sexta-feira, 11 de julho de 2025

Será preciso relembrar as verdadeiras causas da crise de habitação?


«Na última década, Lisboa sofreu uma transformação drástica, deixando de ser uma das capitais europeias mais acessíveis para se tornar na mais inacessível. (...) Para perceber como se chegou aqui, é preciso recuar ao período que se seguiu à crise financeira internacional de 2008. No âmbito do plano de choque para reanimar a economia, Portugal adotou uma estratégia de liberalização agressiva, com o objetivo de colocar Lisboa - e o país – no mapa global do investimento imobiliário e do turismo. O governo adotou a fórmula neoliberal clássica: flexibilizou as leis do arrendamento, facilitando os despejos e reduzindo a duração dos contratos; introduziu generosos incentivos fiscais para compradores estrangeiros, incluindo os agora controversos Vistos Gold e regime de Residente Não Habitual; os fundos de investimento foram ativamente incentivados a entrar no mercado imobiliário, beneficiando de isenções fiscais adicionais. Ao mesmo tempo que tanto o setor hoteleiro como o do arrendamento de curta-duração foram estimulados, a par de iniciativas para atrair turistas, nómadas digitais, estudantes internacionais e jovens profissionais de outros países. (...) Estas mudanças ocorreram num contexto global de baixas taxas de juro, incentivando as pessoas a recorrer cada vez mais à habitação para alocar as suas poupanças».

Agustín Cocola-Gant, How Lisbon put itself on the map for real estate and tourism - and become Europe's least affordable city

Bem pode o governo tentar ofuscar o agravamento da crise, de que é responsável, insistindo na tese simplista da falta de casas (contrariada, desde logo, pela quase inalteração do rácio entre alojamentos e famílias ao longo da última década), ou continuando - como assinalou recentemente Sandra Marques Pereira no Público - a imputar a sua persistência «aos governos que o antecederam» e ao «aumento das taxas de juro e da imigração».

Em artigo no The Guardian que merece ser lido na íntegra, Agustín Cocola-Gant assinala de forma certeira o contexto e as opções políticas concretas que, incentivando as novas procuras - potencialmente inesgotáveis -, e convertendo a habitação num ativo de investimento financeiro, deram início à subida vertiginosa dos preços, que se foram afastando cada vez mais dos rendimentos da generalidade das famílias.

Esqueçam pois o ilusório «choque de oferta» e o reforço da subsídiação, que apenas agravará ainda mais o problema. E não tentem atribuir à descida das taxas de juro, ou ao aumento recente da imigração, a responsabilidade por um processo que teve início há mais de uma década. Se querem mesmo encontrar um governo responsável pela crise habitacional no nosso país, recuem a 2011 e ao memorando da troika. Encontrarão a maioria de direita de Passos e Portas, com Luís Montenegro a presidir à bancada do PSD.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Zohranomics: Lisboa pode aprender com Nova Iorque?

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Há duas semanas, as primárias para eleger o candidato do Partido Democrata à câmara de Nova Iorque tiveram um vencedor surpresa. Zohran Mamdani, associado à ala progressista do partido, ganhou com uma margem confortável, contrariando a maioria das sondagens divulgadas nas semanas anteriores.

Com uma campanha assente em pequenas doações dos apoiantes, Zohran Mamdani conseguiu vencer o candidato centrista Andrew Cuomo, que, além do reconhecimento por já ter sido governador de Nova Iorque, contava também com o apoio dos segmentos mais influentes do partido Democrata e de bilionários, fundos de investimento e outros grupos económicos que contribuíram com doações generosas para a sua campanha.

Mamdani ganhou a nomeação com um conjunto de propostas centrado no combate à crise do custo de vida, desde o controlo de rendas à gratuitidade dos transportes públicos e das creches. O slogan da campanha era tornar a cidade acessível a quem nela vive e trabalha. É possível encontrar algumas semelhanças - e diferenças - entre o caso de Nova Iorque e o de Lisboa, pelo que, numa altura em que se aproximam as eleições autárquicas, vale a pena olhar com atenção para esta campanha e para as propostas apresentadas.


O custo de vida é mesmo um problema?

Nova Iorque é uma cidade particularmente desigual, mesmo para os padrões dos EUA, como descreve o historiador económico Adam Tooze num post recente. O seu índice de Gini - que mede a disparidade de rendimentos - é o mais elevado entre as principais cidades, tendo inclusivamente aumentado desde a pandemia. Enquanto os rendimentos dos 3% mais ricos dispararam, os salários dos restantes grupos dificilmente chegam para acompanhar o custo de vida da cidade mais cara dos EUA.


Esta é uma tendência que não é nova nos EUA, mas que é particularmente expressiva em Nova Iorque. Entre 1980 e 2022, a percentagem do rendimento total recebida pelo 1% mais ricos dos EUA - por outras palavras, a sua fatia do bolo - passou de 10% para 24%. Em Nova Iorque, o aumento foi bastante mais expressivo: passou de 12% para 36%.

Além da desigualdade, a pobreza também é um problema sério na cidade. Um em cada quatro residentes não têm capacidade para suportar a despesa em bens essenciais como a alimentação e a habitação. Metade das pessoas abaixo da linha de pobreza encontram-se em situação de pobreza extrema - isto é, o seu rendimento é inferior a metade do limiar de pobreza.

Fonte: Center for New York City Affairs - NYC’s 2025 Economic & Budget Outlook

O fosso entre a maioria da população e os mais ricos tem aumentado e a acessibilidade é um problema real para muitos dos que vivem e trabalham em Nova Iorque. Desde a pandemia, a cidade tem registado uma inflação acima da média nacional e o custo das rendas ou das creches tem subido de forma particularmente acentuada. Neste contexto, não surpreende que um programa direcionado para combater o custo de vida tenha gerado entusiasmo entre os eleitores democratas e permitido a nomeação de um candidato improvável.


Como tornar uma cidade acessível?

As propostas de Zohran Mamdani dirigem-se às principais despesas da maioria das pessoas. Na habitação, a principal medida é o fim dos aumentos de rendas para o arrendamento a custos controlados, que abrange cerca de metade das casas na cidade, ao mesmo tempo que se inicia um plano de construção pública para aumentar a oferta, construindo 200.000 casas na próxima década. Em relação aos transportes, o programa propõe torná-los gratuitos e aumentar a frequência. Na alimentação, é proposto um projeto-piloto de supermercados públicos para venda de bens alimentares a preços mais baixos. Por fim, nas creches, a proposta passa por assegurar um serviço gratuito para todas as crianças até aos 5 anos.

Além do entusiasmo dos eleitores, o programa também reuniu apoio entre os principais economistas progressistas. Ainda assim, há questões que se levantam sobre as condições para a sua aplicação. Num texto publicado há poucos dias, o economista JW Mason discute os desafios que o programa enfrenta e os riscos associados a algumas das medidas.

Começando pela habitação, uma das propostas de Zohran Mamdani é a de eliminar algumas das regulações atualmente existentes, como a obrigatoriedade de construção de lugares de estacionamento nos novos empreendimentos, para estimular a construção privada. No entanto, esta é uma medida com impacto limitado sobre os preços, tendo em conta as taxas de retorno que os privados requerem para construir e que seriam difíceis de compaginar com a ausência de aumentos das rendas. Neste aspeto, a construção pública é indispensável: a autarquia não se rege pelos mesmos parâmetros dos privados e pode construir sem expectativas de rentabilidade elevada, assegurando a habitação a custos acessíveis, como demonstram os exemplos de Viena ou Paris.

Em relação à regulação de rendas, o principal argumento contra é o de que cria uma distorção no mercado: ao limitar o preço, reduz o incentivo para os senhorios e acaba por reduzir a oferta de casas e desincentivar a construção. No entanto, as experiências dizem-nos que o impacto não é linear. Os estudos sobre os casos de Massachussets ou São Francisco concluem que o controlo de rendas teve pouco impacto na oferta total de casas e foi eficaz na uma redução das rendas, embora tenha incentivado os senhorios a reconverter imóveis e dar outro uso a casas inicialmente disponíveis para arrendar.

Isso não significa que o controlo de rendas seja inútil. Significa que uma estratégia eficaz é necessariamente mais ampla e tem de incluir outras medidas para evitar a saída de casas do mercado de arrendamento. O controlo de rendas não é uma bala de prata, mas pode ser parte de uma estratégia de combate à crise da habitação: limita o poder dos proprietários para cobrar preços especulativos e ajuda a combater a gentrificação das cidades enquanto se aplicam outras medidas estruturais.

Quanto à gratuitidade dos transportes e das creches, a principal questão que se coloca tem a ver com a forma de os financiar. Zohran Mamdani defende o aumento de 1 ponto percentual do imposto sobre rendimentos acima de 1 milhão de euros, que geraria uma receita de 2 mil milhões de euros. É uma proposta modesta para uma cidade com níveis de riqueza e desigualdade tão acentuados como Nova Iorque. A tese de que os mais ricos deixariam a cidade não se tem verificado: os aumentos de impostos aprovados em 2017 e 2021 não levaram a um êxodo de pessoas nos escalões de rendimento mais altos.

Finalmente, em relação ao projeto-piloto para a criação de supermercados públicos, a principal crítica à medida é que será pouco eficaz, uma vez que as lojas privadas existentes operam com margens de lucro reduzidas e que os ganhos se concentram nos produtores dos bens alimentares. Embora seja uma preocupação legítima, há dois aspetos a ter em conta: por um lado, a proposta é criar uma alternativa pública em zonas em que os privados nem sequer operam por não ser rentável, como já acontece noutras cidades norte-americanas; por outro lado, o Estado pode ter força para negociar preços mais baixos com os produtores (o que não significa que não se devam considerar outras formas de intervenção pública ao nível da produção).


O que é que Lisboa tem em comum com Nova Iorque?

É difícil ignorar as semelhanças entre a crise do custo de vida em grandes cidades como Nova Iorque e Lisboa, em especial no caso da habitação. O preço das casas em Lisboa tem crescido muito acima da média nacional. Entre 2014 e 2024, enquanto o salário médio em Portugal cresceu 36%, o preço das casas subiu 135% no país e 176% em Lisboa. No caso das rendas, só desde 2017, o valor mediano dos novos contratos aumentou 64% no país e 82% na Área Metropolitana de Lisboa. Lisboa já é uma das cidades com as casas mais caras da Europa e tem-se tornado cada vez mais inacessível para boa parte das pessoas.


No entanto, os determinantes desta crise não são necessariamente os mesmos. Em Lisboa, a crise da habitação ganha outra dimensão devido à procura externa e à expansão desenfreada do turismo. A recomposição da oferta de casas para satisfazer a procura externa, através do investimento estrangeiro, dos incentivos fiscais para residentes não-habituais e da expansão do alojamento local e dos hotéis, contribuiu para alimentar a bolha no mercado imobiliário. O preço médio das casas compradas por não-residentes em Lisboa é 82% superior ao dos residentes, muito acima da média verificada no país. No peso do alojamento local, Lisboa já ultrapassou Nova Iorque há alguns anos.

Gráfico publicado por Nuno Serra noutro post do blog

Neste contexto, os incentivos à construção privada estão longe de garantir uma contenção dos preços, mesmo que a oferta aumente, uma vez que a procura externa é bastante elástica e não dá sinais de abrandar. Para estancar os preços da habitação - a principal variável que define o custo de vida na cidade -, medidas como o controlo de rendas e a construção pública são úteis, mas não suficientes. É necessário atuar não apenas no lado da oferta, mas também no da procura, com medidas para travar a compra de casas por não-residentes e a expansão do alojamento local e dos hotéis.

Em relação aos transportes, embora os passes gratuitos sejam uma medida positiva, dificilmente serão suficientes para atrair as pessoas e reduzir o número de carros na cidade se não forem acompanhados de investimento público para reforçar a oferta. Aumentar a frequência dos autocarros, expandir o metro para zonas da cidade para as quais as ligações têm sido adiadas e investir seriamente na ferrovia nas linhas de Sintra e Setúbal (o que implicaria colaboração entre municípios e governo) são condições necessárias para que o transporte público seja a melhor opção para quem vive e trabalha na área metropolitana. Estes investimentos têm de ser complementados com medidas que desincentivem o uso dos carros, de forma a reduzir o trânsito na cidade (que atualmente contribui para a lentidão dos autocarros).

Um programa de combate à crise do custo de vida na cidade tem de se confrontar com os problemas colocados pela expansão do turismo e precisa de colocar em causa o padrão de especialização económica da cidade, cujo crescimento tem sido assente em serviços de baixo valor acrescentado e pouco potencial produtivo. Alterações estruturais são uma condição necessária para tornar Lisboa acessível para a maioria.

Deseducar


Fernando Alexandre tem uma obsessão com a chamada literacia financeira ou não tivesse sido membro da direção do mais liberdade para explorar e expropriar trabalhadores, o stink-thank que os milionários gostam de financiar com muitas centenas de milhares de euros, porque sabem que não existem almoços grátis na luta político-ideológica. 

A chamada literacia financeira, de acordo com os novos planos curriculares do governo, terá ainda maior importância, com um foco na poupança e na segurança social, ou seja, em teorias erradas sobre a poupança, que Alexandre já propagou com Luís Aguiar-Conraria, com implicações privatizadoras para a Segurança Social. Este economistas, para quê e para quem mesmo? Repito, entretanto:

Como se argumenta na indispensável República dos Pijamas, “a Literacia Financeira é a nova palavra-chave do léxico neoliberal”. Já em 2013, em artigo na Análise Social, Ana Cordeiro Santos e Vânia Costa exploraram as implicações de uma forma de colocar o fardo sobre os cidadãos, ao invés de regular a finança, transformando-a num previsível serviço público. Ana Cordeiro Santos desenvolveu a relação entre literacia financeira e construção ideológica do sujeito neoliberal em artigo na New Political Economy.  Leituras, estas sim, educativas...

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Hoje


A partir das 21h00, mais um debate por videoconferência promovido pela Praxis, dedicado às alterações laborais anunciadas no Programa de Governo. Com a participação de Paulo Pedroso (sociólogo e dirigente da Causa Pública), Joana Neto (docente universitária especialista em Direito do Trabalho) e apresentação do tema e moderação por Henrique Sousa (investigador social e membro da Práxis). A participação é livre. Inscrições prévias aqui.

Discurso


Gosto cada vez mais de ensaios curtos e incisivos. Lá vou ter, por uma vez, de violar a regra do blogue sobre palavras feias. A culpa é de Alberto Pimenta e do seu brilhante discurso, já com décadas, de Paulo Coimbra, que mo ofereceu, bem como deste contexto histórico que gera uma sobreprodução deste tipo de gente. 

Há no ensaio uma tensão fecunda entre a busca de uma essência trans-histórica do filho da puta, a sua historicização, em geral, e a sua vinculação ao sistema de poder capitalista, em particular. 

O que é então um filho da puta? Há de vários tipos, claros, sendo a sua classificação crucial. Seja como for, um filho da puta, para Alberto Pimenta, é um antecipador da morte, buscando colocar obstáculos que impeçam a fruição despreocupada da vida pelos outros, seja dificultando a ação livre, seja ordenando e compelindo a ação assim condicionada. As formas variam, mas o propósito que faz do filho da puta um filho da puta mantém-se. 

Há naturalmente no ensaio uma pulsão de vida libertada, sem medo, uma vida vivida sem preocupações de maior, sem filhos da puta de maior. Um ensaio a não perder.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Feitio criminoso

Um criminoso de guerra será sempre um criminoso de guerra. Da destruição do Iraque no início do milénio aos projetos sionistas para a Palestina nestes trágicos anos vinte, o milionário Tony Blair não falha. Se houvesse justiça no mundo, estaria há muito preso, provavelmente para o resto da vida. 

Como não há ainda justiça, este acumulador sem fim tem um instituto com o seu nome, maciçamente financiado, dedicando-se à consultoria, propagando o modelo de neoliberalismo que levou Thatcher a dizer que o “novo trabalhismo” dos anos 1990 tinha sido o seu maior triunfo. 

O imperialismo genocida faz parte do projeto. Não é defeito, é feitio desde a origem.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Por que raio a Inglaterra tem e nós não?

 

Ouvimos há dias o novo Ministro da Economia e Coesão Territorial, António Castro Almeida, a dizer numa entrevista o mesmo que o Primeiro-Ministro e o anterior titular da pasta da Economia disseram várias vezes no passado recente: que o papel do Estado não é decidir em que sectores ou tecnologias apostar, pois “quem vai desenvolver a economia não é o governo, mas os empresários” e que o papel do governo é “não estorvar”. 

Dias antes, o Reino Unido tornou-se o n-ésimo país a contradizer o que Castro Almeida e Montenegro defendem. O governo britânico apresentou a sua nova Estratégia Industrial, um documento de 160 páginas que estabelece uma visão de longo prazo para a transformação produtiva do Reino Unido (nota: em inglês “industry” significa sector de actividade, que inclui tanto indústrias transformadoras, como agricultura ou serviços). O documento define sectores prioritários, identifica os principais bloqueios ao investimento, propõe reformas regulatórias e fiscais, e mobiliza recursos públicos para promover a inovação, o emprego qualificado e a coesão territorial. 

Tudo isto foi feito por um governo que chegou ao poder com um discurso pró-mercado e que, não obstante, não hesita em afirmar que a acção do Estado é indispensável para que o investimento se concentre nas áreas que mais podem beneficiar a economia e a sociedade. Um governo que, como tantos outros, reconhece o que devia ser óbvio: estratégia industrial e ambiente favorável aos negócios não são opostos, são complementares. 

Ao contrário do que se defende nos círculos políticos de quem governa Portugal, ter uma estratégia industrial não significa pôr políticos ou burocratas a decidir onde investir. Significa, ao invés, que o Estado reconhece o seu papel na coordenação de esforços entre empresas, centros tecnológicos, instituições científicas e agências públicas. Significa que se fazem escolhas informadas, partilhadas e monitorizadas, em vez de confiar cegamente nas decisões descentralizadas de milhares de actores dispersos. 

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje.

Fundação Pingo Doce, what else?


O anúncio é todo um programa, que começa logo com uma pergunta retórica: «Estará a reforma em vias de extinção?» («extinção», notem bem, não se dramatiza com menos). E sim, dá-se a resposta logo de seguida, aludindo a «caminhos alternativos» para «complementar as reformas convencionais» e «enfrentar o futuro com tranquilidade» (vamos confiar que é só uma curiosa coincidência e que o episódio não é patrocinado por uma qualquer seguradora).

Na página da fundação, os propósitos deste «podcast» (aspas) tornam-se ainda mais claros. Determina-se, ao arrepio de todo o debate sobre o tema, que a «sustentabilidade do sistema público de pensões está seriamente em risco» («seriamente», porque quando se dramatiza não se brinca) e afiança-se que, «mais do que nunca, é preciso agir cedo para garantir, mais tarde, uma vida confortável». Até porque «a reforma é um tema para se debater na juventude».

Ficamos por aqui? Não, o «especialista Diogo Mendes» vai ainda mais longe e concretiza o objetivo do alegado «podcast» (mais aspas), perguntando ao putativo ouvinte se «já ouviu falar em ‘fundos de pensões corporativos’», se conhece o «conceito de ‘juro composto’» e se sabe «quais são as vantagens, e desvantagens, de fazer um Plano Poupança Reforma». Maior clareza não se pode pedir.

Nada contra, evidentemente, que uma companhia de seguros promova os seus produtos financeiros. Apenas não é suposto, parece-me, que a FFMS - «que tem por missão promover e aprofundar o conhecimento da realidade portuguesa» - se dedique, e não sem antes deturpar os termos da discussão, a «vender» produtos de poupança reforma. É caso para dizer, parafraseando um célebre escritor português, que «sobre a nudez forte da propaganda jaz o manto diáfano do aparente debate».

Crítica económica, economia crítica


Sei bem que Thomas Carlyle não é das melhores companhias, mas como crítico romântico da economia política vitoriana, da “ciência esquálida” (“dismal science”) e da sua “filosofia de porcos” (utilitarismo), expressões por si forjadas, a sua pena afiada é útil: “ensinem um papagaio a dizer oferta e procura e têm um economista”. Parece que foi escrito hoje para descrever um economista liberal até dizer chega. 

Se a história económica ensina alguma coisa é que não há leis da oferta e da procura, quanto muito há tendências e contratendências histórica e geograficamente circunscritas. 

Um exemplo, sob a forma de questão, basta: como explicar as dinâmicas de pânico e euforia nas fases históricas de finança liberalizada e propensa a bolhas especulativas, sem contar com os efeitos, contrários aos esperados pelas “leis”, na procura de ativos financeiros? 

De facto, em certas circunstâncias, o aumento de preços valida as expetativas especulativas alimentadas a crédito, aumentando ainda mais a procura e levando à formação de bolhas que acabam por explodir mais tarde ou mais cedo. 

Se quereis evitar crises financeiras, a tendência de política económica é clara: controlo de capitais e outras formas de regulação contrárias aos interesses da finança dita privada.

Entretanto, o mais tarde ou mais cedo é crucial, o tempo é crucial. A história é incerteza e os papagaios não sabem lidar com este facto: em contexto de incerteza, um somatório de decisões individualmente racionais, pode gerar uma situação globalmente irracional, mediada pelos preços de mercado e tudo. 

Marx, Veblen ou Keynes souberam, e os seus discípulos também sabem, lidar com estes factos brutos. Haja história económica e das ideias económicas, haja crítica económica e economia crítica.

domingo, 6 de julho de 2025

Um jornal para pensarmos, um jornal para podermos


Desconfiança, desilusão, desesperança. A ordem é relativamente arbitrária. Muito antes da pobreza, do ódio ou da guerra se instalarem, vários poderes alimentaram uma máquina de corrosão da democracia. Atacaram direitos conseguidos à custa de muito sofrimento e vidas perdidas. Subvalorizaram a vida em paz, a pertença a uma comunidade política feita de diversidade. Erodiram as alavancas de igualdade e bem-estar que os serviços públicos e a ação do Estado devem garantir. Abusaram dos recursos do planeta, pondo em causa a vida humana. A informação de que este é o lugar histórico a que nos trouxe o projeto neoliberal é conhecida. Sabemos, mas o que podemos?

Assim começa para um imperdível editorial de Sandra Monteiro no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, desta feita de julho. Não percais o resto no renovado site do jornal. Assinai, on-line e/ou em papel, um apoio sem igual a um projeto cooperativo com um quarto de século.

sábado, 5 de julho de 2025

Falar de um esperançoso lugar comum


Os dias passam e o mal-estar político não diminui, ainda para mais são pessoas que individualmente respeito, por quem tenho admiração e dívidas intelectuais. Custa mais quando assim é. Tenho de escrever mesmo assim, não ficaria de bem com a minha consciência política. 

Faço então uma pergunta longa ao coletivo formado pelos distintos subscritores do texto levantar a nossa humanidade contra a guerra

A 30 de junho de 2025, dia 634 do holocausto palestiniano perpetrado pelo colonialismo sionista, como é possível falar apenas de “atrocidades”, evitando a palavra genocídio e fazendo anteceder essa consideração com uma referência altamente equívoca ao “terrorismo”, embrulhando tudo num caldo surpreendentemente pretensioso sobre a guerra em geral, mas sem sequer referir a perigosa e ilegal corrida armamentista em curso na cúmplice UE? 

A unidade antifascista, insisto, nunca se fez prescindindo da clareza, de distinções e de hierarquizações. Por isso, ao invés de estar para aqui a escrever, vou mas é para a manifestação pela paz, contra o genocídio na Palestina, pela autodeterminação dos povos. Fiquei de falar ali comummente, enquanto subscritor de um manifesto, dinamizado pela iniciativa dos comuns, onde a palavra genocídio aparece, não podia deixar de aparecer, como sublinhei à Visão

Tenho personalidade, como todos, mas não sou, nem serei, uma personalidade, como alguns. E só a ação coletiva, onde estarão muitos milhares, gera bem-estar político neste mundo, só ela liberta e dá esperança. É o melhor antídoto contra as depressões, já dizia o arguto Mark Fisher, que perdeu a esperança de superar o realismo capitalista, infelizmente. Não temos direito a perdê-la, pelo povo palestiniano e por nós.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

A economia política do escroque


Atenção, não creio que seja matéria de opinião: ser-se escroque é neste caso um facto bruto da economia política e do realismo moral que lhe subjaz. 

E isto para evitar usar um termo cujos contornos são brilhantemente expostos num ensaio com décadas e que Alberto Pimenta escreveu como se o tivesse feito hoje. Só o li recentemente, graças à generosidade de Paulo Coimbra, e apelo a que não o percam por nada. 

Seja como for, Covões encarna o capitalismo de herdeiros – nasceu em família dona do Coliseu dos Recreios – e vive à mesa dos orçamentos de vários poderes públicos, colecionando subsídios e, já agora, trabalho não pago a outros. 

O turismo e o lazer hiper-mercadorizado são uma praga laboral e a excessiva especialização nestas áreas condena o país às frações sempre mais reacionárias do capital.

Aposto um dedo mindinho em como parte das verbas auferidas são recicladas para, sei lá, o Chega-IL, hifenizados por outro herdeiro da mesma laia política; enfim, imaginem o pior do associativismo de classe gerador de custos sociais para a comunidade, como o ACP ou assim, dadas as intervenções “carristas” de Covões. 

A despudorada desfaçatez que exibe é o resultado de uma relação de forças que lhe é absolutamente favorável, sejamos realistas. Haja autoridade democrática para colocar estes escroques na ordem, sejamos esperançosos. 

O medo tem mesmo de ser transferido de baixo para cima, concentrando-se lá no topo e diminuindo globalmente nesse processo.

Lá estaremos, de norte a sul

 

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Perplexidades e personalidades


Confesso que fico perplexo ao ver Daniel Oliveira contrapor a “clubite partidária” às “personalidades independentes”, convocando, ainda para mais, a autoridade do macronista Santos Silva. Havia tanto para dizer sobre Santos Silva, mas não temos tempo. 

Temos tempo, isso sim, para dizer que o conceito de “personalidade independente” faz parte do arsenal da sabedoria convencional, o mesmo que as coloca nos bancos centrais ou nas autoridades de regulação “independentes”, ou seja, dependentes de quem tem poder económico. 

E havia tanto para dizer sobre os debates que as personalidades promovem. Para isto, ainda temos tempo: pela minha parte, aguardo serenamente pelas posições claras sobre o genocídio na Palestina, nem esta palavra decisiva usam nas suas tribunas, o desperdício da corrida armamentista na UE e a correspondente destruição dos Estados sociais, a usurpação de soberania pela Comissão Europeia neste contexto, a ilegalidades dos gastos da UE em armas, bem como o respetivo envio de armas, mas, por enquanto, só para conflitos onde estão homens brancos. 

As “personalidades independentes” não têm sido nada claras sobre estes assuntos, até porque têm de intervir espaçadamente, tipo de cinco em cinco anos.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Não falha


Excerto de um artigo no Financial Times, da autoria de Edward Luce, responsável editorial pelos EUA: “grande transferência orçamental dos pobres para os ricos”. 

Não falha: o neofascismo é o plano B do neoliberalismo, o prolongamento mórbido do paradigma com esteróides, apostado na cada vez mais violenta redistribuição regressiva de recursos, de baixo para cima, na pirâmide social. 

As ameaças aos socialistas são parte do projeto, incluindo a ameaça de retirarem a cidadania norte-americana a Zohran Mamdani, corajoso candidato democrático contra o establishment de Nova Iorque e para lá dela.

Pátria ou morte, venceremos


O movimento revolucionário educou-se sempre no ódio à discriminação racial e aos progroms de qualquer tipo. E, desde o mais profundo das nossas almas, repudiamos com todas as nossas forças a desapiedada perseguição e o genocídio que, no seu tempo, o nazismo desencadeou contra o povo hebreu, mas não me consigo lembrar de nada mais parecido na nossa história contemporânea do que o desalojamento, perseguição e genocídio que hoje realizam o imperialismo e o sionismo contra o povo palestiniano. Despojados das suas terras, expulsos da sua própria pátria, dispersos pelo mundo, perseguidos e assassinados, os heróicos palestinianos constituem um exemplo impressionante de abnegação e patriotismo e são o símbolo vivo do maior crime da nossa época.

Imortal Fidel Castro, 1979.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Medo do cuquedo


Perante a enésima viragem à direita do P sem S, e em breve sem P, o insuspeito Rodrigo Sousa e Castro pergunta: “Afinal têm medo de quê?”

Tenho uma lista não exaustiva dos medos do PS: tem medo da Comissão Europeia, do BCE e da Alemanha, tem medo do FMI, da NATO e dos EUA, tem medo dos sionistas e do seu terrorismo de Estado, tem medo do capital financeiro internacional e do capital reacionário nacional, tem medo do neoliberalismo e do seu plano B, o fascismo, e tem medo do grufalão e do cuquedo. 

Tem medo de tudo, em suma, incluindo da própria sombra histórica, do tempo em que era um instrumento tosco, mas um instrumento, das classes trabalhadoras para democratizar o capitalismo. 

Entre defender essas mesmas classes trabalhadoras e o seu Estado de direito democrático e social ou defender o euro e a corrida armamentista, já escolheu, foi escolhido, há muito. 

Por isso, quando Carneiro diz que “quer plano pan-europeu para superar crise da social-democracia”, todos têm a obrigação de saber que isto só quer dizer mais do mesmo das últimas décadas, mas com cada vez menos força.

A questão é o que é que os verdadeiros socialistas que ainda há no PS vão fazer, a começar, sei lá, nas eleições presidenciais.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Manifesto


Todos os dias vemos crianças, mulheres e homens a serem mortas em direto e nada é feito pela chamada “comunidade internacional”. 

Todos os dias vemos palestinianos famintos a ir buscar comida a uma entidade dirigida pelo exército israelita e pelos Estados Unidos da América e regressar às suas famílias de mãos vazias, desmembrados ou mortos. 

Na União Europeia dizem que “Israel tem o direito a defender-se”, e ninguém põe fim a este Genocídio. 

Em 2003, milhões de pessoas saíram às ruas em centenas cidades de todo o mundo erguendo a voz contra a invasão do Iraque, desencadeada com o pretexto de que o país tinha armas de destruição maciça. 

O resto do manifesto pode ser lido e subscrito no site da Iniciativa dos Comuns. Todos somos poucos no combate anti-imperialista pela paz, pela liberdade e pelo Estado social.

Os juros tinham de subir para travar a inflação?

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O fórum do Banco Central Europeu (BCE) começa esta segunda-feira em Sintra. A reunião anual acontece numa altura em que se discute se o banco central deve continuar a baixar as taxas de juro, uma vez que a inflação se encontra controlada, ou se vai fazer uma pausa, tendo em conta a incerteza sobre o impacto das tarifas na economia europeia.

Para saber se os juros devem ou não descer, é preciso perceber porque é que subiram inicialmente. Desde que, em 2022, a inflação começou a aumentar e atingiu valores a que não estávamos habituados, a prioridade expressa pelos bancos centrais foi a de fazer com que esta regressasse aos 2%. Este é o “alvo” que a maioria dos bancos centrais define e em torno do qual se centra o seu mandato: tomar as medidas necessárias para garantir que o ritmo de aumento dos preços não é superior (ou, nalguns casos, inferior) a 2%, pelo menos durante muito tempo.

A resposta adotada pela maioria dos bancos centrais passou pelo aumento das taxas de juro. Os juros subiram de forma substancial ao longo de 2022 e 2023, atingindo 4,5% na Zona Euro e mais de 5% nos EUA e no Reino Unido, depois de um longo período em que tinham sido mantidos em valores muito próximos de 0%.


A partir de 2023, a taxa de inflação diminuiu a um ritmo semelhante ao que tinha registado durante o período de subida. Na Zona Euro, a taxa de inflação já regressou ao alvo dos 2% e, para já, não parece haver sinais para alarme. Esta descida tem sido lida como um sinal de sucesso da política monetária. No entanto, o papel da política monetária neste processo é bastante discutível - não só pela eficácia duvidosa, mas também pelos impactos desiguais provocados.

Fonte: Bloomberg

Porque é que os juros aumentaram?

Os bancos centrais atuam com base no pressuposto de que as pressões inflacionistas resultam de um excesso de procura na economia. Se, num determinado momento, existe um aumento da despesa pública ou uma subida excessiva dos salários (e, em consequência, do consumo) e passa a haver demasiada procura para a oferta existente, isso provoca uma pressão sobre as empresas para aumentar os preços.

Neste caso, costuma dizer-se que a economia está “sobreaquecida”. A subida das taxas de juro tem como principal objetivo arrefecê-la: ao subir os juros, os bancos centrais tornam mais caro o recurso ao crédito, o que se pressupõe que dificulta o acesso a empréstimos por parte das empresas e, por isso, acaba por reduzir o investimento. A ideia passa por comprimir a atividade económica (e o emprego) de forma a estancar as pressões inflacionistas.

O problema desta abordagem é que é cega em relação às origens da inflação. As pressões inflacionistas podem não ser motivadas por problemas do lado da procura, mas sim da oferta. E é isso que sugerem os dados disponíveis sobre os últimos anos, tanto nos EUA como na Zona Euro: sem sinais de excesso de procura, o que motivou a subida inicial dos preços da energia, que depois se alastraram ao resto das atividades económicas que a utilizam, foram os constrangimentos da oferta provocados pelas medidas de confinamento e pela guerra na Ucrânia, que fez disparar os preços do petróleo e do gás.

Fonte: QERY, com base em dados do Eurostat

É difícil perceber que papel desempenhou a política monetária na descida da taxa de inflação para valores próximos dos 2%. A redução da pressão sobre os preços não aconteceu por via do arrefecimento da economia e do mercado de trabalho, visto que, durante a subida e a descida da taxa de inflação, tanto o desemprego como o rácio de ofertas de emprego (job vacancy ratio) mantiveram-se essencialmente inalterados. O que se verificou foi uma descida dos preços da energia e uma diminuição dos constrangimentos do lado da oferta, o que pode ajudar a explicar porque é que a redução da inflação aconteceu também em países onde o banco central não aumentou a taxa de juro diretora, como o Japão.

Aumentar as taxas de juro não tem nenhum efeito óbvio sobre os preços da energia. Como escreveu Joseph Stiglitz, “a desinflação ocorreu apesar das ações dos bancos centrais e não por causa delas”. No entanto, o mandato dos bancos centrais determina que utilizem o único instrumento de que dispõem. Para quem só tem um martelo, todos os problemas parecem pregos.

Porque é que o alvo são os 2%?

Ainda que o mandato dos bancos centrais não seja igual em todo o lado, o alvo dos 2% é oficial em mais de 60 países por todo o mundo. A pergunta óbvia é: de onde é que veio este número? Ao contrário do que se possa pensar, o alvo não foi definido por nenhuma das maiores potências económicas que hoje o adotam, como os EUA, a Zona Euro, o Reino Unido ou o Japão. O primeiro país a adotar formalmente os 2% de inflação como alvo do banco central foi a Nova Zelândia, em 1989. E a história de como se chegou ao valor é ainda mais surpreendente.

A Nova Zelândia - à semelhança do resto do mundo - enfrentava níveis de inflação elevados após os choques petrolíferos da década de 1970. O presidente do banco central, Don Brash, e o ministro das Finanças, David Caygill, receberam instruções para definir um alvo para a inflação. Durante este processo, um ex-ministro das Finanças do país disse publicamente que o governo pretendia garantir que a inflação se fixasse entre 0% e 1%. Como Brash explicou mais tarde, “Foi quase uma frase ao calhas […] o número surgiu do nada para influenciar as expectativas na opinião pública”. A verdade é que teve impacto no processo de decisão. Brash e Caygill consideraram que seria melhor ter uma margem de manobra ligeiramente maior e acabaram por definir o alvo do banco central nos 2%. A taxa de inflação da Nova Zelândia atingiu esse valor ao fim de dois anos e o alvo começou a ser adotado por países como o Canadá ou o Reino Unido, tendo depois sido generalizado.

Não havia nenhuma justificação económica para o alvo dos 2%, como os próprios intervenientes reconhecem. Este número não é o resultado de nenhum estudo académico ou de cálculos rigorosos. Foi um número que “caiu do céu” e se tornou a norma adotada pela maioria dos países.

Desde então, tem havido várias tentativas de encontrar evidências para justificar o alvo dos 2%. Uma das ideias é a de que a inflação constitui um entrave ao crescimento. Contudo, não é isso que a história das economias sugere. A história mostra que níveis de inflação relativamente mais altos estão associados a períodos de crescimento real mais robusto. A investigação de Robert Pollin e Hannae Bouazza, investigadores na Universidade de Amherst (EUA) que analisaram uma amostra de 130 países ao longo de seis décadas, sugere que o crescimento das economias é superior quando a inflação se encontra entre 4% e 5%.

Mesmo olhando apenas para os 37 países classificados pelo Banco Mundial como sendo de “rendimento elevado”, com PIB per capita superior, o resultado é semelhante: as economias tendem a crescer mais (em termos reais) quando a inflação é relativamente superior a 2%. Se este fosse o critério, não faria sentido fixar limites tão baixos para a inflação.

Fonte: The American Prospect, com base na investigação de Pollin e Bouazza

Ou seja: a política monetária dos últimos anos foi definida com base em pressupostos discutíveis sobre a origem da inflação e o seu principal objetivo é atingir um alvo para o qual não existe uma justificação teórica sólida. Assim, resta perceber porque é que não se consideraram alternativas a esta política.

Quem é que define a política monetária?

Desde a década de 1970, na maioria dos países, a política monetária passou a ser definida por bancos centrais independentes do poder político. A ideia era impedir que os governos interferissem no objetivo de garantir estabilidade de preços. Este paradigma baseou-se nas hipóteses de que existe uma relação inversa entre o desemprego e a taxa de inflação (uma relação que ficou conhecida como a “curva de Phillips”) e de que os políticos teriam tendência para querer reduzir o desemprego, sacrificando a estabilidade de preços por motivos eleitorais.

Se os trabalhadores começassem a esperar níveis de inflação mais elevados no futuro, começariam a exigir maiores aumentos salariais, levando as empresas a aumentar os preços para poderem manter as suas margens, e assim sucessivamente. O resultado seria uma espiral inflacionista. Como o risco de deixar a política monetária nas mãos dos governos era demasiado grande, a conclusão é que seria melhor entregá-la a instituições formalmente independentes.

O facto da inflação ter diminuído nas décadas seguintes foi visto como prova do sucesso da independência dos bancos centrais. No entanto, alguns estudos (aqui ou aqui) têm demonstrado que não é possível estabelecer uma relação entre as duas coisas. Há bons motivos para crer que outros fatores foram determinantes: a moderação da inflação esteve associada à globalização, que permitiu o acesso a matérias-primas e produtos baratos, e com a supressão do poder negocial dos trabalhadores, que levou à estagnação dos salários.

A verdade é que, nas últimas décadas, a relação entre o desemprego e a inflação parece-se cada vez menos com a hipótese da curva de Phillips. Recentemente, um estudo de dois economistas da Reserva Federal dos EUA, intitulado “Quem Matou a Curva de Phillips? Um Mistério Policial”, debruçou-se sobre este fenómeno e concluiu que a quebra da relação inversa entre as variáveis se deveu à erosão do poder negocial do trabalho. Ou seja, menores níveis de desemprego não levam necessariamente a mais inflação.

Além disso, na década que se seguiu à crise financeira de 2007-08, o BCE reduziu as taxas de juro para valores próximos de 0% com o objetivo de estimular a economia e isso não se traduziu num aumento da inflação, o que põe em causa a ideia de que existe uma relação direta entre as taxas de juro e a evolução dos preços.


Pode tirar-se a política da política monetária?

O grande problema da suposta “independência” dos bancos centrais está em assumir que as decisões sobre as taxas de juro são de natureza técnica ou científica e que as opções de política monetária são neutras, quando não são. A política monetária, tal como a política orçamental, é política: depende de pressupostos discutíveis e de avaliações sobre os custos e os benefícios da inflação.

A subida das taxas de juro afeta de forma diferente grupos diferentes. Por um lado, tende a prejudicar quem tem dívidas e paga juros, penalizando sobretudo os que se encontram nos escalões de rendimento mais baixos, e a beneficiar os credores e/ou detentores de ativos financeiros, tipicamente nos escalões mais altos. Por outro lado, se comprimir a atividade económica e aumentar o desemprego, que atinge primeiro os trabalhos mais precários e com piores salários, também prejudica quem ganha menos.

Ao definir um alvo demasiado baixo para a inflação considerada aceitável, os bancos centrais são mandatados para aplicar uma política de subida dos juros que não afeta todos da mesma maneira. No caso da Zona Euro, as decisões do BCE não só afetam de forma diferente grupos sociais diferentes, como têm impactos diferentes nos diferentes países. A subida das taxas de juro, que fez aumentar as prestações dos empréstimos à habitação, levou a maior perda de poder de compra nos países com maior peso dos empréstimos a taxas variáveis. Portugal foi o país onde as famílias foram mais afetadas pela subida dos juros e das prestações das casas, segundo um estudo do FMI.

Não existe verdadeira independência quando a atuação dos bancos centrais não é neutra. O historiador económico Adam Tooze resume-o: "As hipóteses sobre a economia nunca foram mais que uma interpretação parcial da realidade. A visão alarmista [sobre a espiral inflacionista] não era tanto uma descrição da realidade, mas sim um meio de impor a disciplina de mercado". As decisões sobre a política monetária assentam em pressupostos discutíveis e não afetam todos os grupos da mesma forma, o que implica que não podem ser tomadas à margem da democracia.

Apoio António Filipe


Fiquei mesmo contente com o anúncio da candidatura presidencial de António Filipe. É que há tantas, mas tantas, razões para um apoio. Deixo apenas meia dúzia. 

Em primeiro lugar, num quadro de candidaturas tão perigosas quanto de direita, aparece no tempo certo a candidatura que se lhes opõe, a do campo democrático e da paz. 

Em segundo lugar, António Filipe encarna a razão comunista e o iluminismo radical na prática política presidencial, sendo fiel a uma tradição, mas não se deixando circunscrever por ela, alargando um campo imprescindível. 

Em terceiro lugar, o jurista estudioso conhece muito bem a Constituição da República Portuguesa que tantos apoucam, sabendo interpretar como ninguém a definição: “garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas”. 

Em quarto lugar, foi um parlamentar íntegro e competente durante décadas, respeitado por todos, como se viu quando assumiu interinamente as funções de Presidente da Assembleia da República, e a Presidência exige um percurso com provas feitas e dadas

Em quinto lugar, António Filipe é um homem culto politicamente, da melhor cultura antifascista, sabendo bem que se trata de resistir, começando nos locais onde se trabalha, onde cria tudo o que tem valor, mas também de propor com esperança, começando pelo poder da palavra dada e honrada. 

Finalmente, António Filipe é um homem bom, bastando olhar e ver.

domingo, 29 de junho de 2025

The Durutti Column - The beggar


Passado

O PS já tinha perdido o S de socialista há muito. Agora, com Carneiro, perderá o P de Partido. 

No seu melhor, teve momentos social-democratas; no seu normal, foi conivente com neoliberalismo pelo menos desde 1983, tendo de resto o recorde de privatizações neste país e responsabilidade pesada pela queda na armadilha do euro. 

Aposto que já podemos começar a falar no passado. Seja qual for o destino prático do chamado PS, a social-democracia não passará por quem, por ação ou omissão, defende a corrida armamentista que vai erodir decisivamente o Estado social.

Há sempre dinheiro


Em Portugal, não há dinheiro para as pessoas terem casa, não há dinheiro para investir na saúde, não há dinheiro para melhorar a qualidade de vida. Mas há dinheiro para baixar impostos dos ricos, para esbanjar a mando de Trump e comprar armas estimulando a economia dos EUA. 

Pedro Prola não costuma falhar. É um intelectual brasileiro, militante do PT e coordenador do seu núcleo de Lisboa, que nos mostra como a social-democracia a sul não está contaminada pelo vírus eurocêntrico liberal. E isto ao contrário do que acontece por aqui, dentro e fora do PS. 

Prola cultiva um internacionalismo que começa pela identificação do sistema imperialista, comandado pelos EUA, como inimigo principal dos povos e da autodeterminação coletiva, primeiro direito humano, condição necessária para todos os outros direitos. 

Pela minha parte, lembro a regra número um numa economia monetária de produção capitalista: há sempre dinheiro, sobretudo para o que a classe dominante acha útil e que geralmente é inútil para a maioria. 

A combinação entre duas teorias práticas, mesmo, ou se calhar sobretudo, nas suas versões mais simples – teoria marxista e teoria monetária moderna –, permite conhecer as regras deste jogo enviesado e a forma como podemos jogar outros jogos.

sábado, 28 de junho de 2025

Da falsa propaganda do rearmamento


«A falsa propaganda de rearmamento cria a vã ilusão de que a supremacia resolve os problemas ao alimentar o ódio e a vingança. (...) O meu coração sangra quando penso na Ucrânia, na situação trágica e desumana em Gaza e no Médio Oriente, devastado pela expansão da guerra. (...) A força do direito internacional e do direito humanitário já não parece vinculativa, substituída pelo suposto direito de obrigar os outros pela força. (...) Isto é indigno da humanidade, vergonhoso para a humanidade e para os responsáveis destas nações. Como se pode acreditar, depois de séculos de história, que as guerras trazem a paz e que não se voltam contra aqueles que as travam? Como se pode pensar em lançar as bases para o amanhã sem coesão, sem uma visão global impulsionada pelo bem comum? (...) As pessoas desconhecem cada vez mais a quantidade de dinheiro que acaba nos bolsos dos mercadores da morte, com o qual se poderiam construir hospitais e escolas, e, em vez disso, os já construídos são destruídos».

Na senda de Francisco, Leão XIV a recusar juntar a sua voz ao transe bélico perigoso, irresponsável e desumano em curso.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Antifascista


Este livro reúne, por ordem cronológica invertida, cinco ensaios, sendo inédito apenas o primeiro – A economia política do antifascismo –, com destaque no título do livro. Os quatro ensaios restantes foram publicados entre 2018 e 2024, em revistas ou capítulos de livros, tendo merecido uma revisão posterior, no contexto da presente publicação, beneficiando dos comentários de Francisco Melo e de Rui Mota, a quem muito agradeço. De resto, sem o estímulo de Rui Mota para publicar na editora Página a Página, não creio que tivesse alimentado a expetativa de a sua compilação poder dar origem a um todo que é diferente da soma das partes, cabendo ao leitor decidir se é mais do que essa soma. Vamos, então, por partes.

Assim começa um livro que irá para a gráfica em breve e que será apresentado na Festa do Avante. Argumento que a lógica antifascista se traduz intelectualmente numa aliança entre o marxismo e o keynesianismo progressista, num quadro soberanista que desafie o mercado único e a moeda única, levando a sério a ideia de economia mista plasmada na nossa Constituição.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Hoje e sempre


Soube, graças a Alexandre Hoffman Castela, que o imortal Salvador Allende faz hoje anos, 117 anos. Parabéns, Presidente, hoje e sempre. Tenho há anos uma fotografia dele, com Neruda, em A3, o que agradeceu ao Partido por não terminar nele mesmo, amor comunista em estado puro. 

Comprei a foto numa banca do heróico Partido Comunista Chileno na Festa do Avante. Hoje, pedi para me fazerem uma moldura. Vai para a sala. Nunca fui e talvez nunca irei ao querido Chile, é do outro lado do mundo. Simplesmente, sou internacionalista e lembro os heróis desta grande tradição.

Obcecado, obsesionado, obsédé, obsessed


Em resposta às críticas que lhe dirigi em o Anti-da-Silva, Francisco Mendes da Silva chamou-me “obcecados” no Twitter, assim no plural. Antes, tinha-se armado ao pingarelho, com uns jornais cuidadosamente dispostos, toda uma mise-en-scène

“Beria da Beira” é outro argumento, digamos, com a sua piada mas que me sobrestima. É que é tudo embaraçosamente público, basta a memória: o principal, de que não me desvio, é mesmo o seu apoio ao colonialismo genocida. 

Entretanto, e curiosamente, “obsessão” é uma palavra que tem surgido na propaganda colonialista sionista, mais recentemente para apoucar os que denunciam o genocídio e os que o apoiaram. 

Por exemplo, o Público, que também perdeu todas as referências ético-políticas, trazia um artigo de opinião aberto, de teor nazi-sionista, puro lixo a céu aberto, onde se falava precisamente de “ativistas obcecados”. 

A palavra repete-se em estrangeiro: obsesionado, obsédé, obsessed. Sabemos bem da esmagadora máquina de propaganda internacional de “Israel”, aqui e ali exposta por jornalistas corajosas, como Alexandra Lucas Coelho. 

Se quisesse, por exemplo, acho que podia ter ido lá de graça e tudo, naquelas viagens de “formação”. Podia ter sido, quiçá, o início de uma relação lucrativa, mas não há nada como olhar-me ao espelho, à noite, com a consciência tranquila. 

Há muitos académicos e outros intelectuais públicos a soldo, jornalistas, advogados e assim, isso é certo, sobretudo os que vão à televisão. Há de certeza manuais de “argumentação” que são distribuídos, etc. Sei que os EUA assim procedem e o Estado colonialista é um posto avançado do sistema imperialista.

Pena é que não haja praticamente jornalismo de investigação em Portugal.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Sexta-feira, na Figueira da Foz


Integrado no Ciclo Cidade Aberta, dinamizado pelo Grupo Habitar - Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional, realiza-se na próxima sexta-feira, na Figueira da Foz, um debate sobre o «Papel da Sociedade Civil na Construção do Habitar Colectivo» e na dinamização de políticas urbanas e territoriais. Participarei na sessão, moderada por Carlos Figueiredo, juntamente com Rui Fernandes (arquitecto), Teresa Pedrosa e Pedro Bingre do Amaral (engenheiro). O debate/conversa tem lugar no Pequeno Auditório do Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz (CAE), a partir das 16h00. Estão todos convidados.

Sabujice militarista


Este cerimonial vebleniano de vassalagem e de pagamento de tributo surpreende zero pessoas. Fica aqui, contudo, para memória futura.

Na crise de 2010-11, Espanha lá evitou a intervenção golpista da troika.

Nesta aventura militarista, fuga para a frente de capitalismos nacionais pressionados pela emergência da China, Espanha tenta resistir à rendição externa total.


Ao contrário, sem tugir nem mugir, no nosso país, a incapacidade, o egoísmo carreirista, a cobardia e europeísmo cego do extremo-centro, acomoda-se ao keynesianismo militar da direita e da extrema direita, que nesta política encontra o consentimento externamente produzido para a privatização do que resta das funções sociais do Estado e das nossas pensões.

Obedecer aos norte-americanos é o programa de sempre e, para mais, esta sua Administração tem razões para se recusar a continuar a alimentar o gordo superávite da Alemanha, uma política comercial agressiva para os seus parceiros comerciais e regressiva para os seus trabalhadores que assim se veem privados de consumir o que produzem, um superávite que nem os limites da União Europeia respeita.


Face à falência do modelo germânico de brutal contenção da procura interna, exportação de bens e desemprego com base em energia barata que os americanos tornaram cara com o seu aplauso, todos pagamos para reconverter a sua moribunda indústria automóvel em indústria militar. O tributo exigido pelos EUA em compra de equipamento militar também é a compensação que estes exigem pela prática comercial mercantilista da Alemanha. Eles abusam do comércio externo, a factura é a dividir.


Para estes golpistas da alegada ordem baseada em regras, que os tratados da UE proíbam especificamente que o orçamento comum seja utilizado para “despesas decorrentes de operações com implicações militares ou de defesa” é um detalhe sem qualquer importância.

Entretanto, o Conselho Orçamental Europeu (já sabiam como se auto-designam agora aqueles que de facto mandam no orçamento do Estado português?) já anunciou que “[f]lexibilidade na defesa não deve ser atalho para um orçamento expansionista” e “diz aos governos para começarem a apresentar estratégias para, a médio prazo, compensarem o esforço com defesa com a realocação de outras despesas”, leia-se corte da despesa pública não militar.

Mais despesa militar, igual distópico ordenamento europeu das contas alegadamente certas, necessidade de pagar 30 mil milhões de euros por ano do empréstimo pandémico, mesmo orçamento da UE limitado a cerca de 200 mil milhões, recusa da Alemanha, surda para o idealismo sem qualquer base material de Rui Tavares e outros fãs de uma UE que não existe, em aumentar a sua contribuição para aquele orçamento e de permitir mais endividamento comum, resta a austeridade bélica em que vamos viver enquanto esta política não for derrotada.

Tudo isto enquanto, sob um manto de quase invisibilidade no debate público, de forma totalmente arbitrária, bancos centrais paulatinamente transferem milhares de milhões de recursos públicos para os bancos privados, o que aumenta a pressão para cortar na restante despesa pública não militar.

“Os políticos de extrema direita, Ted Cruz e Nigel Farage, querem cortar os enormes subsídios concedidos aos bancos pelos bancos centrais. É lamentável que os políticos tradicionais permaneçam em silêncio sobre este escândalo. Não é a primeira vez que permitem que a extrema direita ganhe pontos”, afirma Paul de Grauwe.

É mesmo necessário recusar esta UE e a bajulice ao sistema imperial de que esta é parte subordinada. Não o fazer é aceitar que não há alternativa a este caos liberal até dizer chega.