segunda-feira, 18 de março de 2024

Alguma água na fervura dos resultados eleitorais


Uma semana depois das eleições legislativas, este título pode parecer estranho. Embora ainda faltem contar os votos dos emigrantes, com a derrota do PS e o aumento da votação da direita, tudo indica que teremos um governo liderado pelo PSD e apoiado pela IL e pelo CH. Além disso, já há 48 deputados da extrema-direita com lugar garantido no Parlamento nesta legislatura e esse número ainda pode subir. Os programas destes partidos deixam antever uma governação de aprofundamento das desigualdades. É precisamente por isso que os resultados têm de ser lidos com a frieza necessária.

O que é que os resultados nos dizem?

A maior surpresa das eleições foi a enorme afluência às urnas: a taxa de abstenção foi de 33,8%, o valor mais baixo das últimas três décadas. É preciso recuar a 1995 para encontrar uma eleição onde a abstenção fosse tão baixa. A diminuição foi expressiva face às últimas eleições de 2022, em que a taxa de abstenção tinha sido de 48,6% (sendo que ainda falta apurar os votos dos círculos do estrangeiro).

A Aliança Democrática – coligação entre o PSD, o CDS e o PPM – foi a força política com mais votos. Mas a votação que obteve, contando com a Madeira – 29,49% – é inferior à soma das votações de PSD e CDS nas últimas eleições legislativas, em 2022 (30,89%). Ou seja, a AD conseguiu ganhar as eleições com uma percentagem de votos inferior à das últimas, nas quais tinha perdido para um PS com maioria absoluta.

O PS é o partido com a maior quebra: face às eleições de 2022, perdeu cerca de 486 mil votos e passou dos 41,68% obtidos há dois anos, que lhe deram maioria absoluta no parlamento, para 28,66% este ano. Por oposição, o CH foi o partido que mais cresceu, ganhando cerca de 723 mil votos e passou de 7,15% para 18%.

Os dados disponíveis sugerem que o crescimento do CH está associado à diminuição da abstenção: o aumento da taxa de participação foi semelhante ao aumento de votação do partido na maioria dos concelhos. A análise de dinâmicas de transferência de voto entre partidos requer mais dados qualitativos (que só podem ser obtidos através de entrevistas), mas há sinais que apontam para que possa ter havido pessoas que mudaram o seu voto do PS para o CH.

  

O que é que os pode explicar?

Ao longo da última semana, foram várias as tentativas de explicar os resultados eleitorais. Esse trabalho tem de continuar a ser feito, uma vez que ainda estamos longe de saber explicar tudo. Apesar disso, há motivos conjunturais e estruturais que ajudam a explicar a quebra tão expressiva da votação do PS e a ascensão da direita.

O desgaste de oito anos de governação do PS seria o candidato mais óbvio, se não estivéssemos a falar do mesmo partido que, há apenas dois anos, conquistou uma maioria absoluta. É, aliás, nessa maioria absoluta que se encontram fatores conjunturais que devem ter importância neste resultado: a sucessão de demissões nos primeiros meses do governo e a queda do governo por suspeitas de corrupção (independentemente da fragilidade jurídica ou conveniência política dessas suspeitas) ajudaram a reforçar a desconfiança face ao governo.

A popularidade ganha com a gestão da pandemia perdeu-se com a maioria absoluta e o receio do CH já não funcionou a favor do PS desta vez. Pelo contrário, o descontentamento das pessoas face a promessas eternamente adiadas parece ter motivado um voto de protesto. É aqui que entram fatores estruturais: o sub-investimento público sistemático, que caracterizou a governação do PS, descredibilizou a atuação do Estado. A diferença entre o investimento que era prometido no Orçamento do Estado e o que era realmente executado no final do ano foi sempre grande, mas acentuou-se nos dois anos da maioria absoluta. Depois de todas as promessas de que o mundo pós-pandemia seria diferente, os investimentos eternamente adiados parecem ter custado caro.

Nem o PSD, com uma campanha colada a nomes de má memória (Passos Coelho e Cavaco Silva) e uma aproximação ao discurso da extrema-direita em temas como a imigração, nem a IL, que continua a tentar convencer o país de que o choque fiscal não é só para os mais ricos mas só reúne com CEOs, conseguiram mobilizar o descontentamento. Quem ganhou verdadeiramente foi o CH, que cresceu em todos os distritos. E é muito difícil traçar um perfil de um eleitorado tão diverso, que abrange ex-eleitores da direita tradicional, ricos saudosistas da ditadura, mas também muitos excluídos do modelo económico dos últimos anos e boa parte dos jovens.

O que é que falhou à esquerda?

À esquerda, o Bloco ganhou votos e manteve os 4,46% que obteve em 2022, enquanto a CDU perdeu e passou de 4,3% para 3,3%; o Livre cresceu sobretudo nos centros urbanos, ficando com 3,2%. No rescaldo dos resultados eleitorais, houve quem, à esquerda, se apressasse a apontar as culpas aos partidos de esquerda – nomeadamente, ao Bloco e ao PCP – pelo insucesso em captar boa parte do voto de protesto (exemplos aqui e aqui). Os argumentos utilizados variam entre (1) BE e PCP diabolizaram os eleitores do CH em vez de os ouvir; (2) BE e PCP não perceberam (e não quiseram perceber) o descontentamento das pessoas; e (3) BE e PCP tornaram-se obsoletos e, por isso, dispensáveis.

É natural que a frustração dê lugar a reações a quente. Todos estamos desiludidos com o desfecho das eleições e a perspetiva de um governo de direita apoiado (formal ou informalmente) pela extrema-direita é angustiante. No entanto, face a um resultado tão negativo para o conjunto da esquerda, vale mesmo a pena tirar algum tempo para refletir sobre o que se passou, para que o desapontamento natural não nos faça perder de vista aspetos importantes.

O primeiro argumento é o mais frágil. Basta uma rápida pesquisa para encontrar discursos de Mariana Mortágua (aqui) e Paulo Raimundo (aqui) sobre a importância de responder às preocupações de quem se sente desiludido com a governação. Se olharmos para a campanha sem ideias pré-concebidas, o que vemos é que nenhum dos partidos de esquerda “diabolizou” eleitores e, pelo contrário, todos procuraram ir ao encontro destes.

O segundo argumento é mais subjetivo e, por isso, merece mais atenção. Parece basear-se na crença de que os votos seriam facilmente captados pela esquerda se simplesmente ouvisse as preocupações reais das pessoas. É difícil argumentar que os salários, os preços da habitação, a precariedade e o acesso a cuidados de saúde – os temas que tiveram destaque na campanha de BE e PCP – não estejam entre as preocupações da maioria das pessoas. É difícil argumentá-lo sobretudo porque é isso que as pessoas dizem, como mostram alguns inquéritos recentes. Também é difícil argumentar que não houve esforço para transmitir as propostas sobre estes assuntos, tendo em conta as dezenas de deslocações a empresas, locais de trabalho, transportes públicos, ou a participação em greves por melhores condições de trabalho ao longo da campanha, numa escala que nenhum outro partido replicou.

Há várias razões pelas quais a esquerda não é capaz de captar votos entre os descontentes. Há temas de que a esquerda tem falado há vários anos e que nunca mobilizaram uma percentagem tão grande da abstenção. É difícil achar que essa mobilização não ocorreu, também, devido aos temas que o CH abordou de forma mais agressiva – do medo da imigração e da criminalidade à perceção de corrupção generalizada – e às propostas mais sonantes – como a de agravar as penas ou a de atacar direitos dos imigrantes. É preferível que se reconheça que o trabalho que a esquerda tem pela frente neste campo é de longo prazo. É isso que a tendência de todos os outros países da Europa ocidental, à qual Portugal está a chegar agora, sugere.

Há aspetos que contribuem decisivamente para o crescimento da extrema-direita (CH) e da direita ultra-liberal (IL) face aos quais a esquerda não tem capacidade de disputa: o financiamento por parte dos mais ricos e o espaço desproporcional que ocupam nos meios de comunicação. O enviesamento do comentário televisivo, dominado pela direita apesar da sua menor representação eleitoral, já vinha de trás. Como notou Ana Drago, “qualquer partido que ocupasse o tempo mediático que o CH tomou nos últimos quatro anos, ao ser apresentado na comunicação social como o principal polo de protesto, […] duplicava a sua votação”. Apesar de BE e PCP já terem sido os partidos mais votados a seguir a PSD e PSD, nunca um partido de esquerda mereceu este tratamento privilegiado da comunicação social.

A isso juntou-se a aposta em estilos comunicacionais muito mais agressivos, tanto no ataque ao Estado, aos impostos e aos serviços públicos (do lado da IL), como no ataque às minorias (do lado do CH), contando com financiamento dos mais ricos do país. Sendo verdade que a disputa nas redes sociais é feita num campo claramente inclinado, que favorece o discurso de ódio e as mentiras ou teorias da conspiração, também é verdade que a direita apostou de forma bem-sucedida em campos onde a esquerda se atrasou, como o Youtube.

A importância da esquerda

Há aspetos estruturais que também não podem ser ignorados na análise da esquerda para lá destas eleições. Desde que Portugal saiu do programa de ajustamento da Troika, o modelo de crescimento do país e a recuperação do nível de emprego estiveram sobretudo assentes na expansão de setores de baixo valor acrescentado, como o turismo. Este modelo pode gerar ganhos no curto prazo, mas tem problemas de fundo: os baixos salários e a precariedade em que assentam o turismo e os serviços associados.

Este processo não foi independente das opções governativas. A expansão do turismo foi potenciada por uma série de políticas destinadas a atrair o investimento estrangeiro, entre vistos gold, benefícios fiscais do regime de residentes não habituais e benefícios fiscais a fundos de investimento, além da liberalização do mercado de arrendamento. Com o aumento expressivo da procura externa, os preços da habitação cresceram muito acima dos salários de quem trabalha no país.

A monocultura do turismo e do imobiliário criou emprego e ajudou a mascarar a fragilidade da economia, mas traduziu-se no fraco crescimento dos salários, num elevado peso da precariedade e numa crise da habitação que agravou o custo de vida para muitas pessoas. Ao contrário do que o PS procurou transmitir, na última década não houve nenhum milagre económico no país.

Além disso, uma década de sub-investimento crónico nos serviços públicos, com sucessivos anúncios que nunca saíram do papel, descredibilizou a atuação do Estado. É difícil convencer as pessoas de que as propostas da esquerda para o SNS ou os transportes públicos são viáveis quando a prática dos últimos governos lhes sugere que as promessas não se concretizam. A responsabilidade do PS neste processo de descredibilização do investimento público é evidente.

Isso leva-nos ao terceiro argumento referido acima: o de que os resultados de BE e PCP os tornam obsoletos, sobretudo por oposição ao Livre. Passando à frente o facto de a política ultrapassar largamente os trabalhos parlamentares e a importância da implantação que ambos os partidos têm nos sindicatos e nos movimentos sociais, há outros motivos para desconfiar desta conclusão. Nas zonas em que se concentram os excluídos deste modelo económico – periferia das áreas metropolitanas, para onde são empurrados todos os que não conseguem pagar uma casa na cidade onde trabalham, e o Algarve ou o litoral alentejano, onde os efeitos perversos da expansão do turismo são mais notórios – o Bloco obteve alguns dos seus melhores resultados.

Há razões programáticas que podem explicar esta tendência. Uma análise aos programas dos partidos permite-nos perceber que há semelhanças e diferenças importantes nas propostas. O caso da habitação é talvez o exemplo mais paradigmático. BE, PCP e Livre convergem quanto à necessidade de acabar com os benefícios fiscais para fundos imobiliários e com a necessidade de promover a construção e reabilitação pública para aumentar a oferta a custos acessíveis. No entanto, também há diferenças substanciais: BE e PCP defendem limitações à procura externa (seja de fundos imobiliários ou não-residentes que procuram casas para especular) e restrições ao Alojamento Local ou a novos empreendimentos turísticos em zonas de pressão habitacional, ao passo que Livre e PS não o fazem e optam por defender que o Estado ofereça garantias aos bancos ou financie uma parte do valor de compra das casas.

Esta diferença parece revelar uma tentativa de responder à crise da habitação sem enfrentar os interesses dos proprietários. Foi esse, de resto, a orientação da maioria absoluta do PS com o programa “Mais Habitação” (analisado pela Ana Santos aqui e pelo República dos Pijamas aqui). No entanto, dificilmente se combate a crise da habitação sem limitar de forma séria a procura externa especulativa e a expansão desenfreada do turismo que fizeram com que os preços disparassem. A verdade é que muitos dos problemas que enfrentamos são problemas de distribuição desigual dos recursos. E o combate às desigualdades – nos salários, no acesso à habitação e noutros campos – exige que se escolham lados.

É provável que a tendência para evitar estes conflitos e a abertura para negociar revisões constitucionais com PSD e IL (sem que se saiba que áreas seriam revistas e com que objetivo) tenham rendido ao Livre muitos votos ao centro e à direita, podendo ajudar a explicar uma parte significativa do seu crescimento em Lisboa e no Porto num contexto o PS sofreu um forte desgaste e em que a IL perdeu votos na capital. Também é bastante provável que esta não seja a fórmula para travar o crescimento da extrema-direita, porque não se dirige ao seu eleitorado. Mesmo com toda a reflexão e autocrítica necessárias, a importância da esquerda nunca foi tão grande.

Regressados da campanha


Domingo à noite. Luís Marques Mendes já está de novo em campanha, na SIC, sem contraditório. Na TVI Paulo Portas, também já de regresso da campanha e igualmente sem contraditório. Tudo como dantes, no quartel de Abrantes.

domingo, 17 de março de 2024

Da miséria do «jornalismo» dominante


A questão é mais que superficial, quase nem chegando a ser um fait-divers. Mas ao mesmo tempo é bem ilustrativa do jornalixo que temos, e que tem entre os seus desportos favoritos a campanha constante de descredibilização das instituições, e muito em particular do Governo. O «"jornalismo" politizado» a que se referia Pacheco Pereira no Público de ontem, «que começa de manhã, depois circula o dia todo nas rádios e televisões e, por muito que isso indigne os próprios, é hoje maioritariamente, e muito, de direita».

Sim, o jornalismo que, nos últimos anos, como assinala Pacheco Pereira, recorreu muitas vezes a «casos pontuais para “alimentar”, dia após dia, a ideia da “crise”, mesmo quando «as estatísticas mais sólidas [não] confirmavam a [sua] agudeza». O jornalismo em que esteve «sempre presente a ideia, às claras ou subliminar, de que a “crise” se devia à “ideologia estatista” contra os privados», em que «muitos dados pertinentes, como seja a comparação entre os tempos de espera dos hospitais privados e os públicos, nunca tiveram nenhum papel na “informação”».

O caso é ridículo, mas ilustrativo. Numa notícia sobre o novo Cartão do Cidadão, Rodrigues Guedes de Carvalho (ver aqui), esperto até dizer chega, faz notar que a foto escolhida para ilustrar o novo cartão é o de uma mulher com aspeto jovem, mas com 74 anos, considerando a data de nascimento (1950). «Bastava ter um nadinha de atenção antes de enviar a imagem», diz Guedes de Carvalho, acrescentando que «todos gostaríamos de saber o segredo da juventude», antes de se referir às novidades que traz o novo cartão, «além de fazer boas cirurgias plásticas».

E pronto, o número de demonstração da incompetência, no denegrir como forma de vida e atitude profissional, está feito. Nem lhe terá passado pela cabeça contactar o Ministério da Justiça para obter esclarecimentos, podendo ter como resposta que a incongruência era intencional, para que se percebesse que o cartão não se referia a nenhuma pessoa real (porque se assim fosse haveria igualmente polémica, por se exporem os dados de alguém que existe). Como não o refere, supomos que não terá perguntado, nem sequer pensado nisso. Mas não importa, o objetivo não é propriamente informar, pois não?

Estudar e conversar


O termo neoliberalismo tornou-se uma presença regular no debate político ao longo das últimas décadas e tem sido igualmente utilizado em vários trabalhos de História e de Ciências Sociais. Este seminário procura proporcionar um lugar de aprofundamento da investigação em torno do neoliberalismo contando com 5 aulas e 1 conversa com investigadores cujo trabalho reflete sobre o neoliberalismo a partir de diferentes campos de estudo.

Depois de um seminário sobre Toni Negri onde aprendi muito, volto à Biblioteca Nacional de Portugal para um seminário sobre como estudar o neoliberalismo: amanhã, 18 de março, entre as 9h45m e as 18h. Trocaremos umas ideias sobre os assuntos com Pierre Dardot. Apareçam, a entrada é livre.

sábado, 16 de março de 2024

Recursos socialistas


Como o real propósito do socialismo é precisamente superar e avançar a fase predatória do desenvolvimento humano, a ciência econômica em seu estado atual pode jogar pouca luz na sociedade socialista do futuro (...) Eu considero esta deterioração dos indivíduos o pior mal do capitalismo. Todo o nosso sistema educacional sofre deste mal. Uma atitude competitiva exagerada é inculcada no estudante, que é treinado para idolatrar o sucesso adquirido como uma preparação para sua futura carreira.

Albert Einstein, Por que o socialismo, Jacobina

Para assinalar o aniversário de Albert Einstein, a imprescindível revista brasileira Jacobina lembrou o seu artigo sobre o socialismo, publicado no primeiro número de uma das mais importantes revistas marxistas, a Monthly Review. Foi fundada, entre outros, pelo economista Paul Sweezy, do capital monopolista à análise pioneira da financeirização do capitalismo. Imagino as conversas entre estes dois em 1949.  

sexta-feira, 15 de março de 2024

Vende-pátrias


A Eletricidade de Portugal (EDP) foi uma empresa pública criada em 1976 pelo Estado democrático, integrando numa única entidade as empresas deste setor que haviam sido nacionalizadas em 1975. Toda as atividades, da produção à infraestrutura, passaram a ser controladas por um Estado que levou a luz a todo o país. 

Desgraçadamente, a EDP foi desintegrada e privatizada, num contexto de economia política crescentemente pós-democrática, entre 1997 e 2012. Há iniciativas liberais até dizer chega, portanto, desde os anos 1990. Lembro-me de um secretário de Estado da Indústria do PS que, na segunda metade dos anos 1990, declarava abrir uma garrafa de champanhe por cada empresa que privatizava. O PS privatizou mais do que o PSD, lembremo-lo. 

A República Popular da China nunca privatizou este setor estratégico, que permanece nas mãos do Estado, mas tem aproveitado a política irresponsável de países como Portugal, passando a controlar empresas na área da energia. Os chineses estudaram bem os hábitos da elite do atraso nacional e cooptam-na com avultados rendimentos, comprando a sua agenda de contactos. Agora, chegou a vez de António Lobo Xavier, na mesma semana em que sabemos que o P de Portugal pode cair: vende-pátrias.

Assumir os programas, respeitar as escolhas


«Não vale mesmo a pena esperar que haja partidos à esquerda, inclusive o PS, que viabilizem o orçamento do PSD. E não tem só a ver com a questão do Pedro Nuno Santos, com o facto de ter um líder mais à esquerda. Qualquer líder do PS, que tenha um mínimo de respeito pelo Programa do PS, pode votar ao lado do PSD em várias coisas, muitas coisas. (…) Mas há coisas que são muito diferentes mesmo. Seja no que respeita à política de saúde, à política de educação, ou à questão fiscal – que num orçamento é crucial – as medidas são mesmo muito diferentes. E mais, o PSD não vai para o governo sozinho, vai com o CDS e vai com a Iniciativa Liberal (IL). E quando chegamos à IL, qualquer proposta que a IL aceite do ponto de vista orçamental é incompatível – não com o PCP, com o Bloco ou o PS – é com o próprio Livre.
(...) A esquerda e direita não é uma mania. Esquerda e direita não é uma coisa que as pessoas dizem porque têm necessidade de ter pertenças identitárias. Vamos lá olhar, em concreto, para aquilo que são os programas. O programa fiscal da AD, sendo o mais moderado à direita, é, em todos os casos, um programa regressivo do ponto de vista da evolução do sistema fiscal. Os programas de todos os partidos de esquerda, do PS ao Livre, passando pelo Bloco e pelo PCP, do ponto de vista fiscal, aumentam a progressividade. Todos os da direita aumentam a regressividade. Para quem não sabe o que é isto, significa que todos os partidos de direita defendem uma evolução fiscal que diminui impostos sobre os mais ricos ou sobre quem tem mais lucros, e todos os programas da esquerda resistem à diminuição de impostos sobre quem tem mais lucros e aumentam os impostos a quem é mais rico. Todos.
Em relação à habitação, todos os programas da direita dizem que a solução para os problemas da habitação em Portugal é desregulamentar, reduzir a fiscalidade sobre tudo o que tem a ver com o imobiliário e com a construção e criar PPP para a habitação. Todos os partidos da esquerda, todos sem exceção, dizem que a solução é limitar a atualização das rendas, cortes nos benefícios fiscais ao imobiliário, ao alojamento local e aos residentes não habituais e um investimento na habitação pública. O contrário do que dizem os programas da direita. Na saúde, todos os partidos da direita, todos sem exceção – AD, Chega, IL – dizem que é preciso mais recursos para os serviços privados da saúde e mais PPP. Todos os programas da esquerda dizem que é preciso reduzir a externalização das atividades do Serviço Nacional de Saúde para os privados, e todos dizem que a resposta passa pela revisão das carreiras e pela valorização salarial dos profissionais de saúde.
(…) Não há partido nenhum, espero eu, que, à esquerda e à direita, não seja capaz de, quando há problemas que têm que ser resolvidos, os resolver. Agora, nós não podemos inventar aqui falsos acordos. Para mim seria um choque que partidos que se apresentam a eleições com os programas que eu acabei de descrever, quando chegasse o momento de tomar decisões, que são fundamentais para a nossa vida coletiva – e que têm que ver com visões diferentes sobre como se governa o país – de repente dissessem eu vou fazer uma coisa diferente daquilo que eu propus.
»

Ricardo Paes Mamede, na última edição do «Tudo é Economia» (RTP3), que vale a pena ver na íntegra.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Testemunho


O meu filho nasceu em 2011, no ano inicial da agressão da troika. Ainda bebé, levei-o a manifestações desse período de luta contra a política dos vende-pátrias. Por isso, e por muito mais, estou totalmente solidário com a mãe denunciada à CPCJ por agentes da PSP incompetentes, no mínimo. Espero que a mãe coragem lhes assoe o nariz. Alfredo Cunha imortalizou, em 1975, esta mãe coragem. Não temos medo, não passarão.

Crise do jornalismo, défice de pluralismo

O Vicente Ferreira já o disse aqui, na manifestação de solidariedade do Ladrões com a Greve Geral dos Jornalistas, que tem hoje lugar: «a degradação da qualidade do jornalismo nos últimos tempos ocorre em simultâneo com a degradação das condições de trabalho no meio». De facto, o défice de pluralismo no debate político e político-económico, que começou a tornar-se mais evidente e percetível na antecâmara da «vinda da troika» - mentalizando e forçando, sem contraditório, a ideia da sua virtude e inevitabilidade, junto da opinião pública - é um reflexo óbvio da crise do jornalismo, que não é de hoje.

A questão é mesmo muito séria e não devia ser objeto de desvalorizações sonsas, que indiciam pretender-se apenas a manutenção do status quo. A ausência de pluralismo no debate, sobretudo nas televisões (mas não só), constitui um entorse grave da nossa vida democrática, ao impedir o vital confronto entre diferentes perspetivas e ao impor, pelo desequilíbrio e défice de contraditório, a prevalência de determinadas visões em detrimento de outras, condicionando e limitando seriamente a formação de opinião. A composição dos painéis de debate das últimas legislativas é só o exemplo mais recente deste inaceitável enviesamento (ver por exemplo aqui, aqui ou aqui).


Não se trata apenas de «perceções», como se pretende fazer crer. Apesar da muito insuficiente monitorização, desde logo pela ERC, vão surgindo alguns dados concretos, como os recentemente divulgados pelo MediaLab, do ISCTE. Dados que evidenciam não só a prevalência da direita no comentário televisivo (ver gráfico), mas também o reforço desse desequilíbrio quando se compara o mapeamento de 2022 com o de 2016 (com os comentadores de direita a passar de 51% para 60%). Ao arrepio, como se não bastasse, da representação da esquerda e da direita no parlamento.

É também por isto, pela existência de um verdadeiro pluralismo no debate e garantia de contraditório - a par das justas reivindicações dos jornalistas - que a greve que hoje decorre assume a maior importância para a nossa democracia. E mais ainda quando estamos, em 2024, a celebrar os 50 anos do 25 de Abril.

Resultados


Sou professor auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC) desde 2014 e investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) desde 2010. É a faculdade que me paga o salário e é no âmbito do CES que desenvolvo a minha investigação, parte dos deveres de docente universitário. 

Os investigadores do CES que são seus assalariados desempenham, no âmbito do que está estipulado nos seus contratos, funções de docência, mas só em programas doutorais das faculdades da Universidade de Coimbra, da FEUC à Faculdade de Letras. Enquanto professor, leciono a licenciaturas, mestrados e doutoramentos. 

Creio que este esclarecimento pessoal e institucional é útil, porque há alguma confusão por aí. 

Como toda a gente, tomei ontem conhecimento do relatório final, resultado de um aturado trabalho de meses por parte da Comissão Independente, composta por pessoas reputadas exteriores ao CES. Como investigador do CES, tive a oportunidade de participar na sua apresentação e de aí intervir. Basicamente, saudei o que me pareceu ser a imparcialidade, a integridade e a sensibilidade da referida Comissão. Os seus resultados são claros. Saudei também a Carta Aberta da Direção e da Presidência do Conselho Científico do CES

As outras instituições de ciência e ensino superior devem olhar bem para a forma, exemplar e até de certa forma inédita, como a instituição está a lidar com estes “indícios de ‘padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES’”. Todos sabemos que todos sabemos o que anda por aí. É que a precariedade da universidade neoliberal é mais forte do que os avanços inequívocos nas questões de género. As relações de classe contam mais, afinal de contas, também para as relações de género.

Solidários


quarta-feira, 13 de março de 2024

Luzes e sombras


Se as direitas funcionam por incessante repetição e se têm a hegemonia, então é caso para dizer que há algo a aprender com tal modo de operar. Deve reter-se uma formulação de um estratega de George Bush, lida há uns anos na repetitiva The Economist, e trazida para aqui de memória: “repetir, repetir, repetir sempre, e é só quando se está farto de repetir que o público começa a prestar atenção pela primeira vez”. 

Então aqui vai uma repetição: IL e Chega são duas faces da mesma má moeda, emitida pelas frações mais reacionárias do capital, em particular o que é grande, e colocada em circulação pelo Governo da troika, em geral, e pelo neoliberal Passos Coelho, em particular. O fascismo chega sempre pela mão política do capital e dos seus intelectuais orgânicos bem financiados, ajudado pelas fraturas sociais geradas pelo liberalismo económico. Jaime Nogueira Pinto até é um intelectual que financia, fazendo ligações. 

Temos então sempre de distinguir entre a nova/velha elite da extrema-direita – Venturas, Nogueiras Pintos, Pintos Pereiras, Bonifácios, Marchis, Mithás Ribeiros (todos doutorados, note-se) – e uma massa popular variada que em certas circunstâncias a pode apoiar. A primeira combate-se sem quartel, a segunda reconquista-se. Está distinção luminosa, oriunda da tradição antifascista, passou, e com distinção, vários testes da história mais negra.

Solidariedade com a greve de jornalistas


Pela primeira vez em 40 anos, as e os jornalistas farão greve amanhã. Não faltam motivos para essa mobilização. A degradação da qualidade do jornalismo nos últimos tempos ocorre em simultâneo com a degradação das condições de trabalho no meio: cerca de um terço dos jornalistas recebe entre €701 e €1000 líquidos por mês, metade diz sentir-se inseguro com a sua condição laboral e há registo de elevados níveis de esgotamento. Como em tantos outros setores, a precariedade e os baixos salários minam a qualidade do jornalismo, colocando em causa as suas funções de informação e escrutínio rigorosos, indispensáveis à democracia.

No site do Sindicato dos Jornalistas, pode ler-se o apelo à mobilização:

«Há mais de 40 anos que não fazemos greve. Nestas quatro décadas, perdemos direitos, perdemos espaço, perdemos autonomia. Há um momento em que temos de fincar o pé. Esse momento chegou. É aqui e agora. A 14 de março, paramos. Junta-te à greve!

Exigimos condições salariais e editoriais, contratos de trabalho estáveis, o aumento geral dos salários e o pagamento digno das horas extraordinárias e das compensações por penosidade: trabalho noturno, fins de semana, subsídio por isenção de horário. O mínimo é que nos paguem de forma digna para exercer uma profissão que não tem hora marcada. Por mais que se goste do que se faz, o romantismo não paga contas.

Exigimos ainda intervenção pública. Portugal não pode manter-se como a exceção europeia em que o Estado nada faz pela sustentabilidade do jornalismo, nada contribui para a pluralidade democrática. Exigimos que o Estado assuma as suas responsabilidades, faça condizer o seu investimento com a importância da informação como bem público constitucionalmente consagrado.»

O Ladrões de Bicicletas solidariza-se com esta greve por jornalistas livres em defesa da democracia.

terça-feira, 12 de março de 2024

Amarrações


Pedir ao PS que viabilize a governação de direita faz hoje tanto sentido como ter pedido, durante a campanha, aos liberais do PSD e da IL que abdicassem dos seus programas e votassem PS, para defender o Estado Social e não se perder a estabilidade política de que o país dispunha.

O Chega cresceu porque somos um país racista?

É errado associar aos resultados obtidos pelo Chega um significado racista, como sugere o gráfico de um inquérito que circula por aí, e a que cheguei através de Pedro Sales, nos termos do qual cerca de 53% dos portugueses acreditam que há «raças ou grupos étnicos que nasceram menos inteligentes e/ou menos trabalhadores» (racismo biológico), e cerca de 54% acreditam que «há culturas muito melhores que outras» (racismo cultural).

Se assim fosse, importaria desde logo perguntar porque razão o Chega obteve uma percentagem de apenas 7% há dois anos atrás, nas Legislativas de 2022, tendo agora disparado para 18%, quadriplicando a sua representação parlamentar. Ou perguntar, também, porque é que, se somos um país de racistas, os partidos de extrema-direita (como o PNR/Ergue-te), nunca conseguiram eleger nenhum deputado, sendo a sua votação sistematicamente inexpressiva em 50 anos de democracia.

Em segundo lugar, como poderíamos conciliar essa ideia de «Portugal, país racista», com diversos indicadores que nos destacam, à escala europeia e não só, como um dos países mais recetivos à imigração, como demonstra, em termos comparativos, a baixa percentagem de população que a considera um problema, em contraste com a população que a encara como uma oportunidade?


Não descurando que o discurso do Chega é atrativo para o residual eleitorado xenófobo e saudosista do Estado Novo (sempre o foi), nem o recurso às novas formas de comunicação de massas - que o Chega manipula de forma exímia -, ou a ajuda que «chega sempre pela mão do capital e dos seus intelectuais orgânicos bem financiados», a que o João Rodrigues aqui se referiu, é no «descontentamento» que encontramos a explicação mais plausível para a subida vertiginosa do partido de André Ventura no passado domingo. Porque não há, de facto, «18% de votantes racistas ou xenófobos em Portugal», como assinalou Pedro Nuno Santos no rescaldo da noite eleitoral.

Por arrasto


Em artigo do mês passado no Le Monde diplomatique - edição portuguesa defendi que o fascismo que vem por arrasto é objetivamente ajudado por camadas nada negligenciáveis da intelectualidade de esquerda, colonizadas por pelo menos duas hipóteses histórico-filosóficas liberais. 

Em primeiro lugar, o pessimismo antropológico performativo, criador da sua própria realidade, sobre as motivações e capacidades cognitivas dúbias das classes populares, consideradas sempre prontas a apoiar os populismos das direitas extremas. Na verdade, o fascismo chega sempre pela mão do capital e dos seus intelectuais orgânicos bem financiados. 

Em segundo lugar, e de forma mais indireta, a hipótese da ferradura, uma visão histórica distorcida: à noite, o mocho de Minerva não levanta voo e todos os “extremismos” são pardos e igualmente “totalitários”.

Com 48 cadeiras ocupadas por fascistas na AR, para 48 anos de ditadura, estas duas hipóteses vão provavelmente difundir-se ainda mais. Já há idiotas úteis a apodar o povo de estúpido e de racista, merecedor de sessões de reeducação; ou a dizer que houve sobretudo transferências de votos, que nenhuma análise séria autoriza, dos comunistas, condição necessária de um antifascismo intelectual e politicamente sério, para os fascistas. 

A nossa intelectualidade euroliberal mais ou menos televisionada, sobretudo a que se diz de esquerda, é parte do problema. Francamente, prefiro ler os intelectuais assumidamente reacionários. Pelos menos, esses defendem interesses e valores com clareza.

segunda-feira, 11 de março de 2024

O elefante começou a partir loiça

Medina disse ontem que o Ch*ga não tem capacidade de resolver problemas concretos das pessoas. Verdade. Já ele e os seus antecessores do PS, com as suas contas alegadamente certas, criando problemas de todo o género às pessoas e às pequenas e médias empresas, tiveram a arte de alienar apoio popular e facilitar o crescimento da extrema-direita. 

A verdade é que as contas certas são um logro que não resiste sequer a uma mera análise de contabilidade nacional. Os superávites do setor público não podem deixar de ser os défices do setor privado e vice-versa.
 

Não menos verdade, contudo, é que a capacidade para criar ou resolver problemas às pessoas não está essencialmente nas mãos dos governos, sobretudo os das periferias, mas sim nas instituições europeias e sobretudo no BCE. 

Repare-se, por exemplo, que, com maior ou menor intuito de o tentar, todos os partidos afirmaram no período eleitoral querer subir salários, mas a verdade é que o BCE não o permitiria. E só um partido colocou no seu programa o euro como constrangimento, infelizmente sem a ancoragem que o assunto merece. 


Também verdade é que esta abordagem das contas alegadamente certas tornou todos, excepto os bancos, mais pobres. 


O país não precisa de contas certas, mas de contas funcionais

Contas que funcionem para quem trabalha e para as empresas que beneficiam deste trabalho.

Os monstros não nascem de geração espontânea

Assistimos nos últimos anos a um aumento sem precedentes da agressividade e da desinformação no debate político, tendo as redes sociais como principal veículo. Adoptando estratégias semelhantes às que conduziram Trump e Bolsonaro ao poder, novos actores políticos – com destaque para o Chega e a IL – tornaram-se líderes das redes sociais, com dezenas de milhares de contas, reais e fictícias, a alimentar “gostos”, “partilhas” e “comentários”. Entre as camadas mais jovens, o Instagram, o Twitter/X e o TikTok tornaram-se as principais fontes de “informação”. Nesses meios, o debate político faz-se mais com dados parciais e distorcidos, do que com rigor e confronto honesto de ideias. O objectivo era alimentar a indignação, mais ou menos justificada, direccionando-a contra os adversários políticos, em particular o PS.

O sucesso dos novos actores nesta nova era da crispação política não se deve apenas ao seu despudor e criatividade. Deve-se também aos apoios financeiros que recebem. Apesar de terem estruturas partidárias modestas, Chega e IL mobilizam recursos próprios (isto é, excluindo a subvenção estatal) que excedem em muito os dos partidos maiores. Segundo o próprio Chega, mais de metade das suas receitas de campanha (400 mil euros) têm origem em doações, um valor sem paralelo no quadro partidário português. No caso da IL, boa parte da propaganda liberal nas redes é deixada a cargo do Instituto +Liberdade, que recebe por ano acima de 500 mil euros em donativos.

A generosidade com que pessoas e instituições endinheiradas financiam organizações políticas que apostam na crispação, sugere que uma parte dos ricos em Portugal já não tolera as opções de quem governou o país nos últimos anos, por muito moderadas que fossem. Não há aqui nada de novo: quando acham que a democracia lhes retira privilégios – sob a forma de impostos ou de direitos laborais que consideram excessivos –, alguns poderosos financiam o caos, dando poder a quem oferece ordem e “moderação”. Esperam com isso manter os seus benefícios. O problema, como a história mostrou muitas vezes, é que se arriscam a perder o controlo sobre o monstro que criaram.

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.

Precisamos de refletir


1.
Precisamos de humor e de ironia que corroam sistemas: daquela “equipa fantástica” fizeram parte as sociedades indigentes de comunicação, as que promoveram a extrema-direita, subproduto do neoliberalismo, sem o qual de resto nunca teriam existido. 

2. Precisamos de ter os olhos bem abertos: sociedades indigentes há muitas e os milionários, alimentados por uma forma de economia política neoliberal com décadas, têm cada vez maior capacidade de converter dinheiro em poder político, pagando “stink-thanks”, financiando as direitas cada vez mais extremadas, controlando cada vez mais aparelhos ideológicos. 

3. Precisamos de cultura com fôlego, como no antifascismo histórico, que “ganhe raízes no solo pátrio”, que imagine com luminosidade uma comunidade e o seu povo, que ame essa comunidade e o seu povo solar. 

4. Precisamos de economia política que vá à raiz, que parta do Algarve e que suba por aí acima, que exponha um modelo de desenvolvimento do subdesenvolvimento e o seu círculo vicioso: baixa pressão salarial e austeridade, subinvestimento modernizador, alimentação de fluxos migratórios súbitos, serviços públicos subfinanciados e sobrecarregados, rentismo fundiário e corrupção, ascensão da extrema-direita. 

5. Precisamos de economia moral, ponto de intersecção da tal cultura com fôlego e da economia política radical, ou seja, de um modelo de desenvolvimento, feito por propostas de política, por instrumentos de política soberana a resgatar, que dêem os toques certos e com impactos sistémicos, contando uma história moral de um país plausível. 

6. Precisamos de mais e melhor organização, do YouTube ao sindicato, feita por militantes, ao invés de ativistas, solidária e acolhedora, sabendo sempre que as pessoas só se mobilizam por uma certa ideia esperançosa de Portugal.

domingo, 10 de março de 2024

Em dia de reflexão


Foi interessante, intrigante até, o discurso de ontem do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em dia de reflexão. Sobretudo a parte em que fala do «fim de ciclo» a propósito da comemoração dos 50 anos do 25 de Abril. «Fecha-se um ciclo de meio século da nossa história, e abre-se outro», disse Marcelo, em dia de reflexão.

Só foi pena que não tivesse desenvolvido mais esta tese, pois deixa muitas perguntas em aberto. Porque é que, por exemplo, o primeiro ciclo do 25 de Abril se fecha aos 50 anos e não aos 45 ou 60 anos após 1974? É uma espécie de duração natural dos ciclos, instrínseca, que se cumpre? E o que diferencia o primeiro ciclo, que agora termina - assegurou-nos o Presidente da República em dia de reflexão - do segundo ciclo que agora começa? O que muda, o que distingue estes dois ciclos? Este segundo ciclo, também terá 50 anos, como o primeiro? Última questão: porque será que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, não guardou esta reflexão para o seu discurso no dia 25 de Abril de 2024, preferindo partilhá-la a 9 de março de 2024, dia de reflexão?

Há progresso nas mesas


Fui votar ao fim de almoço, da mesa farta da minha mãe para a mesa de voto, uma boa afluência. Lá estavam as cidadãs e os cidadãos nas mesas, cumprindo o seu dever cívico, garantindo a integridade do processo eleitoral. Vim da mesa de voto para a mesa de trabalho. Enquanto aguardo, tento combater a ansiedade, também através da escrita. 

Tenho ao meu lado o Público em papel de ontem, com o artigo de Pacheco Pereira, que tanto me encanitou. Pereira tem o condão da interpelação, para o pior e para o melhor. Admiro-o sobretudo pela monumental biografia de Álvaro Cunhal, um notável contributo, ainda em construção, para a cultura histórico-política nacional. 

Por falar em Cunhal, que dizer do trabalho, tão metódico quanto militante, de Francisco Melo na edição das suas obras escolhidas, que já vão no sétimo volume? Outro grande contributo cultural, este menos visível, infelizmente. 

Menos visível é também o trabalho de um dos nossos maiores, José Barata-Moura. Começou, no quadro de um coletivo, a traduzir O Capital – o primeiro tomo do livro primeiro saiu em 1990 – e acabou sozinho a traduzir o oitavo tomo, livro terceiro, que saiu em 2017. Pelo meio, está um trabalho monumental. 

Barata-Moura é um dos maiores, porque vai de Hegel ao Fungagá da Bicharada. Temos uma dívida imensa para com a sua criatividade militante, a sua cultura integral. A nossa elite do atraso não reconhece os contributos da cultura marxista e é só por isso que não recebeu distinções merecidas, como o Prémio Pessoa. O mesmo se passa com Fernando Rosas, o nosso principal historiador do fascismo. Neste caso, preferiram dar o prémio a Irene Pimentel, menos relevante, mas mais conforme ao consenso. A cultura marxista é, também em Portugal, uma “cultura marrana”, para usar os termos do historiador Enzo Traverso. 

Isto não quer dizer que não haja reconhecimentos justos, através do Prémio Pessoa. Atente-se em Frederico Lourenço da Universidade de Coimbra, por exemplo. Se mais não houvesse e há muito mais, só a tradução da Bíblia, em especial dos quatro Evangelhos, bastava-me. Foi o que li até agora deste trabalho de amor. 

Regresso a Pacheco Pereira. Estes exemplos de investigação, tradução e edição bastariam para dizermos: há progresso cultural em matéria de livros e de leituras. Não percamos a esperança ou a fé e, já agora, a caridade.

sábado, 9 de março de 2024

Visto no dia de reflexão...


...na António José de Almeida, em Coimbra.

Refletir em tempos de guerra e paz


Sugiro assim, neste dia de forçado silêncio sobre o destino da pátria, uma plebeia reflexão, combinando Homero com uma música viral: "Olarilolé/ Olarilolei/ Ler assim sabe tão bem”…

Pacheco Pereira acaba bem o seu artigo. O problema é o resto, aquele discurso mais ou menos decadentista sobre o país das redes sociais, velha pecha de articulista de uma certa geração e orientação elitista liberal, que anda, neste campo, a confundir género humano com Manuel Germano, como diria o grande Mário de Carvalho. Hoje, lê-se mais do que nunca, note-se. E lê-se de tudo, do bom e do mau, como sempre. 

Pereira refere a Guerra e Paz. Quando a li na adolescência, estava disponível uma edição miserável da Europa-América. Hoje, temos a edição da Presença, traduzida diretamente do russo por Nina Guerra e Filipe Guerra. E vende e é lida. No outro dia, vi uma aluna a lê-la. 

Sim, as boas alunas nas universidades lêem e muito. Sim, os bons alunos são melhores do que éramos no meu tempo, ainda me lembro. Os maus são maus, como sempre foram, certa e infelizmente. O desvio padrão é maior, talvez. Há muito a fazer. Mas a massificação, a democratização ainda incompleta, tem operado magias na educação, na cultura e na ciência em Portugal. Não duvidemos disso nem por um segundo.

Que não haja qualquer saudade do passado nestas áreas.

Reflitamos, então


sexta-feira, 8 de março de 2024

Que força é essa amiga


A luta continua


Comecei a campanha a tirar uma fotografia com Vanda Pereira, num centro onde se trabalhou muito nestas semanas, e termino tirando-lhe uma fotografia a distribuir cravos de papel, feitos à mão, no seu local de trabalho, no dia internacional da mulher trabalhadora. 

Pelo meio, fiz uma amiga e coisa melhor no mundo não há. Andámos por feiras a distribuir panfletos e a falar com as pessoas, de Lorvão à Espinheira, por debates, comícios e até pedreiras (os custos sociais do capitalismo extrativista sem freios ficaram à vista em Soure, escondidos nos pulmões de tantos trabalhadores e de tantas cidadãs, como relatou um médico de saúde pública, por exemplo). 

Fizemos o melhor de que fomos capazes nas nossas circunstâncias de independentes (dependentes, na realidade, não terminamos em nós mesmos). O povo tem de ser soberano. A luta, essa, continua depois de 10 de março. A luta é a única coisa que se pode prever com firmeza.

Dia internacional da mulher trabalhadora

Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo

Em articulação com as organizações políticas e sindicais de classe do proletariado dos seus respectivos países, as mulheres socialistas de todos os países devem assinalar anualmente o Dia da Mulher, com o propósito principal de obter o direito de voto. Esta reivindicação deve ser conjugada com a questão da mulher na sua totalidade, de acordo com os preceitos socialistas. O Dia da Mulher deve ter uma natureza internacional e deve ser cuidadosamente preparado. 

Junto-me à tradição do blogue neste dia, dando a palavra à socialista alemã Luise Zietz. Em 1910, fez a proposta deste dia na conferência das mulheres socialistas da Segunda Internacional, presidida por Clara Zetkin. Como a CGTP lembra, é o dia internacional da mulher trabalhadora. As origens socialistas deste dia são claras e não podem ser esquecidas: nenhum direito nos foi dado, todos foram, são e serão conquistados pela luta coletiva.

A crise da habitação no país de Abril


A crise habitacional é o resultado de políticas da habitação equivocadas e de opções de política recentes que privilegiaram o corte desnecessariamente abrupto e acelerado do défice e da despesa pública, que induziram a retracção do investimento público e promoveram, em sua substituição, a especulação imobiliária e o turismo desenfreado. 

É sobejamente sabido que em Portugal nunca existiu uma política de habitação capaz de garantir uma oferta pública capaz de resolver as necessidades habitacionais. Optou-se por transferir para as famílias esta responsabilidade. Tal opção foi decisivamente reforçada a partir da década de 1990, quando se enveredou por medidas de apoio ao crédito para a aquisição de casa própria, através da bonificação do crédito bancário e de concessão de benefícios de natureza fiscal. As famílias com maiores recursos puderam, então, aceder à habitação, endividando-se. 

A crise financeira e as medidas austeritárias que se seguiram, ao contraírem os salários directos e indirectos e ao precarizarem o trabalho, tornaram insustentável o modelo de acesso à habitação por via do crédito bancário. Porém, a retracção da compra de casa própria não foi acompanhada pela expansão do arrendamento. Ao contrário do prometido, a liberalização do arrendamento, promovido pela então designada Lei Cristas, contribuiu para a retirada maciça de imóveis e a sua reafectação a outros usos bem mais rentáveis, como o alojamento local ou o segmento de mercado de luxo dirigido a uma procura internacional abastada. 

Esta profunda transformação do sector imobiliário não foi um acontecimento espontâneo. Foi o resultado de medidas deliberadas de política, que incentivaram fortemente um mercado concorrencial ao do sector da habitação. Falamos do segmento voltado para uma procura externa com um poder de compra muito superior ao dos residentes nacionais, por via de benefícios fiscais ou de cidadania. Ao sector do imobiliário foram atribuídos benefícios que não estavam disponíveis para outros sectores de actividade económica, como o regime de renovação urbana, que beneficiou os rendimentos de propriedade, rendas e ganhos de capital, e as isenções concedidas a sociedades e fundos imobiliários. 

Em suma, os trabalhadores residentes e as empresas de outros ramos de actividade económica acabaram por ser preteridos em favor de cidadãos não residentes com elevado poder económico, que posteriormente abrangeu também os designados trabalhadores digitais, e de um sector imobiliário com uma presença crescente de sociedades e fundos internacionais. Isto significou que as mais-valias realizadas com a escalada dos preços acabam por ser capturadas por cidadãos estrangeiros com elevado poder económico e ao invés de serem reinvestidas no país acabam por ser expatriadas para o estrangeiro, donde vem o capital.

O resto do artigo está disponível no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, em papel ou no site (para assinantes).

Que esperar da privatização em saúde?


A contratualização de respostas de saúde com o setor privado consitui um dos traços comuns dos programas da direita nestas legislativas, da AD ao Chega, passando pela IL. Isto é, a assunção da ideia de que deveremos deixar de ter um Serviço Nacional de Saúde (SNS), transitando para um sistema nacional de saúde, que integre também o setor privado e o setor social, igualmente financiados pelo Estado através da atribuição de «cheques-saúde». Como se, desde logo, a questão do lucro, no caso do setor privado (e em parte do setor social dito não lucrativo), fosse irrelevante.

A ideia não é nova, ocupando de resto um lugar central no projeto da direita, orientado para a mercadorização dos direitos sociais e correspondente destruição das lógicas de acesso universal e gratuito inerentes aos serviços públicos. Os argumentos invocados, em defesa desta transição - e formulados numa aparente preocupação com as pessoas - são no essencial dois. Por um lado, a ideia de que a concorrência melhora a qualidade dos cuidados e, por outro, que é indiferente quem presta esses cuidados, importando apenas que o Estado assegure o financiamento.

Só que não. Num artigo recente, por exemplo, cujo rigor e prudência merecem ser sublinhados, Benjamim Goodair e Aaron Reeves analisam os efeitos da privatização de cuidados de saúde, considerando um conjunto numeroso de estudos dedicados a esta questão. Uma das conclusões a que chegam de modo mais assertivo é, justamente, a de que «a evidência recolhida não sustenta a tese de que a qualidade melhora com o aumento da concorrência», acrescentando que a análise afetuada reuniu dados que «desafiam as razões invocadas» para apostar no privado, sendo por isso «fraco o suporte científico para uma maior privatização dos serviços de saúde».

Os autores não ficam, contudo, por aqui. Chegam também à conclusão, entre outras, de que «os hospitais que passaram do estatuto de propriedade pública para privada revelaram tendência para obter lucros mais elevados do que os hospitais públicos, conseguidos sobretudo através da admissão seletiva de pacientes e da redução do número de funcionários», a par da tendência para a obtenção de «piores resultados de saúde pelos utentes». De facto, sugerem os autores, «é mais fácil reduzir custos que incrementar a qualidade do serviço», aludindo ainda a mecanismos de opacidade, que dificultam a adequada monitorização pública da contratualização de respostas.

Por último, no atual contexto eleitoral, desengane-se quem pensa que o recurso ao privado, para redução das listas de espera, se limitará a um «plano de emergência» de 60 dias, como assegura a AD. Basta recordar o corte de pensões durante a PAF, inicialmente apresentado como sendo limitado e temporário, mas que não só acabou por ir «além da troika» como só não se tornou permanente porque o Tribunal Constitucional não deixou.

A privatização da saúde não é um plano circunstancial. É um projeto de mudança estrutural desejado e promovido pela direita, sempre que tiver essa oportunidade. E que passa, incontornavelmente, pelo desvio de recursos e de profissionais para o setor privado, acabando por destruir o SNS e o acesso universal e gratuito a cuidados de saúde.

Prejuízos dos bancos centrais são lucros da banca privada

Um pouco por todo o mundo, a política de quantitative easing (flexibilização quantitativa) inicialmente usada para impedir a falência generalizada do sistema financeiro privado dos EUA, foi depois mantida para combater os efeitos que se sucederam, nomeadamente, a baixa generalizada de preços, ou seja, a deflação e, depois, em 2020, para sustentar uma política orçamental que permitiu encerrar a economia mundial sem causar uma destruição e miséria que de outro modo seria inevitável.

De seguida, a partir de Setembro de 2022, aquela política voltou a ser intensivamente usada pelo Banco de Inglaterra para impedir a falência dos fundos privados de pensões do Reino Unido que, em consequência do aumento das taxas de juro, estavam a ser atingidos com enormes ‘margin calls’.

Logo a seguir, no outono de 2022, de forma mais encapotada, o quantitative easing foi usado pelo BCE para fazer face à volatilidade dos preços da energia.

E, finalmente, em Março de 2023, a Reserva Federal usou aquela política para impedir que o seu sistema financeiro, pressionado pela subida da taxa de juro, voltasse a desmoronar-se como um castelo de cartas.

Em consequência desta política monetária, ao comprarem obrigações, os bancos centrais trocaram um ativo (obrigações ou títulos de dívida pública) por liquidez e, ao fazê-lo, aumentaram a oferta de moeda. Simultaneamente, quando colocaram as obrigações compradas nos seus próprios balanços criaram procura adicional para aqueles ativos financeiros e o seu preço subiu; como o juro das obrigações varia de forma inversa à taxa de juro nestas implícita, os juros baixaram.


É a esta taxa de juro muito baixa, por vezes negativa, que uma liquidez de cerca de 5 biliões de euros foi emprestada à componente não governamental do sistema financeiro que opera na zona Euro.

Em consequência, em Junho passado o total das reservas não obrigatórias ao processo de concessão de crédito dos bancos privados atingia os 4,2 biliões de euros.

Entretanto, os preços subiram por perturbações no lado da oferta, em consequência dos gargalos logísticos impostos pela pandemia, do aproveitamento especulativo de empresas com poder de mercado e com a turbulência também especulativa no preço da energia no contexto da guerra Rússia-Ucrânia/EUA/UE.

Num quadro destes, a maioria dos bancos centrais, mas não o banco do Japão, decidiu, erradamente, como dizemos, pelo menos, desde Janeiro de 2022, e nunca nos cansámos de repetir, repetir e de repetir, combater este tipo de inflação de preços com aquele tipo de políticas que Keynes dizia matarem os pacientes, ou seja, com aumentos da taxa de juro.

Entretanto, estamos num contexto de superabundância de liquidez, o que baixa o preço de dinheiro - a taxa de juro. Para assegurar a eficácia da sua política monetária, como se diz em jargão banqueiro centralês, os bancos centrais decidiram receber aquela liquidez de volta remunerando estes depósitos de reservas não obrigatórias a uma taxa de juro próxima daquela que tinham como objetivo impor à economia.

Da última vez que fiz as contas, em Agosto passado, ainda a taxa de remuneração destes depósitos era 3,75% e não os 4% em que se encontra neste momento, assegurar a “eficácia da sua política monetária” estava a custar ao BCE 156,7 mil milhões de euros.

Uma despesa perfeitamente evitável, como tento explicar aqui, que resulta novamente da inação politicamente enviesada do BCE.

Em resultado de tudo isto, os bancos privados, a receber 4% por dinheiro que lhes custou 0,5% e, sentados em mais de 4 biliões de euros de reservas não obrigatórias, sem necessidade, por isso, de captar depósitos de empresas e famílias, pura e simplesmente não os remuneram. Já as famílias, que viram a prestação da sua hipoteca subir 80% em resultado de uma escusada e errada subida da taxa de juro, não beneficiam desta subida nos seus depósitos.

Consequentemente, os bancos privados alargaram a sua margem financeira para níveis politicamente ultrajantes, que se não observavam desde 2007, ano em que começaram a explodir por todo o planeta, apresentam crescimentos exponenciais na taxa de retorno do seu capital na ordem dos 56% face ao ano anterior e planeiam distribuir aos seus acionistas lucros na ordem de 120 mil milhões de euros, praticamente metade do PIB de Portugal, quase tanto, et pour cause, como o chorudo bónus concedido pelo BCE.

Especificamente em Portugal, os lucros agregados dos quatro maiores bancos privados a operar no país somaram 3.153 milhões de euros em 2023, num aumento de 81,9% face a 2022.

Razão tem a esquerda quando defende que estes lucros deviam ser usados para suportar o impacto do aumento na taxa de juro no crédito hipotecário e quando pede a redução da taxa de juro. Mal está a direita económica quando o argumento que usa para discordar é o questionado, à esquerda e à direita, esboroado e falido status quo.

Toda esta largueza para com a banca privada tem, contudo, potencialmente graves implicações financeiras para o balanço do BCE e dos bancos centrais nacionais que o compõem.

O BCE incorreu em perdas de 7,9 mil milhões de euros.

Expectáveis em todos os países da zona euro, os prejuízos serão particularmente elevados nos países do centro e norte da Europa onde financiar a dívida pública custa menos.

Os bancos centrais desses países, comprando por instrução do BCE, mas mantendo nos seus balanços, obrigações dos seus países, pagam o mesmo que os países periféricos pelo depósito das reservas não obrigatórias, mas recebem menos de juros obrigacionistas. Nesta situação possuir rating triplo A não trouxe bons resultados.

Na Alemanha, por exemplo, o Bundesbank acabou de anunciar prejuízos de 21,6 mil milhões de euros.

Na Holanda o banco central registou um resultado negativo de quase 3,5 mil milhões de euros.

Entre outros, o Banco de Portugal ainda não apresentou as contas de 2023, mas os prejuízos para este ano são esperados pela instituição como aqui está noticiado e aqui estudado numa abordagem demasiado influenciada por um dos economistas vende pátrias que integra o cortejo fúnebre da economia portuguesa, Ricardo Reis, que descura a melhor e mais útil a Portugal posição do Banco de Compensações Internacionais (BIS).

Se nada for mudado nesta enviesada política monetária, o BCE e os bancos centrais nacionais seus constituintes enfrentarão anos de pesadas perdas que acabarão por erodir o seu capital. No entanto, o que é um problema para qualquer outro agente económico não o é necessariamente para um banco central que, beneficiando de um privilégio outorgado pelo seu soberano, cria capital pela simples decisão política de o criar, carregando em teclas e preenchendo registos contabilísticos.

De facto, ao contrário do que decidem relevar Robert E. Hall e Ricardo Reis, entre outros, quando afirmam que, em caso de perdas do banco central não compensadas pelo orçamento de Estado, esse banco central pode tornar-se politicamente insolvente, a verdade é que, como afirma o BIS “perdas e os capitais próprios negativos não afetam diretamente a capacidade de os bancos centrais funcionarem eficazmente” pelo que “em tempos normais e em situações de crise, os bancos centrais devem ser avaliados quanto ao cumprimento dos seus mandatos” e “não em função das suas perdas ou ganhos financeiros”.

A este respeito, note-se, por exemplo, que a Reserva Federal americana, que anunciou ter registado em 2023 um prejuízo operacional recorde de cerca de 114 mil milhões de dólares, regista no seu balanço a perda como um ativo diferido e continua a operar com cobertura estatutária assumindo que “seus ganhos, lucros ou perdas, não afetam a capacidade de cumprir as suas responsabilidades como banco central da nação, que é conduzir a política monetária para atingir os seus objetivos estatutários de máximo emprego e preços estáveis”.

De modo muito semelhante, o BCE, nos termos do n.º 2 do artigo 33 do seu Estatuto, deve assumir que as “perdas não cobertas no final do ano são transportadas para o [seu] balanço (...), para serem compensadas com lucros futuros”.

No entanto, muitíssimo relevante, e ao contrário da Reserva Federal, as regras do Eurosistema criadas pelo ‘Relatório de Convergência de 2022”, produzido pelo BCE, estipulam também que tal não deve acontecer durante um período alargado: “Por conseguinte, a eventualidade de os fundos próprios líquidos de um BCN [Banco Central Nacional] se tornarem inferiores ao seu capital estatutário, ou mesmo negativos, exigiria que o respetivo Estado-Membro dotasse o BCN de um montante adequado de capital, pelo menos até ao nível do capital estatutário, num prazo razoável, de modo a respeitar o princípio da independência financeira”.

À luz desta alteração institucional promovida pelo BCE nas costas da opinião pública (quem ouviu falar deste assunto?), alteração esta com implicações orçamentais potencialmente muito graves, compreende-se que em setembro de 2022, o presidente do banco central holandês, Klaas Knot, tivesse alertado o seu governo para "perdas acumuladas que serão consideráveis" nos próximos anos e para que, assim sendo, "num caso extremo, poderá ser necessária uma contribuição de capital" dos contribuintes, afirmou.

E Centeno? Também falou com o governo de Portugal acerca deste assunto? É de todo lamentável, para dizer o menos, que matérias com implicações potencialmente tão graves na capacidade orçamental do Estado, sejam tratados sem o devido acompanhamento público.

Nesta fase, instituições como o FMI têm defendido a ideia de que, por agora, não será necessário recapitalizar os bancos centrais com dinheiro do orçamento de estado.

Em linha com este parecer, o banco central da Holanda acabou por anunciar que entrou em ‘acordo’ com o seu governo e que, pese embora, passe a reter lucros futuros para refazer o seu capital, não usará fundos do orçamento de Estado holandês para fazer face às perdas, política que diz pretender reavaliar conjuntamente com o seu Ministério das Finanças em 2028.

Na Alemanha, outro dos países cujo banco central mais perdas sofreu no ano passado, o Tribunal de Contas alemão afirmou que o Bundesbank poderia necessitar de um resgate do orçamento de Estado para cobrir os seus prejuízos. Mas o presidente do banco central, Joachim Nagel, disse que planeava contabilizar perdas como lucros futuros, como fez da última vez que teve perdas, na década de 1970.

Na mesma linha, o BCE fez saber que espera registar novas perdas depois de esgotar os restantes 6,6 mil milhões de euros de provisões para perdas e encargos que tinha no seu balanço, mas que quaisquer perdas seriam também reportadas contra lucros futuros, evitando qualquer necessidade de recapitalização.

Assim sendo, fruto desta política desastrosa de aumento da taxa de juros e da enviesada decisão de remunerar com ela todas as reservas excedentárias dos bancos privados, os lucros que eram remetidos pelos bancos centrais aos tesouros nacionais volatilizaram-se, estando os dos próximos anos comprometidos.

A banca privada lucrou, o orçamento público minguou.

Mas, ainda mais grave, e sustentada em investigação como a produzida por Ricardo Reis, a ameaça de sobrecarregar os orçamentos de Estado com os montantes perdidos pelos bancos centrais a favor dos bancos privados, continuará a pairar sobre as contas públicas e servirá como mais uma forma de condicionar a política orçamental de Estados cada vez menos soberanos.

No Reino Unido, já está a ser feito. O governo de direita usa, sem necessitar, o Tesouro para pagar o prejuízo do Banco de Inglaterra e, seguidamente, também usa o resultante défice do orçamento de Estado para afirmar que não há dinheiro e justificar os seus ataques ao Serviço Nacional de Saúde e às demais funções sociais do Estado.

Suponho que é a isto que o status quo chama independência dos bancos centrais; no próximo dia 10 é mesmo necessário votar à esquerda e, sobretudo, nos partidos que questionam este estado de coisas.