segunda-feira, 20 de março de 2023

Cavaco não sabe, não se lembra ou finge não saber?


«A atual a crise é o resultado do falhanço da política do governo no domínio da habitação nos últimos sete anos. (...) Face a este conflito de intere..., este conflito de direitos - direito de habitação e direito de propriedade - os marxistas ignorantes das regras da economia de mercado que vigora na União Europeia, a que pertencemos, dirão que se proceda à coletivização da propriedade urbana privada (...), através da ameaça do arrendamento compulsivo de casas devolutas. (...) Deixemo-los em paz com a sua ignorância» (Cavaco Silva).

Talvez, de facto, o próprio já não se lembre, mas Cavaco Silva promulgou, em maio de 2014, a Lei de Bases da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo, do então Governo de Passos e Portas, que «consagrou o dever de [os proprietários] utilizar[em] os imóveis, a par com o dever de proceder à sua conservação e reabilitação». E talvez não saiba, mas há Estados membros da União Europeia (como a Dinamarca, a Espanha ou os Países Baixos), em que «o Estado toma posse de casas para as arrendar», sem pôr igualmente em causa os direitos de propriedade (sendo que, sublinhe-se, não há direitos sem obrigações).

É provável que Cavaco não se recorde, mas o Programa Especial de Realojamento (PER), por si lançado em maio de 1993 - e com diversos bairros concluídos já depois de 2000 - «só arrancou após uma forte pressão do então Presidente da República, Mário Soares, que fez uma Presidência aberta na área metropolitana de Lisboa» (em janeiro e fevereiro de 1993), «expressamente para revelar e pôr na agenda as graves carências habitacionais na capital e sua periferia». Isto é, num contexto em que o então Primeiro-Ministro se referia a Portugal como estando no «pelotão da frente» da Europa, e Braga de Macedo descrevia o país como um «oásis» no contexto internacional.

Talvez Cavaco Silva não saiba, mas a atual crise está muito longe de afetar apenas o nosso país, atravessando praticamente toda a Europa. Uma crise habitacional que traduz, sobretudo, o rotundo fracasso do mercado para dar resposta à questão da habitação, no contexto da tal «economia de mercado que vigora na União Europeia», que retraiu políticas de promoção pública direta de alojamentos, incentivando - ao invés - a financeirização do setor e lógicas de investimento especulativo, que encaram as casas como meros ativos financeiros.


De facto, a atual crise de habitação tem contornos internacionais, com os preços, no seu aumento vertiginoso, a descolarem da relação simplista entre oferta e procura à escala dos países, refletindo dinâmicas associadas ao aumento do turismo e dos investimentos imobiliários especulativos, nacionais e internacionais, desencadeados com a crise financeira de 2008 e que se intensificaram, um pouco por toda a parte, a partir de 2013.

Perante tudo isto, aparentemente Cavaco não sabe, não se lembra, ou finge não saber. Deixemo-lo em paz com a sua sonsice.

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