quarta-feira, 31 de julho de 2013

Corrida para o fundo

“[A]s taxas de imposto pagas efetivamente pelas empresas são muito inferiores aos 31,5% que a propaganda oficial fala (…) A taxa média efetiva em Portugal é apenas 17%, e as grandes empresas, com um volume de negócios superior a 250 milhões €, pagaram, em 2011, uma taxa média de IRC de apenas 15%. Estas taxas médias efetivas de IRC (…) são conseguidas através de uma redução significativa do lucro sujeito a imposto deduzindo os inúmeros benefícios fiscais de que gozam as empresas e, fundamentalmente, os prejuízos tidos em anos anteriores ou por outras empresas do grupo que Lobo Xavier pretende prolongar ainda mais.”

Excerto da resposta de Eugénio Rosa a António Sonae Mota-Engil fundo Vallis Riopele Fundação Serralves SIC Notícias Morais Leitão Galvão Teles Soares da Silva & Associados ACEGE Associação Comercial do Porto Têxtil Manuel Gonçalves Jerónimo Martins CDS Lobo Xavier. Entretanto, o investimento pode continuar a colapsar, já que depende de outros factores, que não as facilidades acrescidas prestes a serem concedidas aos grandes grupos económicos, os grandes beneficiários de uma “reforma” que sangrará os cofres públicos em cerca de 1,4 mil milhões de euros nos próximos cinco anos, segundo estimativas da própria comissão presidida por Lobo Xavier (Público de hoje). O factor decisivo é mesmo uma procura que o governo insiste em comprimir por via de uma austeridade indutora de cada vez maiores desigualdades. É também preciso não esquecer que a descida da taxa de IRC, ao mesmo tempo que se onera cada vez mais os trabalhadores com impostos regressivos, é uma das tendências políticas que está inscrita na integração europeia realmente existente, elemento central da globalização neoliberal no continente, feita de abolição de controlos de capitais, de chantagem das fracções do capital com cada vez mais poder, de concorrência fiscal entre Estados despojados de instrumentos decentes de política económica. Assim se incentiva uma corrida para o fundo, um jogo de soma negativa que, de resto, ninguém pode esperar que seja revertido na escala, a europeia, onde mais se tem feito para o incentivar.

terça-feira, 30 de julho de 2013

As horas

Com a passagem do horário de trabalho de 35 para 40 horas semanais, obviamente sem aumento correspondente de salário, o governo acaba de decidir que que cada trabalhador do sector público recebe menos 12,5% por hora trabalhada. Com a passagem do horário das 35 para as 40 horas semanais e com o aumento da insegurança laboral, o governo aumenta a folga para despedir ainda mais gente. Esta política envia um sinal que afecta todos os trabalhadores e que é consistente com uma política de classe: aumentar o medo por via do desemprego, aumentar os horários de trabalho, diminuir os salários, enfraquecer a provisão pública num país que tem menos funcionários públicos do que a média dos países desenvolvidos da OCDE. Um governo que defendesse os interesses de quem trabalha e de quem quer trabalhar, um governo capaz de mobilizar os instrumentos de política económica de um Estado soberano, enviaria outros sinais. Mesmo assumindo que o nível de provisão pública é adequado, diminuiria o horário de trabalho, com diminuição proporcional, menos do que proporcional ou mesmo sem diminuição do salário, dependendo da fase do ciclo económico e do nível remuneratório, para assim poder criar folga para gerar mais empregos públicos socioeconomicamente úteis, ao mesmo tempo que dava um sinal de desenvolvimento: que se trabalhe menos para que mais possam trabalhar e assim também ter, como Miguel Esteves Cardoso hoje sublinha com sensibilidade e bom senso impares, "a satisfação de deixar de trabalhar". A actual política é de subdesenvolvimento também porque a sua aposta é que cada vez menos trabalhadores trabalhem cada vez mais e com menos satisfação e qualidade de vida antes, durante e depois do trabalho.

Projecto Ulisses: propostas até 15 de Setembro


Os denominados PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) são os países da zona euro mais atingidos pelos choques assimétricos da crise económica e sistémica do euro, tendo sido já forçados a abdicar de décadas de investimentos e a cortar despesas em áreas vitais para o seu desenvolvimento. Se persistirem neste caminho de depreciação, estes países ficarão inevitavelmente para trás, agravando-se desse modo as assimetrias na área do euro.
Face aos actuais constrangimentos da zona euro, uma política orçamental expansionista só poderá ser implementada ao nível da União Europeia, uma vez que a essa escala não existem os mesmos problemas de dívida e défice que se registam à escala destes países. Por outro lado, é também à escala europeia que existem os meios institucionais para canalizar investimentos para as regiões e sectores que mais dele precisam. Ou seja, nas actuais circunstâncias, apenas a nível europeu se pode quebrar o ciclo vicioso entre soberanos debilitados e bancos descapitalizados.

(Adaptação do texto de apelo à apresentação de propostas no âmbito do «Projecto Ulisses - Salvar a Europa a partir do Sul», que podem ser submetidas até 15 de Setembro de 2013. O montante a atribuir é de 10 mil euros e os termos e condições do concurso podem ser consultados aqui).

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Três palavras, uma depressão

Qual destas três palavras não entendeu? Não há dinheiro. Assim falava Vítor Gaspar e assim ainda falam os que pretendem tornar permanente a política de austeridade depressiva: não havia, não há e não haverá dinheiro. Não havia dinheiro e daí a troika e o seu memorando. Não há dinheiro e daí a proposta pós-democrática do Presidente da República. Não haverá dinheiro e daí o segundo resgate, qualquer que seja o seu nome, com a mesma austeridade, desta vez sem o FMI. Todas as fraudes - do "vivemos acima das nossas possibilidades" ao "todos temos de fazer sacrifícios" - e todas as políticas que estas inspiraram nos últimos dois anos - da mais predadora vaga de privatizações aos cortes nos salários directos e indirectos - são tributárias do poder de, com três palavras, enganar os portugueses com a verdade.

O resto do artigo, que saiu hoje no Público, pode ser lido aqui.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Enfrentar a dura realidade

A crise política que agora termina foi aproveitada pela esmagadora maioria dos analistas da comunicação social, alguns travestidos de jornalistas, para insistir na inevitabilidade da chantagem já conhecida: ou cortamos 4,7 mil milhões de euros na despesa do Estado social, alguma coisa já este ano e em força no próximo, ou enfrentamos a suspensão do financiamento da troika. Ao promover o falhado acordo de "salvação nacional", o Presidente da República quis dizer-nos isso mesmo, o destino de Portugal só pode ser o de um território pobre dentro de uma UE dotada de um governo tecnocrata que dará visto prévio aos orçamentos nacionais. Daí a sua preocupação em gerar um consenso alargado sobre o caminho para o empobrecimento de Portugal nos próximos anos, para o "pós-troika" como lhe chama.

A esmagadora maioria dos analistas fala da necessidade dos cortes na despesa do Estado social assumindo que tais medidas reduzem o défice público. Depois do que aconteceu nos últimos dois anos, aqui e no resto da zona euro, só por má-fé podem insistir em dizer que o corte de 4,7 mil milhões de euros é indispensável. Dentro de algum tempo, face ao agravamento da espiral depressiva que tal redução na despesa implica, e a consequente manutenção do défice público, seremos obrigados a ouvir esta gente séria defender a necessidade de novos cortes. Se, genuinamente, alguém quer tirar o país do desastre para que foi levado, então não pode aceitar quaisquer cortes no Estado social, mesmo que fossem "apenas" 500 milhões, porque o seu efeito multiplicador será sempre fortemente recessivo. A saída desta crise exige mais despesa pública e não menos, o que evidentemente não é possível dentro da zona euro.

É preciso dizer a verdade aos portugueses: a criação de uma dinâmica que reduza o desemprego significativamente e faça regressar os jovens que têm emigrado só é possível com uma política orçamental expansionista de grande escala, uma política que está proibida pelo recente Tratado de Estabilidade, que institucionalizou o ordo-liberalismo germânico na política orçamental da zona euro. Política orçamental keynesiana, tributação progressiva, pleno emprego, pensões financiadas por repartição solidária, Estado social interclassista, política industrial, protecção comercial inteligente são outras tantas dimensões de uma estratégia de desenvolvimento que a UE impede. Como disse Robert Skidelsky num recente artigo ("Stimulus, not austerity, is the key to global economic recovery"), "A verdade é que qualquer política de relançamento da economia através do Orçamento tem forçosamente implicações reformistas. É por isso que os defensores da austeridade se lhe opõem, e é também por isso que mesmo os que aceitam em teoria a necessidade de um estímulo insistem que ele deve ser realizado apenas através da política monetária".

O novo governo bem pode falar de um "novo ciclo". O certo é que o Orçamento de 2014 está à sua espera e tem de ser apresentado em Outubro. Mesmo que possa beneficiar de alguma suavização da austeridade, no quadro de um fingimento europeu de que somos um caso de sucesso, o governo estará muito em breve confrontado com uma realidade que não pode mudar: os bancos europeus (os nossos e os outros) afundam-se antes que haja união bancária em pleno, o eleitorado anti-euro cresce, os operadores financeiros começam a temer o pior e a Alemanha só conhece a via das "reformas estruturais". Alguém no governo já terá percebido que esta destruição, o preço que a Alemanha cobra para viabilizar o euro, é a destruição do nosso futuro como nação soberana. Mas não vê saída, como De Gaulle na guerra da Argélia e Marcelo Caetano nas guerras coloniais. Para enfrentar com determinação esta dura realidade, Portugal precisa de uma liderança política com visão, de uma liderança que faça a ruptura. É urgente que ela apareça.

(O meu artigo de ontem no jornal i)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Do aumento das exportações (de gasóleo)


A quem tenha escapado, este notável trabalho de escrutínio estatístico de Sérgio Aníbal, no Público, sobre o recente aumento das exportações é obrigatório. Dois terços do aumento das exportações são imputáveis a uma nova unidade de refinação da Galp. De outra forma as exportações teriam crescido uns magros 1,5% (contra 4,5%). O aumento das exportações diz assim respeito a produtos refinados, como o gasóleo.

Porque é que isto é relevante? A primeira razão, assinalada no artigo, está na excitação das hostes governamentais com este aumento das exportações enquanto sinal do sucesso do programa de redução dos salários e aumento da competitividade da economia nacional. É óbvio que este investimento da Galp precedeu em alguns anos o programa de ajustamento e, por isso, dificilmente pode ser entendido como consequência das actuais políticas.

Dir-me-ão que, mesmo sem qualquer relação com o actual programa, o aumento das exportações é uma boa notícia no que respeita à recuperação económica. Aqui devemos ser também cautelosos.  O aumento das exportações permite, à partida, a diminuição do nosso défice externo. Contudo, se é certo que os refinados são bens resultantes de indústrias intensivas em capital, os seus efeitos de arrastamento sobre o resto da economia são diminutos. Primeiro, porque a produção de gasóleo depende sobretudo de um bem importado, o petróleo. Mais exportações significarão mais importações. Por outro lado, a capacidade deste investimento criar valor e emprego resume-se praticamente à Galp - 100 postos de trabalho directos mais 450 indirectos, segundo a própria Galp, numa actividade com margens diminutas. Finalmente, este acréscimo de produção não terá, no actual contexto, qualquer impacto nos preços praticados no mercado de gasóleo. Os ganhos parecem diminutos. 

Por último, este tipo de investimentos deve levantar a questão do modelo de desenvolvimento a seguir. Se o investimento não é todos igual no que toca a crescimento e emprego, também não o é no que diz respeito aos custos ambientais. Se produzimos o gasóleo que Espanha e os EUA consumem, não estaremos a assistir a uma transferência de poluição desses países para o nosso? Os custos parecem, por isso, assinaláveis. Em alternativa, não deveríamos trabalhar na reconversão enérgica que privilegie a eficiência e as fontes renováveis? Decidir quais as apostas estratégicas de uma economia é parte importante de qualquer democracia.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Leituras

«O que BdP nos diz [Boletim de Verão] deveria suspender, de imediato, o corte de €4,7 mil milhões previstos para 2014, corte esse que além de politicamente inviável é economicamente estúpido. (...) €4,7 milhões representam cerca de 2,85% do PIB e, se usarmos o multiplicador actualizado, os cortes previstos provocariam uma queda no PIB de €9,4 mil milhões - ou seja, superior ao previsto no Boletim de Verão. Por si só, esta queda aumentaria a dívida de 125% para 132% e implicaria uma diminuição de receitas de €3,3 mil milhões. (...) Uma conversa que [terminasse] com a manutenção dos cortes prometidos por Passos/Gaspar no fim da 7ª avaliação não [teria] nada de salvífico. [Era] apenas mais um acto de uma tragédia nacional.»

Pedro Adão e Silva, Para início de conversa

«Cavaco cava a crise; Cavaco não nos tira do buraco. À troika externa, o Presidente junta agora uma troika interna: uma coligação a três, Cavaco-Portas-Passos. (...) [O] Presidente apoia o medo como a principal arma da política económica contemporânea. Perante qualquer medida dir-se-á: cuidado, os "investidores" não gostarão; perigo, os "mercados" desconfiarão. Um presidente, uma maioria absoluta, uma coligação irrevogável ... má sorte ter nascido "troika". Pior renascer enquanto "troika" ao quadrado.»

Sandro Mendonça, Partidário

«Como se dizia há anos a respeito do Brasil, o problema não é que Portugal esteja a atravessar uma crise. O problema é que não está a atravessar a crise, está parado no meio da crise. E o pior ainda é que a crise não está parada. Ela aprofunda-se, levando cada vez mais pessoas para o fundo, para o desemprego, a miséria e o desespero. (...) A democracia, já explicaram Cavaco Silva e Passos Coelho, é muito cara. (...) Um novo governo assustaria os credores. Para comprar uma democracia ficávamos sem dinheiro para pagar pensões. Não temos dinheiro para comprar mais democracia. Temos de ficar com esta democracia de plástico comprada na loja chinesa.»

José Vítor Malheiros, Temos dinheiro de sobra para pagar os juros, mas não sobra para uma democracia (no Público de hoje)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Ainda os monopólios


No seguimento deste post, é curioso observar a posição da Apple, enquanto empresa monopolista, e a sua relação recente com os mercados financeiros. Sem grandes incentivos ao reinvestimento dos seus lucros, esta empresa acumulou ao longo dos anos 145 mil milhões de dólares. No entanto, no passado mês de Abril, a Apple decidiu endividar-se nos mercados com obrigações no valor de 17 mil milhões de dólares. Naquela que aparentemente foi a maior emissão de dívida de sempre de uma empresa privada, as taxas de juro variaram entre 0,5% nas obrigações a três anos e 3,8% a trinta anos.

Todavia, porque é que uma empresa se vai endividar se está a nadar em liquidez? A razão é bastante prosaica. Boa parte dos 145 mil milhões de dólares disponíveis foi ganha e está depositada fora dos EUA. O seu repatriamento implicaria o pagamento do imposto sobre lucros norte-americano (35%). Por outro lado, o juro pago nesta emissão de dívida será dedutível na factura fiscal da Apple, resultando aparentemente numa poupança de 100 milhões de dólares todos os anos. Este dinheiro angariado nos mercados não servirá para financiar novos investimentos (e emprego), mas sim para permitir uma maior distribuição de dividendos pelos accionistas e financiar um programa de recompra de acções cujo objectivo é elevar a sua cotação na Bolsa. 

Conclusão, a Apple beneficia de uma posição no mercado que lhe permite focar-se na valorização financeira das suas acções em vez da sua actividade produtiva, foge descaradamente ao fisco do país que lhe deu as condições físicas e humanas para florescer e, não contente, financia os ganhos dos seus accionistas através de um subsídio implícito dos contribuintes norte-americanos graças às deduções fiscais.

sábado, 20 de julho de 2013

Quando a Europa salva os bancos, quem paga?

Um obrigatório documentário alemão sobre a crise europeia, com a vantagem de ter acesso a actores tão importantes como o ministro das finanças alemão, o ministro das finanças espanhol ou um membro da direcção do BCE. Infelizmente em francês. Pode ser que alguém se lembre de o passar por cá traduzido.


Liberalização comercial - O proteccionismo dos mais fortes III

Uma das discussões mais interessantes no debate económico, para lá da crise económica no seu sentido mais estrito, está na discussão sobre as rendas de que empresas como a Apple ou a Microsoft beneficiam. Como este artigo de Paul Krugman ilustra, hoje as grandes empresas estão mais focadas nas rendas monopolistas que conseguem extrair dos seus produtos - sejam eles o Windows da Microsoft, o Iphone da Apple ou o algoritmo do Google - sem que tenham que reinvestir os seus ganhos no seu negócio e onde a produção em sentido estrito está subcontratada e deslocalizada (as empresas que produzem estes produtos ganham uma ínfima parte do seu valor de mercado). Conclusão, os lucros encontram-se crescentemente desligados da produção, reflectindo sobretudo o domínio do mercado. Sem necessidade de reinvestimento na produção, estas rendas contribuem para a um mercado de trabalho pouco dinâmico, com salários estagnados e aumento das desigualdades. A luta contra estes gigantescos monopólios é por isso urgente para uma agenda progressista, como bem mostra este recomendável artigo de Richard Sennet.

Esta desigualdade é, por sua vez, alimentada pela ofensiva em curso em torno dos direitos de propriedade intelectual. Este artigo de Joseph Stiglitz mostra bem como o reforço da propriedade intelectual, nomeadamente biológica, ao alimentar as rendas monopolistas de que fala Krugman, dificultará o acesso a bens e serviços a quem não pode pagar. No exemplo de Stiglitz, o patenteamento de genes e a sua relação com o acesso a cuidados de saúde é claro.

Por que é que isto é relevante quando se discute comércio internacional? Por duas razões. A primeira diz respeito à forma como o fortalecimento da propriedade intelectual é normalmente associado aos acordos de comércio internacional. Países, como os EUA, conseguem assim impor as suas regulações ao resto do mundo. A segunda razão diz respeito à forma assimétrica como a propriedade intelectual beneficia os países mais ricos, onde ela é desenvolvida, e à forma como esta pode ser um bloqueio no desenvolvimento de tecnologias e indústria em países em estádios de desenvolvimento mais atrasados. E isto vale tanto para os países ACP, como para Portugal.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Liberalização comercial - O proteccionismo dos mais fortes II

No seguimento da convenção de Lomé, em 1975, a União Europeia aplica uma pauta aduaneira preferencial para um conjunto de países em vias de desenvolvimento - os países ACP (Africa, Caraíbas e Pacífico). A UE é, de longe, o seu maior parceiro comercial. Considerados discriminatórios no âmbito da OMC, estes acordos deram origem a uma prolongada negociação entre a UE e estes países no sentido da total liberalização comercial. Se já não bastasse o desequilíbrio do padrão das transacções comerciais - estes países exportam sobretudo produtos minerais e agrícolas e importam bens de capital -, a ser agora agudizado, as tarifas alfandegárias são a maior fonte de receitas para muitos destes Estados incapazes de colectar outros impostos. Não surpreende, portanto, que as negociações tenham entrado num impasse. A UE procura agora contornar este bloqueio através de acordos bilaterais, onde o seu poder se manifesta de forma mais clara, corroendo assim este bloco de países. Ao contrário de certas narrativas sobre países emergentes, o neocolonialismo parece estar bem de saúde.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Interesses que não são nacionais


Se Daniel Bessa e Nuno Fernandes Thomaz passam por “personalidades de vários quadrantes”, então também passam por “empresários”. Os quadrantes do último abaixo-assinado resumem-se a um: Cavaco, a sua tropa-fandanga e o seu esforço para tirar irrevogavelmente o S ao PS. De resto, não sabia que passar de Secretário de Estado do mar para a CGD, com umas actividades numa dita boutique financeira pelo meio, ou que dirigir uma parceria público-privada que organiza umas jantaradas e umas conferências-almoçaradas sobre inovação e tal qualifica alguém como empresário. Mas certamente que os qualifica como Pessoas Muito Sérias, muito empenhadas na salvação nacional, na competitividade e noutras fraudes. Estão qualificados desde que deram as boas-vindas à troika, a melhor coisa que nos tinha acontecido, diziam, a melhor coisa que lhes aconteceu, sabemo-lo desde sempre.

Agora falam com pungência do desemprego, os hipócritas, mas acham que os cortes já feitos ainda não chegam. Dizem que é para recuperar a soberania, como se este conceito fizesse algum sentido num enquadramento europeu que é o seu melhor aliado externo. É claro que teria sido tudo diferente, dizem ainda, se o governo tivesse começado pela “reforma do Estado”. O governo não andou a fazer outra coisa: tratou-se sempre de fragilizar, de despedir e de privatizar, de facilitar negócios com benefícios privados e custos públicos. Os efeitos depressivos são evidentes, mas pouco lhes importam. Eles estão protegidos pelo seu instinto, que não é empresarial, mas sim de classe. Se o PS assinar o tal acordo, e espero mesmo que não o faça, dou-lhes os parabéns. Ganhariam essa batalha. Para que possamos vencer a guerra, alguém terá de cuidar do S.

PS. Estou mesmo a precisar de umas férias, pelo menos uma semana sem escrever sobre esta nossa viciosa economia política. Não irei para as selvagens, mas andarei por perto. Boas férias e boas leituras, sem fraudes, por aqui ou por outros lugares.

Liberalização comercial - O proteccionismo dos mais fortes I

Embora sem grande impacto mediático, estão em curso as negociações para a criação de uma zona de livre comércio entre os EUA e a UE. O acordo é apresentado como uma oportunidade para redinamizar o crescimento económico de ambos os blocos, que representam à volta de metade de todas a exportações mundiais. De forma explícita ou implícita, velhas e novas teorias são convocadas para apoiar o processo, da teoria das vantagens comparativas de David Ricardo - onde a cada país trocará os bens onde detém vantagens comparativa pelos bens produzidos onde estes são relativamente menos custosos de produzir - até à "nova economia política" - a concorrência acrescida entre as empresas conduziria a ganhos de eficiência face a ambientes proteccionistas onde as empresas se concentrariam na captura dos poderes públicos. A História mostra, no entanto, que, na verdade, o livre-cambismo é o proteccionismo dos mais ricos e fortes. Com muito poucas excepções (Holanda, Suiça), todos os países desenvolvidos adoptaram fortes medidas proteccionistas para proteger os seus mercados nacionais da concorrência externa, por forma a permitir o desenvolvimento de indústrias que, no seu estado inicial, são necessariamente menos competitivas. Dos EUA ao Reino Unido, passando pelos mais recentes casos de sucesso asiático (China e Vietname), o livre - cambismo só foi adoptado numa fase mais tardia do seu desenvolvimento como forma de penetrar nos mercados externos. Os elogios ao papel do comércio internacional no desenvolvimento, como este aqui de Martin Wolf, têm, por isso, que ser tomados com uma boa dose de cepticismo.

O acordo agora em negociações entre a UE e os EUA coloca, mais uma vez, não só problemas ao impacto global desta liberalização em determinados sectores, como devia ser tomada com especial atenção por países como Portugal, cujas estruturas económicas diferem radicalmente dos países que comandam as negociações europeias. A experiência das negociações com a OMC (Organização Mundial de Comércio) e a forma como conduziram à depressão de regiões inteiras do país são razão suficiente para ver estas negociações com preocupação.

A urgência das alternativas


«Na sua exigência de obtenção de um compromisso entre PSD, CDS e PS, o Presidente da República (PR) impôs como condição a implementação plena das medidas acordadas com a troika no quadro do Memorando de Entendimento. Exigiu também aos três partidos que assegurassem a continuação da atual estratégia de «ajustamento», colocando os interesses dos credores externos da dívida nacional como prioridade da política económica. O sucesso das negociações em curso, sob a égide do PR, não podem senão significar a opção pela continuidade da política da troika.
(...) No curto prazo, o corte nos salários e nas pensões, o aumento de impostos e a redução do investimento público provocam a contração do mercado interno e a destruição do tecido produtivo, sendo responsáveis pelo dramático aumento do desemprego e da emigração. O aumento do desemprego e a paralisação da atividade económica conduzem, por sua vez, à redução das receitas fiscais e ao aumento das despesas sociais, agravando o défice orçamental e tornando ainda mais insustentável o pagamento da dívida pública.
(...) A busca de soluções políticas para a governação em Portugal não é nem pode ser monopólio da direita e dos interesses que esta ardilosamente foi instalando debaixo de complexos compadrios. É à esquerda que reside a possibilidade de uma governação alternativa.

 Ao PR exige-se a convocação de eleições antecipadas, reconhecendo que a atual maioria perdeu a legitimidade e a capacidade para governar. Aos partidos que efetivamente se opõem à estratégia da troika e da atual governação exige-se o empenho na criação de condições para uma governação que responda às exigências do momento.»

Do comunicado do Congresso Democrático das Alternativas, a ler na íntegra aqui.

O Rei das Berlengas



«- Ó nosso soldado Lucas, tu que tens a mania que és o rei do Arquipélago das Berlengas, tens que pensar num acto heróico, que nos leve à salvação, com a graça de Deus. (...) - Meu Cabo, meu Cabo... Já pensei no acto heróico. Vou a nadar até à caravela do Almirante Ilbarra para negociar com o inimigo. Talvez eles nos vendam a pólvora. - E vê se consegues algum desconto... Compras a pólvora toda que tiverem a bordo. O Almirante Ilbarra é um venal. (...) E agora nada, nada... Se conseguires a nossa salvação dou-te a independência das Berlengas, das Estelas e dos Farilhões.»

«O Rei das Berlengas» (Artur Semedo, 1981)

Por mais que as fontes de Belém tenham tido o cuidado de frisar que a visita de Cavaco Silva às Ilhas Selvagens não tem, como as anteriores missões presidenciais, o significado «de reafirmação da soberania nacional», é quase impossível não lembrar, nos dias que correm, o filme de Artur Semedo. Mas aponte-se, pelo menos, a trágica coerência do obstinado e subserviente bom aluno, um dos guardiões mais empenhados em prosseguir (e levar irresponsavelmente até ao fim) o memorando do empobrecimento, apesar de toda a devastação económica, social (e política) que já causou, ao longo dos últimos dois anos.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Economia portuguesa?

No Negócios, Nuno Aguiar e Rui Peres Jorge informam-nos que, segundo a OCDE, Portugal foi o país que mais liberalizou os despedimentos desde 2008, acentuando de resto uma tendência anterior; entre 2007 e 2012, a economia portuguesa perdeu um milhão de postos de trabalho e registou, em 2011 e em 2012, uma queda, respectivamente, de 6% e de 3,9% da remuneração salarial média. Só em 2013, poderão ser 220 mil empregos eliminados. É claramente preciso, em nome do “interesse nacional” aprofundar este sucesso neoliberal, esta combinação de austeridade recessiva e de reformas “estruturais” regressivas.

Entretanto, o Banco que não é de Portugal mostra-se preocupado – apesar das “reformas estruturais”, já que nunca reconhecerá que também é por causa das ditas – com o declínio estrutural da economia portuguesa. Há uma palavra estruturante do declínio que nunca é mencionada: euro. O que é mencionado, e bem, no relatório de Verão (p. 14) é o seguinte:

“No que diz respeito à componente empresarial do investimento, projeta-se uma queda de 8.0 por cento, após uma acentuada queda em 2012 (-12.1 por cento). A forte contração da procura no mercado interno e a estagnação da procura externa (…) deverão induzir o adiamento de decisões de investimento por parte do sector empresarial, em particular tendo em conta a existência de capacidade produtiva por utilizar na generalidade dos subsectores produtivos (…) A queda acumulada da FBCF [investimento] empresarial de 2009 a 2013 deverá ascender a 35 por cento, com implicações sobre a evolução do stock de capital, podendo dificultar a incorporação de inovação tecnológica e, por conseguinte, afetar o crescimento do produto potencial”.

No fundo, a conversa sobre a modernização em curso é uma fraude. O salvífico longo prazo, onde operariam apenas as forças ditas reais da oferta, não passa de um encadeamento de curtos prazos determinado pela procura. De resto, e em relação às previsões do Banco, Sérgio Aníbal diz hoje, no Público, o essencial:

“Apesar de reconhecer a existência de riscos, o Banco de Portugal manteve ontem inalterada a expectativa de que o país vai conseguir evitar uma espiral recessiva e, tal como tinha feito sem sucesso em 2012, repete a aposta de que a retoma da economia irá acontecer no ano que vem imediatamente a seguir (…) [É] fácil de concluir que nas suas previsões, o banco assume que, por cada euro de austeridade, o impacto na economia será claramente inferior a 1 euro. Isto é, o multiplicador da austeridade no PIB será, em 2014, inferior a um. Esta é uma premissa que, como se tem mostrado ao longo desta crise, se pode revelar arriscada. O FMI foi o primeiro a avisar que, em período de crise, o multiplicador pode ser bastante mais alto. E, ainda durante este mês, um estudo publicado por economistas do Banco de Portugal apontava para que o multiplicador poderia, no caso dos cortes de despesa, chegar a dois, isto é, por cada euro de austeridade, a economia perderia dois euros.”

terça-feira, 16 de julho de 2013

Por um Manifesto Anti-Costa


Será que Carlos Costa ouviu falar do Pessoa? Não do Fernando, mas sim do convencionalíssimo modelo de equilíbrio geral dinâmico e tudo, que dá pelo nome do poeta, do Banco que governa e que, já o sabemos, não é de Portugal, até porque não imprime moeda nossa, sendo uma sucursal de Frankfurt, e porque tem dificuldade em distinguir-se da Associação Portuguesa de Bancos.

Trata-se de um modelo económico que incorpora umas fricções e rigidezes de curto prazo, mas que passado pouco tempo parece estar feito para que tudo volte a um normal idílio de equilíbrio mercantil. No entanto, isso basta para que o modelo dê resultados muito incómodos: por cada euro de corte na despesa pública em tempos de crise, estima-se que o PIB caia dois euros, bem mais do que por cada euro de aumento de impostos. O que diz Carlos Costa perante isto? Avance-se com o tal corte na despesa de 4700 milhões, um corte certo de procura que fará o PIB contrair quase 6%, uma boa ajuda para a confiança, e diminuam-se os impostos, o que neste cenário de destruição não fará ninguém investir, nem consumir, claro, mas dará jeito às grandes empresas e seus accionistas. Tudo ao contrário, mas tudo alinhado com os interesses de classe que contam para estas elites. Esse é o verdadeiro modelo e até tem uma boa capacidade explicativa.

Quando penso no que está mal neste país, penso também em pessoas como Carlos Costa, alguém que fez o seu percurso entre a chefia do gabinete do comissário-golfista Deus Pinheiro e a gestão do BCP na área dos infernos fiscais, aterrando no Banco numa estranha decisão de Teixeira dos Santos. Costa é um dos agentes políticos menos escrutinados e mais poderosos em Portugal hoje em dia, um poder que também vem de Frankfurt, sendo o principal dos que estão atrás de Cavaco a tentar urdir o tal acordo dito de regime para salvar o grande capital, não duvidem. Quando ouço Carlos Costa, e agora ouço-o pelo menos uma vez ao dia, apetece-me, tivesse eu arte e engenho para imitar Almada, escrever para a economia política algo que começaria assim: “Basta Pum Basta!”

Uma das primeiras tarefas do governo que terá de vir depois desta tragédia, e que terá de libertar e reconstruir um país, um governo que junte socialistas com e sem partido, comunistas, bloquistas e tantos outros democratas, tantos outros patriotas, é também tirar Costa do Banco de Portugal e acabar com a ficção da sua independência. “Pim!”

domingo, 14 de julho de 2013

Uma ideia mesmo perigosa


Nasci em Dundee, Escócia, em 1967 (…) A minha mãe morreu quando eu era muito novo e fiquei ao cuidado da minha avó. Cresci na pobreza (relativa) e por várias vezes fui para a escola com buracos nos sapatos. A minha educação foi, no sentido original da palavra, bastante austera. O rendimento familiar consistia num cheque do Estado, mais concretamente numa pensão de velhice, para além das ajudas ocasionais do meu pai trabalhador manual (…) Sou um filho do Estado-Providência e tenho orgulho neste facto. 

Actualmente, sou professor numa universidade da Ivy League norte-americana [Professor de Economia Política Internacional na Universidade de Brown, uma das universidades de elite dos EUA]. Sou um dos exemplos mais extremos de mobilidade intrageracional. O que fez de mim o homem que sou hoje é aquilo que é agora responsabilizado por ter gerado a crise: o Estado, mais especificamente o Estado-Providência descontrolado, ineficiente e paternalista. Este argumento não passa o teste da intuição. Devido ao Estado-Providência britânico, por muito frágil que fosse por comparação com os seus primos europeus mais generosos, nunca passei fome. A pensão da minha avó e as refeições gratuitas na escola garantiram-no. Tive sempre um tecto, graças à habitação social. As escolas que frequentei eram gratuitas e, na realidade, funcionaram, como escadas de mobilidade para aqueles a quem lotaria genética da vida deu, ao acaso, as capacidades para as subir. 

Por isso, o que me preocupa a um nível profundamente pessoal é que se a austeridade é vista como a única alternativa, então tal não é apenas injusto para a actual geração de trabalhadores que tem de salvar banqueiros, como o meu próximo “eu” pode não vir a existir. A mobilidade social que as sociedades britânica e norte-americana tomaram por adquirida, entre os anos 50 e 80, e que fizeram com que eu e outros como eu fossem possíveis, foi efectivamente interrompida (…) Cortar no Estado-Providência em nome do crescimento e da oportunidade é uma fraude ofensiva. O propósito deste livro é relembrar estes factos e garantir que o futuro não pertence apenas a uma minoria de privilegiados. Francamente, o mundo precisa que mais filhos do Estado-Providência se tornem professores. Isto faz com que o resto se mantenha honesto. [referências omitidas, minha  tradução do original em inglês]

Mark Blyth, Austerity – The History of a Dangerous Idea, Oxford, Oxford University Press, 2013, p. ix.

Uma das melhores justificações para escrever um livro e uma das melhores defesas do Estado-Providência que eu já li. Quem quiser um resumo dos argumentos de um livro que é indispensável traduzir num país destroçado por uma ideia perigosa, pode ler o artigo na Foreign Affairs e/ou ver este vídeo legendado. É sabido que a desigualdade socioeconómica e a mobilidade social emperrada andam juntas e que um Estado-Providência robusto é um dos melhores mecanismos inventados para igualizar em dimensões essenciais e para fazer com que nascimento não seja destino. Em Portugal podem contar-se histórias semelhantes, mas em número relativamente insuficiente. E Portugal é um dos países europeus onde, devido às políticas de austeridade apoiadas activamente por elites medíocres e subservientes, histórias deste tipo poderão ser ainda mais raras no futuro.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

É o tempo

Sala Mecenato BES (ISEG)

Veio enfim um tempo em que tudo o que os homens tinham olhado como inalienável se tornou objecto de troca, de tráfico, e podia alienar-se. É o tempo em que as próprias coisas que até então eram comunicadas, mas nunca trocadas; dadas, mas nunca vendidas; adquiridas, mas nunca compradas - virtude, amor, opinião, ciência, consciência, etc. - em que tudo enfim passou para o comércio. É o tempo da corrupção geral, da venalidade universal.

Karl Marx

O que têm em comum Ricardo Salgado, António Mexia e Eduardo Catroga? Para além de serem muito bem pagos, são também Doutores Honoris Causa pelo ISEG-UTL. O primeiro desde ontem, o segundo desde a semana passada e o terceiro desde o ano passado. O que é que um plutocrata e dois videirinhos têm em comum com os verdadeiros Doutores Honoris Causa da distinta história do ISEG nesta e noutras áreas – vejam a lista, é toda uma história da ciência económica, do debate público qualificado sobre políticas? Não têm nada em comum.

Como antigo estudante do ISEG, esta subversão recente entristece-me profundamente, mas não me espanta. Já nada me espanta num tempo em que a profecia de Marx desgraçadamente ameaça cumprir-se e em que continua a ser tarefa intelectual e política prioritária garantir que não se cumpra. Satisfaz-me, no entanto, saber que, em última instância, ainda vigora a intuição civilizadora: amor e amizade pagos deixam de ser amor e amizade, são outra coisa, Doutoramentos Honoris Causa, concedidos na sala CGD, a ironia, que se dão por razões que estão certamente para lá da academia, da vida cívico-cultural, da política como serviço público, não honram quem os dá, nem quem os recebe, não são honoris causa, nem doutoramentos. O ISEG é muito melhor do que isto, tem uma história que merece mais respeito.

No entanto, proponho que finjamos que levamos a sério a última cerimónia e que imaginemos o que o “padrinho” de Salgado, João Duque, terá dito: o Doutor Ricardo Salgado ensinou-nos a fugir com capitais, a reconstruir, a golpes de política, o poder financeiro, a desenhar parcerias público-privadas lucrativas, a capturar políticos e não só, a entrar em conselhos de ministros para fazer valer os seus interesses, a minimizar obrigações fiscais, a beneficiar de ditaduras e de democracias que se parecem com plutocracias, a mandar vir a troika para ajustar contas com o que resta da economia política do 25 de Abril e muito mais.

No final, embalado, João Duque defendeu, em declarações ao Público, a pós-democrática proposta de Cavaco, lembrando que “estamos em guerra”. Estão mesmo em guerra. Contribuir na medida das nossas possibilidades para que a percam, também no campo das ideias, é talvez a melhor forma de honrar a dívida para com o ISEG.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Credibilidade


Um dos parágrafos mais importantes da carta de demissão de Vítor Gaspar, aquele em que refere o incumprimento dos limites do défice e da dívida, termina assim: "A repetição destes desvios minou a minha credibilidade enquanto ministro das Finanças." Desde então, a palavra-chave para analisar esta crise política, pronunciada nas televisões até à náusea, é "credibilidade". Os economistas do pensamento dominante garantem que a credibilidade do país foi abalada mas talvez ainda possa ser recuperada, avisando contudo que seria muito pior se houvesse eleições. Ficámos pois a saber que esta política económica ainda pode ser credível mesmo com um nível de desemprego que se tornou uma calamidade social, com uma dívida pública descontrolada e um défice no Orçamento do Estado que resiste à austeridade. Que tipo de credibilidade é esta?

Segundo a ortodoxia, os Programas de Ajustamento Estrutural que há décadas o FMI impõe - austeridade selvagem, privatização de empresas públicas, desregulação do mercado de trabalho, desmantelamento do Estado social - são credíveis por natureza, já que são concebidos por inspiração da corrente do pensamento económico designada por novos clássicos. Em "The Political Economy of Policy Credibility", Ilene Grabel explica a lógica desta credibilidade intrínseca: 1. Uma política económica é credível na medida em que possa perdurar; 2. Uma política económica tem maior probabilidade de perdurar se conseguir alcançar os seus objectivos; 3. Uma política económica consegue mais facilmente alcançar os seus objectivos na medida em que induza comportamentos que, no seu conjunto, são consistentes com esses objectivos; 4. Uma política económica consegue induzir com eficácia tais comportamentos se traduzir e operacionalizar uma teoria da economia de mercado que seja verdadeira; 5. Para uma política económica traduzir a verdadeira teoria do mercado deve seguir o pensamento dos novos clássicos.

Por conseguinte, só são credíveis as políticas económicas baseadas no mito das expectativas racionais dos agentes económicos e na sua racionalidade optimizadora, a que acresce a visão reducionista da economia como agregação de comportamentos. Este conceito de credibilidade não apenas pressupõe um pensamento único na teoria económica como também vira as costas à realidade. Nela não há lugar para comportamentos guiados por padrões culturais, por normas institucionais ou interesses de grupo e classe, nem há conflitos sociais. Daí o espanto de Vítor Gaspar perante os "desvios" da economia portuguesa, já que era suposto a realidade confirmar as simulações dos modelos construídos e calibrados no respeito pelo pensamento novo clássico. Sendo a realidade rebelde, como é o caso, tem de ser posta na ordem, tem de ser conformada ao modelo da teoria verdadeira, o que exige uma liderança forte, coesão inabalável no governo e um pacto entre os partidos "do arco da governação". Não sendo isso possível, a política económica estava condenada a perder credibilidade e Vítor Gaspar demitiu-se porque não estava disposto a perder a dele enquanto economista ortodoxo.

Assim, percebe-se que o exercício da democracia seja visto como uma ameaça à credibilidade das políticas de ajustamento. Nas periferias da Europa a democracia está hoje refém da crise do euro, tal como estavam os governos sujeitos ao padrão-ouro quando ocorreu a Grande Depressão. Sobre eles há uma frase lapidar escrita por Barry Eichengreen e Peter Temin ("The Gold Standard and the Great Depression"): "A economia mundial não iniciou a sua recuperação porque esta gente mudou a sua forma de pensar; antes, a recuperação começou quando a luta política de grande escala, nas suas diversas formas, retirou esta gente do governo."

(O meu artigo no jornal i)

Da destruição, das alternativas


O resultado desastroso da estratégia de austeridade e da diluição da legitimidade democrática da atual governação exigiriam do PR uma solução óbvia: a convocação de eleições. Mas, em vez disso, Cavaco Silva propôs ao país a constituição de um governo de Salvação Nacional e um compromisso entre PSD, CDS e PS para perpetuar o programa da troika, independentemente do resultado das próximas eleições legislativas. A proposta do PR é política e eticamente inaceitável. Aquele que deveria ser o garante do regular funcionamento das instituições pretende impor ao País a anulação da democracia – fazendo das eleições um ato de democracia condicionada e promovendo a legitimação de uma mera democracia de fachada.

Vale a pena ler a tomada de posição do Congresso Democrático das Alternativas: o regular funcionamento da destruição.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Compromisso de salvação da política de Gaspar

Que salvação nacional pode ter por dinamizador um Presidente indelevelmente associado a Maastricht, a Dias Loureiro, à reconstrução política de grupos económicos, que hoje a maioria sabe que governam, ao apoio à troika e à destrutiva austeridade permanente, que esvazia, também com chantagem e medo, a democracia na única escala onde ela existe? A retórica da salvação na boca de Cavaco é só um truque para tentar manter o PS atrelado ao memorando existente e aos que existirão, para evitar o uso das armas de que um país devedor dispõe para defender os seus interesses nacionais. Entretanto, Cavaco aproveita a conjuntura e tenta conquistar uma certa iniciativa de coordenação e de direcção políticas, uma tarefa difícil, mesmo tratando-se de um dos mais hábeis operadores políticos, para aquele que se tornou o mais desprestigiado Presidente da República da democracia. Com o novo e mais populista entendam-se, Cavaco exibe um projecto com tentações pós-democráticas, do qual iniciativas políticas constitucionalmente mais ousadas poderão não estar ausentes. Cavaco ecoa à sua maneira os telefonemas dos banqueiros, e não só, que revogaram a decisão irrevogável de Portas, ecoa os interesses económico-financeiros mais poderosos em Portugal e no estrangeiro, os que prosperam com a tutela externa e que não querem ouvir falar de eleições para já. Eleições só se não houver garantidamente alternativas, não antes de Seguro assinar um papel. É isso que Cavaco também procura assegurar. E, entretanto, Cavaco mantém o governo em funções, dando-lhe um ano de folga e dando o apoio de sempre às políticas de austeridade, qualquer que seja o governo para lá de 2014.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Da corrupção, do poder do dinheiro

Um estudo que me deixa optimista: mais de metade dos portugueses inquiridos acha que o governo “está na mão dos grupos económicos” e que a corrupção aumentou nos últimos dois anos. Ter uma noção realista do que se passa é um primeiro passo para encontrar uma solução para o poder ilimitado do dinheiro, para a sua tendência, sobretudo quando está concentrado em poucas mãos, para se converter em poder político igualmente concentrado, para atravessar todas as linhas, para invadir todas as esferas, para subverter todos comportamentos, para corromper todas as práticas. De facto, como tenho argumentado neste blogue, a intensificação das políticas neoliberais contribui para este fenómeno através de vários mecanismos.

Em primeiro lugar, e se seguirmos a indicação de vários estudos sobre os impactos negativos da desigualdade económica excessiva, o incremento que está sendo promovido, num dos países já mais desiguais da Europa, pode contribuir para aumentar a corrupção, dando poder aos mais ricos, aos grandes grupos capitalistas nacionais e estrangeiros, para moldar as inevitáveis regras do jogo a seu favor ou para saltar por cima delas quando der jeito, corroendo a crença na sua justiça, deslegitimando as instituições e diminuindo a confiança que os cidadãos têm nelas e uns nos outros.

Em segundo lugar, as privatizações são uma grande e conhecida oportunidade para corromper. A entrada multiforme dos grupos económicos nas áreas da provisão pública, associada ao desmantelamento do Estado social, é uma grande oportunidade para corromper. Temos grandes negócios à custa dos bens comuns.

Em terceiro lugar, a degradação da autonomia e do estatuto laboral dos funcionários públicos e o ataque à ética do serviço público e às instituições públicas nas quais pode florescer, da ameaça do despedimento à idolatria pela empresa capitalista, aumentam as possibilidade para todas as pressões, chantagens e “persuasões” por parte dos poderes capitalistas e dos seus políticos de serviço. Imaginam o que pode acontecer no futuro laboral que estão a desenhar aos funcionários que sigam o exemplo daquela técnica do ministério da agricultura que se recusou, durante anos, a dar parecer positivo a um célebre abate de sobreiros?

Em quarto lugar, o poder do dinheiro aumenta à medida que são deliberadamente erodidos os contrapoderes cívicos, incluindo sindicais, à medida que se atrofia, graças ao desemprego e à precariedade, a acção colectiva popular que saudavelmente suspeita do empresarialmente correcto que infesta a vida pública, num país onde, também em parte graças à desigualdade, estes contrapoderes já não são fortes.

É por estas e por outras que uma política de combate à corrupção tem de passar pelo combate à desigualdade socioeconómica, pelo combate a favor da segurança e estatuto laborais de quem trabalha em funções públicas e nas outras, pela protecção da integridade de instituições e valores não-mercantis, pelo combate sem quartel ao neoliberalismo. Uma política de combate à corrupção tem de ser, em suma, uma política socialista.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

A política de Gaspar continua...


O mesmo título pela quarta e última vez, mas agora com reticências. Este governo continua e continua, como Maria Luís Albuquerque já confirmou a quem manda a partir do exterior. Bom, a análise política tem de dar toda a atenção às determinações socioeconómicas da política neste capitalismo dependente, internas e sobretudo externas, e que neste contexto nem sequer foram ou são em última instância. A análise política tem de ser economia política.

Um das coisas mais impressionantes do miserável enredo político em curso, volto a sublinhá-lo, é a forma como Portas misteriosamente se esqueceu da sua base, errar é humano, como se esqueceu de avaliar bem os interesses capitalistas dominantes que sempre teve em consideração nas suas várias vidas. Levou uma lição nos telefonemas irados que recebeu dos donos disto. Agora está irremediavelmente preso ao governo, respondendo pela política deste como nunca. O reforço de Portas não é um sinal de força, mas sim de fraqueza, até porque perdeu toda a margem de manobra, toda a simpatia que a sua duplicidade anterior tinha suscitado entre os que andaram e ainda andam iludidos, assumindo uma hipótese benigna, com a narrativa da outra austeridade, aquela que não seria excessiva. O destino de Portas é agora o de um governo que contará sempre com o apoio de Cavaco, o qual nunca se enganou em relação aos interesses que contam e que não suportam eleições para já. Há que prender Seguro ao segundo resgate que aí vem. Só com documento assinado irá para o governo.

A força do actual governo continua a estar mesmo nos tais interesses com classe e nos aparelhos ideológicos que mobilizam, onde se inclui uma igreja com uma hierarquia sempre disposta a só deixar entrar pela porta principal quem conta. Os interesses são os dos credores, internos e sobretudo externos, em primeiro lugar, mas também os do grande capital industrial que ainda anda por aí e cujas tensões e sobretudo imbricações com o capital financeiro Pires de Lima simboliza. Agora vai ter de os gerir politicamente no modo evolução na continuidade de um capitalismo sem acumulação. Moreira da Silva, por sua vez, dará um ar de capitalismo esverdeado e modernaço que é sempre útil para disfarçar as predações já em curso e as que já estão sendo planeadas.

Já agora, notar a unidade programada da direita para as eleições europeias: faz todo o sentido, até porque sabem que os arranjos europeus realmente existentes e os que realmente existirão garantem a hegemonia da sua política. Poiares Maduro já provou saber entoar os amanhãs europeus que cantam e que ainda encantam uma esquerda destinada a ser permanentemente derrotada no que importa: precisamente na questão da hegemonia.

Nada de novo. O novo só pode mesmo surgir com o protagonismo político de outras classes, as subalternas, com uma outra articulação ideológica entre o económico e o político, com outro bloco histórico, com um movimento que funda a questão social e a questão nacional, nacional-popular, em suma.

À espera da Bika…

Que o segundo resgate haveria de vir, já ninguém tinha duvidas, há muito tempo. Gaspar terá sido o primeiro a pôr-se a salvo, bem informado que estava. Enquanto se preparam os detalhes nos bastidores, a coligação renovada tenta jogar a carta do crescimento e emprego como se alguém acreditasse que a Troika irá permitir uma real política de relançamento da economia. Mas diz que não é a Troika. Será talvez a Bika, e dizem que é mais mansa...

O FMI distanciou-se dos programas europeus por várias razões: primeiro porque de facto envolvem muito dinheiro, muito mais do que os programas de destruição (chamem-lhe ajustamento) dos países em vias de desenvolvimento, a que estava habituado. Depois porque, ao contrário desses países, os países europeus, serão talvez os únicos com força suficiente para pôr em causa os reembolsos ao FMI. Por outro lado, já nem o FMI tem o discurso austeritário europeu. Há poucas semanas Lagarde referia-se aos cortes orçamentais nos Estados Unidos como feridas orçamentais (“fiscal wounds”) que punham em risco a economia mundial. Nesse discurso Lagarde alertava também para a necessidade de se aumentarem os tetos de dívida dos EUA, discurso totalmente incompatível com a ortodoxia europeia (e com as politicas efetivamente aplicadas pelo FMI, diga-se de passagem).

Numa Troika em que o FMI é o policia bom de serviço, alguma coisa está definitivamente mal. A Bika do BCE e da Comissão Europeia não vai ser melhor.

Serão uma vez mais instituições europeias pouco democráticas a controlar os programas, subjugando os países periféricos às decisões de um centro que apenas as tornará os programas mais amigos do emprego se decidir que isso será o melhor para as suas próprias economias. Mas nunca largará a destruição dos serviços públicos, nem a privatização dos bens comuns ou a estratégia de fazer do trabalho a principal almofada do ajustamento com a precariedade e a descida dos salários como fatores de competitividade.

Não há exportação de pastel de nata que faça desta Bika um bom remédio.

domingo, 7 de julho de 2013

Steve Jansen: Conversation over


Que fazer neste país?


Num texto sombrio, José Luís Peixoto, no meio de fundado pessimismo e atento aos sinais de um país que se esvazia de vitalidade, deixa uma frincha por onde entra um luminoso otimismo da vontade: «É preciso fazer alguma coisa neste país». Que fazer então neste país? Proponho que se encare previamente uma outra questão: qual é a força decisiva da política de austeridade e dos interesses muti-escalares que serve? Fazê-lo pode ajudar-nos a enfrentar uma ideia que, atormentando ainda alguns espíritos, não pode mais ser evitada nas presentes circunstâncias: se as forças de esquerda querem fazer alguma coisa neste, com este e deste país, têm de levar a sério a ideia de que isto pode ainda ser um país, ou seja, que Portugal, enquanto Estado-nação com uma – contestada e contestável – história feita em comum, pode e deve ainda aspirar a reconquistar a soberania nacional que, historicamente, tem revelado ser condição necessária para uma democracia com efetivos protagonismo popular e capacidade redistributiva [referências omitidas].

O resto do meu artigo em defesa de uma aposta política nacional-popular pode ser lido no Mdiplo deste mês.

sábado, 6 de julho de 2013

Um jornal para tempos difíceis

Neste regime, aquilo a que chamamos crise política é a fase que se instala quando se torna evidente para a maioria da população que a resposta austeritária, seja ela aplicada com maior ou menor convicção, está estruturalmente desenhada para rebaixar as condições de vida dos que menos têm, das classes populares às classes médias e aumentar os lucros dos mais poderosos. A crise política não é, neste sentido, um mero episódio com estes ou aqueles protagonistas, mais «incompetentes» ou com mais «sensibilidade social», mas uma etapa que tenderá a repetir-se com vários actores, por vezes por causa deles e outras apesar deles. Em processo de aceleração, poderá triturar lideranças políticas, umas atrás das outras, como se de uma linha de montagem se tratasse, e poderá determinar a morte, o rearranjo e até o surgimento de novos actores político-partidários, deixando porventura irreconhecível a paisagem que hoje conhecemos, em Portugal como noutros países.

Sandra Monteiro, Três tempos e uma crise política, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Julho 2013.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

A política de Gaspar continua!


Enquanto a velha ordem morre e a nova não nasce ainda surge uma grande variedade de sintomas mórbidos.
Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere 

O mesmo título dos meus últimos dois posts, agora com um irritante ponto de exclamação. É claro que se depender de quem comanda, a partir de fora e de dentro, mas sobretudo com a força de fora, a economia política nacional, este governo dura para lá de tudo o que seria previsível, para lá de toda a surpresa. Portas já levou uma lição sobre a autonomia relativa do político: os interesses capitalistas dominantes, a sua base, para os quais a incerteza política é insuportável neste contexto, obrigam-no a recuar, “a ser humilde”, como o aconselhou ainda ontem o seu próspero camarada Nobre Guedes.

O efeito paradoxal destes poderes, que aspiram a não ter contra-poderes, é o de prolongar a morbidez por tempo indeterminado, provavelmente até o segundo resgate, com esse ou com outro nome, que será a continuação da mesma lógica, estar definido, até Seguro se ter comprometido com um documento, chame-se-lhe memorando ou não, que o torne apto a “governar”.

Entretanto, a responsabilidade pela morbidez de um governo dos credores está também nos representantes destes últimos; acham que está tudo a correr bem e para eles e para os seus até que está, por enquanto: graças a Schauble e a Draghi, Maria Luís Albuquerque tem a legitimação de que precisa para o programa de sempre, com os efeitos de sempre. Morbidez também pela força dos interesses do capital financeiro interno que está articulado com um exterior de que depende: “Banca delega nas mãos dos políticos resolução desta crise”. Pedro Lains tem toda a razão quando diz que este é um dos títulos mais reveladores da economia política inter-nacional dos últimos dois anos.

Morbidez, finalmente, devido ao comentário económico dominante na televisão, aquele que é feito por jornalistas que gostam de se roçar nos fatos dos banqueiros e que ganham o suficiente para aspirar a ter fatos quase tão bons.

O novo só pode nascer se a fórmula que está sendo cozinhada lá em cima for rejeitada na rua, cá em baixo, pelos de baixo. É simples de dizer, difícil de fazer. Estejamos atentos às cenas das próximas lutas...

Esqueçamos o crescimento

Na reunião com o Presidente da República, o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, admitiu o que há muito é inegável: não atingimos as metas do programa de assistência porque os pressupostos macroeconómicos incorretos e os multiplicadores que espelham o impacto do corte orçamental no PIB foram subestimados. Claro que há uma questão mais profunda que é a própria desadequação das políticas, mas já sabemos que isso não será admitido nos próximos tempos.

No que diz respeito à dívida pública, afinal o PIB não (de)cresceu do modo que era previsto e portanto, o seu rácio em percentagem do produto aumentou muito mais do que a baseline da troika previa. Falhámos, claro. Não é surpreendente: as previsões de sustentabilidade da dívida basearam-se em previsões de crescimento do PIB impossível com esta política.

Como resolver este problema? Estimular o crescimento do PIB? Cortar na dívida? Não. Para Carlos Costa podemos começar por uma solução mais simples: passar a usar metas nominais de dívida e défice em vez de definir os objectivos em proporção do PIB. Isto é, literalmente, retirar o crescimento da equação.

No momento se começa finalmente a admitir o erro que foi ignorar a necessidade de estímulo ao crescimento económico. Quando se fala noutros países em reestruturações (e mesmo emissões de dívida) com pagamentos indexados ao crescimento do PIB para garantir uma ação contra-ciclica na economia e maior justiça para as populações, o governador do Banco de Portugal, propõe-nos que esqueçamos o PIB nas metas orçamentais, em vez de propor o crescimento do PIB como um objectivo em si dos programas.

Realmente esta coisa de o produto não parar de cair e de nos dar cabo dos rácios (tão bem) previstos, é mesmo um aborrecimento...

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Intoxicação financeira

Com a turbulência política, começou uma intensa campanha nas televisões. Tudo com o mesmo sentido: a bolsa caiu, as taxa de juro no mercado secundário aumentaram; a “credibilidade externa” está ameaçada; o segundo resgate está ao virar da esquina; eleições são o pior que podia acontecer, etc.

Calma, respirem fundo. Primeiro o significado da queda da Bolsa: pouco ou nenhum. Há muito que as empresas portuguesas não se servem da bolsa como fonte de financiamento. A sua utilidade económica e social é nula. Para mais, qual foi o volume de negócios na bolsa ontem? Pois. As declarações de Seguro, "perdemos 2,5 mil milhões de euros", roçam a iliteracia. Entretanto, com a recuperação de hoje, esses milhões já voltaram?

Depois, as taxas de juro. Os paralelismos com a situação de há dois anos são idiotas. Nessa altura, Portugal tentava tudo para se financiar nos mercados. A taxa de juro praticada nos mercados tinha assim influência no custo da dívida. Neste momento, com o resgate financeiro, Portugal não tem necessidade de se financiar nos mercados. O financiamento da troika, as recentes emissões e as reestruturaçõezinhas da dívida portuguesa fazem com que Portugal tenha financiamento garantido durante quase um ano. A recente volatilidade nos mercados não influencia as taxas de juro pagas pelo Estado neste momento. De qualquer forma, qual foi o volume de negócios do mercado da dívida portuguesa ontem? Com um terço da dívida nas mãos dos credores oficiais e outro terço nas mãos de credores privados nacionais, não me parece que as vendas tenham sido significativas num mercado provavelmente moribundo e, logo, facilmente manipulável.

Finalmente, o importante. A credibilidade externa e o segundo resgate. Sejamos claros, os mercados financeiros são aqui irrelevantes. O que interessa é o papel das instituições europeias, em particular, do BCE. Como envergonhadamente os propagandistas nacionais vão admitindo, não existe nem existia nenhum rumo financeiro pós-troika - basta ver os dados do post abaixo do Nuno Serra -, mas sim um "programa cautelar" que substituirá o actual resgate. Se o BCE/MEE indicarem o apoio financeiro previsto, condicional a um segundo memorando, a turbulência nos mercados financeiros desvanece-se. A credibilidade externa diz assim respeito somente às instituições que nos tutelam. Elas é que decidem a forma do inevitável "segundo resgate". Arriscando um pouco, não me parece que a UE opte pelo modelo grego, com reestruturação da dívida e perdas significativas para privados neste momento, sobretudo se lhe forem dadas garantias de que, qualquer que seja o resultado eleitoral, o país continua no caminho da austeridade.

A escolha é, pois, clara: ou enfrentamos a troika, declaramos uma moratória sobre a dívida e preparamo-nos para todos os cenários (o que obviamente inclui a saída do euro), ou nos submetemos à sua condicionalidade, como parece ser a escolha de Seguro, e fica tudo na mesma (cada vez pior). Se há algo que estes últimos dias nos demonstraram é que esta não é meramente uma escolha sobre política económica. É uma escolha sobre a democracia.

O balanço


Tinha Vítor Gaspar acabado de se demitir e não estava ainda o governo ligado à máquina por Cavaco Silva, no estado vegetativo que não sabemos por quanto tempo se prolongará, e já alguns defensores mais afoitos do actual executivo se preparavam para reescrever a história recente e tentar moldar narrativas convenientes para os tempos mais próximos.

José Gomes Ferreira, por exemplo, a 2 de Julho na SIC, quando perguntado sobre se a saída de Vítor Gaspar era uma boa notícia, respondeu de imediato que não e que o resultado seria a (obviamente) previsível subida das taxas de juro da dívida nos próximos dias. Mas esqueceu-se, contudo, de referir que as mesmas taxas, a 10 anos, têm justamente estado a subir desde 21 de Maio (depois de terem atingido, nessa altura, os cerca de 5,2%), chegando a aproximar-se dos 7% a 25 de Junho. Isto é, com Gaspar ainda no pleno exercício das suas funções.

Um pouco mais subtil, João Miguel Tavares, em artigo no Público do mesmo dia, tenta de algum modo recuperar a tese do «Estado gordo», procurando assim justificar a saída de Gaspar e, ao mesmo tempo, dar o mote para um embuste conveniente, a servir à opinião pública nos tempos mais próximos. Segundo Tavares, o ex-ministro das Finanças teria confessado o maior dos seus erros não na carta que enviou a Passos Coelho, mas sim em declarações proferidas no início de Junho, quando considerou que devia ter começado pela «transformação estrutural profunda das administrações públicas», em vez de «dar prioridade à consolidação orçamental e à estabilização financeira». Para João Miguel Tavares fica um desafio: se os sucessivos cortes em sectores como o da saúde, da educação e da protecção social (em recursos humanos e noutras rubricas de despesa, com as consequências que se conhecem) não foram ainda suficientes para que se possa falar na concretização da «tão badalada reforma do Estado», que demonstre (e quantifique) o que falta fazer. E, já agora, que avalie os impactos sociais e económicos dos cortes efectuados e dos que se lhe devem, em sua opinião, seguir.

Enquanto o governo não se fina oficialmente, convém pois que se tenha noção dos prodígios que realizou nos últimos dois anos. O gráfico ali em cima compara as previsões, para 2013, da versão original do Memorando de Entendimento, com as previsões fixadas na Sétima Revisão do programa. O desemprego está cinco pontos percentuais acima do previsto em Junho de 2011; as exportações (o motor exclusivamente escolhido para a retoma) quase seis pontos percentuais abaixo e as importações, em negativo, a reflectirem fundamentalmente o estado de destruição da economia. A procura interna, que em Junho de 2011 se estimava pudesse rondar os -0,4% em 2013, aproxima-se afinal dos -4,0%, com evidentes consequências na quebra das receitas fiscais e no aprofundamento da recessão. O défice, esse magno objectivo, que se supunha atingir no corrente ano os exigidos 3,0%, estima-se agora (irrealisticamente) que possa afinal fixar-se em 5,5% (quase o dobro). E, a somar a tudo isto, o fracasso total na meta da dívida pública, que deveria situar-se - de acordo com as previsões iniciais para 2013 - em 115%, mas que se prevê alcance afinal os 123% do PIB.

É deste cenário dantesco - agravado pelo resultado do défice no primeiro trimestre (10,6%) e pela impossibilidade de concretizar o delirante corte de 4.700 milhões de euros na despesa pública até 2014 (no âmbito da famigerada «reforma do Estado») - que Gaspar e Portas fogem a sete pés. No navio que se afunda, apenas Passos Coelho e sua comandita continuam alapados ao casco, convencidos de que ainda não é altura de largar «o pote».

quarta-feira, 3 de julho de 2013

O impasse


Esta crise política é inerente ao processo de degradação a que o país está sujeito enquanto membro periférico da Zona Euro em crise. Nunca é demais dizê-lo, estamos a viver uma crise terminal do núcleo central da União Europeia sendo Portugal um dos principais focos desta crise.

A estratégia de “desvalorização interna” com “reformas estruturais” (demolição do Estado social) está a produzir o desastre que, à luz da economia política mais fundamentada, seria de esperar. Vítor Gaspar sai porque percebeu que afinal não tem condições políticas para conduzir um “ajustamento” a ferro e fogo à maneira de Domingo Cavallo na Argentina amarrada ao dólar. Por seu lado, Paulo Portas percebeu já há alguns meses que esta política é insustentável. Tudo ponderado, decidiu que era chegado o momento de abandonar o navio até porque a nova ministra não representa qualquer mudança na política económica. No fundo, Portas concorda com Seguro. É preciso tempo para conseguir um equilíbrio nas contas públicas que seja apoiado por crescimento económico, sendo este promovido apenas pelo lado da oferta como está instituído nos tratados da UE.

O teatro de baixa política a que o país está a assistir, com um Presidente da República aparentemente alienado, é indissociável da degradação que a Zona Euro impôs à democracia nos estados membros. Para salvar uma integração monetária que pôs os estados europeus nas mãos do sistema financeiro e dos capitais especulativos mas não criou – nem teria condições políticas e culturais para criar – um estado federal democrático dotado de política orçamental que responda perante as regiões mais frágeis, só resta ao poder central (Bruxelas-Berlim-Frankfurt) subjugar os povos e travar eleições abertas, com alternativas e não apenas alternâncias, porque são um risco, o da eleição de um governo que ouse defender o interesse nacional rompendo com o sufoco do euro.

Mais tarde ou mais cedo haverá eleições e o tempo do desengano conhecerá uma nova etapa. Um futuro governo presidido por António José Seguro será bem acolhido. Preparando o caminho, já telefonou a gente da finança para ganhar respeitabilidade. Fala também da importância da credibilidade. Uma vez eleito, e após um incidente inicial para mostrar que pelo menos tentou, prosseguirá na via sacra do segundo resgate porque as regras da moeda única são para cumprir, pelos vistos a qualquer preço.

Como tenho defendido, para sair deste impasse é preciso sair do euro. Porém, ainda nos falta criar a proposta política que vai liderar este processo de libertação, incluindo a libertação do medo com que muitos economistas querem paralisar os portugueses. É urgente dar razões de esperança aos portugueses.

A política de Gaspar continua?

O mesmo título do último post, mas com um crucial ponto de interrogação. Este aponta para uma exigência básica de clarificação democrática: eleições, já. Toda a força social tem de estar concentrada aqui, tem de se multiplicar a mesma força que permitiu a vitória dos professores, da escola pública.

Bem sei que os economistas zumbi vão andar por aí, de novo e em força, tal como há dois anos atrás; o mesmo cortejo fúnebre da economia portuguesa composto por ex-ministros das finanças, banqueiros, especuladores, desculpem, analistas de mercado. Há dois anos atrás garantiam-nos que o programa da troika era a melhor coisa que tinha acontecido à economia portuguesa, uma oportunidade. Agora, a fraude é outra: assim se perde a credibilidade conquistada nos últimos dois anos junto dos credores. Credibilidade é o outro nome para a conveniente subserviência de um governo ao serviço dos credores e que assim bateu todos os recordes: de destruição de emprego, de colapso do investimento, de recessão, de aumento do fardo de uma dívida impagável.

Desta forma, adiou-se uma reestruturação da dívida urgente num país que tinha e tem dinheiro para pagar pensões e salários, mas não tinha e não tem para pagar pensões, salários e o serviço da dívida. O debate eleitoral voltará, num novo, e espero que mais esclarecido, contexto, aos assuntos de há dois anos atrás: que compromissos são privilegiados? Os partidos têm de se posicionar sobre isto, respondendo a uma outra pergunta ainda mais concreta: denunciam o memorando ou mantêm a política de Gaspar com outro figurino governativo? Denunciar é mesmo a palavra-chave.

Denunciar o memorando e iniciar um duro processo negocial, usando as armas dos devedores, na linha da proposta, entre outras, do Congresso Democrático das Alternativas, é o ponto de máxima unidade e que começa a enfrentar a contradição principal, iniciando um indeclinável processo de resgate de Portugal que tem de enfrentar todos as chantagens, todos os medos, recuperando os instrumentos de soberania necessários para sair da crise. Caso contrário, a política de Gaspar continuará, e pode até chamar-se segundo resgate, porque está inscrita em estruturas europeias que permanecerão intactas. A desobediência e a rebelião democráticas começam mesmo pelos elos mais fracos. Para isto, toda a confiança democrática será necessária.

Qual é a alternativa?

segunda-feira, 1 de julho de 2013

A política de Gaspar continua

Esquecendo, por exemplo, as partes em que fala do “interesse de Portugal”, devemos levar a sério a carta de demissão de Vítor Gaspar, o até agora mais convicto e poderoso representante dos interesses dos credores externos e das suas convenientes fantasias económicas, ou não tivesse sido co-responsável por uma destrutiva politica de austeridade que foi e é a expressão da “prioridade à restauração da relação fiduciária com os credores oficiais e privados”. A política do memorando e do eventual programa dito cautelar, em suma.

Entre outros elementos, a carta indica-nos dois dos obstáculos internos a uma destrutiva tutela externa inscrita nas regras do euro: uma constituição democrática e quem age como se esta não estivesse suspensa, como se o país ainda tivesse soberania, e a mobilização social contra a política de redistribuição de baixo para cima e de dentro para fora, de resto a mesma mobilização popular graças à qual temos uma constituição pela qual ainda vale a pena lutar.

Não é por acaso que a troika mostra agora preocupações com o precedente aberto pela tenaz luta dos professores em defesa dos seus postos de trabalho e da escola pública. É destas lutas que pode emergir uma desobediência nacional que tarda.

Esta carta também é um documento de alguém em constante luta contra a realidade: do défice como variável endógena à procura que faz mexer a economia. Para lá de Gaspar, o que temos de superar são as estruturas que garantem o poder a pessoas com a mesma política de Gaspar.

Da União Bancária


Com a iminência da desagregação da zona Euro no ano passado, a UE decidiu tentar resolver uma, das muitas, insuficiências institucionais do Euro. A crise financeira tinha deixado claro um problema maior do Euro: o papel banca. Se é certo que o BCE e o Eurosistema conseguem resolver os problemas de liquidez - vulgo, financiamento de curto prazo - da banca europeia, os problemas de solvabilidade - vulgo, falências – permaneceram uma responsabilidade de cada Estado europeu. Assim, com a crise financeira internacional e consequentes perdas maciças no sistema bancário, os Estados foram chamados a salvar os bancos. Para lá do custo para os cidadãos (bem claro no caso português com o BPN), porque é isto um problema do Euro? Porque a capacidade financeira de cada Estado varia radicalmente dentro da zona Euro, como também bem sabemos. Assim, um euro depositado num banco português não tem o mesmo valor que um euro depositado num banco alemão. O caso do Chipre, onde foram introduzidos controlos de capitais, tornou esta hipótese numa realidade bem tangível para os seus cidadãos. Com euros a valerem coisas diferentes na mesma zona monetária não pode haver união monetária. Passamos a ter euros portugueses, euros cipriotas, euros alemães, etc.

Uma união bancária europeia tenta responder a este problema. Transferindo a supervisão bancária e, sobretudo, os mecanismos de resolução bancária para o espaço europeu, procura-se quebrar este forte elo entre banca e Estados sem autonomia monetária. No entanto, o acordo desta semana está longe de se traduzir numa verdadeira união bancária. É certo que com o esquema de resolução bancária acordado, os Estados estarão menos obrigados a correr e salvar a banca, já que estão previstas perdas, primeiro para os accionistas, depois outros credores (obrigacionistas), em seguida depositantes com mais de 100 mil euros e, no final, o Estado. Como bem assinala Wolfgang Munchau neste artigo, dificilmente este arranjo connseguirá quebrar o laço Estado-banca, já que, sendo os credores da banca sobretudo nacionais, o risco não sai de cada Estado. Não é gerido à escala da moeda. Existe ainda a possibilidade do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MES) mobilizar até 60 mil milhões de euros para a recapitalização bancária. Mas além de claramente insuficiente para o espaço europeu - lembrem-se que só o custo da recapitalização espanhola é superior a esse valor -, as regras impostas ao MES, do ponto de vista de garantias colocadas de lado, aparentemente equivalem a uma garantia da sua inoperância. Este novo esquema de união tem pouco. Tendo em conta o estado frágil da banca europeia neste momento, o futuro próximo é pouco risonho para a zona euro.

Chegados aqui, importa perceber a razão do falhanço desta união. É má vontade? Qualquer esquema real que mutualizasse o risco bancário ao nível europeu corresponderia à eventualidade dos contribuintes alemães, através do seu orçamento nacional, pagarem directamente a factura da banca falida espanhola. Algo de politicamente impossível nos tempos que correm.Outra deficiência desta união monetária torna-se assim visível. Sem recursos federais que apoiassem a união bancária, como acontece nos EUA com o orçamento federal, esta torna-se uma miragem. O que nasce torto...