domingo, 14 de dezembro de 2025
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quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Em direto com quem trabalha
Um jornal que apoia a greve geral
quarta-feira, 10 de dezembro de 2025
Como ficar rico nesta economia?
“Como ficar rico depressa?” é uma das perguntas que surge mais vezes em capas de revistas, vídeos de YouTube e cursos de auto-ajuda. Invariavelmente, a promessa é que, com uma combinação de literacia e disciplina, qualquer pessoa pode acumular riqueza. Um artigo deste ano na revista britânica The Economist tinha o título: “Como Ficar Rico em 2025?”. No entanto, a resposta da revista é menos animadora: a melhor estratégia parece passar, cada vez mais, por nascer na família certa.
A revista chamou a este fenómeno a “nova herançocracia”: uma era em que as fortunas deixam de ser construídas através do trabalho e do esforço e voltam a ser transmitidas pela linhagem familiar. Nos EUA, no Reino Unido, na Alemanha, França ou Itália, o peso das heranças já ultrapassa novamente os 10% do PIB, aproximando-se de valores que não se viam desde o início do século XX. É importante perceber o que levou a este cenário e que implicações é que isso tem para a distribuição da riqueza.
Ficar rico é para todos?
A “nova herançocracia” surge por oposição à ideia de meritocracia que os economistas costumam associar à riqueza. Na versão dominante da economia, parte-se da ideia de que, num mercado competitivo, o rendimento é uma função da “produtividade marginal”. Traduzido do economês, isto significa que cada trabalhador ou empresa recebe um rendimento proporcional ao seu contributo para a produção. As diferenças de rendimento são, por isso, vistas como o reflexo do mérito individual. Por analogia, a distribuição da riqueza é frequentemente descrita na mesma linha: quem acumula mais património é quem poupou mais a partir do rendimento obtido e o investiu para obter retorno (dividendos, rendas ou juros). É-nos dito que quem produz mais, ganha mais, e que quem poupa e investe, acumula património.
Encontramos um bom resumo desta posição no artigo “Em defesa do 1 Por Cento”, publicado em 2013, no rescaldo da crise financeira, por Gregory Mankiw, professor de Economia em Harvard. Mankiw defendia que o facto dos rendimentos do 1% do topo terem crescido a um ritmo exponencial, ao contrário do resto da distribuição, se devia essencialmente ao valor criado pelos mais ricos e à sua capacidade de inovação. Para além de rejeitar que a desigualdade em si mesma seja um problema, Mankiw criticava medidas de redistribuição por “desincentivarem” quem mais contribui para o crescimento.
Com o peso crescente das heranças, tem-se tornado difícil associar a acumulação de riqueza ao mérito. A Forbes analisou a evolução das principais fortunas mundiais e concluiu que todos os bilionários com menos de 30 anos herdaram a sua fortuna. Ainda assim, Mankiw voltou à carga e publicou um segundo artigo, intitulado “Como a riqueza herdada ajuda a economia”. Neste, defendeu a justiça das heranças com base em três argumentos: o de que refletem o altruísmo, já que os pais querem proteger os filhos; o de que as famílias poupam para manter um certo nível de consumo no futuro; e o de que os descendentes dos mais ricos tendem, em média, a descer socialmente, justificando uma almofada patrimonial. Além disso, acrescentou-lhes a conhecida tese de “trickle down”: a acumulação de riqueza no topo acabaria por beneficiar todos, ao financiar investimento que iria aumentar a produtividade e permitir às empresas pagar melhores salários.
No entanto, este raciocínio tem dois grandes problemas. O primeiro problema prende-se com a ideia de que a desigualdade, em si mesma, não é um problema para a sociedade. Esta ideia ignora a dinâmica cumulativa da desigualdade: famílias mais ricas têm condições para investir na educação dos filhos e dar-lhes acesso a computadores, livros, explicações, melhor alimentação e melhores cuidados de saúde, ao passo que as crianças de famílias mais pobres partem com uma desvantagem significativa. As diferentes condições de partida afetam o resultado: nos países da OCDE, são necessárias, em média, 4,5 gerações para sair da pobreza (em Portugal, o número aumenta para 5).
O segundo problema é o pressuposto de que a concentração da riqueza gera benefícios para a economia. O peso crescente das heranças ocorre precisamente num contexto em que a maioria das economias tem registado níveis mais baixos de crescimento. Mais: os salários não acompanharam o crescimento da produtividade, traduzindo-se num aumento das desigualdades. A descida generalizada dos impostos sobre os mais ricos não promoveu o crescimento prometido e a acumulação de riqueza transmitida através de heranças não se tem traduzido em melhores condições de vida para todos.
A riqueza caiu do céu?
O aumento do peso das heranças só se compreende à luz de um fenómeno mais amplo: a financeirização da economia. Desde a década de 1980, grande parte da atividade económica passou a girar em torno da valorização de ativos financeiros, que substituiu o investimento produtivo e se tornou o principal motor do retorno. A desregulação da finança, aliada à expansão acelerada do crédito, fez disparar o preço desses ativos e abriu espaço a novas formas de extrair rendimento sem produzir riqueza real.
O ponto de viragem na década de 1980 esteve associado ao “choque de Volcker”. Como resposta à inflação elevada que se registava, Paul Volcker, presidente do banco central dos EUA, aumentou drasticamente as taxas de juro com o objetivo de provocar uma recessão e estancar as pressões inflacionistas. Os juros elevados deprimiram o investimento, provocaram uma onda de falências, aumentaram o desemprego e enfraqueceram os sindicatos. Abriu-se caminho a um regime onde o retorno do capital já não dependia tanto da produção e do trabalho, mas de ganhos financeiros.
Embora a bolha especulativa tenha rebentado com estrondo em 2007-08, empurrando a economia global para uma recessão profunda, a tendência de valorização dos ativos voltou no pós-crise. Isso explica-se pelas políticas que foram adotadas nos EUA e na Europa. Os bancos centrais adotaram um programa de compra massiva de ativos (conhecido como quantitative easing), que se traduziu numa injeção de milhares de milhões nos mercados financeiros para recuperar o valor perdido. Esse dinheiro ficou sobretudo nos mercados, inflacionando o valor das ações e dos imóveis.
A habitação não escapou ao processo de financeirização. As casas tornaram-se um ativo particularmente apetecível por serem consideradas um investimento relativamente seguro: por um lado, ao contrário de muitos produtos financeiros, são um ativo “real” e material; por outro lado, por serem um bem essencial, a procura por este ativo é um dado adquirido, o que garante o seu valor. Se a isto juntarmos os incentivos fiscais existentes em muitos países para favorecer a compra de casa, percebe-se facilmente porque é que o mercado imobiliário passou a atrair investidores milionários e grandes fundos privados.
Esta dinâmica acentuou-se na última década pela política monetária adotada. Por um lado, as taxas de juro baixas tornaram mais fácil aceder a crédito para comprar casa; por outro lado, com o quantitative easing, os bancos centrais passaram a comprar boa parte dos ativos mais seguros (como títulos de dívida pública), o que levou os investidores a procurar outros ativos com os quais pudessem obter retorno, virando-se para a habitação. O aumento do peso dos fundos de investimento e de companhias de seguros no mercado habitacional contribuiu para a subida dos preços, como conclui um estudo de investigadores do Banco Central Europeu.
Enquanto o valor dos ativos financeiros cresceu de forma exponencial, os salários reais estagnaram na maioria das economias ocidentais. Recentemente, tem ganho força a análise que coloca o património como o principal determinante das novas divisões de classe. O mérito deste tipo de análise é o de reconhecer a vantagem de deter ativos num contexto em que o acesso a estes se deteriorou significativamente, o que é especialmente relevante no caso da habitação. Ainda assim, é preciso ter em conta que a riqueza associada à propriedade - e, sobretudo, a capacidade de a mobilizar - não é igual para todos.
Quem fica rico com a subida da riqueza?
Na Zona Euro, entre 2009 e 2024, a percentagem da riqueza total detida pelos 5% do topo passou de 40,9% para 44,2%; no caso dos 10% do topo, passou de 54% para 57,1%. Se pensarmos na riqueza total como um bolo, o que isto significa é que a fatia recebida pelos mais ricos aumentou e que mais de metade do total fica nas mãos dos 10% mais ricos. A desigualdade aumentou sobretudo no período da crise financeira, entre 2008 e 2012. Após este período, a disparidade estabilizou num nível superior ao que se verificava antes.
Quando olhamos para o valor absoluto, as diferenças são vincadas. A riqueza acumulada pelos 10% do topo é 11 (!) vezes superior à da metade da população que tem menos. Apesar da enorme diferença no valor dos ativos, o valor dos passivos - que incluem dívidas, como o crédito à habitação, e outras obrigações financeiras - é praticamente o mesmo para ambos os grupos (e, no caso dos 20% mais pobres, os passivos são superiores aos ativos).
Se olharmos para o topo da distribuição, a acumulação traz benefícios evidentes. Como os mais ricos têm acesso privilegiado ao crédito e ao mercado financeiro, conseguem usar património como garantia para financiar consumo e investimento, sem nunca vender os ativos, o que lhes permite evitar os impostos que teriam de pagar se obtivessem as mais-valias. Esta estratégia ficou conhecida como “buy, borrow, die”: começa-se por adquirir património e ativos (casas, ações de empresas, etc.) e esperar pela sua valorização; depois, em vez de vender os ativos, o que obrigaria a pagar impostos sobre os ganhos, estes são usados como garantia para pedir empréstimos, com os quais é possível financiar todo o tipo de despesa; como as mais valias não-realizadas não são tributadas, quando o proprietário falece, os herdeiros podem converter o ativo em rendimento sem pagar impostos.
Este tipo de dinâmica dificilmente é replicável fora do grupo dos mais ricos. Por um lado, a propriedade das ações está fortemente concentrada no topo, o que significa que a subida do valor em bolsa beneficia essencialmente uma pequena parte da população. Por outro lado, a facilidade que os mais ricos têm em obter empréstimos não tem comparação com o resto da população. Além disso, no caso da habitação - o ativo cuja propriedade é mais democratizada -, as vantagens da subida dos preços são menos óbvias.
Embora, para quem detém uma casa, a subida dos preços implique um aumento da sua riqueza em termos estatísticos, isso nem sempre se traduz numa melhoria efetiva das condições de vida. Um estudo publicado este ano sobre as decisões de consumo das pessoas nos EUA concluiu que embora a expectativa de valorização dos preços das casas leve os inquilinos a reduzir as suas despesas (o que é expectável, tendo em conta que antecipam um aumento da despesa com a renda), não tem o efeito oposto no caso dos proprietários. Dito de outra forma, a subida do valor das casas não leva os proprietários a gastar e consumir mais, uma vez que o ganho no papel não se traduz necessariamente num ganho material. Uma pessoa que detenha uma casa vê a sua riqueza aumentar, mas é discutível que retire ganhos concretos dessa subida: se vendesse a casa para obter mais-valias, precisaria de encontrar outra para habitar aos preços atuais.
A subida dos preços das casas é sobretudo vantajosa para quem detém mais do que uma habitação. Nesse caso, com a habitação própria assegurada, é possível aproveitar a valorização para vender por valores elevados casas que foram compradas a preços muito mais baixos, ou para aproveitar a inflação das rendas. Desde a crise financeira de 2008, tem-se assistido à concentração da riqueza imobiliária: além do peso cada vez maior dos fundos de investimento no mercado imobiliário, o perfil de quem compra casa alterou-se e passou a estar associado a maiores níveis de rendimento.
É por isso que há investigadores que propõem um ângulo de análise diferente: em vez de dividir a sociedade entre proprietários e não-proprietários, é preciso distinguir os ocupantes de habitação e os interesses rentistas. Por outras palavras, em vez de colocar a ênfase na divisão entre quem detém e quem não detém uma casa, o foco está na divisão entre quem ocupa uma casa e quem não a ocupa mas extrai uma renda. O primeiro grupo inclui quem arrenda (e paga uma renda ao senhorio) e quem detém casa própria (e paga uma “renda” ao banco). Em ambos os casos, as pessoas ocupam a casa para viver. O segundo grupo inclui proprietários que detêm e exploram múltiplas casas (tanto para arrendamento, como para alojamento local), plataformas digitais no mercado do alojamento turístico e fundos de investimento. Têm em comum o facto de deterem direitos de propriedade sobre habitações que não ocupam e cujo objetivo principal é extrair rendas.
Portugal é um caso de estudo oportuno. Quando olhamos para as estatísticas sobre a riqueza líquida das famílias - isto é, o valor total dos ativos menos o valor das dívidas -, esta aumentou de forma assinalável desde a pandemia. Essa evolução deve-se, em grande medida, à valorização da habitação (a vermelho, no gráfico abaixo), que passou a representar uma fatia maior do património das famílias portuguesas e se tornou o principal motor do aumento da riqueza.
No entanto, é preciso ter em conta que os 10% mais ricos concentraram, nos últimos quatro anos, tanta riqueza como os 40% seguintes. Já entre os 50% mais pobres, o aumento da riqueza líquida resultou sobretudo da redução do valor real das dívidas. Mais relevante ainda é o facto de, nas últimas décadas, a escalada dos preços das casas em Portugal ter coincidido com um aumento da desigualdade de riqueza no país.
Os impactos da subida dos preços das casas são desiguais: quem tem vários imóveis ou propriedades herdadas pode transformar essa valorização em ganhos reais - seja vendendo, alugando ou explorando o potencial turístico -, enquanto quem apenas detém uma casa não usufrui das mesmas oportunidades. O modelo de crescimento da economia portuguesa, assente na expansão do turismo e na valorização imobiliária, tende a beneficiar principalmente quem teve condições para acumular património que recentemente se transformou num mecanismo de extração de rendas.
Em Portugal, a riqueza continua a estar fortemente concentrada no topo: os 10% do topo detêm cerca de 60% da riqueza total, enquanto a metade de baixo da população fica com apenas 3,6%. As 50 maiores fortunas concentram 45 mil milhões de euros, o que representa quase um quinto do PIB nacional. O peso das heranças é incontornável: as principais fortunas pertencem às famílias Amorim (herdeiros de negócios da cortiça e da Galp), Mello (que herdaram a rede de hospitais privados CUF e participações na Brisa e noutras empresas), Soares dos Santos (herdeiros da maioria Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce) e Azevedo (que herdaram o Grupo Sonae, onde se inclui o Continente). A maior parte da riqueza no topo resulta de património herdado, o que ajuda a explicar porque é que a desigualdade se mantém tão persistente.
Como redistribuir a riqueza?
No debate público, tornou-se frequente ouvir a ideia de que o problema não é a existência de ricos, mas sim a existência de pobres. Esta ideia serve para justificar a oposição a impostos mais progressivos ou outras medidas de redistribuição. Só que esta oposição é enganadora: a acumulação de riqueza no topo não é neutra e afeta as as condições de vida de todos. Quando uma fatia crescente do bolo é entregue a quem já tem mais, isso reduz a capacidade de consumo da maioria das pessoas e aumenta a poupança de quem tem maior propensão a especular. Esta dinâmica empurra as economias para modelos instáveis, com menos procura interna, menos investimento produtivo e maior dependência de bolhas de ativos para sustentar o crescimento, aumentando a vulnerabilidade a crises. A desigualdade não é apenas um problema do ponto de vista social: é um problema para a própria economia.
Nos últimos anos, têm surgido diversas propostas para combater as desigualdades. A ideia que tem ganho mais força é a de criar um imposto sobre a riqueza: em vez de tributarmos apenas os rendimentos do trabalho e os ganhos com mais-valias, aplicar-se-ia também uma taxa sobre a evolução da riqueza líquida das pessoas, de forma a que quem beneficia da valorização de ações ou outros ativos contribua para a receita fiscal mesmo que não as venda.
Não se trata de uma ideia inédita. Na verdade, na década de 1980, mais de uma dezena de países europeus, incluindo a Alemanha, França, Espanha ou a Áustria, aplicava algum tipo de imposto sobre a riqueza. No entanto, estes impostos foram desenhados com várias isenções (principalmente para ações de empresas e residências) que acabaram por proteger as maiores fortunas, ao mesmo tempo que as autoridades continuaram a operar sem mecanismos de troca automática de informação e fiscalização para impedir a evasão aos impostos.
Atualmente, a Suíça, a Noruega e Espanha possuem impostos sobre a riqueza. Com taxas modestas aplicadas apenas a partir de um certo valor de riqueza líquida, o que deixa de fora a maioria das pessoas, as receitas para o Estado variam: representam apenas 0,2% do PIB no caso de Espanha, mas sobem para 1,16% na Suíça, o que implica alguma capacidade de redistribuição. A ideia voltou a ganhar força com o trabalho de economistas como Thomas Piketty, Emmanuel Saez ou Gabriel Zucman, que se têm dedicado a estudar a concentração da riqueza nas últimas décadas. Zucman defende um imposto global de 2% sobre fortunas superiores a 1000 milhões de dólares.
O argumento mais recorrente contra este tipo de impostos é que, se um país os aplicar isoladamente, os milionários vão fugir para outros destinos. No entanto, os rumores sobre o êxodo massivo de milionários da Noruega são manifestamente exagerados. Além disso, os países não estão de mãos atadas face ao risco de fuga. Em 14 países da OCDE, incluindo a Alemanha, França, o Canadá ou o Japão, o Estado tributa ganhos de capital não realizados quando os cidadãos mudam de país (uma espécie de “portagem” que compensa os países em caso de saída dos milionários).
A verdade é que há várias formas de taxar diferentes tipos de riqueza. A OCDE defendeu recentemente a importância dos impostos sobre heranças e doações em vida (em especial, as mais elevadas). A maioria dos países da OCDE mantém este tipo de imposto. A este nível, Portugal é uma exceção: o imposto sucessório foi extinto em 2004 e os herdeiros diretos passaram a estar isentos. Um imposto sobre heranças acima de 1 milhão de euros só se aplicaria aos 1,6% mais ricos do país, o que seria uma forma eficaz de combater a desigualdade.
Outro caso relevante é o da habitação. Em Portugal, o IMI tributa o valor patrimonial das casas, embora não seja adequadamente atualizado para refletir a evolução dos preços. Desde 2017, o adicional ao IMI aplica uma taxa entre 0,7% e 1,5% sobre património imobiliário acima de 600 mil euros, excluindo a primeira habitação. É uma medida dirigida ao património mais valioso e paga por uma pequena fração dos mais ricos. Para aumentar a progressividade do imposto e a eficácia no combate à especulação, o agravamento do IMI sobre segundas casas e, em particular, sobre casas que estejam vazias, seria importante.
Atualmente, o peso dos impostos sobre a propriedade em Portugal é relativamente reduzido: representam 1,4% do PIB, abaixo dos 1,8% registados em média nos países da OCDE, segundo os dados da instituição. Em sentido contrário, Portugal é o 4º país da OCDE com maior peso da receita do IVA (9,4% do PIB), um imposto regressivo que pesa mais na carteira de quem ganha menos. O que isto significa é que há margem para redistribuir a carga fiscal e tributar de forma mais justa a riqueza no país.
A receita fiscal adicional pode ser canalizada para financiar investimento público, não apenas na habitação — onde Portugal continua a ter uma percentagem muito reduzida de habitação pública a preços acessíveis — mas também no SNS ou na escola pública. Assegurar o acesso universal a educação de qualidade e a cuidados de saúde robustos não é apenas uma medida social: é uma componente indispensável de uma estratégia de combate às desigualdades e de construção de uma economia mais justa.
Quebrar a persistência da desigualdade não passa apenas por alterações na política fiscal. A herançocracia é o produto de um modelo de crescimento que concentrou riqueza no topo e transformou a propriedade acumulada num mecanismo de extração de rendas. Ao contrário do que o discurso meritocrático sugere, não é a falta de esforço que impede a acumulação de riqueza, mas sim um modelo económico que cava um fosso entre salários estagnados e preços crescentes da propriedade. Reconhecer que a transmissão de heranças é profundamente desigual e que não funciona como mecanismo de nivelação é essencial para construir políticas que protejam quem vive do trabalho.
Isto é mesmo a gozar com quem trabalha
Entre os argumentos invocados para defender o regresso ao século XIX em matéria de precariedade laboral, com as alterações profundas que estão em cima da mesa - e que a coligação de direita convenientemente omitiu no programa eleitoral - a ministra Palma Ramalho tem insistido na ideia de que as «novas gerações (...) já não querem um emprego para toda a vida», antes valorizando a mobilidade e a flexibilidade. «É mais atraente para os jovens o valor da remuneração do que a natureza dos contratos», disse. Sucede, porém, que os jovens não pensam como a ministra diz que pensam, nem querem o que a ministra gostaria que quisessem. Entre «um emprego para toda a vida» e um regime de instabilidade e precariedade sem fim vai uma enorme distância.
De facto, segundo um estudo de 2024 da Universidade Católica, logo a seguir a ter um emprego que permita progredir na carreira (coisa que o reforço da precariedade dificulta), 72% dos jovens consideram muito importante a estabilidade e segurança no emprego e, logo a seguir, ter um emprego que favoreça a conciliação com a vida pessoal e familiar (71%). Não é por acaso que Paulo Marques, do Observatório do Emprego Jovem, considera que «a questão-chave é a instabilidade dos contratos», lembrando que as reformas recentes - «uma durante o período da 'geringonça' e outra já com o governo do PS com maioria absoluta» - contribuíram para que a percentagem de jovens com contrato a termo baixasse, desde 2015, de 70% para 53%. Já a flexibilidade dos horários laborais - e ao contrário do que a ministra sugere - apenas é valorizada por 35% dos jovens inquiridos.
A direita é pródiga em lançar ideias falsas para o ar, ao arrepio dos factos. Foi assim nos tempos de Passos e Portas, com a cantilena do «empobrecimento competitivo» e da «economia do pingo», a que está a regressar. Não por acaso, e evidenciando a dificuldade do governo em demonstrar, para lá de o dizer, como é que a reforma laboral fará a economia crescer e tornar o país mais competitivo, a ministra do Trabalho, padroeira dos patrões, foi incapaz, na entrevista à RTP, de identificar «qualquer estudo que comprove o impacto económico das alterações que propõe».
segunda-feira, 8 de dezembro de 2025
Lógica antifascista
O sindicalismo de classe da CGTP é condição necessária para qualquer lógica antifascista digna desse nome, até porque é esteio da democracia e do Estado social que a protege.
sábado, 6 de dezembro de 2025
Ódio diário sem notícias
Em 1927, no livro Liberalismo, Ludwig von Mises afirmou: “Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até ao momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história.”
sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
Travar o golpismo, combater o neoliberalismo
Greve(s) Geral(is)
De facto, a natureza utópica de uma sociedade de mercado não pode encontrar melhor ilustração do que os absurdos em que ficção do trabalho como mercadoria envolve a comunidade. A greve, essa arma normal de negociação da ação industrial, era cada vez mais frequentemente sentida como uma interrupção caprichosa do trabalho socialmente útil, que, ao mesmo tempo, diminuía o dividendo social, do qual, em última análise, provinham os salários. As greves de solidariedade eram condenadas e as greves gerais vistas como uma ameaça à existência coletiva. E, com efeito, as greves em setores decisivos ou nos serviços públicos faziam dos cidadãos reféns, ao mesmo tempo que os arrastavam para esse problema labiríntico relativo às verdadeiras funções de um mercado do trabalho. Pressupõe-se que o trabalho encontrará o seu preço no mercado e que qualquer outro preço, determinado por outras vias, será não-económico. Se o trabalho assumir as suas responsabilidades nesta ordem de coisas, comportar-se-á como um elemento da oferta daquilo que é, a mercadoria «trabalho», e recusar-se-á a ser vendido abaixo do preço que o comprador pode permitir-se ainda pagar. Em termos de coerência, isto significa que a principal obrigação do trabalho será estar quase constantemente em greve. Semelhante conclusão, absolutamente absurda, é, no entanto, a consequência lógica da teoria do trabalho como mercadoria. A origem desta incompatibilidade entre a teoria e a prática é, sem dúvida, o facto de o trabalho não ser efetivamente uma mercadoria (...).
(...) A verdade é que o trabalhador não goza de qualquer segurança de emprego num sistema organizado pela empresa privada, e que essa circunstância significa uma grave degradação do seu estatuto. Acrescente-se ao quadro a ameaça do desemprego em massa, e compreender-se-á que a função dos sindicatos é moral e culturalmente decisiva para a salvaguarda de níveis de vida minimamente aceitáveis da maioria dos indivíduos. Todavia, é evidente também que qualquer método de intervenção que proporcione proteção aos trabalhadores afetará o mecanismo do mercado autorregulado.
Karl Polanyi, em A Grande Transformação, a explicar que a greve, simultaneamente, mostra que o trabalho não é, nem pode ser, uma mercadoria, mas também porque é tão importante perante os ataques dos defensores do "mercado autorregulado". De facto, a ideia de que o trabalho é um mercado organizado em torno de uma oferta e procura supostamente livres só se tornou possível pela imensa repressão dos trabalhadores que ousaram organizar-se e exigir a justa compensação pelo seu trabalho. Aí, a imensa mão visível do Estado, com todo o seu aparato repressivo, teve de agir, sempre para garantir a ficção em que assenta a nossa sociedade de mercado.
terça-feira, 2 de dezembro de 2025
Quinta-feira, em Lisboa: Debate sobre oferta e procura de habitação
Promovido pela Rede H - Rede Nacional de Estudos sobre Habitação, realiza-se no IGOT (Sala de Conferências), a partir das 17h00, uma reflexão plural sobre a relação entre a oferta e a procura de habitação no contexto da atual crise. Participarei na sessão, moderada por Filomena Lança, juntamente com Ana Drago, Ricardo Guimarães e Carlos Guimarães Pinto. A entrada é livre, podendo o debate ser acompanhado aqui. Apareçam.
Não deveria a oferta de habitação ajustar-se à procura?
O Idealista estima ainda, para 2025, a distribuição da oferta por escalões. Apenas em cinco distritos do continente (Bragança, Guarda, Castelo Branco, Portalegre e Beja) as casas até 200 mil€ representam mais de metade da oferta, contrastando com os distritos de Lisboa, Faro, Porto, Aveiro e Setúbal, nos quais a oferta de casas até este valor é inferior a 10% do total. Neste universo, destaque para Lisboa e Faro, com valores de apenas 2% e 3%, respetivamente.
Considerando o volume de transações na Grande Lisboa em 2025 (INE), e a variação apurada pelo Idealista, é possível estimar, de forma aproximada, a distribuição de casas à venda, por escalões, em 2020. Nestes termos, a oferta até 300 mil€ cai de cerca de 33% para 9% do total, ao mesmo tempo que a proporção de imóveis acima dos 500 mil€ aumenta de cerca de 49% para 63%, entre 2020 e 2025.
Confirmando o aumento galopante dos preços - que «descolam» dos rendimentos das famílias - estes dados desafiam ainda a análise convencional entre oferta e procura. De facto, num contexto em que o rácio de alojamentos por família quase não se alterou, não era suposto que os comparativamente baixos rendimentos das famílias levassem à descida dos preços? Ou será que são as novas procuras - que encaram a habitação numa lógica de investimento, com elevada capacidade aquisitiva - a explicar a quebra de relação entre preços das casas e rendimentos das famílias?
sexta-feira, 28 de novembro de 2025
Uma contrarreforma para regressar ao século XIX
«Porque se tornou a negociação impossível? Porque as “traves-mestras” desta contrarreforma são inaceitáveis. E sem elas não há contrarreforma. (…) Essas traves-mestras fazem, no segundo país mais precário da Europa, do contrato a prazo a regra. Permitem a precariedade eterna, porque nunca ter tido contrato permanente passa a ser motivo para nunca o vir a ter. Desprotegem o trabalhador na hora do despedimento. Desobrigam a empresa a reintegrar quem tenha sido ilegalmente despedido. Facilitam a pressão do patrão para o trabalhador abdicar, quando sair da empresa, do que lhe seja devido, podendo prescindir dos seus direitos mesmo no decorrer do contrato. Permitem usar o despedimento coletivo para recorrer ao outsourcing, substituindo trabalhadores protegidos por desprotegidos. Destroem qualquer conciliação entre vida pessoal e profissional, uma das razões para jovens mais qualificados fugirem desta economia desqualificada. Até o rendimento que muitos trabalhadores encontram nas horas extraordinárias é atacado com o banco de horas individual, a que Palma Ramalho se opusera no passado. A prova do radicalismo ideológico desta proposta é o recuo, sem que ninguém o tivesse pedido, na criminalização do trabalho declarado, que fez entrar milhares de trabalhadoras domésticas na Segurança Social. E ataca, em simultâneo, negociação coletiva e direito à greve.»
Daniel Oliveira, Uma contrarreforma antiquada
quarta-feira, 26 de novembro de 2025
Das razões para enfrentar a contra-reforma laboral
A poucos dias da Greve Geral, a Causa Pública junta amanhã, 27 de novembro, no Auditório da Escola Secundária Camões, em Lisboa, a partir das 18h00, o secretário-geral da CGTP, Tiago Oliveira e o secretário-geral da UGT, Mário Mourão, para debater, com Paulo Pedroso, o retrocesso subjacente ao Anteprojeto de Lei da reforma da legislação laboral apresentado pelo governo, identificando as razões para o enfrentar. A moderação está a cargo de Margarida Davim. Apareçam.
terça-feira, 25 de novembro de 2025
Jornadas CoLABOR, amanhã em Lisboa
«Partindo da apresentação da publicação TEPS 2025 – “O trabalho, o emprego e a proteção social” -, bem como de outros produtos desenvolvidos pelo CoLABOR, a iniciativa visa promover uma análise informada das dinâmicas laborais e sociais em Portugal, destacando o papel dos dados e da evidência empírica na formulação de políticas públicas. Neste contexto, serão apresentadas ferramentas digitais de apoio ao conhecimento da realidade local e das respostas sociais existentes, desenvolvidas pelo CoLABOR, essenciais para sustentar uma tomada de decisão informada e estratégica. O programa incluirá também uma reflexão sobre o papel do trabalho e das políticas públicas no combate à pobreza, os desafios da integração da população imigrante no mercado de trabalho e a relevância do poder local como motor de transformação social e económica».
Na Fundação Calouste Gulbenkian, a partir das 9h00. A entrada é livre, mediante inscrição. O programa das jornadas pode ser consultado aqui.
segunda-feira, 24 de novembro de 2025
Repetida muitas vezes, uma intrujice não se transforma em seriedade
Para forçar o contraste, de modo a melhor enviesar a água para o seu moinho, Marôco classifica o período entre 2000 e 2015 como «a era da exigência e da evidência», designando os anos seguintes por «viragem da flexibilidade», a que atribui a descida de Portugal no PISA. É curioso, pois até abandona a tese da «década perdida», tão cara ao seu mestre Nuno Crato, associada aos governos do PS (2005 a 2011) e carimbada com o selo do «facilitismo» (assinale-se, aliás, que a alusão depreciativa à «flexibilidade» não é mais do que uma forma de recuperar, recauchutando, esse conceito).
Ora, se João Marôco se repete, numa obsessão que não resiste a factos, nós também. Para lembrar, desde logo, que os alunos que participaram no PISA de 2015, com 15 anos, nasceram a tempo de não ter que se sujeitar às medidas de Nuno Crato, essas sim disruptivas face às políticas de governos anteriores (como demonstra a introdução anacrónica, em 2012, dos exames do 4º e 6º ano, que por essa Europa fora já há muito não existiam).
De facto, querendo colocar as coisas no simplismo linear em que Crato e Marôco as colocam - associando diretamente resultados a ciclos eleitorais - então a descida de Portugal no PISA após 2015 tem, também, uma explicação simples: é que passaram a ser os «alunos de Crato» a estar representados na aferição do PISA de 2018 e de 2022. Isto é, as tais aferições de que, curiosamente, Marôco se queixa.
sexta-feira, 21 de novembro de 2025
Hoje e amanhã, em Lisboa
Nuno Teles e Ana Drago refletem sobre a «A propriedade como categoria política no nexo turismo-imobiliário», numa conversa moderada por Sandra Monteiro. Hoje, a partir das 18h00 na Livraria Tigre de Papel, em mais uma sessão do ciclo «Maneiras de Ver», do Le Monde Diplomatique - Edição portuguesa.
Amanhã, sábado, a Causa Pública realiza mais uma sessão no âmbito das «Conversas sobre a Política de Cidades», a partir do documento «Portugal precisa de uma política de cidades». A sessão tem lugar na Biblioteca histórica da Escola Secundária Luís de Camões, a partir das 14h30.
quinta-feira, 20 de novembro de 2025
Mais casas para viver ou para especular?
Bem pode a Comissão Europeia, e demais neoliberais, continuar a tentar deixar no ar a ideia de que a crise resulta de um desfasamento da oferta face ao aumento da procura residencial, como se o aumento da população e do número de famílias, ao longo da última década, contrastasse com a redução do stock de alojamentos, por alegado défice de construção. Ora, o que os dados nos dizem, à escala da UE e dos seus Estados membros, é precisamente o contrário.
De facto, entre 2011 e 2021 o aumento da população residente na UE foi de apenas cerca de 1% (mais 4,7 milhões de habitantes), tendo o número de famílias aumentado cerca de 5% (quase mais 9 milhões em 2021 face a 2011). Ou seja, aumentos muito abaixo do registado no número de alojamentos residenciais, a rondar os 9% (cerca de mais 20 milhões de casas, no mesmo período). Tirem o cavalinho da chuva: o problema não reside no alegado défice de construção.
Não é pois por acaso que o rácio entre alojamentos e famílias melhora ligeiramente à escala da UE entre 2011 e 2021 (de 1,20 para 1,24), com apenas 9 Estados membros (num total de 25) a registar quebras muito ligeiras (nunca mais que centésimas) na relação entre o número de alojamentos e de famílias. E o mesmo sucede, naturalmente, quando se pondera o número de fogos por 1000 habitantes (que passa, à escala da UE, de 494 para 533, no mesmo período).
Fingindo que a crise se resume a um mero problema de oferta, bastando construir mais em vez de regular e travar a especulação, a Comissão Europeia evita assumir que o problema reside no surgimento de novas procuras (turismo e conversão de casas em ativos financeiros), marcadas por um elevado poder aquisitivo, com o qual as famílias que querem casas para viver não conseguem competir. Ao que acresce o facto de estas procuras serem potencialmente inesgotáveis, impedindo portanto que os preços desçam, por mais que se construa. Como, aliás, se tem constatado.
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
O que nos escapa nos números da pobreza?
Nas últimas três décadas, Portugal registou uma redução significativa da pobreza. A taxa de pobreza passou de 23% em meados da década de 1990 para 16,6% em 2023, correspondendo a um período de convergência com a média europeia. É impossível ignorar o papel do Estado neste percurso: a aprovação de medidas como o Rendimento Social de Inserção (RSI) ou o Complemento Solidário para Idosos (CSI) contribuiu em grande medida para combater a incidência da pobreza entre os grupos mais vulneráveis.
No entanto, os indicadores contam apenas uma parte da história. Além de continuarmos a ter cerca de dois milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza, é preciso perceber como é que este fenómeno se manifesta hoje em mais do que uma dimensão. A pobreza não é apenas consequência de salários ou pensões baixas; é, cada vez mais, um reflexo do custo de vida. Atualmente, a pobreza esconde-se atrás de rendas incomportáveis e da inflação de bens essenciais, de uma forma que escapa aos indicadores que usamos para a medir.
Como se mede a pobreza?
O indicador mais utilizado para medir a pobreza é a taxa de risco de pobreza, que define a linha de pobreza como 60% do rendimento mediano nacional líquido (após impostos e transferências sociais). Ou seja, não se trata de um valor fixo, mas sim de um limiar que varia com o rendimento mediano: quando este aumenta, a linha de pobreza sobe na mesma proporção, e vice-versa.
Isto significa que a pobreza é medida em termos relativos: ser pobre significa estar significativamente abaixo do padrão de vida médio do país. Nas estatísticas, a definição de pobreza depende do rendimento e do contexto do agregado familiar. Em 2023, uma pessoa que vivesse sozinha seria considerada pobre se tivesse menos de €632 de rendimento mensal; já um casal com dois filhos seria pobre se vivesse com menos de €1328 por mês.
É possível medir a taxa de pobreza antes e depois de transferências sociais. O INE calcula três taxas diferentes: a taxa de risco de pobreza antes de qualquer transferência social, a taxa após transferências relativas a pensões e, finalmente, a taxa após todas as transferências sociais. A primeira mede a pobreza apenas com base apenas nos rendimentos do trabalho e do capital, a segunda inclui as pensões de reforma e a terceira avalia a pobreza após todas as transferências do Estado, como o abono de família, o subsídio de desemprego, o Rendimento Social de Inserção (RSI), etc. A comparação destas taxas permite avaliar a eficácia do Estado no combate à pobreza.
Apesar das melhorias referidas anteriormente, há alguns problemas associados a estes cálculos, como explica o economista Carlos Farinha Rodrigues numa entrevista recente. Por um lado, medir a taxa de pobreza antes de todas as transferências (incluindo pensões) pode levar a conclusões enganadoras. Em países com uma população envelhecida, é natural que a taxa de pobreza “antes de pensões” seja elevada. Em Portugal, quase metade da população é considerada pobre de acordo com esta definição. No entanto, as pensões de reforma não são um apoio do Estado para quem se encontra em dificuldades, são o resultado dos descontos feitos por quem se reforma ao longo da sua carreira. Calcular a taxa de pobreza “se não houvesse pensões” é uma abstração que faz pouco sentido, tal como seria pouco útil calcular a taxa de pobreza “se não houvesse salários”.
Por outro lado, definir a linha de pobreza em termos relativos também tem consequências para as conclusões que se retiram, sobretudo em períodos de crise. Entre 2010 e 2012, quando Portugal foi atingido pela crise financeira e se começaram a implementar medidas de austeridade, a taxa de pobreza manteve-se inicialmente inalterada, não porque as medidas aplicadas não estivessem a afetar as pessoas com salários e pensões mais baixas, mas simplesmente porque a crise também levou a uma diminuição do salário mediano na economia.
Além disso, o rendimento ao fim do mês não é o único fator que determina as condições de vida de uma pessoa. Com a crise da habitação, têm aumentado os casos de pessoas que se encontram acima do limiar de pobreza mas são incapazes de pagar as contas. Ao medirmos a pobreza apenas com base no rendimento, deixamos de fora da análise uma dimensão que afeta de forma decisiva a qualidade de vida e a capacidade de assegurar as despesas indispensáveis: o poder de compra associado ao rendimento.
O salário não chega
De acordo com as estatísticas, 9,2% de trabalhadores em Portugal são pobres. Isto significa que 1 em cada 10 pessoas que têm emprego recebem um salário que as coloca abaixo do limiar de pobreza. Este valor valor tem-se mantido relativamente estável na última década, o que significa que mesmo num período em que a economia tem crescido a um ritmo superior, ter um emprego continua a ser insuficiente para sair da pobreza.
A pobreza é indissociável do modelo de crescimento do país. A economia portuguesa é caracterizada pela prevalência de salários baixos. Nos setores que mais têm contribuído para o crescimento da economia e do emprego - o turismo, o alojamento, a restauração e a construção -, mais de um quinto dos trabalhadores vive em risco de pobreza devido aos salários muito baixos que são pagos. Além do rendimento, o tipo de emprego que tem sido criado também influencia esta dinâmica: a taxa de risco de pobreza entre quem tem contratos precários é de 18,2%, quase o triplo da de quem tem contratos permanentes (7%).
Contudo, é preciso ter em conta que a taxa de pobreza se mede apenas tendo em conta o salário que as pessoas recebem, o que torna o indicador limitado, uma vez que não é possível analisar a pobreza sem ter em conta o custo de vida. Isso é particularmente visível no caso da habitação. A renda paga ao senhorio, no caso de quem arrenda, ou a prestação paga ao banco, no caso de quem tem casa própria, corresponde à maior fatia das despesas mensais das famílias. Em média, esta despesa representa quase 40% dos gastos mensais, de acordo com o INE, superando este valor em muitos casos. Na área metropolitana de Lisboa, há estimativas que indicam que mais de 70% dos inquilinos estão em sobrecarga financeira com as despesas de habitação.
Este cenário reflete a crise da habitação que Portugal tem atravessado na última década. Entre 2014 e 2024, o preço das casas no país subiu mais de 135%, enquanto o salário médio dos residentes cresceu apenas 36%. Portugal foi o país da OCDE em que o fosso entre os salários e os preços da habitação mais se alargou na última década, o que explica porque é que a habitação passou a representar uma fatia cada vez mais importante das despesas das pessoas.
A escalada dos preços da habitação tem contribuído para uma crise do custo de vida que não surge nas estatísticas, como tem sido discutido nesta página (aqui ou aqui). O indicador da inflação, que é usado para medir o poder de compra das pessoas, subestima de forma significativa o impacto dos preços das casas, uma vez que não inclui a despesa das famílias com prestações de empréstimos e atribui um peso muito pequeno às despesas com rendas. Como as prestações e as rendas têm subido a um ritmo bastante superior ao da média dos preços na economia (medida pela inflação), há uma parte importante do custo de vida que está a ser subestimada pelos indicadores.
Esta dinâmica também tem consequências que não são captadas pelas estatísticas da pobreza. Como a taxa de pobreza é medida apenas com base no rendimento, o indicador não tem em conta o poder de compra associado. Por outras palavras, não basta saber quanto é que as pessoas recebem, mas também o que é que conseguem pagar com o rendimento que recebem. Em muitos casos, os salários ou as pensões podem estar acima do limiar de pobreza definido estatisticamente, mas não serem suficientes para pagar as despesas com a renda, a alimentação, a luz ou a água (sobretudo no caso de pessoas que vivem sozinhas ou famílias monoparentais).
O aumento do número de pessoas em situação de sem-abrigo e dos bairros de auto-construção nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Na periferia das zonas urbanas, são frequentes os relatos de pessoas que trabalham, recebem o salário mínimo - €860/mês, o que as coloca estatisticamente acima do limiar de pobreza - mas são empurradas para este tipo de condições precárias pelo facto do salário não chegar para pagar uma renda de €600 ou €700 e assegurar as outras despesas essenciais.
Além da habitação, a alimentação é outro exemplo de como em que o aumento do custo de vida está a atingir de forma desproporcional as pessoas com menos rendimentos. Tipicamente, as pessoas com salários ou pensões mais baixas gastam uma parte maior do seu rendimento com a alimentação. Os dados do INE confirmam-no: as despesas com alimentos representam mais de 17% do orçamento das pessoas com rendimentos mais baixos, mas apenas 10% do orçamento dos mais ricos.
O que isto significa é que a mesma taxa de inflação alimentar tem impactos diferentes em grupos sociais diferentes. Neste caso, representa um aumento mais acentuado do custo de vida para quem gasta uma percentagem maior do seu rendimento nestes produtos. Por outras palavras, a subida dos preços dos alimentos pesa mais na carteira de quem ganha menos, sobretudo num contexto em que a subida dos preços foi mais acentuada nos produtos que eram mais baratos à partida.

Para as famílias com menos rendimentos, as estratégias de contenção de gastos não são opcionais. O inquérito mostra que muitas têm sido forçadas a diminuir a quantidade de ingredientes que usam para cozinhar refeições e a cortar no consumo de proteínas como a carne. Em paralelo, tem-se registado um “retraimento acentuado das sociabilidades”, com quase 30% das pessoas a convidar menos amigos e familiares para a sua casa e a reduzir as celebrações fora de casa (o que, novamente, se verifica sobretudo entre quem ganha menos).
Portugal tem Estado a menos
Se é verdade que as prestações sociais tiveram um papel decisivo para reduzir a pobreza no país, não deixa de ser verdade que a eficácia das transferências do Estado é baixa quando comparamos Portugal com o resto da União Europeia. O impacto das transferências sociais - com exceção das pensões - na redução da pobreza é de 22,4% em Portugal, significativamente abaixo da média europeia (34,15%).
Enquanto os países da UE, em média, conseguem retirar da pobreza 1 em cada 3 cidadãos que estariam nessa situação sem apoios sociais, em Portugal essa proporção é de apenas 1 em cada 5. Muitas prestações continuam a ter valores manifestamente insuficientes. Ao contrário do que se costuma ouvir no debate público, prestações como o RSI só pecam por defeito: cada beneficiário recebe, em média, €155 por mês com este apoio, o que os deixa muito longe de um rendimento digno.
Além disso, a crise do custo de vida reflete o subinvestimento público que marcou a última década. A oferta pública de serviços como a educação, a saúde, a habitação ou os transportes a custos acessíveis é uma ferramenta eficaz de combate à pobreza. Os serviços públicos constituem uma forma de “rendimento indireto”: libertam uma parte significativa do orçamento das pessoas que, de outra forma, teria de ser gasto no mercado. Uma estimativa da Oxfam sugere que o “rendimento indireto” dos serviços públicos reduz a desigualdade em 20% nos países da OCDE.
Em Portugal, ao longo da última década, registaram-se os níveis mais baixos de investimento público da história recente. Esta política de compressão do investimento público foi uma condição necessária para a obtenção de excedentes orçamentais. Neste contexto, Portugal não só se destacou como um dos países da UE com mais baixos níveis de investimento público, como parece condenado a permanecer na cauda da Europa: de acordo com o plano orçamental do atual governo para os próximos anos, Portugal é o país que se compromete a financiar o menor nível de investimento público em toda a União Europeia até 2028.
Com a opção por um Estado Social subfinanciado, as prestações em dinheiro ainda são insuficientes e a falta de investimento em serviços públicos faz com que muitas das pessoas que estão acima do limiar de pobreza enfrentem dificuldades cada vez maiores para assegurar despesas essenciais. Compreender as limitações dos indicadores é uma condição necessária para evitar leituras simplistas sobre a evolução da pobreza e das condições de vida no país. O próximo texto será dedicado ao outro lado da moeda: a evolução da riqueza.





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