, que o BCE resolva a crise climática, mas sem um Banco Central alinhado com o avultado investimento público e privado no sistema energético, a transição dificilmente ocorrerá. Ao elevar os custos de investimento, através das suas medidas, esta instituição influencia, necessariamente, as opções de política climática e energética. Com efeito, as energias renováveis exigem investimentos iniciais substanciais e são sensíveis à deterioração das condições de financiamento e ao aumento das taxas de juro. 

Como exemplificam Philipp Heimberger e Lea Steininger, enquanto uma central termoelétrica alimentada a gás natural pode utilizar as suas receitas presentes para pagar novos combustíveis, um projeto de energias renováveis de grande escala, como um parque eólico offshore, ou até mesmo uma central de hidrogénio verde ou uma mega central fotovoltaica, utiliza as receitas presentes para pagar o serviço da dívida contraída para despesas de capital. Deste modo, quanto mais elevado for o custo do capital, menos atrativo é o investimento neste tipo de projetos. 

Por conseguinte, taxas de juro elevadas poderão impedir investimentos urgentes para atenuar a crise climática e realizar a transição energética. Além disso, a concomitante compressão salarial impede qualquer tipo de justiça social ao longo deste processo, esvaziando o slogan da Comissão Europeia de “não deixar ninguém para trás”. Não esqueçamos: fim do mundo, fim do mês, a mesma luta. 

As políticas climáticas e energéticas deverão ser conduzidas à escala nacional, por representantes políticos democraticamente eleitos. Os investimentos têm de ser impulsionados pelo Estado através de instrumentos de planeamento robustos e investimento público em energias renováveis, na modernização da rede elétrica, na eletrificação da ferrovia e dos transportes públicos rodoviários, ou ainda na reabilitação e renovação energética do edificado. Isto exige um Banco Central subordinado às prioridades orçamentais democráticas, não impondo restrições financeiras. 

O agora ex-editor de energia do insuspeito Financial Times é perentório: “o capitalismo não conseguirá concretizar a transição energética com a rapidez necessária”. Terão de ser os governos a liderar este novo “Plano Marshall”, acrescenta, o que implicará incorrer em “défices orçamentais significativos”. 

Com a sua política, o BCE e as restantes instituições europeias são parte do problema social e ecológico. A análise e a solução têm mesmo de ser sistémicas.

Crónica publicada no setenta e quatro na semana passada.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

A inesperada «resiliência» dos preços da habitação

Com o surgimento da pandemia, no final de 2019, gerou-se a convicção, entre os especialistas do setor, de que o mercado habitacional iria «arrefecer». Mas os preços não pararam de subir. Com o início da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022, surge nova convicção de que o mercado iria «arrefecer». Mas, uma vez mais, os preços não pararam de subir. De facto, quando se analisa a evolução do Índice de Preços da Habitação (IPH), desde 2013, a subida é contínua, como se a pandemia e a guerra não tivessem sequer, contra todas as previsões e expetativas, existido.


Só recentemente, à escala da UE27, se observa uma tendência de redução dos preços das casas (-3,2 do IPH desde setembro de 2022), sendo que a mesma ocorre apenas em cerca de metade dos Estados membros, continuando portanto os restantes a registar aumentos (como sucede no caso português, em que somente se regista, nos últimos meses, uma ligeira redução do ritmo de crescimento dos preços).

Mais: sendo certo que cada sistema nacionals de habitação tem as suas especificidades e dinâmicas próprias, constata-se que são os países com preços de venda mais elevados em que essa descida se verifica. O que permite colocar a hipótese de os investimentos internacionais no setor, e nomeadamente os investimentos que encaram a habitação como um ativo financeiro, poderem estar a deslocar-se para países com preços das casas comparativamente menores.


Assim, o que parece estar em causa é, uma vez mais, o facto de a atual relação entre a oferta e a procura já não se confinar às lógicas da função residencial da habitação nem às fronteiras dos países, antes se enquadrando, hoje, numa escala transnacional dos investimentos imobiliários. Os quais, juntamente com as dinâmicas especulativas e rentistas à escala nacional, mitigam ou anulam os impactos esperados de crises como a gerada pela pandemia e pela guerra.

A «resiliência» do mercado imobiliário, aclamada pelos players do setor - e que não significa outra coisa que a persistência do elevado preço da habitação - não é assim tão estranha e inesperada como pode, à partida, parecer.

Unir os pontos

Acho que Ricardo Reis, cujo livro favorito era, na altura da crise financeira por si declarada passageira (2007), o Capitalismo e Liberdade (Milton Friedman), consegue unir os pontos que vão deste gráfico ao que dá a ver a discrepância, com décadas, entre a evolução dos salários e a da produtividade. Sim, diz que o poder, bem posicional por excelência, conta na história do capitalismo e na distribuição das eventuais liberdades...

No neoliberalismo tardio


quarta-feira, 12 de julho de 2023

Velhinha e fascista


«O Manuel Carvalho da Silva recordou, num seminário do CoLabor, a reminiscência corporativa do conceito de colaborador, que agora substitui os trabalhadores muitas vezes, na linguagem de gestores e de pessoas a quem esta palavra arranha os ouvidos.
Fui à fonte e lá encontrei os “colaboradores” no art.º 22º do Estatuto do Trabalho Nacional, monumento jurídico do corporativismo português nos anos trinta.
Nesta fonte, a ideia de colaborador não é nova e neoliberal, mas velhinha e fascista.
»

Paulo Pedroso (facebook)

Mateus e associados


Augusto Mateus é um protagonista do longuíssimo cortejo fúnebre da economia portuguesa. 

Trocou o doutoramento e a investigação regulacionistas, que ainda deixaram lastro na excelente revista Economia e Socialismo (1976-1987), pela consultoria, repetindo as mesmas vacuidades sobre competitividade há décadas e mantendo um pé na academia. Também ajudou ter passado brevemente pelo governo Guterres, afastando-se logo do PS para passar a dar ares de independente muito sério. 

O seu empreendedorismo da consultoria prosperou no final dos anos noventa, à boleia do esvaziamento, que vem do cavaquismo, das capacidades intelectuais da administração pública. Se Cavaco Silva não tivesse destruído o Gabinete Básico de Economia Industrial, por exemplo, não teria havido tantos PowerPoints por aí. 

Mateus não foi caso único, claro: a concorrência das multinacionais foi intensa, acabando aliás por integrar a sua empresa numa delas. Portugal fez parte de uma tendência que Mariana Mazzucato e Rosie Collington analisaram criticamente. Em inglês soa realmente melhor, como a música pop: Big Con

Durante a troika acusou os portugueses de terem vivido acima das suas possibilidades, mencionando ecrãs plasma e referindo-se aos participantes no debate sobre austeridade como “malucos”. Pouco interessaram as centenas de milhares de postos de trabalho destruídos e as centenas de milhares de compatriotas compelidos a emigrar, simplesmente porque o BCE não fez o que lhe competia e que é tão simples: controlar juros. O que conta é o ar e o tom arrogantes com que se fala, de cima para baixo. 

Agora, no palco que, inexplicavelmente, lhe continuam a dar, defende que o BCE devia ter sido ainda mais duro a rebentar com uma pequena economia endividada, subindo mais cedo a taxa de juro. Nem cedo, nem tarde. 

Estes economistas, para quê e para quem, mesmo?