terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Portugal e o défice... de investimento verde

O gráfico ao lado foi retirado de um estudo publicado num dos últimos boletins económicos do Banco Central Europeu (BCE). O que mostra são as necessidades de investimentos "verdes", isto é, os que promovem a sustentabilidade ambiental, nos vários países da Zona Euro. E o que podemos constatar é que Portugal se destaca como o país com maior défice deste tipo de investimentos, em especial no que diz respeito à eficiência energética (a laranja no gráfico).

O estudo de três economistas do banco central - Marien Ferdinandusse, Carolin Nerlich e Mar Delgado Téllez - identifica a insuficiência do investimento público relacionado com a sustentabilidade ambiental: representa apenas 1/4 do investimento público total na Zona Euro, o que corresponde a cerca de 1% do PIB da região.

Além de ser um dos países com maior défice de investimento verde, e apesar da ênfase dada pelo governo ao PRR, Portugal surge neste estudo como um dos países que destina menor percentagem dos fundos europeus a este tipo de investimentos. Isto acontece num contexto em que os fundos provenientes da União Europeia são cada vez mais utilizados para substituir, em vez de complementar, o investimento nacional: Portugal é também o país da UE onde os fundos europeus mais pesam no investimento público total, devido à restrição sistemática do investimento financiado pelo orçamento nacional.

É preciso ter em conta que os benefícios do investimento público tendem a superar o custo inicial. Uma estratégia de investimentos verdes permitiria não apenas combater as alterações climáticas, como também ajudar a diminuir a dependência energética do país face ao exterior, reduzindo o consumo de combustíveis fósseis importados e melhorando o saldo da balança comercial. Num país como Portugal, que tem elevados níveis de pobreza energética e onde quase 1/5 das pessoas não consegue aquecer a sua casa no inverno, este tipo de investimentos seria também um mecanismo de combate a esta desigualdade. Mas a obsessão em alcançar o défice zero (ou mesmo um excedente orçamental) continua a ser um travão ao investimento público necessário para responder aos verdadeiros défices estruturais do país.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Infraestrutura


As coisas são de tal forma sórdidas no capitalismo neoliberal luso que realmente o marxismo mais simples explica o essencial do que se passa. É por estas e por muitas outras que não se pode pensar e agir na superestrutura sem atentar nos que constroem e comandam a infraestrutura...

sábado, 28 de janeiro de 2023

Vantagens e capacidades


Na verdade, esta nova vantagem competitiva desleal [“deriva protecionista antieuropeia dos EUA”] vem acrescentar-se às que já existiam, nomeadamente energia mais barata, que a guerra da Ucrânia veio agravar, não sendo esta, aliás, a única desvantagem europeia resultante da invasão russa e das sanções e contrassanções dela resultantes. 

Será que Vital Moreira se apercebe da concessão que faz a perigosos “protecionistas”, como os que estão neste blogue? Se bem a entendo, a teoria (neo)liberal do comércio internacional, que geralmente subscreve, não advoga a replicação de medidas supostamente ineficientes de política industrial. Estas são tipicamente norte-americanas, chinesas ou de qualquer outro país que se preocupe ou passe a preocupar com as suas capacidades colectivas. Como bem assinalou Ricardo Paes Mamede, estamos perante o “regresso em força da política-cujo-nome-não-se-pode-pronunciar” também à boleia dos choques climáticos e geopolíticos. 

Haja esperança: pode ser que até Vital Moreira, com quem tendo a convergir no que à guerra na Ucrânia diz respeito, tenha regressado a uma visão mais realista e estratégica da política económica em sentido amplo, mesmo sabendo que a sua UE é demasiado internacional, heterogénea e cada vez mais dependente dos EUA para ser consequente na linha “protecionista” que sugere. E isto à boleia de um muito elástico “campo de jogo nivelado”.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Da verdadeira liberdade


«A propaganda da direita afirma que o socialismo é o inimigo da liberdade individual. Mas a verdade está precisamente nos antípodas dessa ideia: os socialistas trabalham para criar as condições materiais sob as quais as pessoas possam ser verdadeiramente livres, sem as rígidas restrições que o capitalismo impõe às suas vidas. (...) A direita conseguiu, de facto, apropriar-se do conceito de liberdade e usá-lo como arma na luta de classes, contra os socialistas.
(…) A sujeição do indivíduo ao controle do Estado, imposto pelo socialismo ou comunismo, é algo, dizem eles, a ser evitado a todo custo. A minha resposta é a de que não devemos desistir da ideia de liberdade individual como parte de um projeto socialista emancipatório. A conquista das liberdades individuais é um objetivo central desse projeto. Mas essa conquista implica a construção coletiva de uma sociedade onde cada qual tem as possibilidades necessárias para realizar o seu potencial.
(…) Para mim, esta é uma das questões-chave do nosso tempo. Queremos ir além das liberdades limitadas que o mercado oferece, manobrando as nossas vidas com as leis da oferta e da procura, ou aceitamos, como disse Margaret Thatcher, que não há alternativa? (…) O projeto de uma sociedade socialista não é, de modo nenhum, regular tudo na sociedade. O projeto de uma sociedade socialista é o de garantir que todas as necessidades básicas são atendidas - de forma gratuita - para que as pessoas possam fazer o que quiserem e quando quiserem
».

David Harvey, Socialists must be the champions of freedom

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Equívocos básicos das autoproclamadas criptomoedas (3)


O Banco de Portugal postou no twitter um vídeo onde explica que "as moedas virtuais não são verdadeiras moedas".

Primeiro, não devia referir-se às autodenominadas criptomoedas como moedas virtuais. Moedas virtuais são todas, mesmo que eventualmente acabem por se apresentar sob um suporte físico. Como escreveu Mitchell Innes no início do século XX, "o olho nunca viu nem a mão alguma vez tocou num dólar".

Mas enfim, é meritório informar toda a gente que, de facto, as "criptomoedas" não são nem podem ser moedas e apenas as acha como tal quem tem uma visão completamente aberrante sobre a história e a natureza da moeda.

Como seria de esperar quando se coloca em causa qualquer seita, as reações ao tweet são inflamadas. Decidi então fazer uma pequena seleção representativa que acompanho com alguns pequenos comentários meus:
«Este tweet faz-me lembrar que devia comprar mais Bitcoin. Obrigado»
Se estás com confiança, força. Afinal, o mercado está cheio de irracionalidades que às vezes permitem ganhar dinheiro. Isso não faz das "criptomoedas" moeda.
«É pena que estejam a lutar contra economias descentralizadas em vez de lutarem contra a verdadeira razão desta inflação, os EUA e o abuso na produção do dollar.»
É claro que os entusiastas das "criptos" leram algumas coisas de economia. São sempre defensores acérrimos de que "a inflação é, sempre e em qualquer lado, um fenómeno monetário." É normal que assim pensem porque os equívocos de base são os mesmos, a fé anarcocapitalista é a mesma.
«O euro é virtual (baseado na fé dos políticos), #Bitcoin é digital baseado em matemática»
A moeda é sempre baseada na confiança. Não é impossível a existência de uma moeda puramente privada, mas a história mostra que têm sempre uma circulação limitada. Apenas o soberano ou o Estado consegue impor essa confiança graças, em particular, ao seu poder coercivo (que lhe permite, por exemplo, cobrar impostos, forçando assim a procura pela moeda). Por outro lado, toda a moeda é baseada em matemática. Aliás, as duas coisas surgiram a par na antiga civilização Suméria.
«Como é que se chama a uma moeda que perde 98% do seu valor desde que foi criada?»
Isto eu já expliquei aqui. É suposto uma moeda depreciar no longo prazo. Ninguém gasta uma moeda que aprecia logo esta deixa de circular. A apreciação significa deflação, significa entesouramento, significa falência do sistema monetário, desemprego, crise, depressão.
«Agora façam um sobre os riscos reais de ter euros parados no banco durante uma vida.»
Os euros parados no banco durante uma vida são um investimento. Em condições normais oferecem uma taxa de juro ligeiramente acima da inflação. O retorno tende a ser baixo porque o risco também é mínimo, principalmente quando falamos de depósitos enquadrados na Garantia de Depósitos. Se alguém tem uma poupança e quer uma maior rentabilidade, deve investir noutra coisa e lida com o risco. Não é suposto o entesouramento dar lucro.
«Sabiam que o dinheiro que está no banco também não é dinheiro verdadeiro mas sim coisas que são impressas a bel prazer dos governos?»
Há aí umas confusões entre o que é impresso por quem. Mas é exatamente isso que é dinheiro desde há pelo menos 5000 anos: dívida emitida e aceite pelos Estados.
«Poderiam fazer um vídeo explicativo de reserva fracionária!»
A reserva fracionária consiste simplesmente em permitir aos Bancos privados a tal emissão de moeda sob a forma de depósitos à ordem, mantendo uma reserva de moeda de alta potência, ou seja, moeda emitida pelo Banco Central, que como tal, tem aceitação generalizada. É nesta moeda de alta potência que se garantem as transações entre diferentes bancos. Se estes fossem obrigados a manter uma reserva de 100% eram incapazes de financiar e fazer mover a economia. A incompreensão do que é um Banco é um dos pontos fortes dos entusiastas das "criptos".
«Sabia que todas as moedas são "virtuais"?»
Sabia que o BCE sempre que lhe dá na mona acrescenta dígitos numa base de dados?
Sabia que quem fala em "proibição" de transações de valor entre seres humanos é tirano?»
O BCE pode acrescentar dígitos numa base de dados. É esse o poder de emitir moeda. Qualquer Banco o pode fazer. Graças a isso, conseguem financiar projetos rentáveis que vão obter rendimentos que permitem pagar o empréstimo concedido fazendo girar aquilo que é uma Economia Monetária de Produção. Ninguém que proibir transações, mas deve ser uma frase vinda das mesmas fantasias libertárias anarcocapitalistas.
«Euro e o dólar não são verdadeiras moedas desde que deixaram de ser “backed” por ouro.»
Verdadeiras moedas não precisam de ser "backed" por coisa nenhuma que não a confiança. O ouro (entre outras coisas) pode ser e foi sempre apenas uma contragarantia em economias onde a confiança por vezes escasseava. Apesar disso, não era o ouro nem a promessa do ouro que constituíam a moeda. A moeda era sempre a unidade de valor virtual. Basta ver, por exemplo, que na idade média, uma moeda cunhada valia, sistematicamente mais do que o ouro ou prata de que era constituída. Quando calhava a valer menos, era fundida e o metal vendido a peso, normalmente para o estrangeiro.
«Então se n sao verdadeiras querem me explicar pk a vão taxar a 28%?»
Posso explicar. Os lucros taxados a 28% são os lucros em moeda fiduciária, que é aquela cujo valor e estabilidade vocês são obrigados a usar para contabilizar os lucros e perdas das vossas carteiras de "criptos".

Sem alienações teríamos um parque habitacional público de 4,5%

Que parque habitacional público teríamos hoje se, desde o início dos anos oitenta, não tivesse sido vendida uma parte do património habitacional do Estado? A resposta a esta questão pode ser estimada comparando a diferença entre a promoção pública de alojamentos e o número de fogos de habitação social existente em cada momento censitário, como ilustra o gráfico seguinte.


Nestes termos, se considerarmos que o parque habitacional público era composto por cerca de 122 mil unidades em 1981, e que na década de oitenta (1982 a 1991) foram construídos cerca de 34 mil fogos pelo Estado, seria de esperar que a oferta pública atingisse, nos Censos de 1991, um total de 156 mil fogos. Ou seja, cerca de mais 21 mil alojamentos que os recenseados nesse ano (a rondar os 134 mil).

Aplicando a mesma estimativa às décadas seguintes, até se chegar a 2021, obtém-se uma perda total de alojamentos sociais, por alienação, próxima dos 61 mil fogos. Isto é, o resultado da diferença entre o número de alojamentos que deveriam existir (se o Estado tivesse preservado, e não vendido, todos os fogos que construiu desde 1981) e o universo de fogos sociais existente em 2021 (cerca de 123 mil, um valor muito próximo, aliás, do registado em 1981).

Esta perda de 61 mil fogos de habitação pública, por alienação, faz com que o Estado disponha hoje de apenas cerca de 2/3 dos alojamentos que promoveu desde 1981, ajudando a perceber por que razão - para lá do persistente défice de promoção, que apenas agora está a ser invertido - o peso do parque público no total de alojamentos seja somente de 2% (um dos mais baixos a nível europeu), e não de 4,5%, a percentagem que teríamos hoje sem processos de alienação de património habitacional do Estado.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Coutada protegida


E se António Costa tivesse interferido nas decisões do Banco de Portugal sobre o BPI, como acusa o PSD, qual era o problema?

O primeiro-ministro foi democraticamente eleito, o governador foi escolhido pelo Governo. O PM pode e deve interferir na gestão do sector financeiro nacional, como sector económico fundamental para o bem-estar dos portugueses. O sector financeiro só é uma coutada protegida do poder político por causa de cânones (neo)liberais que - tal como a extrema-direita - considera todos os políticos (democraticamente eleitos) como estando sob suspeita, embora fechando os olhos à permeabilidade/promiscuidade entre o banco central e o sector financeiro.

Aliás, o Banco de Portugal deveria estar sob tutela do Ministério das Finanças do Governo de Portugal e não ser uma surcursal de uma instituição não eleita, governada de forma opaca, com sede algures na Alemanha, e que decide em última instância como deve ser ou não o sistema financeiro nacional.

Talvez seja tempo de romper com estas falsas ideias de independência política e recuperar a verdadeira soberania.

A democracia a sério não é liberal


Num discurso sobre o combate à extrema-direita, e para lá de uma curiosa crítica à “lógica de descobrirmos roupa suja uns dos outros” no bloco central, Augusto Santos Silva, putativo candidato presidencial do extremo-centro, também saiu em defesa da chamada democracia liberal, como é hábito de alguém que vem da Terceira Via. 

Contra esta linha, é preciso insistir nisto

Para além de atribuir à palavra liberal um prestígio imerecido, os que, à esquerda, usam equivocada e apologeticamente a designação «democracia liberal» para caracterizar a democracia saída da Revolução de Abril, esquecem que o liberalismo histórico sempre foi oligárquico, intrinsecamente desconfiando da participação popular e favorável a um capitalismo desigual, que facilmente desagua em formas autoritárias, particularmente em contexto de crise e nas periferias. 

A nossa democracia superou originalmente o liberalismo histórico, porque se propôs suplantar uma forma de capitalismo que não dava resposta às aspirações de liberdades reais para todos, incluindo nos espaços onde se trabalha, tantas vezes furtados a avaliação do que se pode ser e fazer. 

As origens revolucionárias do nosso regime constitucional democrático, de matriz tão antifascista quanto antiliberal, explicam que na narrativa liberal, «o socialismo» seja o nome da situação em vigor até aos dias de hoje. A contra-revolução neoliberal nunca teria existido. As intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI), a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) e às suas imposições liberalizadoras totais no campo económico e financeiro, particularmente no quadro da União Europeia, as privatizações maciças desde o cavaquismo, a adesão ao euro, e a correspondente perda de instrumentos de política económica, nunca teriam existido. 

Enquanto existirem concessões colectivistas no capitalismo português, mesmo que enfraquecidas, da Segurança Social a um mínimo de provisão pública desmercadorizada, esta gente não descansa ideologicamente e daí a insistência convergente da IL e do Chega em projectos de ainda maior descaracterização constitucional. 

E, já agora, insistir também nisto: 

A austeridade, seja na versão de desvalorização interna da troika, seja na actual versão de austeridade real, abre o caminho à extrema-direita.

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Também na habitação, não pinga e não é doce


A vulnerabilidade dos inquilinos, devido a sucessivas rondas de liberalização, é cada vez maior. Solução da fundação pingo doce? Mais liberalização, claro. O dinheiro concentrado em poucas mãos paga estudos que escapam à ética da responsabilidade, contra toda a evidência, mobilizada, por exemplo por Nuno Serra ou por Ana Cordeiro Santos. O importante é manter a utopia liberal viva, ou seja, transferir cada vez mais direitos sociais para a propriedade, reduzindo as suas obrigações sociais. 

O estudo da fundação pingo doce é de resto da irresponsabilidade de um antigo Presidente do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, ao tempo em que o governo da troika fazia definhar o IHRU, degradando os serviços e o seu escasso parque público. O mesmo círculo vicioso de sempre.

Agora, vem dizer, qual fanático da IL, que os custos sociais do que é na prática uma distopia se devem à intervenção do Estado, de resto sempre necessária para que exista o tão propalado mercado. O truque é simples e está testado há décadas. Só é preciso dinheiro para o repetir as vezes que forem necessárias, até para bloquear reversões e avanços regulatórios que reconheçam a realidade da sociedade, superando esta rematada distopia neoliberal.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Crise de habitação e o mito do excesso de Estado e de regulação

O Expresso publicou, recentemente, uma sondagem com resultados interessantes, que demonstram haver hoje, na opinião pública, uma muito escassa adesão à tese de que existe um excesso de Estado e de regulação do mercado habitacional em Portugal. Uma tese, velha e relha, segundo a qual são esses excessos de intervenção pública no setor que impedem que o mercado funcione, gerando crises de habitação.

Ora, o que a sondagem do Expresso mostra é que existe hoje em Portugal não só um amplo consenso quanto ao défice estrutural de investimento público direto no setor (85%), mas também de regulação (78%), apenas depois surgindo, no conjunto de causas estruturais da crise, a «falta de casas» (que importa, de resto, analisar cuidadosamente). Note-se, aliás, que apenas 38% dos inquiridos atribuem a este último fator um elevado impacto na situação atual, aquém, portanto, dos valores observados no caso do défice de investimento público (52%) e da falta de regulação (44%).


Por outro lado, é no aumento da oferta de Alojamento Local (apontado por 71% dos inquiridos), nos incentivos à compra de casas por cidadãos estrangeiros (64%) e no investimento dos fundos imobiliários (56%), que incidem, de acordo com os resultados da sondagem, as principais causas conjunturais da crise de habitação que o país atravessa.

Não surpreende, portanto, que entre as respostas tidas como necessárias para enfrentar a situação surja o aumento do investimento público (defendido por 91% dos inquiridos) e a adoção de medidas orientadas para uma maior regulação do mercado, incluindo a limitação dos valores das rendas (87%), a fixação de quotas de casas a preços acessíveis em novos empreendimentos (86%) ou a redução das licenças de Alojamento Local (68%). Ou seja, questões como a agilização dos licenciamentos, enquanto resposta prioritária para ultrapassar a crise, tão cara à direita, não têm a relevância que se quer fazer crer.


É bem sabido que, historicamente, a resolução da questão da habitação em Portugal foi deixada às mãos do mercado, ao contrário do que sucedeu com a saúde e a educação. Tal como é sabido que essa opção foi muitas vezes aditivada por subsidiação pública (como no caso dos apoios à aquisição de casa própria), sem que tal tenha sequer permitido reduzir preços e tornar a habitação mais acessível. E que, por fim, só muito recentemente se começou a apostar no reforço do parque habitacional público, um dos mais diminutos à escala europeia.

Por isso, o que os dados desta sondagem vêm demonstrar é que já se percebeu, finalmente, que há Estado a menos e mercado a mais na habitação em Portugal. E que importa por isso, no contexto atual - marcado por dinâmicas de investimento imobiliário especulativo (que atravessam aliás toda a Europa) - adotar mecanismos de regulação do mercado, para lá da indispensável constituição, gradual, de um verdadeiro parque público de habitação.

domingo, 22 de janeiro de 2023

O diagnóstico, a solução, a ignorância e a demogogia


Por que razão o recém-eleito dirigente da extrema-direita económica - ao clamar que "não se aguenta mais" - não tem a coragem de dizer o que quer fazer com o SNS, a saúde universal, a escola pública universal, a Segurança Social pública e universal, com o funcionalismo público? Ou como pensa acabar com duas décadas de estagnação económica? Qual é pois, e ao fim de tantos anos de militância liberal, o seu diagnóstico?

A resposta mais óbvia é: não sabe.

Duvida? Questionado pela RTP sobre o que ia fazer, o recém-eleito Rui Rocha, disse:
"Vou fazer um diagnóstico daquilo que é o país e vou dizer que a IL é a única alternativa hoje para ter uma país completamente diferente"...

Palavras para quê? 

Rui Rocha apresenta-se já hoje como alternativa antes mesmo de saber a quê. Propõe um sabonete que lava mais branco, mas sem perceber qual a natureza das nódoas. São de óleo, azeite, leite, vinagre, vinho, gordura? Não sabe. Apenas sabe que são nódoas e que está contra as nódoas. Assim é fácil. Mas imaturo e demagógico. 

Mas isto nem sequer é original. Recordam-se da campanha eleitoral de 2002, abertas quando António Guterres se demitiu a 16/12/2001 na sequência das eleições autárquicas, e Durão Barroso apareceu à frente do PSD defendendo uma redução da despesa pública? Que ia realizar uma auditoria às contas públicas para que fosse possível cortar nas "gorduras do Estado". Que ia transformar o país. Mas mal foi eleito, a dita auditoria não foi realizada porque... era impossível realizá-la (como já se sabia!) e a estratégia económica liberal foi reduzir o défice público (cortando no investimento público e nos apoios sociais), aprovar um Código do Trabalho (elaborado em out-sourcing por um escritório de advogados e defendido pelo ministro próximo do CDS Bagão Félix) que veio provocar uma desvalorização salarial que está na causa da situação social dos trabalhadores que a IL tanto contesta. E pouco depois, foi convidado para presidente da Comissão Europeia.

Passos Coelho teve, na campanha eleitoral de 2011, um discurso muito semelhante ao da IL. Disse que não ia cortar em nada. Que não era preciso. Mas quando foi eleito e se combinou com o CDS para governar, realizou o plano mais liberal e mais duro até então realizado. Cortou vencimentos, pensões, desbastou o investimento público, desinvestiu nos serviços públicos, na escola e na saúde públicas, agravou impostos sobre os trabalhadores. E foram aprovadas novas mexidas na lei laboral que aprofundaram a desvalorização salarial, e abriram o mercado da habitação de tal forma que os jovens portugueses já não encontram habitação para os baixos salários que recebem. Tudo críticas que a IL tanto faz, que Rui Rocha fez no seu discurso na Convenção Nacional da IL, embora nada dizendo sobre o passado liberal destas medidas que não sabe ou, sabendo, escamoteia.

A extrema-direita é - sempre foi - um camaleão político que vai adoptando as cores dos estratos sociais mais descontentes e desesperados, como forma de os aliciar, mas sem ter um programa consistente de mudança política que não seja "partir tudo", para de novo o entregar à "elite" nacional que a financia.

A dúvida, portanto, é perceber: quem são os financiadores da IL?

Ficámos a saber


Esta semana ficámos a saber que “16 países europeus já têm controlo de rendas”.

Esta semana, ficámos a saber que o “poder de compra do trabalho [está] estagnado há 20 anos, [mas] Medina rejeita necessidade de novo reforço”.

Esta semana ficámos a saber que a alternativa ao proscrito controlo democrático de preços em sectores cruciais é o controlo autoritário de preços por parte das grandes empresas desses sectores.

Não há semana em que não fiquemos a saber que Portugal é um país causticado por iniciativas liberais. São décadas nisto, desde as “reformas da década” do cavaquismo, feitas de privatizações, liberalizações, reduções dos direitos laborais e preparação para a adesão a uma moeda forte.

No entanto, para cultivar a desmemória, não há semana em que não nos digam que o liberalismo económico nunca existiu em Portugal.

sábado, 21 de janeiro de 2023

A receita neoliberal para as pensões

 

A receita neoliberal para melhorar o sistema de pensões foi imposta aos franceses: aumento da idade da reforma, entre outras medidas. Claro que há outras formas de melhorar o sistema, mas isso obrigaria a pôr termo ao sistema económico neoliberal. 

Implicaria executar uma política económica expansionista para criar emprego, acabar com a precariedade no trabalho, aumentar o investimento público na habitação e na rede de creches e infantários, etc. Investir em tudo o que hoje impede as famílias jovens de terem os filhos que desejam. 

Mais contribuintes para a segurança social no imediato (pleno emprego) e a médio prazo (investimento público para apoio às famílias) e aumento da produtividade do trabalho com a reindustrialização do país (salários e contribuições maiores), são políticas que o Estado neoliberal rejeita porque põem em causa o "projecto europeu". 

Só nos resta derrubar este regime neoliberal, na rua e nas eleições.

(Foto: manifestação em Paris, 5ª feira, 19 janeiro 2023)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Empresarialmente correto


Foi recentemente divulgado um estudo que confirma, de forma clara, o que já se sabia há alguns anos: a ExxonMobil, a gigante empresa norte-americana do capitalismo fóssil, dispunha, desde os anos 1970, de investigação científica interna com rigorosa capacidade preditiva e explicativa sobre as alterações climáticas e suas relações com a queima de combustíveis fósseis. 

Trata-se da mesma empresa que financiou com milhões e milhões de dólares um ecossistema de iniciativas liberais negacionista das alterações climáticas, sendo um ator político maior da batalha contra incursões regulatórias e fiscais que pudessem condicionar a sua discricionariedade. Rex Tillerson, líder desta empresa entre 2006 e 2017, foi secretário de Estado de Donald Trump, entre 2017 e 2018: as notícias falsas têm uma base material. Os EUA são há muito uma plutocracia, de resto imitados pela UE.

O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Contributos para a Economia Política da Moeda


Acabei de ler o importante livro de Stefan Eich The Currency of Politics: The Political Theory of Money from Aristotle to Keynes.

É mais um livro a somar a tantos que têm surgido nos últimos anos a relembrar o carácter eminentemente político da moeda. Costuma-se dizer que a Filosofia Política se pode resumir em 2 perguntas: «Quem fica com o quê?» e «Quem disse?». É inequívoco que a forma como as sociedades criam e gerem a sua moeda é central para as respostas que se dão a estas perguntas.

O atual sistema monetário não caiu do céu. É uma criação política com o auxílio precioso de uma certa Economia Política que o justifica. Eich conta a história de importantes controvérsias que puseram a descoberto o carácter político da moeda, desde Aristóteles, passando por Locke, Fichte, Marx, Keynes, até ao sistema atual, pós-Bretton Woods. A constante desta história é a tentativa de diferentes lados em tentar controlar o que é a moeda e quem deve gerir a sua criação e de acordo com que regras. 

As diferentes soluções tiveram sempre importantes implicações distributivas, tanto de riqueza como de poder no seio das sociedades. Portanto, controlar a moeda foi sempre um aspeto central das lutas sociais que marcaram a história. Maiorias empobrecidas lutavam contra a escassez de dinheiro, contra os usurários, contra as rendas elevadas, contra os impostos. Soberanos tentavam expandir a quantidade de dinheiro para cumprir os seus objetivos de guerra, expansão ou luxo. Nobres, clero e outros detentores de capital financeiro, procuravam garantir a escassez de moeda e a estabilidade dos preços (ou até a deflação) para aumentar os seus rendimentos reais e importarem bens de luxo mais baratos. 

É nestes contextos que, em cada momento, se esgrimiram argumentos teóricos sobre a origem, natureza funções e funcionamento da moeda, para servir a cada um dos interesses em questão. Em grande medida é sobre estes argumentos que se fundou a própria economia política.

A posição que tendeu a triunfar nos últimos séculos foi a da despolitização da moeda - a ideia de que a moeda é uma mercadoria e como tal, pertence ao domínio (natural) do económico, devendo ser deixada à liberdade do mercado. Esta ideia começou por se consubstanciar numa limitação ao poder do soberano medieval, até cristalizar no modelo mais rígido do Padrão-Ouro depois de Locke. Autores como von Mises ou Hayek tentaram levar esta teoria ainda mais longe com propostas de privatização total do sistema monetário.

A mensagem central do livro é, então, a de que é necessário resgatar a moeda para a democracia, tal como sujeitamos à democracia as restantes instituições políticas. Isto é, se a moeda é política, temos de a incluir nas perguntas sobre quem fica com o quê e quem disse. 

Como afirma Eich (em tradução livre):

A fim de fortalecer a nossa capacidade de sujeitar o poder financeiro ao escrutínio democrático, precisamos primeiro de tornar esse poder visível e, em seguida, articular como atualmente fica aquém das suas próprias possibilidades democráticas. A fim de transformar uma crítica moralista defensiva da mercadorização da moeda num programa positivo de contestação democrática do poder de dinheiro, precisamos de atender aos momentos precisos em que o dinheiro se torna um meio de dominação e deixa de ser a "corrente" da política.

A política da moeda ficou evidente, no passado recente, quando as decisões do BCE tiveram fortes implicações para os países da periferia europeia, como Portugal, sujeitos a planos de ajustamento criminosos que aliviaram apenas quando o mesmo BCE decidiu finalmente agir como um Banco Central, financiando (mesmo que indiretamente) os Estados sujeitos à chantagem dos mercados financeiros. A sujeição dos Estados aos ditames dos mercados financeiros também não caiu do céu. As escolhas dos Estados são muito maiores a não ser quando se colocam a si próprios numa camisa de forças como essa. As possibilidades das respostas à pandemia são uma provas inequívocas disso. 

Esta obra é, portanto, um ótimo antídoto contra as falácias da independência dos Bancos Centrais, teorias da neutralidade da moeda, teorias da liberalização do comércio internacional, criptomoedas supostamente independentes, a TINA, as medidas de austeridade, os ajustamentos salariais, entre tantas outras que infestam o pensamento atual e procuram sempre reduzir o horizonte das nossas possibilidades de escolha coletiva democrática.

Na situação atual, fica clara a necessidade de recuperar o trabalho de Keynes e as suas propostas de transformação dos sistemas monetários nacionais (recuperando o papel das políticas públicas) e internacionais (recuperando o papel da cooperação).

Eich, professor de Teoria Política, dá um precioso contributo nesse sentido. Faz falta um contributo equivalente do lado da Economia. 


Tudo corre bem no melhor dos mundos


As coisas estão a correr mesmo bem aos que vão a Davos de jato. É o capitalismo realmente existente, sem medo de alternativas reais.

Para lá do financiamento do negacionismo climático, basta algum branqueamento ecológico, incluindo inócuos mercados de emissões, que é para isso que serve a economia convencional na melhor das hipóteses. Vai ficar tudo bem.

A banca privada mostra, de resto, como se trabalha voluntariamente: Bancos comprometidos com “emissões zero” emprestam milhões a combustíveis fósseis.

E é preciso não esquecer as maravilhas do chamado capital natural, passível de ser substituído e trocado, legitimando também as chamadas compensações por emissões, que agora se revela serem, vejam lá, uma fraude.

Notem, de passagem, a regra da economia convencional: todas as esferas podem ser tratadas como se fossem capitais, da natural à social, desde que não se fale do capital que conta, da relação social fundamental do capitalismo. E para quê falar? A História terminou e é mais conveniente falar de economias de mercado.

E, sim, fazem de tudo para esconjurar o espectro do planeamento ecossocialista. Têm sido bem-sucedidos. Até agora, está tudo a correr bem no melhor dos mundos.

O que o ministro da Economia não disse sobre a inovação

 

O ministro da Economia foi esta semana ao parlamento falar de inovação. Infelizmente, ficou-se por alguns chavões com pouca substância, como a ideia de que "os Estados normalmente não são bons acionistas" ou a de que "são as tecnologias que transformam o mundo", sem grandes explicações. No entanto, a economia da inovação é um ótimo tema de conversa. Começando pelo início: as grandes inovações são, e sempre foram, promovidas fundamentalmente pelo Estado.

A maioria das inovações tecnológicas disruptivas tiveram na sua base a investigação financiada e realizada por empresas públicas ou os resultados que estas alcançaram. O caso dos componentes do Iphone, popularizado num dos livros da economista Mariana Mazzucato, é um bom exemplo desse processo. O investimento em investigação inovadora é arriscado e os resultados estão envoltos em enorme incerteza, o que tende a afastar o investimento privado. O Estado é quem tem capacidade para privilegiar a potencial utilidade da investigação para a sociedade, em detrimento do lucro imediato.

Outro exemplo útil para este debate é o das vacinas contra o COVID-19: apesar de terem garantido enormes lucros às grandes farmacêuticas que estiveram envolvidas no processo, a investigação inicial, na fase em que era mais arriscada e incerta, foi maioritariamente financiada pelos governos. O financiamento público foi mobilizado de forma massiva para evitar a experiência de outros surtos, como o da Ébola, em que a iniciativa privada investiu muito pouco por não considerar os projetos rentáveis. A rapidez no desenvolvimento e produção de vacinas contra o COVID, um passo essencial para o combate à pandemia, só aconteceu porque o processo não foi deixado entregue ao mercado.

Um outro aspeto da economia da inovação é que tem uma relação importante com os modelos de regulação laboral. Os estudos que têm sido feitos sobre o desempenho das empresas nos países da Zona Euro apontam para que a capacidade de inovar seja menor em empresas com mais contratos a prazo. Olhando para o desempenho das economias industrializadas, um estudo dos economistas Servaas Storm e Ro Naastepad concluiu que, entre 1984 e 2004, o crescimento da produtividade do trabalho foi superior nos países da OCDE com regulação laboral relativamente mais robusta.

Há boas pistas para o explicar: por um lado, trabalhadores com vínculos estáveis têm mais capacidade de adquirir e aplicar conhecimento específico sobre o processo produtivo, além de se sentirem mais integrados no contexto laboral, o que promove a cooperação. Por outro lado, a proteção laboral incentiva as empresas a investir na formação dos trabalhadores, promovendo as qualificações e a produtividade. A tendência de estagnação da produtividade nos últimos anos não é alheia ao aumento da precariedade.


O que isto significa é que o Estado desempenha um papel central nos processos de inovação. Pode desenvolver e fomentar projetos de investigação e reforçar a legislação laboral para promover melhores relações de trabalho e garantir que haja uma distribuição mais justa dos ganhos. Ou então pode apostar em benefícios fiscais de duvidosa eficácia para as empresas. O governo português tem preferido apostar na isenção de IRC para receitas de patentes, que tem dado muito poucos resultados na Europa, enquanto restringe o investimento público na investigação, deixando o país na cauda da Europa neste indicador. É esse o debate que interessava fazer e ao qual o ministro fugiu.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

"Podemos ter essa discussão"

Do filme "A organização internacional"

Como é que o neoliberalismo "de esquerda" olha o debate que hoje se deu no Parlamento sobre a TAP? 

A jornalista da Antena 1 perguntou à economista Susana Peralta, da Nova School of Business and Economics - o nome é mesmo em inglês - quais as dúvidas por esclarecer junto da presidente da TAP, hoje ouvida na comissão parlamentar de inquérito. 

A economista adiantou que "se se quiser, podemos ter essa discussão" sobre os níveis salariais praticados, mas o que lhe parece mais relevante é: 1) Por que razão a presidente da TAP não comunicou ao supervisor do mercado (CMVM) informações correctas relativas ao afastamento da administradora? 2) Estava o ministro das Finanças efetivamente na ignorância, tal como o afirma o actual ministro Fernando Medina e o ex-ministro João Leão? Que comunicação houve com a tutela?; 3) E, depois, há o tipo de gestão da actual administração da TAP, ou seja, os sinais de gastos sumptuários (frota automóvel, contratações de amigos, mudança de instalações, etc.)

Assim, a olho nu, Susana Peralta parece ser mais uma economista neoliberal escandalizada, sim, com a mentira ao regulador do mercado e com e eventual cumplicidade da tutela nessa mentira, do que com todo o ambiente socio-empresarial-político que viabiliza uma escandalosa indemnização tanto milionária como ilegal, recebida pela administradora, ao arrepio do que está a acontecer aos trabalhadores da empresa. 

Nas suas palavras, parece ser pouco relevante que uma empresa pública pratique níveis salariais tão díspares entre administradores e trabalhadores, a ponto de uma compensação por despedimento atingir valores de 1,5 milhões de euros para cerca de dois anos de trabalho ("podemos ter essa discussão"). É pouco relevante que haja regras distintas de compensação por despedimento entre os trabalhadores, os trabalhadores alvo de reestruturação e os administradores que decidem sair da empresa por vontade própria ou empurrados para a rua ("podemos ter essa discussão"). É pouco relevante que um plano de reestruturação de uma empresa pública, cujo conteúdo não é conhecido e cujos moldes danosos foram em parte impostos por instâncias europeias, preveja cortes salariais e despedimentos a grupos significativos dos seus trabalhadores, mas pouco tenha feito para criar uma justa repartição da massa salarial ("podemos ter essa discussão"). É pouco relevante que a CEO da TAP, escolhida de modo forçado em concurso internacional, tenha afinal um estatuto remuneratório, incluindo prémio e bónus, que sejam desconhecidos e tornados clandestinos aos olhos dos portugueses ("podemos ter essa discussão"). É pouco relevante que, à semelhança do que se passa nas grandes empresas privadas, esse grupo de administradores tenda a constituir-se numa espécie de casta social privilegiada intocável, num grupo fechado que vai rodando entre empresas independentemente do seu desempenho e mérito, desnate assim a empresa com benefícios remuneratórios pornográficos, mesmo que a empresas esteja a ter prejuízos,  mesmo que haja despedimentos em massa, tudo em nome da competitividade externa das contratações, que permita a livre circulação de quadros superiores ("podemos ter essa discussão"). É pouco relevante que essas instituições externas não eleitas que marcaram o conteúdo de uma plano de reestruturação - que ninguém conhece - tenham a preocupação de impor soluções gravosas, sem olhar aos seus efeitos sociais e humanos, na própria empresa ou mesmo à luz do próprio enquadramento legal, a ponto de mais tarde serem revertidos pelos tribunais ("podemos ter essa discussão"). É pouco relevante que este tipo de planos seja imposto por opacas instituições não eleitas, externas ao país (Comissão Europeia), levadas a cabo por quadros do nível de um director-geral, que se sobrepõem ao poder soberano de um Estado e dos seus responsáveis, limitando-lhe o grau de acção e impondo decisões danosas de gestão numa empresa pública - de um Estado soberano! -, tudo em benefício dos seus concorrentes, respaldados em cardápios ideológicos mascarados de técnicos, erguidos sobre os alegados malefícios da intervenção pública e do papel dos políticos eleitos pela população ("podemos ter essa discussão").

Parece, pois, que se há uma brutal desigualdade social no país e no mundo, gerado por um modelo dominante em colapso - a ponto de milionários pedirem para que sejam tributados antes que seja tarde demais -, isso também se deve ao tipo de comentadores que se vai promovendo nos meios de comunicação social.

Sete razões para os protestos dos professores

Não é preciso muita imaginação para perceber as razões do protesto dos professores:

1. Precariedade dos professores contratados (são 20% do total de docentes; podem demorar mais de 16 anos a conseguir aceder à carreira, arriscando-se a saltar de escola em escola até lá; recebem em termos líquidos cerca de mil euros por mês, tendo com frequência de suportar despesas acrescidas de deslocação e estadia).
 
2. Deslocações dos professores efectivos em quadros de zona pedagógica (não apenas os contratados, mas também muitos docentes de carreira chegam a fazer deslocações diárias de 200 quilómetros).
 
3. Entraves à progressão na carreira (um professor com 50 anos de idade e 25 anos de tempo de serviço em geral não foi além do 4º escalão, levando para casa entre 1000 e 1400 euros; mesmo que tenham sido um excelente professor em todos os anos que ensinou, com grande probabilidade nunca chegará ao topo da carreira).
 
4. Sistema de avaliação (é pouco útil como instrumento de melhoria de desempenho, não premeia os melhores e não permite afastar do sistema aqueles que não deviam ser professores).
 
5. Perda de poder de compra (tal como os restantes funcionários públicos, tiveram os salários nominais congelados praticamente todos os anos desde 2000; por cima disto, só em 2022 perderam pelo menos 5% do seu poder de compra). 
 
6. Degradação das condições de trabalho (a perda real de salários e o congelamento das carreiras dos professores aconteceram ao mesmo tempo que aumentava o número de alunos por turma, aumentava a carga lectiva e burocrática, deixavam de beneficiar de reduções de horário por motivos de idade, aumentava a escolaridade obrigatória - e com ela os problemas sociais e disciplinares com que as escolas têm de lidar - diminuía nas escolas o número de auxiliares e de técnicos especializados - psicólogos, assistentes sociais, etc.).
 
7. Perda de estatuto social (a acrescer à precariedade, à perda de poder de compra e à degradação das condições de trabalho dos professores, sucessivos governos não hesitaram em atacar a classe docente, tentando assim legitimar os cortes orçamentais que impunham no sector; em 2019, numa manobra que prenunciava o fim da Geringonça, António Costa ameaçou demitir-se caso o Parlamento aprovasse qualquer reconhecimento do tempo de serviço que tinha sido congelado, não resistindo à tentação de tratar os professores como “privilegiados”).
 
Sete razões são suficientes para justificar o protesto dos professores. A questão agora é saber i) se o governo está em condições de perceber e dar resposta às razões do protesto, ii) se os sindicatos têm uma atitude construtiva nas negociações (e.g., levando propostas suas para a discussão) e iii) se os professores se deixam levar por quem está mais interessado em fazer o protesto pelo protesto do que em fazer avançar as condições de trabalho nas escolas. Há que ter esperança.
 

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Tristemente reveladora



Acabei de assistir a uma cena tristemente reveladora: uma funcionária dos CTT a tentar impingir uma raspadinha a uma senhora idosa. O serviço de correios foi privatizado e é cada vez menos fiável a todos os níveis. A destruição do serviço público e da sua ética, substituídos por incentivos para vender toda a espécie de porcaria, acentuam a desconfiança e a insegurança populares.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A descida do IVA é a solução para baixar os preços?

 

A escalada da inflação ao longo do último ano, sem que os salários acompanhassem a subida dos preços, tornou a generalidade dos produtos mais caros para a maioria das pessoas. Ultimamente, há quem defenda que se deve reduzir a taxa de IVA aplicada a alguns bens, em especial aqueles que são considerados essenciais e onde a inflação se tem concentrado, como a energia ou os bens alimentares. A ideia é que, reduzindo o IVA, o Estado poderia ajudar a diminuir o custo destes produtos.

Embora o objetivo seja acertado, o problema desta medida é que não garante que os produtos se tornem mais baratos. Na verdade, a evidência empírica diz-nos que as empresas se apropriam de boa parte da descida do IVA e que a repercussão nos preços é muito reduzida. Os economistas Youssef Benzarti, Dorian Carloni, Jarkko Harju e Tuomas Kosonen analisaram recentemente todas as alterações do IVA nos países da UE entre 1996 e 2015. E a conclusão a que chegaram foi que os preços tendem a subir bastante mais quando o IVA aumenta do que o que descem quando este diminui. A repercussão nos preços após uma descida do IVA foi de apenas 13%, em média, no período em análise.

O caso dos cabeleireiros na Finlândia é ilustrativo: embora os preços tenham diminuído um pouco após a descida do IVA por parte do governo, aumentaram quase o dobro quando a taxa voltou ao normal. Os preços acabaram por ficar acima dos registados antes do corte temporário do IVA. O estudo mostra também que os lucros dos cabeleireiros tiveram tendência a aumentar em resultado da redução do IVA. Por outras palavras, as empresas apropriaram-se de uma parte da descida do imposto em vez de a repercutirem nos preços que cobram.

A capacidade das empresas se apropriarem de parte da descida do IVA depende, entre outros fatores, da sua dimensão e do grau de concentração do mercado em que operam. Não é difícil adivinhar o que aconteceria em Portugal em setores como o da distribuição, onde os grandes supermercados têm sido frequentemente multados pelo envolvimento em esquemas de conluio e concertação de preços. De resto, já temos o exemplo das bicicletas, onde o IVA desceu de 23% para 6% no início do ano mas os preços não o acompanharam em todas as lojas.

Aprovar uma redução do IVA sem medidas de controlo de preços tem tudo para ser pouco eficaz: o impacto nos preços tende a ser reduzido, as empresas aumentam as margens e o Estado perde receita fiscal. A intervenção pública tem de ser mais abrangente para evitar uma mera transferência de rendimento para as grandes empresas.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Para lá do empresarialmente correcto


Uma notícia de economia política internacional que marcou esta semana: “projecções feitas nos anos 70 e 80 pelos cientistas da ExxonMobil previram o aquecimento global”. Esta multinacional norte-americana é um dos símbolos do capitalismo fóssil e tem precisamente financiado o negacionismo em relação às alterações climáticas. Hoje, trata-se também de bloquear o avanço do planeamento ecológico urgente, através de armadilhas como a responsabilidade social das empresas e outras formas de branqueamento socioecológico. 

Ao contrário do discurso do empresarialmente correcto, é urgente reconhecer que a grande empresa capitalista é uma forma de governo autoritário, que concentra poder e conhecimento e que tem de ser interna e externamente escrutinada e democratizada, através de freios e contrapesos sociais e estatais pelos menos tão poderosos. Muitas vezes a nacionalização é a melhor forma de o fazer, já que a regulação tende a ser pilotada pelas grandes empresas em sectores cruciais. Sim, por cá teremos de renacionalizar o capitalismo fóssil de Amorim e companhia se o quisermos controlar, redimensionar e redirecionar de forma acelerada. 

Infelizmente, a economia convencional, que frequentemente não passa de uma racionalização do privilégio e da hierarquia, procura ofuscar as relações de poder, tratando a empresa como se fosse uma entidade apolítica submersa em mercados, uma rede de contratos, e subestimando os custos sociais crescentes das actividades predatórias deste actor político maior em múltiplas áreas.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

James Crotty (1940-2023)


Faleceu esta semana um dos nomes maiores de um dos principais, e raros, departamentos de economia dominado por perspetivas críticas, na Universidade de Massachusetts Ahmrest (EUA). Desenvolvendo as convergências entre as tradições marxistas e keynesianas, Crotty cruzou a macroeconomia com a economia política e a política económica. São raros os cientistas sociais que escrevem o seu principal livro no final de uma carreira longa, de dezenas de anos, mas creio que foi isso que aconteceu com Crotty.

De facto, a sua escrupulosa escalpelização do pensamento de Keynes, da análise económica às prescrições de política, avança com uma interpretação que enfatiza a crítica ao capitalismo e a sua radical superação do liberalismo económico para salvar e aprofundar as liberdades políticas. Crotty como que transporta essa reflexão para o presente, ao mostrar a sua pertinência e isto sem cair no anacronismo. Keynes falou de “socialização do investimento” e de “eutanásia do rentista” na Teoria Geral e, pontualmente, declarou-se um “socialista liberal”.

Crotty não deixou nenhuma pedra por virar para argumentar que tais fórmulas implicaram ao longo de anos uma defesa de certas formas de coordenação política da economia, de planeamento. E que estas estão ao serviço do pleno emprego, da redução das desigualdades ou da desmercadorização e desfinanceirização de bens e serviços, num quadro de desglobalização pragmática. Têm por isso implicações portentosas. Independentemente de questões interpretativas, este é um livro fundamental para um debate económico informado, para uma história do pensamento económico enquanto conversa ao longo do tempo entre vivos e mortos.

Aos ombros de gigantes esteve um economista político exemplar. Sigamos o seu exemplo.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Lembrete sobre a caixinha mágica


Uma pequena nota para relembrar que o Bloco de Esquerda, com uma representação política que já foi duas vezes superior à da IL, nunca mereceu que o seu debate interno tivesse honras de espaço televisivo ou radiofónico, em modelo frente a frente, como este último partido está agora a merecer. Para não nos esquecermos que há um campo político que vinga pela mão do sistema mediático e outro que vinga apesar dele.

Claro que a ERC, responsável por condenar um humorista que se recusou a convidar um fascista para o seu programa, não verá nenhum problema. Comunicação social destinada à reprodução social das ideias dominantes com regulação a fingir é mesmo assim. Longa vida aos elevados valores de igualdade no debate da nossa "democracia liberal".

Três notas de nojo


1. Amílcar Correia – “Rita Marques e um mês e meio de nojo” – distancia-se da vulgata neoliberal típica dos editoriais do Público escritos por Manuel Carvalho. Valoriza uma noção de serviço público nos antípodas do individualismo possessivo promovido pela lógica do mercado sem fim que vem do cavaquismo (e daí as sanções fracas para uma corrosão de carácter cada vez mais forte).

2. Infelizmente, como as declarações de Luís de Sousa ilustram, quem se dedica à “transparência” continua a dar para o peditório das “regras de mercado concorrencial”, sem se aperceber que a corrupção institucionalizada que denuncia é o produto do alastramento dessas mesmas regras, na medida em que as empresas têm cada vez mais incentivos para lançar mão de todos os expedientes. É assim que podem ganhar vantagem num contexto de concorrência generalizada, de luta de todos contra todos.

3. O PS bem que pode distanciar-se de Rita “somos um país muito sexy, apetitoso para estrangeiros” Marques, mas esta antiga Secretária de Estado do Turismo encarna o deslumbramento governamental com um sector estruturalmente pouco produtivo e com patrões que querem ir sempre para lá da troika na promoção da selvajaria laboral. Um P sem S que só pensa em seduzir estrangeiros ricos, favorecendo um ambiente institucional tão insalubre quanto desigual, propenso a toda a corrosão dos valores republicanos que estavam na base da sua matriz política.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Quanto custa um gestor?


A recente polémica em torno da TAP e da indemnização paga a uma das administradoras é um bom pretexto para recuperar o debate sobre leques salariais nas empresas. Os enormes salários da maioria dos gestores, administradores e CEOs, sem qualquer relação convincente com o mérito ou a produtividade, são o que está por detrás de enormes indemnizações. E isto significa que o problema também se pode combater a montante.

Entre 2010 e 2017, os gestores de topo viram o seu rendimento aumentar 49,7%, ao mesmo tempo que o rendimento médio dos trabalhadores diminuiu 6,2%. O rácio médio entre o salário dos gestores e dos trabalhadores passou de 24:1 para 33:1. A pandemia não alterou este cenário. Em 2021, os presidentes executivos das principais empresas cotadas na bolsa portuguesa continuavam a receber, em média, 32 vezes mais do que os trabalhadores. A Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, é a campeã da desigualdade: o CEO Pedro Soares dos Santos recebeu €3 milhões, o que representa um valor 262,6 vezes (!) superior à média dos salários dos restantes trabalhadores da empresa. Em segundo lugar está a Sonae, dona do Continente.

A economia convencional diz-nos que a concorrência do mercado leva a que cada um receba a remuneração adequada à sua produtividade. Desse modo, os salários seriam o reflexo da produtividade de cada um. Mas é muito difícil justificar a enorme desigualdade com o "mérito" dos gestores, até porque ela também existe em empresas com resultados negativos. Longe de representar a diferença entre o contributo dos gestores e da maioria dos trabalhadores para o desempenho das empresas, a enorme disparidade salarial é uma expressão das relações de poder dentro e fora das organizações.

Além disso, ao contrário do que nos diz a maioria dos economistas, temos cada vez mais evidências de que a desigualdade é um obstáculo ao desenvolvimento económico dos países. A OCDE reconhece-o há quase uma década. Além de ser socialmente injusta, a crescente desigualdade tem um efeito de compressão do consumo da maioria das pessoas ao mesmo tempo que promove a especulação financeira por parte dos mais ricos, com efeitos negativos para o conjunto da economia, como foi apontado pelas correntes heterodoxas (pós-keynesianos, institucionalistas, marxistas). De resto, algumas destas ideias são hoje partilhadas por economistas como Joseph Stiglitz, galardoado com o chamado prémio Nobel da Economia, no livro "O Preço da Desigualdade".

O Estado tem instrumentos para combater este problema. Além da progressividade fiscal sobre os rendimentos e o património e do reforço do poder negocial dos trabalhadores por via da legislação laboral, podem definir-se leques salariais máximos, aplicáveis tanto no setor público como no privado, e excluir as empresas incumpridoras de acesso a benefícios fiscais, apoios públicos e concursos do Estado. Não é uma "bala de prata" que resolve o problema da desigualdade, mas é um instrumento importante para o combater. Não há nenhum bom motivo para não pôr um travão à enorme desigualdade entre a remuneração dos gestores de topo e os salários dos trabalhadores. 
 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

O Santo Graal do crescimento português não existe

Desde a década de 1960, a economia portuguesa funcionou como reserva de mão de obra barata da Europa Ocidental. Foi uma estratégia eficaz mas desqualificada de industrialização, que deixou marcas negativas duradouras e foi deixando de funcionar à medida que a globalização avançava e o próprio país se desenvolvia. No final da década de 1980, as elites locais optaram pela liberalização geral da economia, com o sector financeiro à cabeça. A explosão de crédito que se seguiu traduziu-se em ritmos de crescimento notáveis. Mas deixou atrás de si um lastro de dívida privada, que era já muito acentuada na viragem do século. Nos anos seguintes, o que poderia correr mal correu mesmo: a China invadiu a UE de produtos que concorriam directamente com a indústria portuguesa; o alargamento a Leste afastou do país o tipo de investimento estrangeiro que era mais frequente por estas bandas; a forte apreciação do euro entre 2002 e 2008 dificultou ainda mais a vida à indústria nacional; a crise energética de 2004-2008 (com o preço do barril de petróleo a atingir 140 dólares) e a crise financeira internacional que se seguiu deram a estocada final numa economia já muito endividada perante o exterior. Desde aí temos estado a recuperar lentamente, à boleia de uma sobre-especialização arriscada no turismo e enfrentando uma pandemia e a guerra na Ucrânia.

O resto do texto pode ser lido no Público, onde a partir de hoje passo a escrever quinzenalmente, às segundas-feiras.

Iniciativas liberais até dizer chega

 
Para os que acham que estamos livres disto por definição: com as devidas especificidades nacionais, o fascismo brasileiro pode ser entendido como uma espécie de cruzamento entre Chega e IL - o primeiro infiltra a polícia e fornece a força de trabalho de choque, a segunda fornece o programa económico, uma certa cultura de agressão constante fornece o cimento.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Zandinga da esquerda


Sou cético sobre modelos de previsão em ciências sociais. Mas sei onde estará a esquerda daqui a cerca de 10 anos. Depois de um governo das direitas, a ser convencida de que tem de votar PS, porque a nova liderança é mesmo muito de esquerda e desta vez vai ser diferente.

É isso, dirão, ou aceitar que a extrema-direita continue no poder. Sempre a mesma ilusão, sempre a mesma chantagem. Sempre aquela certeza fundada de que não são necessárias ideias nem valores: apenas paciência para o poder cair no colo por horror relativo à baixeza moral da alternativa.

No entretanto, já germinou mais uma geração de pobres criancinhas que aprendeu a dizer "socialismo em liberdade", "socialismo para o século XXI", "valores da solidariedade europeia", "Estado social". Assim dos que tratam connceitos como bolas de sabão, que não querem dizer mesmo nada além do ato performativo de atrair a base social que adiante irão defraudar. Quando crescem, metem um fato. Aprendem uns conetores de texto "todavia, contudo, porquanto" e polvilham a miscelânea discursiva com palavras graves como "cosmopolitismo, resiliência, ambição, responsabilidade, futuro". Está feito o quadro socialista que nos trará a mediocridade que o seu percurso não esconde.

Mas só são iludidos os que se deixam iludir: não há esquerda na Europa neoliberal do Euro forte, do banco central independente, da livre circulação de capitais, das leis de livre concorrência europeia, das regras orçamentais europeias. Dentro deste colete de forças institucional (a que o centro-esquerda aderiu alegre convencido da sua modernidade, entre loas a Delors) só há neoliberalismo.

E na Europa neoliberal, os farrapos da social-democracia só têm duas coisas a oferecer ao que resta da sua base social de apoio: desapontamento e traição.

sábado, 7 de janeiro de 2023

Os super-ricos são um dos alvos deste jornal

É curioso como o estatuto de privilégio de que estes gestores gozam — e, sim, o termo «privilégio» é aqui usado no sentido de lei privada, excepcional, que o republicanismo combateu e o neoliberalismo reinstituiu em força — continua a surgir em todo o seu cerimonial, discursivo e jurídico, ungido pelo mercado e entronizado pelo Estado. A reprodução social do poder que lhe está associado, e que a ideologia do empreendedorismo reifica, poderia ser questionada pela narrativa da «geração mais qualificada e internacionalizada de sempre», mas esta serve sobretudo para subalternizar no salário os trabalhadores com menos qualificações formais, sem elevar os rendimentos da maioria dos mais qualificados. O estreitamento do acesso à formação em tempos de diplomas caros e de redução do poder de compra fará o resto (...) Que neste ano de 2023 que agora começa, e que ameaça ficar marcado pela conjugação da inflação, dos juros e da recessão, se possa exigir dos governantes um corte real com estas lógicas neoliberais. Sejam os estudantes em luta pelo planeta e pelo direito à manifestação nos locais onde estudam, sejam os trabalhadores em luta por salários com que possam viver… Ou quem sabe juntos?

Sandra Monteiro, O país pobre dos super-ricos, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Janeiro de 2023.