Na semana em que até para o BCE é já impossível ignorar o papel das margens de lucro na inflação que atravessamos, saiu também um excelente artigo que analisa este fenómeno e ajuda a perceber o que se tem passado, muito em linha com o que se tem afirmado neste blogue (ver, por exemplo, este post do Vicente Ferreira).
Neste artigo, Isabella Weber e Evan Wasner, recorrendo à literatura existente e às comunicações de resultados das empresas aos seus investidores, começam por estabelecer alguns princípios gerais de definição de preços por parte das empresas com poder de mercado significativo. Estas empresas geralmente não baixam preços, devido ao receio de iniciar uma guerra de preços com a concorrência, que resultará em menores margens para todo o sector. Além disso, só aumentam preços quando têm a garantia que isso não as fará perder quota de mercado, ou seja, quando estão certas que as empresas concorrentes farão o mesmo. Em tempos normais, aumentos das margens de lucro são obtidos pela redução de custos e não pelo aumento de preços. No entanto, aumentos de custos que afetem todo um sector podem servir de mecanismo de coordenação para aumentos de preços, uma vez que é esperado que as empresas concorrentes aumentem os seus preços de forma a manter as suas taxas de lucro, sendo o risco de perder quota de mercado bastante reduzido. Empresas que optem por não subir os preços da mesma forma, acomodando nas suas margens de lucro parte da subida dos custos, serão punidas nos mercados financeiros. Finalmente, grandes discrepâncias entre a procura e oferta, seja por um choque na procura seja por problemas na oferta, conferem às empresas um poder temporário de monopólio que lhes permite aumentar os preços sem correrem o risco de perderem quota de mercado.
Partindo destes princípios, os autores apresentam depois a sua interpretação dos acontecimentos (mais centrada nos EUA, mas aplicável ao que se passou por cá, obviamente), dividindo o processo inflacionista em três etapas: a de impulso inicial, seguida da de propagação e amplificação e finalmente a de conflito. Claro que esta separação não é estanque, havendo lugar para uma sobreposição entre as diferentes fases.
Na fase inicial, com o desconfinamento das economias pós-COVID, surgiram aumentos de preços nas matérias-primas assim como constrangimentos do lado da oferta em bens e serviços como os chips e transporte marítimo, críticos no processo de produção de inúmeros bens. Estes constrangimentos resultaram numa grande discrepância entre a procura e a capacidade de resposta do lado da oferta, conferindo às grandes empresas desse ramo e dos ramos em que estes são inputs essenciais, um poder temporário de monopólio que lhes permitiu aumentar os preços significativamente.
Na fase de propagação e amplificação, os aumentos de preços sentidos na fase inicial atuaram como mecanismo de coordenação para empresas de vários sectores, permitindo-lhes proteger as suas margens de lucro através do aumento dos preços, sabendo que os seus concorrentes reagiriam da mesma forma. Nesta fase, os aumentos de preços não são apenas propagados, mas podem mesmo ser amplificados. Uma empresa que venda um produto por 100€, com uma margem de lucro de 10% (ou seja, com custos de 90€), face a aumentos de custos de 10€ por unidade, se decidir simplesmente passar esse aumento para o preço final, aumentará o preço do produto nos mesmos 10€ para 110€. Porém, neste cenário a sua margem de lucro descerá para 10/110=9%. Para manter uma margem de lucro de 10%, a empresa teria de aumentar o preço em 11€ para 111€. Neste exemplo a amplificação é reduzida, mas nos casos já referidos de poder temporário de monopólio, em que empresas podem aumentar as suas margens de lucro, a amplificação pode ser significativa. Tendo por base as comunicações de resultados das empresas aos seus investidores, os autores sublinham também a importância dos meios de comunicação social e da opinião pública na transmissão de uma narrativa de disrupções das cadeias de produção e de aumentos explosivos dos preços da energia, o que legitima os aumentos de preços das empresas, aumentando a predisposição dos consumidores para aceitar estes aumentos.
Só na etapa final deste processo, na fase de conflito, é que os trabalhadores lutam por, pelo menos, recuperar o poder de compra dos seus salários, perdido nas fases anteriores.
Perante isto, torna-se evidente a desadequação e injustiça da utilização das taxas de juro como instrumento de combate à inflação. Por um lado, como já foi dito por aqui, partindo de um ponto de vista em que a subida dos salários é praticamente a única causa de inflação (na ata da reunião de fevereiro do BCE a palavra wage(s) aparece 52 vezes, enquanto profits e mark-up aparecem 1 vez cada, na mesma frase), a subida das taxas de juro intervém apenas na fase de conflito, atuando contra os trabalhadores, quando estes tentam recuperar o poder de compra perdido. Por outro lado, mesmo ao nível das empresas esta medida é injusta, porque aumenta os custos de financiamento precisamente às empresas com menor poder de mercado e com menos alternativas de financiamento, que não podem refletir estes aumentos nos preços de venda, reduzindo as suas margens, o que por sua vez tem consequências nas suas condições de financiamento.
Como referem os autores, vivemos tempos de grande incerteza, de múltiplas e sobrepostas emergências, com grande probabilidade de ocorrência de novos choques que atingindo sectores estratégicos a montante das cadeias de produção podem resultar em novos e sucessivos processos inflacionários semelhantes aos descritos. É urgente pensarmos em alternativas mais justas e eficazes, que passam por medidas atempadas que evitem ou mitiguem significativamente este processo na sua origem e não na fase de conflito.
Eis o que propõem Isabella Weber e Evan Wasner: Reservas de matérias-primas que atenuem as oscilações de preços destes produtos, de que são exemplo as reservas estratégicas de petróleo dos EUA; Utilização de preços não lineares, como foram implementados na Alemanha, com preços menores para consumos básicos inelásticos; Leis para sectores estratégicos a montante das cadeias de produção, que impeçam empresas com grande poder de mercado de aumentar as suas margens em cenários de poder temporário de monopólio, como já existem nos EUA em casos de emergência; Impostos sobre lucros inesperados podem também dissuadir algumas destas práticas e, finalmente, em último caso, controles de preços para estes sectores estratégicos, que serão mais fáceis de implementar em sectores dominados por um número reduzido de empresas. Mas o que é isto comparado com uma mágica subida das taxas de juro?
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