domingo, 30 de abril de 2023

Querido diário - Baixos salários e a carestia de vida na mira da Polícia

Jogo de Futebol entre SLB e FCP, 1956

Foi há 67 anos.

“A carestia de vida que dia-a-dia se agrava, a falta de alguns géneros da primeira necessidade, a pobreza dos salários e de vencimentos dos funcionários de menor categoria, dão lugar a queixas que se exteriorizarão em protestos, mais ou menos, violentos, quando a ocasião os permitir. Fala-se da alta de preços e da impunidade que parece rodear esta especulação e este dize tu direi eu não se limita aos centros urbanos, pois faz-se sentir grandemente nos meios rurais, onde a crise de desemprego, por motivo de inconstância do tempo e das baixas jornas (20$00 de sol a sol), mais perniciosa se tem tornado. Se não fosse o enfraquecimento do “partido” devido à repressão policial (27 “funcionários” presos de 1950 a 1955) e a diminuição da agitação nas classes operárias e nos meios rurais, pelas razões já expostas, poderiam, ter-se já dado acontecimentos de certa gravidade." (Informação da PIDE para o presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, 18/4/1956)

 

Nessa altura, a repressão política não era apenas violência repressiva. Não era apenas um regime de partido único (União Nacional/Acção Nacional Popular), sufragado em eleições falcatruadas desde o recenseamento eleitoral. Não era apenas um regime de um organismo ideológico-policial dentro do aparelho do Estado.  

A PIDE representou uma das peças essenciais articulada com a política do dito Estado Novo para criar as "melhores" condições políticas a uma dezena de grupos económicos, financeiros e monopolistas, detidos por um punhado de  famílias privilegiadas. Impôs-se pela força baixos níveis salariais e de vida, o empobrecimento, o analfabetismo (em 1960, 40% dos portugueses não sabia ler nem escrever e havia apenas 4 anos de ensino obrigatório) e o subdesenvolvimento social como condição de impedir uma maior consciência colectiva de classe, premissa para uma maior exploração e desigualdade na repartição do rendimento. 

Ao tempo de Salazar, cerca 61% do rendimento nacional cabia aos lucros e 39% aos salários. Essa era "a" tarefa da Polícia Política, instrumento do sistema capitalista, no seu regime mais violento e terrorista - o fascista. 

E quando hoje se assiste à forma violenta, provocatória e desabrida como a extrema-direita actua no Parlamento; ao mesmo tempo que vota ao lado dos partidos "institucionais" de direita todas as iniciativas políticas visando rebaixar o poder dos trabalhadores face ao poder empresarial e desvalorizar a parte dos trabalhadores na repartição do rendimento; não se pode deixar de sentir em democracia o cheiro da função do fascismo. Ou seja, a vontade de certos grupos económicos - potenciais financiadores da extrema-direita - de usar forçar uma mais acentuada deriva à direita para criar um regime livre de todos os constrangimentos que a Constituição ainda lhes cria, nomeadamente na salvaguarda do Estado Social e dos seus recursos. 

Veremos se as "linhas vermelhas" da direita não serão apenas boas intenções do momento. E se no momento da verdade, outros valores se erguerão. Cá estaremos. 


sábado, 29 de abril de 2023

Factos, valores e enviesamento ideológico dos economistas

 

No vídeo acima (com opção de legendas em português), Hilary Putnam, influente filósofo da ciência, explica que reconhecer a falsidade da dicotomia factos/valores não impede, pelo contrário, é condição necessária, da objetividade em ciência.  

Neste paper tenta estimar-se de forma quantitativa o nível de preconceito ideológico que atinge os economistas. Abaixo, tento aguçar-vos o apetite com duas das suas conclusões.

“A experiência fornece provas claras de que o preconceito ideológico influencia fortemente as ideias e os juízos dos economistas. Mais especificamente, verificamos que a alteração das atribuições de fontes de figuras mainstream para figuras menos/não mainstream reduz significativamente a concordância dos inquiridos com as afirmações. Curiosamente, este facto contradiz a imagem que os economistas têm de si próprios, com 82% dos participantes a afirmar que, ao avaliarem uma afirmação, apenas devem prestar atenção ao seu conteúdo e não às opiniões do seu autor.” 

“O efeito da orientação política nas opiniões dos economistas é ainda mais drástico quando examinamos a forma como as alterações nas fontes atribuídas afectam os economistas com diferentes orientações políticas. Mais especificamente, para os economistas de extrema-esquerda, a alteração das fontes apenas reduz o nível médio de concordância em 1,5%, o que é menos de um quarto do efeito global de 7,3% que discutimos anteriormente. No entanto, passar da extrema-esquerda para a extrema-direita da orientação política aumenta de forma consistente e significativa o efeito da alteração da fonte para uma redução de 13,3% no nível de concordância, que é quase 8 vezes (780%) maior em comparação com a extrema esquerda. Curiosamente, isto acontece apesar do facto de, em relação à extrema-esquerda, as pessoas da extrema-direita terem 17,5% mais probabilidades de concordar que, ao avaliar uma afirmação, só se deve prestar atenção ao seu conteúdo.”

A luta pelo pluralismo nunca está concluída e muito menos ganha. A meu ver, depois do 25 de Abril, talvez nunca, como agora, tenha sido tão importante defender a existência de condições para o debate. Perceber que, por muito que nos afiancem o contrário, há sempre alternativa.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

A Tirania do Mérito


Ontem fui à apresentação de Michael J. Sandel na Gulbenkian, onde expôs a sua crítica à ideia da meritocracia. Apesar de ainda não ter lido o seu livro sobre o assunto, a verdade é que a visão de Sandel não parece ser particularmente nova. No entanto, não deixa de ser uma ótima capacidade a de nos fazer repensar coisas que deviam ser óbvias, que é o que também vou tentar fazer. 

O mérito e a meritocracia estão no centro da nossa vida social atual, mas, apesar de tudo, são muito mal definidos. A minha definição é a de que o mérito consiste numa adequação entre meios e resultados de uma determinada ação humana. Dizemos que alguém tem mérito quando determinado resultado é considerado adequado, ou justo, em relação aos meios empregados, sejam eles talento, esforço, trabalho etc.

No seguimento, a meritocracia surge como um ideal social onde o princípio do mérito é aplicado na distribuição dos bens sociais, em particular rendimento, mas também honra, reconhecimento ou poder. 

A ideia do mérito e a aspiração à meritocracia são, assim, dos principais reguladores morais da nossa vida social. O princípio do mérito começa com uma visão benigna. Como notava Sandel, o mérito parece facilmente um melhor regulador do que uma aristocracia hereditária ou o nepotismo. Mas apresenta vários problemas.

O primeiro, e mais óbvio, problema com este princípio é se ele se verifica ou não na prática. Aí surge uma divisão importante. O mérito aparece, ora como uma descrição, ora como uma prescrição para a sociedade. 

Como uma descrição, o mérito assume-se como uma "justificação", próxima do seu significado teológico relacionado com a Salvação. 

Apesar das estatísticas que mostram a injustiça das desigualdades, é difícil avaliar a validade do princípio do mérito, porque os meios são em grande medida incomensuráveis. Não existe uma medida capaz de comensurar o talento, o esforço ou muitas vezes, o trabalho. Pelo contrário, os resultados podem, muito mais facilmente, ser contabilizados, seja monetariamente, seja através de rankings ou classificações. 

O mérito não pode ser medido, mas a necessidade de justificação mantém-se. Nesta circunstância, o mérito ressurge numa confusão entre os ditos meios e resultados, ou seja, passa a considerar-se que os resultados refletem de forma fiel os ditos meios, o dito esforço, o dito talento, o dito trabalho. 

Se uma visão moral do mérito consistia em, perante um resultado, avaliar se os meios para lá chegar se adequavam, esta visão possível consiste em assumir que perante um resultado, os meios para lá chegar foram, certamente, os adequados. Os resultados, em particular a desigualdade dos resultados, autojustifica-se. Desta forma, se temos desigualdades sociais elas tornam-se justas e se alguém está numa má situação, apenas se pode culpar a si própria. A reivindicação, a luta social, a crítica, a procura por um futuro melhor, tornam-se, quando muito, um assunto privado.

Em abono da verdade, esta não parece ser a visão dos teóricos do neoliberalismo, que procuram abandonar este problema, dizendo que ele não existe, retirando a moral da equação. Qualquer preocupação sobre se os resultados realmente se adequam aos meios empregues para lá chegar é fútil. Haver sorte ou desigualdades à partida é algo que acontece e é melhor ser um mercado livre a distribuir os fins do que um Estado que, de qualquer maneira, também não consegue medir os meios. 

É aqui que Sandel adquire uma real importância. Em primeiro lugar, quando nota que a retirada da moral da economia é artificial. A verdade é que qualquer um de nós sabe reconhecer critérios morais na distribuição dos resultados, sejam eles rendimento, poder, honra ou reconhecimento. Sabemos usar critérios de bem comum, de necessidade, de justiça. Sabemos reconhecer sorte. Sandel perguntava em certa altura, à plateia, se Cristiano Ronaldo merecia receber milhares de vezes mais do que "o melhor professor que tivemos na escola" e, 95% da plateia, obviamente, concordou que não. E sabemos também que a política tem a capacidade para moldar os resultados de acordo com critérios desses que sabemos assumir como mais ou menos justos. Aliás, é exatamente por esta capacidade que o princípio do mérito nos soa tão apelativo. 

Mas essa capacidade tem um lado subversivo. Por isso, assumir que já vivemos numa meritocracia é, apesar de tudo, necessário como justificação do neoliberalismo, para apagar exatamente estas posições morais que todos temos e que todos compreendemos facilmente. Quantas vezes ouvimos justificar a riqueza pornográfica de alguns com o seu mérito? Quantas vezes já ouvimos falar até em coisas bizarras como "mérito da família" para justificar diferentes pontos de partida? 

Assim, a coesão do sistema apenas se mantém se formos convencidos da sua justiça, de que os resultados espelham, de facto, os meios empregues para os obter. O princípio do mérito é, então, um apêndice moral essencial do próprio neoliberalismo porque retira da vista as injustiças por ele produzidas.

Quer isto dizer que, acreditando na capacidade humana de avaliar moralmente a adequação dos resultados, devíamos procurar implantar uma verdadeira meritocracia? Não. Nota Sandel que mesmo como prescrição (ou se assumíssemos que o princípio meritocrático era real), tal teria, na mesma, um efeito profundamente nefasto na nossa sociedade. 

A ideia de meritocracia emerge, na prática, como o desejo de uma sociedade tirânica, aristocrática, de castas, desigual por natureza, uma sociedade de vencedores que olham com nojo e arrogância para os vencidos, e de vencidos que olham de volta com ressentimento. Os vencedores tomam o rendimento, a riqueza, o poder. Uma sociedade onde tudo isso é justo com a justificação moral do mérito.

Qualquer semelhança com a realidade em que estamos mergulhados não é mera coincidência. 

Como descrição ou como prescrição, o mérito é uma ideia nefasta. No fim de contas, como ficou bastante claro na sessão de ontem, a meritocracia corrompe qualquer noção de bem comum e ameaça os próprios fundamentos da democracia que só pode existir entre iguais. A única solução é abandonar completamente a ideia do mérito e substituí-la pelo princípio da dignidade humana.


Diz que são factos

O Instituto +Liberdade, uma espécie de think thank não oficial da IL, publicou recentemente um gráfico em que sugere que os «portugueses utilizam cada vez menos os transportes colectivos (comboio, autocarro ou metro) nas deslocações para o trabalho ou local de estudo», num tom de aclamação do transporte individual. Para o efeito, recorre aos dados dos três últimos recenseamentos (2001, 2011 e 2021), ignorando olimpicamente que no ano de 2021 estávamos em plena pandemia, o que obviamente impede qualquer comparação séria com os censos anteriores.


A marosca (ou incompreensível leviandade) foi oportunamente assinalada pelo República dos Pijamas, que para o efeito partilhou gráficos ilustrativos da queda do número de passageiros nos comboios suburbanos (-84% entre dezembro de 2019 e abril de 2020) e no sistema metropolitano (-88%, no mesmo período). Isto é, uma variação consentânea com a descida, a nível nacional, para o transporte público rodoviário (excluindo táxis) e ferroviário, entre 2019 e 2020, na ordem dos -428 mil (-44%), como mostra o gráfico da direita.

Dado que a pandemia afetou incomparavelmente mais o transporte público que o privado, por óbvias razões, o ano de 2021 não serve, portanto, para o pretendido. Se o +Liberdade/IL quisesse fazer uma análise séria (ou sem ser em cima do joelho), utilizaria para por defeito o ano de 2019 (pré-pandemia). E se assim procedesse, chegaria a conclusões bem diferentes das conclusões a que chegou, como mostra a estimativa feita para esse ano na tabela seguinte.


De facto, comparando 2011 com 2019, constata-se que o transporte público é a única modalidade a registar um aumento de passageiros (a rondar os +0,6%), tendo o automóvel perdido cerca de 43 mil no mesmo período (-1,2%). O que significa que, em termos relativos, o automóvel assume em 2019 uma percentagem de 62,9% (e não os 66% que o gráfico do +Liberdade exibe), passando o peso relativo do transporte público de 16,5% em 2011 para 17,2% em 2019. O que não permite que se diga, como faz o +Liberdade na sua publicação, que nas últimas três décadas «o automóvel vai substituindo os restantes meios de transporte». Diz que são factos, mas vai-se ver e afinal não.

A Economia é para quem?


A economia é um dos principais destaques do debate público. Percebe-se que assim seja: nas últimas décadas, a maioria das discussões sobre as opções a tomar em áreas tão diversas como a provisão de educação ou saúde, os apoios sociais ou o acesso à cultura, são frequentemente feitas com base em argumentos económicos. As teorias económicas têm enorme impacto na forma como trabalhamos, como decidimos o que queremos produzir e como fazê-lo, como distribuímos os recursos produzidos – entre salários e lucros –, como lidamos com as dívidas e como definimos as prioridades de governação do país.

A forma como é feita a cobertura das principais tendências económicas (inflação, dívida, crescimento, impostos ou salários) e das opções orçamentais dos governos tem grande probabilidade de marcar os termos em que se desenrola a discussão e de influenciar a opinião pública. Embora isso talvez aconteça menos hoje do que há uns anos, por causa da ascensão das redes sociais, a cobertura jornalística continua a desempenhar um papel determinante no debate. É por isso que é importante ter atenção à forma como esta é feita.

O resto do texto pode ser lido no Setenta e Quatro.

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Tudo sempre ligado


Nos últimos 30 anos, o mercado de bens de luxo cresceu de forma quase ininterrupta, sobrevivendo a crises financeiras, tensões geopolíticas e até à pandemia. Em plena crise do custo de vida para a maioria das pessoas, o mercado de luxo atingiu máximos históricos.
Vicente Ferreira no twitter.

O porno-riquismo, o consumo conspícuo na era das desigualdades pornográficas, pode ser internacional, mas, como tudo na economia política, tem declinações nacionais específicas.

Por exemplo, em Portugal, uma das líderes nacionais no rentismo fundiário e no comércio de luxo é herdeira do capitalismo fóssil com super-lucros, Paula Amorim. O seu sócio na Amorim Luxury bem que disse um dia ao Expresso, numa frase de que certamente se arrependeu (demasiada economia política...): “não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classificados”.

Sim, isto está tudo sempre ligado.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Não é só em países distantes


Esta pancarta ilustra bem o ponto central de Clara Mattei, historiadora da economia política, num livro importante - The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism -, saído no final do ano passado. 

De facto, ao forjarem as políticas de austeridade, no início dos anos 1920, os economistas liberais não se limitaram a criar as condições objectivas para o fascismo, já que uns, em Itália e não só, foram participantes activos na passagem do fascismo de movimento a regime e outros foram os seus mais ou menos envergonhados apologistas: de Pareto a Pantaleoni e seus discípulos, passando por Einaudi, correspondente italiano da The Economist, cujos artigos foram aí sistematicamente elogiosos da política económica fascista de austeridade.

Recorrendo a ampla evidência textual, fruto de trabalho de arquivo e do engajamento com obras de economistas relevantes, Mattei indica como a austeridade foi uma reação de classe antidemocrática, movida pelo medo do empoderamento da classe trabalhadora, que requereu todo um trabalho de argumentação económica, articulado com várias formas de violência política estatal. 

Ao desenvolver o seu argumento historicamente informado, Mattei fornece uma útil elaboração conceptual das três formas articuladas de que a austeridade se revestiu e reveste: (1) austeridade orçamental, ou seja, cortes na despesa pública associada ao bem-estar e consolidação de um Estado fiscal regressivo; (2) austeridade monetária, ou seja, políticas deflacionárias, assentes na elevação da taxa de juro; (3) austeridade nas relações laborais, ou seja, todo o esforço regulatório e de política económica para garantir a disciplina e a hierarquia nas relações laborais, ou seja, para garantir direitos dos patrões e correlativas obrigações dos trabalhadores.

Num contexto marcado por iniciativas liberais, dentro e fora do governo, até dizer chega, trata-se de um livro de história que merece ser traduzido; bem traduzido, claro.      

  

Em defesa de Mamadou Ba, da liberdade e da democracia


O Ministério Público decidiu levar Mamadou Ba, um socialista, na linha da frente do combate antirracista, a julgamento por uma queixa por difamação de Mário Machado, um criminoso neonazi. O Ministério Público tem o dever de cumprir a Constituição.

Obviamente, estamos contigo, camarada. A liberdade e a democracia vencerão.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Olhos abertos para a economia política


Como Vicente Ferreira não se tem cansado de assinalar, a investigação do próprio Banco Central Europeu (BCE) tem assinalado como os lucros estão a aumentar muito mais fortemente do que os salários. 

No entanto, revelando os seus enviesamentos de classe e doutrinários, os responsáveis do BCE insistem em subir a taxa de juro para provocar desemprego e assim conter os salários. Em entrevista ao Financial Times, o governador da sucursal belga assinalou que se está a “subestimar” a continuação da subida da taxa de juro e que “só concordará em parar se o crescimento dos salários parar”. 

Sim, quando celebramos a democracia, temos de nos lembrar dos custos sociais que pagamos por termos entregue alguns dos mais importantes instrumentos de política a instituições manifestamente antidemocráticas e que contribuem, qual círculo vicioso, para gerar forças antidemocráticas.

domingo, 23 de abril de 2023

Fundamental


Ser verdadeiramente radical é tornar possível a esperança, em vez de convincente o desespero. 

O melhor que posso dizer deste livro é que é fiel à citação de Raymond Williams que encabeça o primeiro capítulo. 

Infelizmente, tenho de deixar uma nota de desesperança. Para lá do enviesamento ideológico na edição portuguesa, que faz com que a publicação de livros de economia política fundamental como este seja rara, a tradução deixa mesmo muito a desejar. Basta dizer que demand passa aí directamente a demanda (ao invés de procura) ou que fiscal policy passa diretamente a política fiscal (ao invés de política orçamental, que inclui a receita e a despesa, um erro já clássico). Enfim, para quem lê em inglês o site deste colectivo de economistas políticos oferece bons recursos. 

Seja como for, este livro chama a atenção para a tantas vezes invisibilizada “infraestrutura quotidiana da vida civilizada”, para os sistemas de provisão de bens e serviços necessários à vida de todos os cidadãos, distribuídos por “redes e ramificações”, da água canalizada às escolas, passando pela eletricidade, pelos serviços de saúde ou pelos lares. Ao visibilizar estes sistemas, sobretudo associados a um “consumo social” e que resultaram maioritariamente de iniciativas públicas, sublinha as lógicas das interdependências sociais. 

Estas lógicas têm sido erodidas pelo crescente controlo privado destes sistemas de provisão, geradores de rendas para um capital tão predador quanto crescentemente financerizado, com resultados geralmente negativos para a comunidade. 

Se o neoliberalismo é o esforço para tornar a ação coletiva impotente, este livro dá-nos pistas valiosas para reavaliarmos a forma como pensamos a economia: “não como um sistema de criação de riqueza liderado pelo setor privado, mas como um sistema de circulação de rendimentos que deveria difundir o bem-estar”. 

É preciso insistir contra as iniciativas liberais: os trabalhadores do sector público criam riqueza como os trabalhadores do sector privado. Os bens e serviços produzidos pelo sector público têm, pela sua natureza tipicamente não-mercantil, quando muito, um preço socializado a que chamamos imposto e o seu acesso tem, por isso, menos barreiras pecuniárias. Além disso, sem Estado não há sector privado, mas o contrário não é necessariamente verdadeiro. De resto, a despesa de uns, pública ou privada, é rendimento de outros.

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Abril ainda é das águas mil?

A 18 de abril de 2023, quando escrevo esta crónica, a previsão do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) para Santarém, a capital de distrito com a temperatura máxima mais elevada, é de 32°C; para Coimbra, onde vivo, é de 29°C. No início de abril, o território de Portugal continental foi atravessado por uma onda de calor, isto é, um intervalo de pelo menos seis dias consecutivos em que a temperatura máxima diária é superior em 5°C ao valor médio diário no período de referência. De acordo com o Boletim Climático do IPMA, março foi um mês quente e seco em Portugal continental; a 31 de março, 48% do território estava em seca meteorológica. 

Eventos extremos como as ondas de calor e as secas prolongadas tornar-se-ão mais frequentes e severos à medida que as alterações climáticas se intensificam. Há mais de 30 anos que o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) alerta para os riscos associados a este fenómeno, através dos seus exaustivos relatórios de avaliação (o primeiro foi publicado em 1990). A diferença fundamental é que, atualmente, esses riscos já não são longínquos e abstratos, são bastante reais, sobretudo para as aproximadamente 3,3 a 3,6 mil milhões de pessoas que, segundo o recente Relatório Síntese do IPCC, “vivem em contextos altamente vulneráveis face às alterações climáticas”.

O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro.

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Apoiamos


Existe também parte da esquerda liberal (peço perdão pela antonímia) descontente com a presença de Lula da Silva na Assembleia da República. Exatamente aquela parte da esquerda que não consegue aceitar análises da guerra da Ucrânia que ultrapassem frases simples e categóricas. A verdade é que aquele conflito serviu para aproximar essa parte da esquerda portuguesa à direita. Tem sido obrigatório observar, ou escutar, o uníssono que se criou e a caça que, em conjunto, fazem a quem se atreva a falar em paz ou em negociações diplomáticas. Que ideia tão inaceitável: há uma guerra e há quem pense em desenvolver esforços internacionais para acabar com ela.

Carmo Afonso 

Lula deu uma no cravo e deu outra na ferradura, ou seja, Lula não foi putinista, mas também não foi atlantista, e isso só é crime para fanáticos. O que Lula defende é, simplesmente, lúcido: ele quer procurar um grupo de países insuspeitos de serem aliados de qualquer uma das partes para abrir um diálogo que possa conduzir a Rússia e a Ucrânia até à paz (...) A escandaleira que eles, com a complacência e algum apoio do PSD, tentam provocar com a vinda de Lula nada tem a ver com a Ucrânia ou com a corrupção. É mesmo com o 25 de Abril, que lhes pesa na consciência política, e com o facto de Lula ser um político de esquerda vencedor, o que os enerva. 

Pedro Tadeu


A descida do IVA não funciona nem faz falta


A descida do IVA no cabaz de bens alimentares essenciais entrou em vigor esta semana e a avaliação inicial já permitiu perceber que o impacto é menor do que o esperado. Uma análise da DECO (Associação de Defesa do Consumidor) nota que "se os preços de 17 de abril se mantivessem a 18 de abril, a descida do IVA deveria ter-se traduzido numa poupança de €7,85. No entanto, contabilizou-se apenas uma descida de €4,66, o que comprova uma oscilação ascendente de preços de um dia para o outro."

Embora os preços tenham descido em 39 dos 41 produtos analisados pela DECO, na esmagadora maioria (36) a descida foi inferior à que se esperava face à redução dos impostos. Em declarações à TSF, a diretora de comunicação da associação disse que "há €3,20 que não estão a ser repercutidos ao consumidor", devido à subida dos preços base dos produtos, embora não se tenha identificado uma "razão transversal" para essa subida.

Não se pode dizer que este resultado seja uma surpresa face à experiência dos últimos anos. Os economistas Youssef Benzarti, Dorian Carloni, Jarkko Harju e Tuomas Kosonen, que analisaram todas as alterações do IVA nos países da UE entre 1996 e 2015, chegaram à conclusão que os preços tendem a subir bastante mais quando o IVA aumenta do que o que descem quando o imposto diminui. A repercussão nos preços após uma descida do IVA foi de apenas 13%, em média, no período em análise.

Ou seja, o que a evidência empírica nos diz é que as empresas se apropriam de boa parte das descidas do IVA e que a repercussão nos preços é muito reduzida. A capacidade de apropriação das empresas depende, entre outros fatores, da sua dimensão e do grau de concentração do mercado em que atuam. Embora a evolução dos preços dos alimentos registada pela DECO possa ter a ver com um aumento de custos de produção (mesmo que, na Zona Euro, estes venham a cair há já alguns meses) ou com uma apropriação de parte da descida do IVA pelas empresas, a segunda hipótese ganha força num setor como o da distribuição, em que os supermercados têm sido frequentemente multados pelo envolvimento em esquemas de conluio e concertação de preços.

Na prática, aquilo a que assistimos é à demonstração dos resultados de uma política económica liberal: um corte de mais de 400 milhões de euros na receita do Estado a troco de uma medida que tem, na melhor das hipóteses, impacto mínimo nos preços pagos pelos consumidores e que deixa intocados os lucros das grandes empresas. Não se pode dizer que medidas deste tipo façam grande falta.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Como é bem sabido, a «economia do pingo» não pinga

Segundo a última edição do Expresso, a desigualdade salarial nas grandes empresas quase duplicou nos últimos dez anos, com a remuneração dos gestores a aumentar cerca de 47,0% e a dos trabalhadores a recuar 0,7%. Em média, os CEO das empresas analisadas pelo semanário ganham 36 vezes mais que os trabalhadores, com a Jerónimo Martins (186 vezes mais) e Sonae (82) a liderar a disparidade entre os vencimentos médios e a remuneração do líder.

Aliás, se nos detivermos no universo comparável destas empresas, face a 2017, verificamos que em cinco anos esta disparidade passou de 160 para 186 no caso da Jerónimo Martins, e de 39 vezes mais para 82 vezes mais na Sonae, sendo raros os casos de empresas em que o fosso salarial diminuiu, neste período. E tudo isto com uma pandemia pelo meio e uma crise inflacionária que subsiste.


Fica assim claro, uma vez mais, à escala das grandes empresas, que a «economia do pingo» não funciona. E por isso desconfiem, quando ouvirem os partidos à direita defender que «primeiro é preciso criar riqueza para depois a distribuir», e que para isso é preciso reduzir os impostos e a sua progressividade, priorizar as empresas na atribuição de apoios públicos, ou conter salários e flexibilizar o mercado de trabalho. Desconfiem e lembrem-se do PSI 20.

terça-feira, 18 de abril de 2023

"Criminoso" em série

Ana Mendes Godinho ontem na Sic Notícias
 
Deve ser de haver demasiadas séries televisivas. 

O comportamento do Governo PS - com a cumplicidade dos militantes do seu partido - parece assemelhar-se ao de um criminoso em série que vai cometendo crimes sem plano enquanto a sua vida acontece e, à medida que verifica que não é apanhado, vai escalando a sua gravidade. Até que, um dia, faz um disparate e é apanhado. E nunca se saberá se foi um erro por ter atingido o seu nível de incompetência ou se foi uma inconsciente vontade de ser apanhado, porque estava farto da vacuidade do seu papel. 

Nesse dia, o PS - que, em 50 anos, foi deixando esturricar ("na gaveta") a palavra "Socialismo" - entregará o poder à extrema-direita ultra-neoliberal - ou à direita neoliberal coligada com a extrema-direita ultra-neoliberal - para no momento seguinte, já em oposição, se apresentar no Parlamento, a proferir os discursos mais à esquerda, próprios de quem pouco liga ao peso das palavras que usa. E um dia desaparecerá.

Há cerca de seis meses, o Governo PS - supostamente surpreendido pela subida da inflação - recusou-se a aplicar a fórmula legal de actualização das pensões, desenhada para manter o poder de compra dessas pensões. O primeiro-ministro (PM) disse então que nunca aprovaria medidas que pusessem em causa a sustentabilidade da Segurança Social, abrindo o dossier da reforma da Segurança Social que a direita - e a direita europeia - vem tentando há décadas (ver Caderno nº17). Agravando esse argumento, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social apresentou ao Parlamento, números que sabia estarem errados. O ministro das Finanças disse mesmo que a fórmula legal não fora construída para conjunturas de inflação elevada, parecendo pressupor que, nessas conjunturas, os pensionistas deveriam ter perdas de poder de compra. Face a isso, o Governo aprovou medidas cuja aplicação tinham pressuposto - ao desvalorizar o valor-base da pensão a actualizar em 2024 - uma perda de poder de compra das pensões nesse ano. Mas nunca o admitiu. Para se esquivar a essa intenção, a ministra remeteu todas as respostas para o trabalho da "comissão para a sustentabilidade das pensões" entretanto nomeada por si. Apesar disso, o secretário de Estado da Segurança Social adiantou - passando por cima da comissão e da ministra - que se estava a pensar numa nova fórmula de actualização - cuja expectativa era ser aplicada já em 2024 (!) - partindo de um valor médio da inflação de vários anos, de forma a "alisar" os valores de actualização e, consequentemente, dos encargos financeiros com as pensões em cada ano.

Mas ontem, o Governo deu um pontapé nisto tudo e de uma penada - sem nunca falar na insustentabilidade da Segurança Social ou nos trabalhos da comissão ou no alisamento da fórmula de cálculo - decidiu que, afinal, já era possível actualizar o valor-base das pensões em 2023 de acordo com a lei que o próprio Governo suspendera. E até prometeu que a lei seria aplicada estritamente em 2024. 

Os discursos do PM, da ministra Ana Mendes Godinho e de Fernando Medina passaram uma esponja sobre tudo o que disseram antes. Única razão aventada: fora tudo por prudência governamental. O que mudou? As respostas dadas são muito parcas e superficiais. E deixam no ar qual a verdadeira razão para esta reviravolta num tema tão sensível.

Segue uma longa, e ainda assim não exaustiva, cronologia dos factos atrás sintetizados (para memória futura):

Uma imagem de economia política...


... também pode valer mais do que mil palavras: o governo, enquadrado pelos, subordinados aos, pequenos grandes ditadores. Estes são os que fazem birras e que acumulam poder também à custa da falta de instrumentos de política e, logo, da falta de autoridade política. Isto já não é bem um Estado soberano, afinal de contas. E pensar que a Constituição da República Portuguesa rejeita a subordinação da democracia ao poder económico...

O povo merece +SNS


No âmbito do processo de criação, em curso, de um movimento social nacional em defesa do SNS, que se pretende seja duradouro, descentralizado, plural e inclusivo, terá lugar no próximo dia 21 de abril, sexta-feira, na Cantina Velha da Cidade Universitária, em Lisboa, a partir das 19h30, um jantar-convívio de apresentação do manifesto do movimento, devendo a respetiva inscrição prévia ser feita aqui (ou através do endereço: movimento.maissns@gmail.com).

Serão igualmente realizadas sessões de apresentação do manifesto no Porto e em Albufeira. No caso do Porto o jantar-convívio decorrerá também no dia 21 de abril, a partir das 19h30, no restaurante Monte Aventino (Praça Velasques) e, no caso de Albufeira, com a realização de um almoço-convívio a 22 de abril, sábado, a partir das 13h00, no restaurante Sabores do Poente.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

E o Papa Francisco, também?


Muito boa questão, a colocada por Vitor S. no twitter: «depois destas declarações, também é para proibir o Papa de vir a Portugal em Agosto?».

Os liberais dizem que vivemos acima das nossas possibilidades. Não caiam no truque

 

O deputado Carlos Guimarães Pinto (CGP), da Iniciativa Liberal, publicou um artigo de opinião no semanário NOVO no qual atribui a atual inflação às políticas prosseguidas pelos bancos centrais: “voltaram a injetar dinheiro na economia a um ritmo nunca visto […] como forma de garantir que os governos mantinham os rendimentos de quem ficava em casa sem trabalhar".

Recusando o aproveitamento da crise pelas empresas com poder de mercado, CGP ensaia uma nova versão do discurso sobre “viver acima das possibilidades” e diz-nos que a subida dos preços foi provocada pela injeção de dinheiro na economia e por um excesso de consumo. Como a argumentação não sobrevive ao confronto com os factos, vale a pena desconstruí-la. 

Expansão monetária: faltam evidências

A ideia de que a subida dos preços se deve à política monetária expansionista dos bancos centrais não tem muita adesão mesmo entre economistas ortodoxos como CGP. Parte da razão é o facto de a maioria dos bancos centrais ter apostado em políticas expansionistas há mais de uma década sem que isso tenha tido qualquer impacto visível na inflação.

Medidas como o quantitative easing, através das quais os bancos centrais injetaram dinheiro no sistema financeiro, reduzindo as taxas de juro e facilitando a concessão de empréstimos, começaram a ser aplicadas nos EUA em 2008 e seriam replicadas na Europa pouco depois. Curiosamente, CGP sublinha o facto de terem passado “20 anos quase sem inflação” sem referir um outro facto: o de, durante metade desse período, se encontrar em vigor o tipo de políticas monetárias que supostamente provocaria a inflação.

Excesso de poupança e consumo: de quem?

A par da política monetária, CGP culpa também o aumento das poupanças e, consequentemente, do consumo das famílias. O “recorde de poupança” alcançado nos confinamentos por causa da pandemia de covid-19 teria começado a ser gasto à medida que as restrições diminuíam, sem “resposta imediata do lado da produção, ainda ferida pelas perturbações sofridas no período dos confinamentos”, o que se traduziria no aumento generalizado dos preços.

No entanto, é preciso ter em conta que o “recorde de poupança” na pandemia não foi para todos, muito pelo contrário: se apenas 20% das famílias em seis países da Zona Euro (Bélgica, Alemanha, Espanha, França, Itália e Países Baixos) conseguiram poupar durante a pandemia, diz-nos um estudo do Banco Central Europeu (BCE), esse número é ainda mais reduzido no caso de Portugal. Um inquérito do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Banco de Portugal conclui que apenas 11% das famílias teve essa possibilidade.

Ambos os estudos mostram que o aumento da poupança foi sobretudo entre os mais ricos, os menos afetados pela destruição de emprego no início da pandemia e que tinham mais condições para ficar em teletrabalho. Não foi o caso de muitos trabalhadores com rendimentos mais baixos, que perderam empregos precários ou foram empurrados para situações prolongadas de layoff.

O Banco de Portugal explica que "os resultados do Inquérito à Situação Financeira das Famílias de 2020 apontam para que a poupança acumulada durante o período da pandemia tenha estado mais concentrada nas famílias com rendimento elevado que, em geral, têm uma propensão marginal a consumir mais reduzida". Em sentido inverso, 16% das famílias da Zona Euro (sobretudo as mais pobres) e 30% das portuguesas pouparam menos neste período.

Por outro lado, se olharmos para os bens alimentares em Portugal, a subida dos preços foi mais acentuada precisamente no ano em que o consumo real das famílias caiu pela primeira vez desde o período da troika. Embora as famílias tenham gasto mais em alimentação em 2022, os dados sobre o consumo real (isto é, descontando o efeito dos preços) mostram que cortaram neste tipo de despesa. Ou seja, não é o excesso de consumo das pessoas que tem feito subir os preços.

De onde vem, afinal, a inflação?

As origens da inflação têm muito pouco a ver com a política monetária e muito mais com os constrangimentos reais que se verificaram em setores específicos, com destaque para a energia (e, em menor escala, os bens agrícolas). As disrupções provocadas pela pandemia e pela guerra na Ucrânia levaram a que a oferta de matérias-primas essenciais não acompanhasse o aumento expectável da procura que resultou do fim gradual das medidas de confinamento e da reabertura da maioria das atividades económicas.

Neste contexto, os preços tendem a aumentar face ao desajuste entre a procura e a oferta. No entanto, isso acontece com maior intensidade em setores de natureza oligopolista, dominados por um pequeno conjunto de grandes empresas e onde a concorrência é quase nula. É isso que se vê nos setores da energia e da distribuição alimentar: tanto a nível nacional como internacional, um pequeno número de grandes petrolíferas, companhias de eletricidade e cadeias de distribuição dominam os mercados em que operam. Não por acaso, estes setores têm registado enormes ganhos à boleia da subida dos preços.

A investigação de Isabella Weber e Evan Wasner aponta uma explicação para o fenómeno: com os preços a aumentarem de forma transversal em alguns setores, em resultado da inflação em matérias-primas usadas na maioria dos processos produtivos, nenhuma empresa corre o risco de perder quota de mercado ao subir os preços. Neste contexto, as disrupções na oferta de alguns produtos deram a empresas com maior poder de mercado a oportunidade de subir os preços de forma a manter (ou até a aumentar) as margens.

Lucros como incentivo?

Nos últimos meses, as grandes empresas da energia e da distribuição alimentar têm registado lucros recorde. Nos Estados Unidos, as margens de lucro dispararam para o valor mais elevado desde a década de 1950. Na Zona Euro, a parte do rendimento produzido recebida pelo capital atingiu o valor mais alto desde 2007.

Com os salários da maioria dos trabalhadores a subir muito abaixo da inflação, as empresas viram a sua fatia do bolo aumentar. CGP argumenta que “esse aumento temporário de lucros é precisamente o que criará incentivos a que se produza mais, travando futuros aumentos de preços.” Sem surpresa, o argumento liberal é o de que o mercado produzirá o melhor resultado se não houver intervenção dos poderes públicos.

Neste caso, os lucros das energéticas permitiriam o reinvestimento na produção de energia, nomeadamente na renovável, mitigando a pressão sobre os preços. Mas não é isso que tem acontecido: na Europa, apenas 5% dos lucros extraordinários das maiores companhias energéticas estão a ser reinvestidos em energia verde. A prioridade do mercado tem sido a de remunerar acionistas através da distribuição de dividendos e de operações de recompra das próprias ações.

O que devemos fazer?

CGP diz-nos que deixar o mercado atuar é, “claramente, a forma mais apetecível de travar a inflação”. É provável que seja verdade para os mais privilegiados, como os gestores e acionistas de grandes empresas que conseguem proteger os seus rendimentos, mas não o será para a maioria das pessoas que têm perdido poder de compra.

No ano passado, o salário médio em Portugal caiu mais de 5% em termos reais, ficando bastante abaixo da subida dos preços do pão, dos cereais (14%), do leite, dos ovos (14,1%) ou da carne (15,5%), bem como do aumento dos preços registado nos combustíveis (20,7%), na eletricidade (22,2%) e no gás (32,9%).

Enquanto muitos economistas alertam para o risco de espirais inflacionistas provocadas pelos salários, os dados do BCE mostram que os lucros e as margens das empresas estão a aumentar de forma mais acentuada que os salários na maioria dos setores. Na verdade, a história das últimas décadas tem sido esta: com a queda da sindicalização, o fator trabalho recebe uma parte cada vez menor do rendimento total. Tanto nos EUA como na Zona Euro, as taxas de sindicalização caíram a pique nas últimas décadas, o que foi acompanhado pela redução da parte do rendimento produzido recebida pelo trabalho (e pelo aumento da parte recebida pelo capital).


Com a sindicalização em mínimos históricos, os trabalhadores têm cada vez menos poder negocial no conflito distributivo inerente à inflação. A pressão para aumentos salariais é, por isso, muito menor do que na última grande crise inflacionista na década de 1970. Se a isso se juntar a política monetária recessiva do BCE e as medidas de contenção salarial de governos como o português, o resultado é uma transferência de rendimento da base para o topo.

CGP diz que quem refere o papel do aumento dos lucros no atual surto inflacionista "confunde causa e consequência". É provável que algumas empresas (com elevado poder de mercado) se estejam a aproveitar do contexto para expandir as suas margens e que outras estejam apenas a preservá-las perante a subida dos custos de produção. Mas isso não deixa de revelar um problema de fundo: o facto de os custos da crise estarem a ser quase exclusivamente imputados a quem tem menos poder reivindicativo – os trabalhadores.

Uma política económica progressista tem de ter como prioridade o reforço dos salários (e das pensões): os custos do trabalho não podem ser os únicos impedidos de aumentar neste contexto e os aumentos podem ser acomodados pela compressão das margens de lucro e pelo crescimento da produtividade. A prazo, a resposta aos problemas estruturais passa pelo investimento público, nomeadamente no setor da energia – o epicentro da inflação. O planeamento público é indispensável para direcionar os investimentos para a produção energética ambientalmente sustentável e se criarem mecanismos de redistribuição socialmente justa dos ganhos.

Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.
 

domingo, 16 de abril de 2023

Múltiplos


Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança colectiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos. 
Constituição da República Portuguesa

Todos sabem que fiz a proposta de um G20 da paz. Quando houve a crise econômica, rapidamente criamos um grupo para discutir a questão econômica. Conversei com o Xi Jinping sobre esse assunto, e agora falei com o Emir. Estamos criando um grupo de países interessados na paz.
Lula da Silva

Num mundo multipolar, há uma multiplicidade de países, com mais poder, interessados na paz e na criação de uma ordem internacional que supere blocos militares e unipolaridades anacrónicos. 

Em Portugal, na Assembleia da República, há uma minoria política que está com este espírito. A fazer fé nas sondagens, somos muito mais fora da AR. Também por isso, será muito bom receber o Presidente Lula da Silva no dia 25 de Abril. 

sábado, 15 de abril de 2023

Ecossocialismo ou barbárie?


É cada vez mais urgente construir uma alternativa ecossocialista a um capitalismo que está em guerra contra os povos e contra o planeta. O planeamento democrático nacional e a paz internacional poderão renovar a esperança num futuro em que seja mais fácil imaginar o fim do capitalismo do que o fim do mundo.

Iniciativa dos Comuns

Aproveito para deixar uma crónica que escrevi no setenta e quatro sobre o tema:

As alterações climáticas são uma das manifestações mais perniciosas de uma crise ecológica planetária que ameaça a vida na Terra e acentua desigualdades geográficas, socioeconómicas e ambientais. Com efeito, as alterações climáticas afetam desproporcionalmente camadas da população estruturalmente empobrecidas e invisibilizadas, nomeadamente as mulheres, as crianças, os idosos, as pessoas racializadas, os povos indígenas, os migrantes e os refugiados.

Embora nos seja frequentemente apresentado como um mero exercício tecnocrático, o combate às alterações climáticas é eminentemente político, constituindo um terreno fértil para a contestação e construção de alternativas, desejavelmente à esquerda. Tal implica colocar a luta de classes, o género e a raça no centro do debate, revelando como as suas múltiplas intersecções vulnerabilizam determinadas comunidades num cenário de intensificação das alterações climáticas.

Torna-se imperativo reconhecer que o sistema capitalista explora, simultaneamente, os trabalhadores e a natureza, depende de trabalho reprodutivo não remunerado e assenta e perpetua as desigualdades de género e o racismo. O combate às alterações climáticas parte, pois, da imaginação e edificação de futuros anticapitalistas, feministas e antirracistas.

Uma proposta radical chega-nos do Ecossocialismo, uma corrente de pensamento e um movimento que procura aliar os ideais fundamentais do marxismo à ecologia crítica. O seu princípio basilar está contido na seguinte formulação: não pode haver uma verdadeira revolução ecológica que não seja socialista, e uma verdadeira revolução socialista que não seja ecológica.

O Ecossocialismo expõe uma contradição insanável: a expansão do modelo de produção e consumo dos países capitalistas avançados, alicerçado na acumulação de capital e lucro, no extrativismo e nos combustíveis fósseis, colide com os limites biogeofísicos do planeta, intensificando a crise ecológica e as desigualdades multidimensionais que dela decorrem.

O objetivo primordial do Ecossocialismo seria construir uma sociedade fundada na democracia, na igualdade e no respeito pelos limites ecológicos do planeta. Defende-se o controlo coletivo dos principais meios de (re)produção e o planeamento democrático da produção e do investimento. Os seus atores políticos centrais seriam as classes trabalhadoras urbanas e rurais e os seus sindicatos, numa aliança com protagonistas de outras lutas socioecológicas.

Aspetos como o papel do Estado, as escalas de operacionalização do planeamento democrático e a definição de um programa capaz de competir pelo poder, permanecem em disputa no campo Ecossocialista. Se o Ecossocialismo nos oferece um vislumbre de futuros mais democráticos, ecológicos e igualitários, os caminhos para lá chegar serão necessariamente distintos, já que os contextos nacionais, onde reside a soberania democrática, são também eles diversos.


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Querido diário - Quando Poiares queria despedimentos


Quando o aperto político se tornou excessivo, Pedro Passos Coelho largou alguns "pesos mortos". Foi o caso Miguel Relvas, criticado na comunicação social por estar ligado a casos polémicos de utilização de fundos comunitários - para criar uma rede nacional de aeródromos e respeftiva formação profissional... - e de ter "acelerado" o seu currículo.

A remodelação governamental promoveu, entre outros pessoas, o jovem Miguel Poiares Maduro, a ministro adjunto e do Desenvolvimento Regional. Jovem em idade, embora velho nas ideias. Professor universitário, passou pelo Tribunal Europeu de Justiça como advogado e foi membro da comissão política de candidatura de Cavaco Silva nas últimas eleições presidenciais. Em 2013, esteve na organização do debate sobre a reforma do Estado, promovido pelo Governo Passos Coelho, que redundou em nada.


Poiares Maduro criticou duramente os juízes do Tribunal Constitucional - não por defender mal os funcionários e os pensionistas cujos rendimentos o Governo queria cortar (inconstitucionalmente) - mas porque, na sua opinião, impunha a renegociação do programa de ajustamento ou um novo aumento de impostos e, se falhassem, obrigaria Portugal a sair do euro. Na sua opinião, teria sido preferível despedir funcionários públicos. "Em termos de distribuição dos custos políticos, o Governo não foi muito inteligente", escreveu.

Um ano antes, Poiares Maduro criticara - como Cavaco Silva já o havia feito nos anos 80/90 - o recurso crescente ao TC para dirimir questões que deviam ser decididas no campo da política. Estas complicações fizeram-no defender um "Governo técnico de iniciativa presidencial", apoiado por "um verdadeiro consenso político", que não existia há dez anos, devido à oposição.
"O PS deixou de acreditar que Portugal faz bem em cumprir o Memorando" de Entendimento com a troica e defende que este devia ser renegociado para eliminar grande parte da austeridade que contém. "É um pouco como se uma equipa estiver a jogar futebol e alguns dos seus adeptos sugerissem colocar um avançado junto do guarda-redes", escreveu. "O Governo entende que as opções de Portugal neste momento são apenas entre vários modelos de austeridade".
Era assim há dez anos.

O outro PIB


«Suponha-se, por exemplo, que a variação da população num dado período é assumida com a mesma relevância que se atribui ao PIB. Como ficariam as recorrentes referências, em regra redutoras, aos rankings e ultrapassagens dos países baseadas no PIB per capita? Poderia continuar a dizer-se, por exemplo, que Portugal se deixou apanhar, e mesmo ultrapassar, pelos países do Leste europeu? O facto de, em regra, estes países terem quebras significativas de população na última década, não significa nada do ponto de vista da sua situação económica e social?
Não serão as dinâmicas demográficas, assentes na combinação de saldos naturais e migratórios, tão ou mais reveladoras das condições de vida e expetativas relativamente ao futuro, expressas de modo particular na evolução da natalidade e dos processos de emigração e imigração? Não correm as análises excessivamente centradas no PIB o risco de pretender que os "países estão melhor", mesmo quando "a vida das pessoas não está a melhorar", como disse sem pestanejar Luís Montenegro, em 2014, para descrever a situação da economia portuguesa?
Lembram-se da estratégia então seguida pela maioria de direita, ao abrigo da troika, empenhada num processo de "empobrecimento competitivo" que levaria o país para o "pelotão da frente", sem perceber os efeitos e os limites que, a jusante, essa estratégia implicou, tanto ao nível da quebra da natalidade como do aumento da emigração?
»

O resto da crónica pode ser lido no Setenta e Quatro

Para além de terem asas e voarem, sabem o que têm em comum?

Sabem duas coisas que têm em comum a Singapore Airlines, a Emirates e a Air France-KLM?

1) Todas estão entre as melhores companhias aéreas do mundo em todos os rankings relevantes do sector; e
2) as três têm os respectivos Estados nacionais como accionistas de referência.

Para quem acredita que as empresas públicas são sempre um problema isto deveria fazer pensar. Mas há quem nunca deixe que a realidade ponha em causa as suas crenças mais profundas.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Querido diário - O elefante no meio da sala

Público, 8/4/2013

Há cerca de dez anos, o economista e conselheiro de Estado Vítor Bento criticava o chumbo do Tribunal Constitucional (TC) à proposta do Governo de cortar nos vencimentos da Função Pública e nas pensões do pensionista. Na sua opinião, a opção do TC fora ideológica, dificultara "o processo de ajustamento" e estreitara "o caminho para a nosssa permanência no euro".

Por isso, Vítor Bento gostara da declaração que o primeiro-ministro Passos Coelho fizera criticando violentamente o TC... por ter defendido a Constituição então em vigor: "Foi muito boa". Na sua opinião, a decisão do TC não trazia muitas alternativas: "impostos, fecho de serviços e despedimentos". "Não vejo outra via", disse. Algo que, a ser aplicado, agravaria ainda mais a depressão económica criada pelo programa de Passos Coelho, respaldado no Memorando de Entendimento com a troica. E agravava ainda mais a situação social do povo português.

Público, 8/4/2013

Este quadro de análise entrocava bem na forma como, em 2011, o mesmo Vítor Bento viu o dito programa de austeridade traçado pelo Memorando de Entendimento.

E desta vez, também vamos cair que nem patinhos?


Vítor Gaspar, o ex-ministro das Finanças de Passos Coelho que transitou para o FMI, apresentou ontem o Fiscal Monitor, dando nota de que a instituição «estima que nos próximos cinco anos a dívida pública mundial cresça a um ritmo muito mais elevado face ao período pré-pandemia» e afirmando que «parte da tarefa para evitar tensão no mercado da dívida e reduzir o risco de uma nova crise soberana passa por um “reequilíbrio das finanças públicas”». Como está bem de ver, daqui à reedição do «andámos a viver acima das nossas possibilidades», imputando aos Estados a responsabilidade pela crise, vai só um pequeno passo.

Vale por isso a pena ter presente a forma como a crise de 2008, causada pelos desmandos de um sistema financeiro desregulado, foi habilmente convertida numa crise das dívidas soberanas, como se fossem os Estados - que tiveram que responder aos impactos recessivos desses desmandos - os culpados pela situação, abrindo portas aos processos de «ajustamento estrutural» e às desastrosas políticas de austeridade, estúpida e contraproducente. Cortes de salários e pensões, retração dos serviços públicos, desregulação do mercado laboral e privatizações, tudo em linha com a agenda neoliberal, posta em prática com o espaldo da troika e que permitiram mesmo, no caso português, ir «além da troika».

Nesta segunda golpada que pode estar em curso, a crise que tem, na sua génese, a pandemia e a guerra - com impactos ao nível das cadeias de produção e do aumento do preço da energia - foi irresponsavelmente agravada pela opção política, de bancos centrais ditos independentes, de deixar as finanças públicas entregues aos apetites irracionais dos mercados financeiros privados e, ao subir a taxa de juro a um ritmo sem precedentes nos últimos 40 anos, fomentar falências e desemprego e impor contenção na política orçamental e na política de rendimentos. Isto é, orientações de política que geram abrandamento do crescimento e os défices que se antecipam. Tudo isto para depois se antever - como se não fosse essa a consequência óbvia destas medidas - a subida da dívida pública e a necessidade de adotar medidas de «reequilíbrio das finanças públicas», como já começa a receitar Vítor Gaspar.

Primeiro como tragédia e depois como farsa, parece pois que a história se repete, numa nova tentativa de nos fazer cair como patinhos, através da conveniente narrativa que parece estar a desenhar-se.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Um povo


Este ponto de Benoît Bréville, novo director do Le Monde diplomatique, não pode ser esquecido: “Macron, dócil perante a União Europeia que recomenda esta reforma, mas incapaz de convencer os franceses e os seus deputados, decidiu passa-la à força.” 

De facto, a UE, retóricas recentes à parte, continua a ser a maior máquina supranacional de iniciativas liberais na economia política, contribuindo para a erosão da prática democrática com substância socioeconómica e abrindo caminho à extrema-direita. 

Felizmente, a França também indica que ainda há uma esquerda soberanista, liderando as sondagens e tudo; sabe onde os direitos, e as correlativas obrigações, que contam se conquistaram e se conquistarão.

domingo, 9 de abril de 2023

Páscoa


«Vindo das periferias de uma Igreja até então absolutamente eurocêntrica na sua estrutura de poder, Francisco quis ser fiel ao pobre de Assis e resgatou o que sempre devia ter sido o centro da vida da Igreja: os pobres, as sobras humanas, os descartados por esta economia que mata. Uma Igreja pobre e para os pobres, em que eles sejam “instância de evangelização da própria Igreja”, como escreveu na exortação Evangelii Gaudium – esse é o foco pastoral de Francisco.
(...) A Igreja precisava, para ser fiel a Jesus, de ser constipada pelo ar fresco dos debates a que Francisco a veio expor e que o poder curial havia vedado. Eu acredito que essa constipação – ou mesmo bronquite, sei lá – é necessária para que o organismo se torne mais saudável, ganhe imunidades (ao clericalismo, ao sexismo, ao autoritarismo, à administrativização) que agora não tem.
Esta Páscoa tem de ser a da tomada de consciência coletiva de que o clericalismo é uma “perversão da Igreja”, como lhe chamou o Papa. Em Portugal, parte importante da estrutura de governo da Igreja abjura tudo quanto possa pôr em risco o poder clerical. Como era de esperar, começam agora a vir à luz do dia posições de importantes membros do clero desqualificando expressamente o trabalho da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja. (...) Por isso, nesta Páscoa da Igreja em Portugal, a ressurreição passará pelos gestos concretos de reparação das vítimas e de transformação da cultura de violência estrutural inerente ao que Francisco tem corajosamente designado por pecado do clericalismo.
»

José Manuel Pureza, Tirar a pedra que sela o sepulcro

Um jornal que expõe fracturas


Abril entrou com as ruas do país a mostrar o que uma bela canção de A Garota Não e Chullage, intitulada
«Não sei o que é que fica», vinha dizendo num dos seus versos: «Habitação é fractura exposta» (1). Dói por si e expõe outras dores. A negação do acesso à habitação — esse direito constitucional que continua por cumprir quase meio século depois da Revolução que o consagrou —, cobre de sofrimento os dias de quem só vê os preços das casas a subir e os salários a perder poder de compra. Como ficou patente a 1 de Abril no mapa das manifestações «Casa para Viver», a falta de habitação a preços comportáveis para a maioria dos trabalhadores estende-se pelo país, ainda que seja mais grave nas cidades onde se concentra, após décadas de desinvestimento no território, a maior parte do emprego. O problema nasce da insignificância do parque habitacional público e da ausência de medidas de controlo de preços e rendas, agrava-se com o fosso entre baixos salários (nacionais) e elevados afluxos de investimentos imobiliários (nacionais e internacionais), num contexto em que se multiplicam, com dinheiros públicos, os incentivos a proprietários e senhorios sem sequer serem adoptadas medidas que impeçam os despejos. Afecta todas as gerações, desde os jovens mais precarizados e com salários mais baixos até aos reformados com pensões que (já antes) mal lhes permitiam viver, passando pelos imigrantes que acumulam eixos de fragilização e são tantas vezes preteridos no acesso à habitação. Em comum têm, todas essas gerações que se manifestam juntas, o lado que lhes calhou na lotaria das classes em que nasceram ou acabaram vivendo.

Não percam o resto do editorial deste mês - Habitação, salário e conflito social -, da autoria de Sandra Monteiro, no site do Le Monde diplomatique - edição portuguesa. 

sábado, 8 de abril de 2023

Querido diário - Só queremos "fechar esta crise de uma vez por todas"...

Público, 8/4/2013
 

Foi há dez anos. Face ao novo chumbo pelo Tribunal Constitucional (TC), Passos Coelho começou a ensaiar a desarticulação entre o seu programa de governo e a aplicação do Memorando de Entendimento com a troika. 

Aquilo que, dois anos antes, fora anunciado no discurso da tomada de posse do seu Governo, como "uma condição necessária para termos uma economia próspera e criadora de emprego no médio prazo", passou a ser apenas a obrigação de "fechar esta crise de uma vez por todas". Impedido pelo TC de cortar nos vencimentos dos funcionários e nas pensões em pagamento, o Governo Passos Coelho defendeu então um novo pacote de cortes no Estado Social para... poder garantir o Estado Social (!):

“Não duvido que aparecerão vozes a protestar que, com isso, estaremos a pôr em causa o Estado social e que o Governo não aprende a lição parando com a austeridade”, admitiu Passos. Para logo a seguir classificar tal teoria de “demagogia fácil”, porque “para se defender o Estado social precisa de se garantir o dinheiro que suporta as suas despesas”. 
Público, 8/4/2013

E para isso, Passos Coelho exigia do PS que não deixasse a direita sozinha nesse papel de coveiro do Estado Social:

A necessidade de equilíbrio das contas públicas vai muito além deste ano, sendo fundamental estabelecer “compromissos duradouros” - um “objectivo nacional que ultrapassa as cores partidárias e não distingue governos”, “incluindo, claro está, os partidos do arco da governabilidade e os órgãos de soberania”. E dramatiza: “Mais do que nunca, a situação não se compadece com demagogias nem com tacticismos. Cada um dos agentes políticos tem de se pronunciar sobre esta matéria que, volto a repetir, é central para o futuro próximo do país no quadro europeu.” O Governo, “mandatado pelo povo português para vencer a emergência nacional, e apoiado na Assembleia da República por dois partidos numa coligação coesa”, mantém-se firme no “cumprimento das obrigações internas e externas” do programa de assistência, fez questão de vincar o primeiro-ministro que quer “fechar esta crise de uma vez por todas”.

Nessa altura, em contraponto a Mário Soares que elogiou o TC e descreveu o ambiente político como o de um Governo em que todos os ministros se querem demitir ("que o Governo deixou de existir, deixou"), o comentador Marcelo Rebelo de Sousa elogiou Passos Coelho: 

Público, 8/4/2013

Dez anos depois, o Governo PS vê-se a braços com uma crise política semelhante, em que são impostas contenções ao desempenho do Estado Social, por se querer cumprir as obrigações europeias, em nome da salvaguarda dos valores da dívida e do défice.  E o já o presidente Marcelo, se não critica a prolongada política de contenção da despesa pública, considera que a erosão do Governo - na realidade, fruto dessa política de erosão do Estado Social - o pode levar a dissolver o Parlamento. 

O perigo é que, dando corpo a um Governo de direita - com o apoio de uma crescente extrema-direita, alimentada precisamente por essa política de contenção - se abram as portas para um rápido desmantelamento do... Estado Social.