quarta-feira, 7 de junho de 2023

Ressonâncias do passado

“Estávamos no final da guerra. Paris tinha-se rendido às forças da Resistência e a actividade heróica do povo francês ligado ao maquis tinha-se tornado conhecida. (...) Já não tínhamos dúvidas – se alguma vez as havíamos tido – de que o nazi-fascismo estava irremediavelmente vencido e a liberdade e a independência regressartiam a uma Europa martirizada. Os fascistas portugueses viram o fim do hitlerismo como o seu próprio fim. Por mais que pretendessem desvincular-se e dizer que eram pela democracia, ninguém os acreditava. No seu frio íntimo tinham a consciência de muitos crimes de que eram responsáveis ou menos encobridores e receavam pela justa vingança. (...)
Ora, numa altura em que a Resistência francesa era glorificada em todo o mundo como a desafronta a uma história recente acomodatícia e colaboracionista, aparece num jornal do Porto um tal Pacheco de Amorim, em dois ou três artigos, a considerar a Resistência francesa como a pior escória, um submundo de marginais, ladrões e assassinos, etc... Todos os que leram, mesmo alguns sem grandes amores pela democracia, consideraram aqueles artigos ascorosos e o seu autor merecedor da repulsa pública. (...)
O tal Pacheco de Amorim tinha sido convidado pela União Nacional do Porto a proferir uma conferência na Universidade onde repitiria as pasquinadas, tentando enlamear as mais belas páginas que o verdadeiro povo francês escrevera neste século. Nós costumávamos reunir-nos no Café Magestic. Éramos um grupo numeroso de antifascistas. Não sei quem lançou a ideia, mas foi logo por todos aceite e planeada cuidadosamente. Teríamos que encher a sala da Universidade com gente nossa e, quando o homem começasse a falar, levantávamo-nos todos e deixávamos sala sem ninguém. Sem uma palavra, sem outra atitude que não fosse aquele protesto de sair. (...) Foi uma coisa memorável. Ainda hoje me recordo como se o presenciasse.
A sala à cunha. Entre a multidão alguns pides que desconfiavam daquela fartura - uma quantidade de oposiocionistas a assistir a uma sessão da União Nacional, não cheirava bem. (...) Começaram a chegar os convidados - o governador civil, o comandante da Região Militar, o presidente da Câmara, os altos dirigentes da UN, o director da PIDE no Porto e, por fim, impante e orgulhoso, o conferente. Foram tomando lugar na mesa de honra e um deles fez a apresentação do conferente, não lhe regateando os elogios da praxe.
E chegou o grande momento. O homem levantou-se, dirigiu-se ao microfone e, mal pronunciara duas ou três palavras, (...) levantámo-nos ostensivamente e saímos devagar, seguidos por toda a gente que estava na sala. Ainda me recordo do Dr.Simeão Pinto de Mesquita, ao alto das escadas, por onde nós calmamente abandonávamos a Universidade, a insultar-nos. E com um nome que nunca entendi porquê - Calceteiros! (...)
No dia seguinte, à tarde, foram prender-nos ao meu escritório. E prenderam mais três ou quatro amigos meus. (...) Quatro longas horas de interrogatório e depois a clássica cena da gravata, o cinto, os atacadores, tudo para evitar o suicídio... O entrar para uma cela fria, escura, com grades que não davam para lado onde se pudesse ver o que fosse e aquela porta brutal a fechar-se foi para a minha claustrofobia um choque violento. (Alexandre Babo, Memórias de um Caminheiro, 1988)

Made in USA


Os EUA “inventaram” o protecionismo e a política industrial no início do século XIX, com o célebre “relatório das indústrias”, do primeiro Secretário do Tesouro, Alexander Hamilton: sem base industrial, não há independência nacional, até porque não há progresso dos poderes produtivos do trabalho e para a construir era necessário proteger a indústria na infância contra a concorrência britânica. 

Penso sempre nisto, quando assisto a momentos em que esta tradição é assumida frontal e orçamentalmente nos EUA para lá das mitificações liberais, como é o caso hoje em dia, tomando por pretexto a China e a questão climática. 

É preciso ser um economista convencional, com escasso conhecimento de história económica e da melhor teoria económica prática, para ficar surpreendido com isto: uma política industrial em grande escala gera um grande crescimento industrial. A função da economia convencional é vir dizer mais tarde: foi a mão invisível...

terça-feira, 6 de junho de 2023

Certificados

Estando à volta dos 3%, os juros que o ‘mercados’ ‘exigem’ pelo refinanciamento da dívida pública já estão injustificada e escusadamente altos.

Assim sendo, neste cenário, o Estado estava a oferecer ainda mais meio ponto percentual para obter crédito numa, agora, bem, descontinuada linha de certificados de aforro. Para quê?

Seguramente que não era para assegurar que o Estado português se endividava apenas, ou sobretudo, ou primeiramente, junto de portugueses, porque restringir emissões de dívida a compradores nacionais violaria todas as normas europeias e mais algumas.

Aqueles juros já estiveram nos 17%, em 2012, sendo a dívida pública muito semelhante, em dimensão, ao que é agora. E, ainda com dívida pública de dimensão semelhante, também já pagámos aos tais ‘mercados’ zero% ou lá perto.


Pagar mais 0,5% do que já nos é imposto pela errada política monetária do BCE para quê? Para distribuir alguma riqueza pelo sector privado nacional? Pelos portugueses? Mas que portugueses? No ano passado, 56% dos trabalhadores recebiam um salário inferior a €1000. Nos mais jovens, a percentagem era de 65%. Estes portugueses têm meios financeiros para aplicar em dívida pública?

0,5% é despiciendo? Quanto é neste momento a dívida pública em % do PIB? - 113,9%. E o PIB? – 239,3 mil milhões de euros. E, então, a dívida em valor absoluto? – 272,6 mil milhões. E quanto representaria 0,5% disso? – 1,3 mil milhões. São trocos?

Repare-se que, recuperar na íntegra a base de cálculo das pensões para 2024, e impedir que aquelas perdessem valor real num contexto inflacionário representou para a Segurança Social um custo financeiro de cerca de mil milhões de euros.

Descontinuar aquela linha de certificados de aforro e substituí-la por uma que paga juros inferiores foi uma boa opção. Melhor seria financiar a dívida pública diretamente com o dinheiro criado pelo BCE para emprestar a quem empresta ao Estado português. E pagar 0% de juros.

Também não sentiste o crescimento da economia?

Nas últimas semanas, os números da economia portuguesa foram amplamente destacados e elogiados. Depois de, em 2022, o Produto Interno Bruto (PIB) ter crescido 6,7%, o que corresponde ao maior crescimento anual registado neste século, a economia portuguesa voltou a surpreender no arranque de 2023 e registou um crescimento homólogo de 2,5% nos primeiros três meses do ano. A Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, que estimavam um crescimento de 1% até ao fim do ano, já reviram as suas previsões em alta e apontam agora para 2,4% e 2,6%, respetivamente.

Estes números têm sido elogiados pelo governo. António Costa congratulou-se com as “boas notícias na economia” e o ministro das Finanças, Fernando Medina, disse que os números revelaram “a capacidade de compensar o abrandamento da procura interna por um crescimento robusto das exportações e, por isso, [são] bons resultados”. No entanto, o ministro da Economia, António Costa Silva, acabou por reconhecer que “a melhoria significativa da economia […] ainda não chegou ao bolso dos portugueses”, o que parece mais próximo da experiência da maioria das pessoas. É importante perceber porque é que isso está a acontecer.

O resto do artigo pode ser lido no Setenta e Quatro.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Weber

Na esteira da economia política institucionalista de John Kenneth Galbraith, Isabella Weber teve a ousadia de defender, em artigo no The Guardian de dezembro 2021, o controlo estratégico de preços, como uma das medidas para atenuar a inflação sem causar desemprego. 

Esta economista sinóloga escreveu uma tese de doutoramento, publicada em livro, que se debruçou sobre os debates e precedentes históricos por detrás da sábia gestão de preços na transição chinesa da década de 1980, que permitiu evitar terapias de choque em modo Consenso de Washington. Toda uma tradição de economia para momentos turbulentos.

Defender o controlo de preços é a maior heresia para a sabedoria convencional. Weber desencadeou uma verdadeira “tempestade de trampa”, para traduzir as suas palavras. 

Foi insultada e ameaçada, num padrão típico da mais tóxica e ideologicamente enviesada ciência social. Paul Krugman, depois de a ter insultado, teve a rara honra de pedir desculpa, acabando a defender uma posição semelhante à dela, mas sem a referir, claro. Não foi caso único, longe disso. 

Esta economista tornou-se mais influente, entretanto. O liberal The Guardian acabou a defender a sua posição, em editorial na semana passada. A vantagem de Weber já tinha sido antecipada por Galbraith: os factos derrotam intelectualmente a sabedoria convencional, se bem que não necessariamente do ponto de vista político, acrescento.

Adenda. Na esteira de Weber, leiam os textos de Vicente Ferreira e de Pedro Pratas sobre o controlo de preços.

domingo, 4 de junho de 2023

De bicicleta


Ontem assinalou-se o dia mundial da bicicleta, meio de transporte que é caro a este blogue. Como dizia Iván Illich, citado neste livro ecossocialista - “O socialismo exige, para a realização dos seus ideais, um certo nível energia: não pode vir a pé, nem pode vir de carro, mas somente à velocidade da bicicleta”.

sábado, 3 de junho de 2023

A promiscuidade entre a política e a “técnica”

"Em horas de grande esperança e perplexidade, quando se pensava estar próxima a revolução libertadora e triunfante, era frequente falar-se da constituição de um gabinete-sombra. O Artur Santos Silva [resistente antifascista, membro da Acção Socialista e depois um dos fundadores do PPD], cuspinhando tudo e todos, vociferando perante a indecisão ou timidez de alguns: ‘Pois eu não tenho medo de ser ministro do Comércio, da Saúde, dos Cultos, da Marinha, das Pescas, dos Transportes, da Aviação, seja do que for. Eu, o que tenho de saber é ser político, discernir, fixar linhas de rumo, escolher prioridades. Os técnicos, esses, alugo-os ou compro-os. Não faltam por esse mundo fora técnicos dos melhores, que se vendem ou alugam por empreitada ou à tarefa... A dificuldade está na escolha de entre os que respondem ao anúncio...!’ ” (António Macedo, Na outra margem de Abril – Pequenas histórias de grandes homens, Editorial O Jornal, Dezembro 1988, pag.57) 

Esta dicotomia entre a política e a técnica tem longas histórias.

Mário Soares tinha uma expressão algo como isto: “Os técnicos são precisos para justificar a decisão política”. Acho que era “a minha decisão política”, mas isso é outro assunto. Noutra altura mais recuada no tempo, disse: "A verdade é que os políticos não podem deixar de ser profissionais, se o são a sério. Os amadores custam, demasiado caro aos povos que os sofrem" (Entrevista ao Diário de Notícias, 24/4/1984). Ou ainda mais recuada no tempo: "Para nós, o essencial é que o poder económico esteja submetido ao poder político e não o contrário" (Entrevista ao Portugal Hoje, 3/7/1980).

Claro que nem Mário Soares, com o seu panache, conseguiu manter esta garra. Para quem escrevera, em 1975, "não queremos que o socialismo seja uma utopia para os nossos netos: queremos melhorar aqui e agora a vida das classes trabalhadoras" (República, 15/2/1975), Soares acabou, poucos anos depois, a justificar “técnicamente” a sua decisão de virar a agulha ao rumo político, ao aceitar a agenda política do “técnico” FMI, mesmo que alegasse que isso não representava meter o socialismo na gaveta. Mas fazia-o, mesmo assim, com a ideia política de depositar Portugal à guarda dos políticos dos grandes países europeus, guardados militarmente pela NATO norte-americana - e sabe-se que a guerra é a política por outra forma ("técnica") - para evitar que o poder (político) caísse na rua. 

Depois disso, tivemos o primado da “técnica” sobre o poder político. Uma geração de políticos que se diziam ser apenas “técnicos” (governos Cavaco Silva) realizaram, na realidade, uma revolução política de gabinete ao guinar o país para a via neoliberal de transferência do poder político de intervenção do Estado para a esfera política dos poucos que dominam os mercados, supostamente regulados por entidades “técnicas”, “independentes”, embora dirigidas por quadros “técnicos” politicamente alinhados à direita.

Agora, temos uma versão light deste poder político descentralizado em que os membros do Governo aceitam como seus os contributos “técnicos” das corporações. As confederações patronais campeiam na legislação laboral, apenas beliscados em alguns pormenores “técnicos”. O sector imobiliário-financeiro vive momentos “técnicos” de ouro, ao ter lhe sido entregue a definição da política de Habitação nacional. O sector financeiro vive da “técnica” de roubar os depósitos dos seus clientes (através das comissões e o diferencial das taxas de juros cobradas nos empréstimos e pagas nos depósitos). Quando o Estado põe em causa “tecnicamente” esta situação (aumentando a taxa de remuneração dos títulos de dívida pública), o sector financeiro reage e o Estado muda a sua política, agachando-se (e à sua taxa de juro) e deixando-se penetrar pelo poderoso poder  “técnico” da Associação Portuguesa de Bancos. Os responsáveis do banco privado CTT - banco que tem o monopólio (sic!) da subscrição dos títulos de dívida pública (nem a própria CGD pública o pode fazer...) - tiveram a distinta lata de, através do seu “técnico” chaiman (que veio da "melhor" banca internacional, como Lehmon Brothers e Goldman Sachs, e que passou pelo organismo gestor da Dívida Pública no Governo Passos Coelho/Paulo Portas) de vir para a praça pública protestar contra esse desaforo político (ver aqui e aqui). 

A propósito deste combate que hoje parece desigual entre a “técnica” política das corporações e a política "técnica" do Governo,  veremos o que vai acontecer à chamada “comissão para a sustentabilidade da Segurança Social", na qual o sector financeiro deposita enormes expectativas para deitar mão a parte das contribuições para a Segurança Social. 

Para já, o sinal é mau: o Governo “político” delegou numa comissão “técnica” para que esta lhe diga o que pode - e deve - fazer. Resta saber que agenda política defende cada um dos seus membros “técnicos”. Mas isso não se sabe bem. 

Os trabalhos da comissão decorrem à porta fechada. Não há representantes dos trabalhadores, que são na verdade para quem a Segurança Social existe. É como se dissessem: “Esses não são bons técnicos: são políticos”.... Um relatório intercalar já foi entregue em Março passado, mas não é público. E é suposto a comissão entregar o trabalho final neste mês de Junho, sem que nada transpire para onde se inclina a dita comissão "técnica". 

Mas fica aquela ansiedade: se o Governo “político” cedeu nos Certificados do Tesouro tão facilmente à reivindicação “técnica” da banca, o que não fará uma comissão “técnica” e um ministério sem qualquer pensamento “político” ou “técnico”, face às pressões - mais pesadas já que são tão antigas (ver caderno nº17) - sobre a partilha “técnica” das contribuições sociais para a Segurança Social?

sexta-feira, 2 de junho de 2023

O povo merece + SNS


Amanhã (3 de junho), às 15h, estamos na rua para defender o SNS, conquista fundamental da nossa democracia.

Impostos sobre lucros extraordinários: o que move António Costa Silva?

O ministro António Costa Silva, acerca da possibilidade de criar um imposto sobre lucros extraordinários para combater a ganância das empresas, em Abril de 2022, com os preços a subir acentuadamente, defendia que “[n]esta altura não, de todo”. Agora, sensivelmente um ano depois, o mesmo ministro diz-nos, acerca de um imposto que acabou por avançar apenas para o setor energético e da distribuição, que este deve ser “removido” – rapidamente - para “não penalizar excessivamente as empresas”. Até porque, sublinha, a “energia está a baixar de uma forma muito clara”.


António Costa Silva insistiu que, no que toca a impostos, tem “uma opinião muito firme de que o regime fiscal quando é aliviado tem um impacto muito grande na economia, quer nas empresas, quer nas famílias”.

A este propósito, dois comentários e uma nota.

Primeiro, se os preços da energia estão a baixar e as empresas deixarão de ter lucros extraordinários e, por isso, de os ter taxados, qual é a pressa?

Segundo, a investigação em economia que se propõe a averiguar a relação entre impostos sobre lucros e crescimento, como por exemplo, aquela realizada por Sebastian Gechert e Philipp Heimberger - Os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico? - mostra que não tem sido encontrada evidência empírica que permita responder afirmativamente à questão que dá o nome à sua pesquisa. António Costa Silva tem estudos que permitam superar esta conclusão? A que impacto na economia se refere?

O que os factos mostram é que controle de preços e rendas e impostos sobre lucros extraordinários precederam em Espanha a queda acentuada da taxa de inflação.

Factos sempre emaranhados em valores. Sem qualquer objetividade, o senhor ministro, o ‘ministro das empresas’, atulha-se no seu viés ideológico. É a esta forma de governar que a IL chama ‘socialismo’.

De que tem receio, Senhor Reitor?


Eis um pouco da minha história. 

Apaixonei-me pela língua portuguesa quando ainda era estudante na Universidade Estatal de Moscovo M. V. Lomonossov. Na altura, a língua portuguesa era uma novidade no âmbito do ensino superior russo. Eu fiz parte das primeiras gerações que se dedicaram à aprendizagem desta língua. Foi nessa altura que percebi que a língua e cultura portuguesas fariam, para sempre, parte da minha vida. Mais tarde, tive a oportunidade de ensinar Russo em Portugal através da Associação Portugal-URSS. 

Lembro-me perfeitamente do genuíno interesse pela nossa língua e da infinita hospitalidade do povo português. Em 1988, tive o privilégio de começar a dar aulas na Universidade de Coimbra, numa altura em que a língua e a cultura russas tinham uma vasta popularidade em Portugal. Adquiri a nacionalidade portuguesa em 2002. 


Os estudantes do Professor Pliassov já falaram e os professores da sua Faculdade de Letras também. Para lá da sua reprovável dimensão científica e ético-política, eminentes juristas já vieram dizer que esta decisão do Senhor Reitor é de legalidade duvidosa. 

O Senhor Reitor, Professor Doutor Amílcar Falcão, ainda vai a tempo de sair da trincheira que cavou, revertendo a decisão e pedindo desculpas ao colega visado, à comunidade da Universidade de Coimbra e ao país. 

Um destacado Professor, com um p mesmo muito grande, impedido de ensinar pelo fascismo, chamado Bento de Jesus Caraça, bem que dizia: «Se não receio o erro, é só porque estou sempre pronto a corrigi-lo»

De que tem então receio, Senhor Reitor?
 

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Contra o discurso e as políticas das "contas certas"


A recessão na Alemanha faz regressar a política de austeridade: as divergências no seio do governo alemão são apenas sobre 'onde cortar'. É consensual que, numa recessão, o governo se comporte como se fosse uma família. Portanto, quando a economia entra em crise... aplica-se uma política orçamental que retira dinheiro da economia! Não aprenderam nada desde 2009. Vamos ver o que sobra para os países que a Alemanha tutela na ZE.

Não é de estranhar que a extrema-direita tenha vindo a crescer eleitoralmente na Europa, pelo menos desde a Grande Crise Financeira, maliciosamente designada na UE por "crise das dívidas soberanas".

Tendo imposto políticas de austeridade - retirando dinheiro da economia - numa conjuntura em que os bancos apertavam o crédito, as famílias perdiam empregos e/ou retraiam o consumo, e as empresas adiavam investimentos, a UE só agravou a crise. Depois de muito sofrimento infligido às populações que vivem do seu trabalho, acabou por admitir a suspensão dessas políticas de redução da despesa. Mas deixou um lastro de desigualdade e precariedade para o longo prazo.

Ainda assim, a política orçamental dos Estados-membros continua sujeita a um colete de forças que impede o bom uso da despesa pública para lançar uma estratégia de desenvolvimento. Como foi demonstrado num estudo de 2017, para além da estabilização da economia no curto prazo, no médio e longo prazo a despesa pública tem efeitos positivos sobre o emprego, o investimento e a produtividade (ver aqui).

Ainda por cima, como concluiu este estudo, o efeito da política orçamental expansionista sobre a inflação é baixo e de curta duração. Quanto ao efeito sobre o Défice e a Dívida (em % do PIB), ele é favorável dado que a despesa bem orientada tem um efeito multiplicador sobre o PIB.

O gasto público estimula a produção que, por sua vez, distribui mais rendimento às famílias e, num segundo ciclo, estas estimulam mais produção com nova procura. Estas transações pagam impostos, o que melhora a receita fiscal. Em suma, o défice e a dívida aumentam alguma coisa mas o PIB (após alguns ciclos de procura-oferta-procura induzidos pela despesa pública inicial) sobe bastante mais (efeito multiplicador keynesiano).

Temos assim uma fracção em que o numerador (Dívida) cresce bem menos do que o denominador (Produto); assim, a Dívida diminui em % do PIB. O mesmo vale para o Défice que todos os anos se junta à Dívida pré-existente.


Por conseguinte, o discurso das "contas certas", além de tecnicamente errado (sim, até Vítor Constâncio já o reconheceu, ver aqui), conduz o país a uma estagnação de longo prazo que nem o turismo permitirá camuflar. A erosão do Estado social nos últimos 20 anos, agravada pela perda sistemática do poder de compra dos salários e pensões, é um facto que o povo sente no quotidiano e que, reforçado pelos escândalos de nepotismo e corrupção, dá origem a uma indignação facilmente canalizada para o voto na extrema-direita.

Talvez o leitor entenda agora melhor que se trata de uma ilusão combater a extrema-direita com retórica mantendo as políticas que geram a desesperança e a raiva.

Iniciativas liberais há muitas


Em novembro de 2015, a Parpública enviou a vários bancos uma carta conforto, responsabilizando-se pelas dívidas da companhia vendida ao consórcio de David Neeleman. Ex-ministro Pedro Marques diz que se tratou do “momento de maior gravidade”. Ex-secretário de Estado do PSD não se recordou do documento, mas a sua assinatura consta do despacho que o autorizou. 

 A carta pode ser lida na íntegra na Visão

A assinatura de Pinto Luz é só um exemplo dos múltiplos confortos que o Governo da troika sempre deu às frações mais predatórias do capital. Razão tinham os comunistas portugueses, quando propuseram que a Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP se debruçasse também sobre esta privataria

Pinto Luz é um desmemoriado exemplo de um quadro “elitista, sulista e liberal” do PSD da linha de Cascais, da sua Câmara Municipal à direção da misteriosa fundação Alfredo de Sousa da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (vulgo Nova SBE). 

Toda uma forma de economia política por superar.

Revista Manifesto nº 7 - Apresentação em Lisboa a 3 de junho


O nº 7 da Revista Manifesto chega no final da semana às papelarias e livrarias e será apresentado no próximo sábado, 3 de junho, a partir das 18h00, na Feira do Livro de Lisboa (Praça Laranja). Intervém na sessão Ana Drago, Daniel Oliveira e Viriato Soromenho Marques. Esta edição da revista poderá também, em breve, ser adquirida aqui.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Da tese da «falta de casas» às contas que a IL não faz (I)

Insistindo na ideia de que a atual crise de habitação se resume a um problema de falta de casas, Carlos Guimarães Pinto (Iniciativa Liberal), deu recentemente à estampa um artigo em que analisa a evolução do número de alojamentos nos últimos quarenta anos. Feitas as contas, constata que Portugal ficou com «mais 758 mil casas» entre 1981 e 1991; «mais 861 mil» entre 1991 e 2001; e «mais 823 mil» entre 2001 e 2011. Ou seja, foram neste período adicionadas «mais de 800 mil casas ao mercado em cada dez anos», ao contrário do que sucedeu entre 2011 e 2021, em que «este valor caiu abruptamente de 800 mil para cerca de 100 mil». Queda que, segundo o deputado da IL, «coincidiu com uma crise da habitação».

Guimarães Pinto parece estar tão obcecado com a tese de que a crise habitacional é uma questão de oferta (falta de casas), que nem lhe ocorre espreitar o lado da procura. Isto é, saber como evoluiu, no mesmo período, o número de famílias residentes. Se o fizesse, poderia ter acrescentado, no seu artigo, que Portugal ficou com mais 223 mil famílias entre 1981 e 1991; mais 504 mil entre 1991 e 2001; e mais 393 mil entre 2001 e 2011. Ou seja, foram neste período adicionadas à sociedade portuguesa, em média, mais de 370 mil famílias em cada dez anos (que comparam, já agora, com as 800 mil casas), ao contrário do que sucedeu entre 2011 e 2021, em que este valor cai para cerca de 105 mil. Isto é, registando um aumento ainda mais reduzido que o do número de alojamentos, no mesmo período.


Considerada em conjunto, e nestes termos, a evolução da oferta e da procura, faz pois pouco ou nenhum sentido atribuir à «falta de casas» a explicação para a atual crise de habitação e a subida vertiginosa dos preços, sobretudo a partir de 2013. Como demonstra o gráfico aqui em cima, o menor aumento de alojamentos na última década é consonante com a variação do número de famílias. De resto, basta constatar que o rácio de alojamentos por família quase não se altera entre 2011 e 2021, mantendo-se em torno de 1,4. Ou seja, próximo de uma casa e meia por família. É só fazer as contas. E desiluda-se quem pense que o problema da falta de casas é específico das grandes cidades e áreas metropolitanas. Como se mostrará num texto seguinte, também aí não está em causa um alegado desfasamento na evolução do número de famílias e de alojamentos.

A explicação para a crise habitacional que Portugal (tal como a Europa) está a atravessar, terá portanto que ser encontrada noutros fatores. Desde logo, nos efeitos da crise financeira de 2007-2008 na reorientação do investimento para o imobiliário, indissociável da sua crescente internacionalização, a par da intensificação da procura turística e da adoção de incentivos à especulação no setor. Isto é, em novas formas de procura de habitação, que em muitos casos encaram as casas como meros ativos financeiros, e não nos termos «clássicos» da sua função residencial, alimentando a vertiginosa subida dos preços a que se está a assistir.

Adenda: Nos cálculos da variação intercensitária dos alojamentos, Carlos Guimarães Pinto opta por considerar o total de alojamentos, que inclui alojamentos coletivos (hotéis e convivências) e alojamentos familiares não clássicos (barracas e construções precárias). Isto é, modalidades que não devem ser tidas em conta quando se pretende aferir a oferta existente (sendo nesse sentido mais adequado considerar apenas os alojamentos familiares clássicos).

terça-feira, 30 de maio de 2023

Talvez o BCE tenha começado a perceber


Há cerca de seis meses, no seu Relatório de Estabilidade Financeira, o BCE viu «sinais de que a expansão do mercado imobiliário dos últimos anos» poderia «estar a chegar ao fim», prevendo uma «inversão do ciclo», com os financiadores de crédito imobiliário «mais cautelosos» face ao risco de a correção significativa de preços poder gerar «perdas entre os investidores». Entre os fatores que estão na base dessa inversão, o BCE destaca a sua própria opção pelo aumento das taxas de juro, que retrai as famílias na «intenção de comprar ou construir casa».

Curiosamente, e pelo menos em relação ao caso português, o BCE vem agora anunciar que os preços das casas vão continuar a aumentar, mesmo que a um menor ritmo, afirmando ser «improvável» que os valores desçam de forma acentuada nos tempos mais próximos. A justificar esta previsão, o BCE assinala dois fatores: escassez de casas no mercado e «forte procura por parte de investidores estrangeiros». E, nem de propósito, a Confidencial Imobiliário assinalou entretanto que os preços no 1º trimestre de 2023 revelam «uma intensificação face ao 4º trimestre de 2022» em Lisboa, com a variação homóloga a «superar os 15% na esmagadora maioria dos concelhos» da AML.

Talvez o caso português, entre outros, ajude de facto o BCE a perceber que o efeito da subida das taxas de juro é apenas uma das variáveis na equação do aumento ou descida dos preços das casas. Isto é, que sendo inegável o seu impacto nas opções de muitas famílias, levando-as, para já, a suster o investimento na compra ou construção, tal não significa que essa medida tenha o mesmo efeito em todos os investidores, e nomeadamente nos que, nacionais ou estrangeiros, operam a partir de lógicas especulativas.

Ou seja, e como já referimos aqui, «a expectativa do BCE quanto a um "arrefecimento" do mercado imobiliário, a ponto de o mesmo se traduzir numa "viragem" relativamente à expansão registada nos últimos anos, estará muito dependente da saúde financeira de segmentos da procura que olham para as casas como ativos de investimento». Até porque, tudo o indica, a questão da alegada «falta de casas», tanto em Portugal como na Europa - num contexto em que os salários não acompanham o aumento do preço das habitações - resulta sobretudo dessas novas formas de procura (e da sua internacionalização), e não do aumento do número de famílias ou da redução do número de alojamentos, ao longo da última década.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Não há nada para celebrar


Na semana passada, na celebração dos vinte e cinco anos do Banco Central Europeu (BCE), Lagarde declarou, com o humor possível, “whatever it cakes”. Já se sabe que quem parte e reparte… E o bolo não cresceu e a repartição é cada vez mais desigual.

Não há nada para celebrar neste quarto de século: o BCE é a melhor expressão institucional do divórcio entre democracia e capitalismo nesta zona. Numa economia monetária de produção, há poucas coisas tão cruciais como a política monetária. A moeda antidemocrática é sempre uma má moeda.

Em Portugal, o euro esteve associado a duas décadas de dependência externa crescente, investimento decrescente e estagnação persistente. Serve de pouco a convicção de que a História será severa para os que, no início da década de 1990, mudaram os estatutos do Banco de Portugal, proibindo-o de financiar o Tesouro, passo para entregar um aspeto crucial da soberania a uma instituição como o BCE: de Cavaco a Guterres...

domingo, 28 de maio de 2023

Velhas receitas

Publicado no jornal Público, a 5/8/2012

"Durante a guerra [a 2ª Grande Guerra], chegou a dizer-se, expressamente, que os operários deviam ganhar pouco para permitirem às empresas uma acumulação de lucros que lhes facilitasse modernizar-se logo que viesse a paz.
Como se sabe, obtiveram-se grandes lucros. Que foi feito a esse dinheiro que não se distribuiu em salários? Foi uma orgia. Compraram-se quintas ao desafio, cada um a arrotar a sua superioridade. "Importaram-se" amantes espanholas, aproveitando-se a fome que ali havia em consequência da Guerra Civil. E, para "mostrar o gado", como diziam, levavam-nas às touradas vestidas de sevilhanas. Havia um industrial dos lados de Guimarães que, no fim dos lautos almoços oferecidos aos amigos, dizia à mulher: "Vai buscar a cavalaria". E ela vinha com uma saca cheia de "libras de cavalinho", de ouro, que ele espalhava em cima da mesa. Depois acrescentava: "Agora traz os paus de sabão". E ela ia buscar barras de ouro. Um outro, no concelho de Famalicão, afirmava publicamente que "dava uma imagem de ouro para a igreja da freguesia se a guerra durasse mais dois anos!!!"
Assistia-se a estas loucuras quando se sabia que o povo miúdo "rapava" fome, porque muitas vezes só se encontravam artigos de alimentação no mercado negro, a preços incompatíveis com os salários que eram pagos aos trabalhadores". 
José Ricardo, Romanceiro do Povo Miúdo - Memórias e Confissões, Edições Avante!, Lisboa, 1991, p. 188)  

Manifesto nº 7 em breve nas bancas

«Por constrangimentos e contratempos muito diversos, alguns dos quais inesperados, o número 7 da Manifesto chega às bancas com alguns meses de atraso. Concebido desde o início com o dossier temático dedicado à guerra na Ucrânia, iniciada em fevereiro do ano passado com a invasão deste país pela Rússia, o impasse da situação fez, contudo, com que essa opção editorial não perdesse, em ampla medida, atualidade.
É bem certo, igualmente, que a preocupação em reunir um conjunto de reflexões sobre a guerra que contribuísse sobretudo para a melhor compreender e enquadrar – a partir de distintos pontos de vista, opiniões, sensibilidades e ângulos de análise – também favoreceu a circunstância de os textos do dossier se manterem, apesar de tudo, atuais. E o próprio objetivo inicial na escolha do tema, de procurar romper com as empobrecedoras visões «a preto e branco», que desde a primeira hora se instalaram no debate público, mantém também por isso a sua validade.
»

Do editorial do nº 7 da revista Manifesto, que estará disponível em livrarias e quiosques no final deste mês. Boas leituras!

Lista de Artigos:

MANON AUBRY, Dinâmicas de convergência da esquerda francesa | LOREN BALHORN, A esquerda alemã precisa de falar para a maioria da classe trabalhadora | ISABEL DO CARMO, Questões estruturais da Saúde em Portugal | MIGUEL CABRAL, Balanço da resposta à pandemia da COVID-19: a perspetiva de um médico de saúde pública | VICENTE FERREIRA, Inflação: o que sabemos até agora? | VIRIATO SOROMENHO MARQUES (entrevista por Daniel Oliveira) | BERNARDO TELES FAZENDEIRO, O mundo pós-soviético: Alargamento e autodeterminação | LUÍS CARAPINHA, A tempestade perfeita que pode levar o mundo à catástrofe: Breves notas em torno da guerra na Ucrânia | KATHARINA PISTOR, Da Terapia de Choque à Guerra de Putin | JOSÉ MANUEL PUREZA, A política externa portuguesa e a guerra na Ucrânia: Alinhamentos Imperiais | DANIEL OLIVEIRA, Os dilemas da esquerda anti-imperialista | MANUELA BARRETO NUNES, «Império do Medo»: uma exposição sobre a escravatura e o tráfico negreiro em Portugal e no mundo | ANTÓNIO MELO, A Censura, essa “porca”, citando Bordallo Pinheiro | PILAR DEL RIO, 100 anos de José Saramago | JOSÉ REIS, O neoliberalismo às claras | HERNÂNI LOUREIRO, A Tirania do Mérito - o que aconteceu ao Bem Comum? | MANUEL SAN PAYO, Ilustrações

sábado, 27 de maio de 2023

Esquizofrenia de uma mente socialista enredada

 "Se é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos..."

Periodicamente, António Costa agita o risco - verdadeiro - da ascensão da extrema-direita. Mas para essa nova realidade, os dirigentes do PS revelam dificuldade em reconhecer a sua própria responsabilidade.

Desta vez, disse ele (ver aqui):

“Sempre, ao longo da história, que a classe média se sentiu insegura e abandonada, foi quando a extrema-direita e o radicalismo conseguiu crescer”. “A classe média é quem assegura a existência da democracia. É quando a classe média se sente abandonada, desamparada, insegura, que nós temos o terreno fértil para os radicalismos se desenvolverem, para o populismo crescer e para a extrema-direita se tornar uma ameaça”. Não se pode “olhar só para os mais frágeis, só para aqueles que estão numa situação de pobreza”, reiterando que é necessário “defender as classes médias” para “proteger a liberdade e democracia” europeia. “Se nós queremos defender a nossa democracia, a nossa liberdade, se nós queremos mesmo combater a extrema-direita, nós temos de dar oportunidades à classe média e garantir às novas gerações que vão ter uma vida melhor do que os seus pais”. Essa “é a esperança e o sentido de futuro” que é preciso garantir para as novas gerações. “Sim, não chegámos lá, sabemos que é uma grande caminhada, mas, há 200 anos, quando o movimentos socialista surgiu, estávamos muito mais longe do que estamos hoje”.  “Passaram muitos anos, mas o socialismo continua a ser uma ideia muito jovem e, por isso, temos uma longa vida à nossa frente”. Antes do discurso de António Costa, num painel intitulado “Os socialistas cumprem!”, o comissário europeu do Emprego e Direitos sociais e dirigente do Partido Socialista dos Trabalhadores do Luxemburgo, Nicolas Schmit, elogiou a governação do PS : “Caro António, acho que mostraste que há uma alternativa socialista que funciona, porque a austeridade não funcionou, o neoliberalismo não funcionou… O que eles produziram foi muitas pessoas no desemprego, na pobreza”.  Costa “mostrou que as políticas democráticas sociais, a solidariedade e a inovação social não são produtos de sonho, mas políticas concretas feitas por socialistas e sociais-democratas”. “As políticas sociais que estão a ser desenvolvidas, com sucesso, em Portugal e Espanha, mostram que se pode ter uma economia forte, inovadora, baseada na solidariedade e, ao mesmo tempo, políticas sociais que tentam não deixar ninguém para trás”.

Deixe-se passar o conceito difuso de classe média - que esbate da equação algo tão claro na teoria marxista do valor (ver aqui e, mais recentemente aqui) - e pense-se apenas nas razões dessa classe para se sentir "abandonada, desamparada, insegura". Agora, enumere as políticas seguidas ao longo de 40 anos pelo Partido Socialista - e omita da discussão o mau uso do conceito Socialista

Olhando para trás, discuta-se a clara responsabilidade do PS de Mário Soares no enraizamento das ideias do FMI em Portugal na década de 70 e 80 do século XX. A importação dessas ideias foi combinada com a CEE como forma de obstar ao receio de uma revolução em Portugal (um segundo Kerensky que se recusou a sê-lo) e acabou por colocar em terra os primeiros tijolos de um modelo de desindustrialização (de "desoperarialização" social) e de baixos salários, desenhado para este canto ocidental (calcanhar da NATO) pelas políticas de cariz neoliberal, de matriz internacional ou europeia.

O PS de Constâncio abriu, como o defendia Cavaco Silva, as portas da Constituição às privatizações neoliberais que deram cabo de um poderoso sector público, alavanca possível de um desenvolvimento planeado do país. Em vez disso, veio apenas a sua venda a capitais estrangeiros e a sua desarticulação. O PS de Guterres aderiu a tudo o que implica a criação neoliberal de uma moeda única europeia, seduzindo os ratinhos trabalhadores da classe média com o toque da aveludada flauta das baixas taxas de juro (com que pudessem comprar carros e casas), mas sem que percebessem que, a partir daí, os ajustamentos económicos se fariam através do desemprego e dos baixos salários. O PS de Sócrates aderiu ao desequilibrado modelo laboral - introduzido pelo Governo Durão Barroso e pelo seu raivosamente anticomunista ministro do Trabalho, Bagão Félix - ao criar um Código de Trabalho nascido no ventre dos escritórios de advogados e das confederações patronais, cujo corpo legal retirou aos trabalhadores da dita classe média o amparo do Estado numa relação desigual. Estes efeitos foram ainda ampliados pelo rolo compressor legislativo do Governo Passos/Portas com a sua legislação de Agosto de 2012. O PS de Costa, preso pela rédea europeia, pouco fez para reverter essas normas gravosas da legislação laboral de Passos Coelho - justificando essa atitude política com a "estabilidade legislativa", na verdade antes desestabilizada a favor do patronato. Tudo isso consolidou o embaterecimento do valor do trabalho, a desregulação dos tempos de trabalho (minando a histórica regra de 1919 de 8 horas de trabalho, 8 horas de ócio e 8 horas de sono - ver aqui Caderno nº13) e contribuindo para esvaziar a verdadeira barreira à extrema-direita - o movimento sindical. A frágil agenda do Trabalho Digno e a adesão à tese patronal de que os aumentos salariais aceleram a "espiral inflacionista" deixam muito a desejar nesse capítulo. 

A direita e o PS seguiram, pois, políticas que enredam a economia portuguesa numa teia de actividades de baixa produtividade e baixos salários e que o arrastam para o fundo, para a pobreza dos seus habitantes e para uma parte cada vez menor na rerpartição do rendimento criado.

Como se não bastasse, o Governo Costa aceitou as estúpidas metas orçamentais do Tratado Orçamental - ainda que dizendo discordar delas - e adoptou o slogan da direita de "contas certas", achando que é possível conciliar essa austeridade com a manutenção do Estado Social. Mas nunca reconhece que, regras neoliberais desenhadas precisamente para esvaziar o Estado Social, estão precisamente a pôr em causa os direitos à saúde e educação públicas que o PS diz defender com unhas e dentes.  

Para tornar o modelo viável e camuflar os elevados défices externos, o PS e a direita tiveram de promover o turismo como estratégia nacional. Deixou-se entrar - sem peias e até com apoios fiscais - os poderosos ricos estrangeiros no mercado  laboral e da Habitação, ao mesmo tempo que compensou a crescente emigração de nacionais qualificados com a barata e desprotegida imigração de pobres do mundo, expulsando os pobres da classe média - nacionais e estrangeiros - para os arrabaldes das grandes cidades e impedindo-os de ter uma habitação condigna. A dita classe média dos trabalhadores vive cada vez pior num mundo cada vez mais impossível.  

Se António Costa é sincero nos seus receios sobre a ascensão da extrema-direita (e o discurso assim lhe sai), terá porém que mudar muito na sua política. Teria de se virar do avesso. E o problema - mais grave! - é que este PS já não vai ser capaz de o fazer. 

Por isso, as palavras de António Costa surgem apenas da cegueira de quem foi enredado num mundo do qual já não consegue sair. E a quem já só sobram as boas palavras.  


sexta-feira, 26 de maio de 2023

Primavera das Ocupas, outono do capitalismo fóssil


Abril da Liberdade trouxe a “Primavera das Ocupas”, a segunda onda de ocupações de estabelecimentos do ensino secundário e superior (a primeira foi em novembro de 2022) no âmbito do movimento internacional “Fim ao Fóssil: Ocupa!”. As reivindicações são inequívocas e, sobretudo, urgentes: o fim do investimento em combustíveis fósseis em Portugal até 2030 e eletricidade de fontes 100% renováveis, acessível a todas as famílias, até 2025. Estas exigências revelam uma aguda consciência política: de facto, não existe justiça climática sem justiça social.

O resto da cónica pode ser lida no setenta e quatro.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

E depois de Crato?

Foram recentemente divulgados os resultados do PIRLS 2021, que avalia os níveis de literacia de leitura em mais de 50 países. Pela primeira vez, as provas foram realizadas em formato digital, tendo Portugal obtido uma classificação de 520 pontos, que lhe atribuiu o 22º lugar entre 43 países que realizaram a prova no final do 4º ano de escolaridade.

Sendo 2021 o ano de transição para o digital, a IEA, responsável pela aplicação do PIRLS, incluiu no exercício uma amostra de provas em papel, que sendo igualmente representativa permite a comparação, nos mesmos termos, com os resultados das edições anteriores. No caso de Portugal, que participou também no PIRLS de 2011 e de 2016, observa-se em 2021 uma ligeira melhoria nos resultados (de 528 pontos para 531), invertendo a quebra observada entre 2011 e 2016 (de 541 para 528 pontos).


Para quem, à direita, gosta de ver nestes exercícios uma tradução simplista e imediatista das políticas (como fez Nuno Crato em relação aos resultados do PISA 2015, cujo mérito se apressou a atribuir às medidas por si implementadas), as notícias não são boas. De facto, o pior resultado de Portugal nas três edições do PIRLS em que participou registou-se em 2016, com alunos que frequentaram o 1º ciclo do ensino básico entre 2012/13 e 2015/16, quando Crato era ministro da maioria PAF. Ou seja, alunos sujeitos à sua visão empobrecida do currículo e às metas e exames nacionais anacrónicos da «4ª classe», que o ex-ministro ressuscitou.

Curiosamente, são os alunos que frequentaram o 1º ciclo do ensino básico ainda na alegada «década perdida» da educação - como lhe chamou Crato - que tiveram, em 2011, o melhor resultado de Portugal no PIRLS. A que se segue, como já referido, o valor alcançado em 2021, cujos alunos iniciaram e completaram o 1º ciclo já num novo paradigma educativo, com o governo PS suportado por uma maioria de esquerda no parlamento.

Assim, não excluindo a influência das orientações de política de educação na análise deste tipo de resultados, o dado porventura mais relevante do PIRLS 2021 resulta do facto de a ligeira melhoria observada na literacia de leitura ter ocorrido apesar da pandemia e dos seus impactos nos alunos e nas escolas. O que admite considerar que, sem a crise pandémica, esses resultados poderiam ter sido ainda melhores, permitindo uma maior aproximação aos valores registados por Portugal no PIRLS de 2011.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Cavaquismo


Já perdi a conta ao número de pessoas que insultam Cavaco à boleia da sua provecta idade, uma prática verdadeiramente lamentável. Já perdi a conta ao número de pessoas que criticam Cavaco pela sua suposta incultura, uma prática verdadeiramente elitista e equivocada (publicou mais de uma dezena de livros...). Já perdi a conta ao número de pessoas que continuam a subestimar aquele que é, desgraçadamente, o mais bem-sucedido político da democracia portuguesa. Assim, não vamos lá. Precisamos de cabeça fria e de coração quente. 

É claro que são mais os que denunciam, e bem, as contradições de Cavaco, o seu azedume e ressabiamento, as formas de economia política que favoreceu, os padrões desiguais, plutocráticos e dependentes a que os seus governos e influência deram origem. Valha-nos isso. Em algumas páginas de O Neoliberalismo não é um Slogan, adotei o método de levar a sério o intelectual público consequente, economista resolutamente político, apesar dos disfarces ideológicos, com uma escrita clara e depurada. Dois parágrafos (com referências omitidas): 

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Expectativa racional


Na semana passada, faleceu Robert Lucas (1937-2023), prémio “em memória” de Alfred Nobel, atribuído pelo Banco Central da Suécia, em 1995. A seguir a Milton Friedman, foi o mais influente economista de Chicago, pai de Chicago Boys mais dados à construção de modelos.  

Contribuiu para que a macroeconomia convencional fosse reduzida a uma microeconomia, marcada pela seguinte hipótese “comportamental”: “o” agente económico é um demiurgo, omnisciente e omnipotente; as “expetativas racionais”, no fundo. Os mercados sem fim, povoados por este agente representativo, são eficientes e autorreguláveis e a melhor política económica é a ausência de política e daí a sua proclamação da morte do keynesianismo em 1979, ano do choque de Volcker. Só na mais policiada das ciências sociais é que fantasias ideológicas, disfarçadas por símbolos matemáticos, passam por ciência. E a morte de Keynes foi manifestamente exagerada. Afinal de contas, a realidade tem um enviesamento que lhe é favorável.

Em 2003, num revelador discurso, enquanto Presidente da American Economic Association, saudava a estabilidade do capitalismo neoliberal, a capacidade dos economistas e das economias para superar em definitivo o problema da depressão, focando-se no que importa: políticas económicas a favor dos ricos, perdão pela imprecisão, “políticas da oferta orientadas para o longo prazo”, que “aumentem o incentivo para poupar e investir”, porque a sabedoria convencional diz que o investimento depende da poupança (é ao contrário, logicamente, numa economia monetária de produção centrada no crédito). 

A sua complacência, chamemos-lhe assim, foi a de uma comunidade inteira, com cada vez mais poder para atirar para a margem a tradição marxista e keynesiana, que insistia em estudar a realidade genuinamente macroeconómica, feita de conflito distributivo, incerteza radical, instabilidade financeira dos mercados liberalizados, moeda endógena, falácias da composição, racionalidade contextual, euforia e pânico, mecanismos causais reais, etc. 

Os factos brutos do capitalismo realmente existente, a prática da política económica ou a passagem irreversível do tempo histórico, numa época de “policrises”, também graças ao poder deste estado de espírito, tornam estas ideias de novo visivelmente irrelevantes, exceto para os académicos (e são muitos) que construíram carreiras e reputações em torno delas e dos seus “desenvolvimentos”. Haja, apesar do retrocesso das últimas décadas, confiança no progresso nas próximas, expectativa que creio racional em contexto de incerteza radical.

domingo, 21 de maio de 2023

Dêem-lhes comprimidos vermelhos

Fotogramas retirados do filme Matrix

As sessões da comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP lembram aquela cena do filme Matrix em que Morpheus dá a escolher a Neo como é que ele quer que viver o resto da sua vida.

Para quem não é iniciado nesta filmografia, o comprimido azul faria Neo esquecer esta opção, continuando a viver num mundo artificial que apenas existe na sua cabeça, através da plataforma (Matrix), enquanto na realidade o seu corpo está em coma, a produzir energia para um universo de máquinas; se Neo tomar o comprimido vermelho, o seu corpo liberta-se desse mundo artificial e essa nova consciência obrigá-lo-á a lutar por outra vida, real e dura, mas autónoma, num mundo de escravos libertados.

Este limiar da consciência emancipadora é uma metáfora daqueles momentos em que a História parece evoluir por saltos: uns que contribuem para essa progressiva emancipação da vida dos explorados, mas que não evitam - antes justificam - movimentos subsequentes de recuo. No caso pequeno de Portugal, já aqui se lembrou um desses momentos.

A forma como a CPI se está a processar parece ser outra metáfora desses momentos. Primeiro, porque não se debruça sobre tudo o que correu mal no processo privatizador da TAP e no consequente processo nacionalizador. Bruno Dias, do PCP lembrou-o (ver aqui):
"Em 2000, a TAP também ia falir se não fosse privatizada. Afinal faliu a empresa que a ia comprar, a Swissair, e a Sabena que esta já havia adquirido! Em 2012, também era inevitável privatizar a TAP ou falia. A venda foi travada no último momento, e quem já faliu foi a Avianca, que ia comprar a TAP. E em 2015, era inevitável privatizar a TAP pois tinha capitais negativos de 500 milhões de euros. Esses capitais eram 200 milhões de euros mais negativos em 2019, depois de 4 anos de gestão privada. E quando chegou a pandemia, os privados meteram-se ao fresco, e nós tivemos de ir tapar os buracos que a gestão privada abrira, mais os buracos das várias tentativas de privatização." Ou seja, (...) a TAP sobreviveu exactamente porque não foi privatizada e, quando o foi, sobreviveu porque foi renacionalizada. (...) Há mais de 30 anos que a política de liberalização do sector aéreo tem como objectivo destruir as soberanias nacionais e concentrar o sector aéreo em 2 ou 3 empresas de escala europeia, apoiadas nos Estados centrais da UE, a Alemanha e a França (e o Reino Unido enquanto por cá andou). Não por acaso são três as companhias aéreas bandeira da UE autorizadas a conservar a sua dimensão nacional: a Lufthansa, a KLM/Air France e a British/Ibéria, que têm vindo a absorver outras companhias e que agora querem absorver a TAP, deixando-a subordinada à estratégia dessas companhias, colocando o hub de Lisboa como subsidiário do de Frankfurt, Londres, Paris ou Madrid, liquidando a soberania nacional em mais um sector estratégico.
Em segundo lugar, porque a CPI orienta-se, sim, para fragilizar - ainda mais! - um governo que perdeu o seu norte reformador (desde que pôs fim à aliança à esquerda) e que só se concentra no ilusório status quo de que, agora que o BCE retirou o açaime aos mercados financeiros, a contenção da intervenção pública oferece mais garantias de que os donos dos mercados não ataquem a dívida pública portuguesa.

Muito por responsabilidade do Governo, a extrema-direita cavalga, impante, os trabalhos da CPI , alargando - sem mandado - o âmbito da sua intervenção e impondo o carreamento de cada vez mais elementos que municiam um ataque político, orientado para o empolamento pela comunicação social (já a funcionar em manada), sem outra meta que não a queda sucessiva de membros do Governo até atingir o primeiro-ministro (está quase!). Os dois partidos de extrema-direita quase parecem putos de escola, à frente de uma silenciosa cãmara de televisão, a gritar: "Tenha coragem", "apareça se é homem", "não és homem nem és nada se não vieres à CPI" discutir quem deu mais murros no ministério.

Em 2010/2014, o discurso "temos de fazer o que os mercados quiserem" serviu para realizar uma agenda de desmantelamento do Estado Social e das relações laborais. Hoje, o mesmo discurso não terá um resultado diferente.

O Governo e o PS que tomem, pois, rapidamente um compromido vermelho porque, muito em breve - caso nada seja feito - quem está por detrás do financiamento da extrema-direita prepara-se para impor uma agenda bem mais radical de desmantelamento do que resta do Estado Social: menores receitas fiscais, apropriação da principal instituição financeira nacional (CGD) e e privatização da Protecção Social, a par da continuação da delapidação da Saúde e Educação públicas. Já nem falo do escândalo que se passa na Habitação...

sábado, 20 de maio de 2023

Privatizar é bom, mesmo que seja péssimo



A PT deixou de ser quem mais investia em tecnologia e investigação, a Cimpor quase desapareceu, os CTT passaram de marca prestigiada a exemplo de incompetência, a ANA multiplicou as taxas, a EDP e a REN estão nas mãos da China.

Daniel Oliveira, a quem roubei a bicicleta, neste caso o excelente título desta nota, resume bem os custos sociais da economia política das privatizações das últimas três décadas, no país que mais privatizou na UE até 2002, em percentagem do PIB (mais do que a Grande-Bretanha de Thatcher, por exemplo).

Se é verdade que foi Cavaco Silva quem iniciou as privatizações, com a revisão constitucional pactuada com Vítor Constâncio, das cervejas à banca, também é verdade que foram os governos PS os que mais privatizaram. Tal como Blair foi, assumidamente, o maior triunfo de Thatcher, Guterres e Sócrates foram os maiores triunfos de Cavaco e de Durão. A neoliberalização da social-democracia passou por aqui ou pela correlativa UEM (e quem se lembra do entusiasmo, na segunda metade de noventa, em relação a moeda única nessas bandas?). Haja memória, haja história recente da economia política.

E, sim, ainda têm o topete de dizer que as iniciativas liberais nunca existiram neste causticado país, também assim sem soberania.

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Tínhamos professores a mais, não era?


«À boleia das reivindicações dos professores e do pessoal não docente, o ex-ministro Nuno Crato tem reaparecido na comunicação social. Entre outras omissões, parece ter-se esquecido da sua irresponsável posição, quando afirmou que Portugal tinha professores a mais (tutelava já a pasta da Educação), para defender que a diminuição do seu número era "inevitável nos próximos anos".
(...) Quando o problema da falta de professores se começa a tornar por demais evidente, Nuno Crato nem pestaneja, afirmando, em novembro de 2021, que se trata de "um drama anunciado há muito tempo". Não lhe ocorre, portanto, que foi no seu consulado (2011 a 2015), que se assistiu à maior redução de professores alguma vez registada, com uma decréscimo acima de 30 mil docentes (ou seja, -20%), e que afetou sobretudo o 2º e 3º ciclo do ensino básico e o ensino secundário
».

O resto da crónica pode ser lido no Setenta e Quatro.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Tempo de antena até dizer chega


Para lá do tempo de antena até dizer chega, onde comunista não entra, não se esqueçam, entre muitos outros sinais de declínio editorial nas televisões, da poluição ideológica dominical, do internacional entregue aos guerreiros de sofá ou do programa todo: os economistas que não acertam uma. 

A coisa está de tal ordem que, num programa chamado É ou não É – É, É, É, É seria um nome melhor –, a jornalista Ana Lourenço usou a maldita palavra “colaborador” e teve de ser corrigida por um gestor de topo: “não há colaboradores, mas sim trabalhadores”. 

Num registo perigosamente radical e fora do plano, o tal gestor também garantiu que seria prudente aumentar os salários, no caso de faltarem trabalhadores, para lá de dar uma breve lição sobre quem é que cria tudo o que tem valor, algo que sabemos pelo menos desde Adam Smith...

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Haja limites


Ontem entrei na livraria Almedina do Estádio, em Coimbra, e lá estava, em grande destaque, o livro: Os Limites Sociais do Crescimento, da autoria do economista britânico Fred Hirsch (1931-1978), editado pela Actual, uma das chancelas da Almedina. 

Publicada um ano antes de 1977, o ano em que nasci, é, a par de A Grande Transformação (1944), de Karl Polanyi, a obra que mais me marcou. Li-a no início do milénio. E influenciou-me tanto que escrevi, em co-autoria com Luís Francisco Carvalho, um artigo académico a chamar a atenção para a sua relevância, aquando do trigésimo aniversário da sua publicação. 

Tal como Polanyi, Hirsch tinha atrás de si uma carreira de jornalista financeiro quando publicou, aos quarenta e cinco anos, o seu Magnum Opus. Foi editor financeiro da The Economist e economista no FMI, antes de alcançar uma posição académica na área de estudos internacionais, em Warwick, durante um período infelizmente muito breve. 

Tal como A Grande Transformação, este é um livro que cruza economia política e economia moral. No entanto, como é claro, tem por referência um contexto histórico radicalmente diferente, o dos anos 1970, marcado pelo relatório do Clube de Roma, pela turbulência económico-financeira e suas declinações civilizacionais, depois do período de capitalismo gerido dos trinta gloriosos anos, cujas contradições não deixa de assinalar de forma original e penetrante. 

O livro em causa ficou sobretudo conhecido por nos ter legado o conceito de “bem posicional”, um tipo de bem cuja importância cresceria com o desenvolvimento de uma sociedade capitalista. O conceito de bem posicional foi depois popularizado, com a devida referência, por Sheldon, na hilariante série A Teoria do Big Bang, como “um objeto que é valorizado na medida em que não é possuído por outros, substituindo o mais coloquial, mas mais impreciso, ‘na na na naaaa’”. O egoísmo estaria sendo institucionalizado pela proliferação destes bens, cuja gestão mercantil só aumentaria a frustração social.

Num exercício de grande elegância conceptual e histórica, Hirsch parte deste conceito para explorar muitas dinâmicas intencionais e não-intencionais do capitalismo do seu tempo, sublinhando como os mercados nos podem trancar numa “tirania de pequenas decisões” geradora de resultados perversos. Entre estes está a erosão de valores, da moralidade, que os próprios mercados, necessariamente limitados, requerem para o seu regular funcionamento, o argumento central num livro absolutamente marcante. Espero que a tradução esteja à altura da escrita clara e depurada de Hirsch, resultado de muito treino.

Adenda: Agora falta traduzir o melhor livro de Albert HirschmanExit, Voice and Loyalty – por razões que Alexandre Abreu elencou numa análise bem prática há uns anos. E, de preferência, com uma introdução contextualizadora, com meia dúzia de artigos complementares de Hirschman em suplemento. Ofereço graciosamente os meus serviços de análise de economistas mortos, liberais ou antiliberais...

terça-feira, 16 de maio de 2023

Ecoar


Uma vez mais, «os economistas»


Na edição online de sábado, numa peça sobre a subida do desemprego e a descida dos salários reais, o ECO quis saber «como os economistas olham para o futuro». Para concluir, logo de seguida, que «os economistas dividem-se entre os mais otimistas e os mais pessimistas sobre o futuro».

Com a referência a «os economistas», presumir-se-ia que o ECO cuidou devidamente de auscultar sensibilidades distintas, ouvindo os dos mais diversos quadrantes políticos e correntes do pensamento económico. Mas não, claro. Rapidamente se constata, sem surpresa, que estamos perante o velho e relho monolitismo de opinião, os monólogos com ligeiras nuances dos «Dupond e Dupont» do costume. Tudo isto, claro, sob uma capa de aparente pluralismo (ah, «os economistas»).

Ou seja, o ECO não só não ouviu «os» economistas, como os economistas que ouviu não são uns economistas quaisquer. Basta ter memória para constatar que o naipe auscultado esteve, em regra, «na primeira linha de defesa da troika e de uma política destrutiva de austeridade», que elevou o desemprego a níveis históricos, à perda de rendimentos, a cortes nos subsídios de desemprego e noutros apoios sociais, a par da desregulação da legislação laboral.

O ECO tem, evidentemente, todo o direito a estabelecer a sua linha editorial. Mas deveria então, em coerência, apresentar-se com «os seus economistas», em vez de dar a entender que ouviu «os economistas»

Adenda: Para quem for mais dado a preocupar-se apenas com o equilíbrio de género no debate político-económico, registe-se ainda o facto de o ECO ter apenas consultado, para preparar esta notícia, economistas homens.