O pacote de medidas recentemente anunciado pelo governo para enfrentar a grave crise habitacional que o país atravessa trouxe para o debate público as velhas questões de economia política em torno da relação entre o Estado e o mercado na organização da vida colectiva. Se, por um lado, surgiram novos apelos a que o Estado tenha uma actuação mais robusta no mercado para garantir o direito à habitação, emergiram, por outro lado, acusações de actuação ilegítima, atentatória de direitos associados à propriedade privada. Porém, as medidas anunciadas não só preservam o quadro de direitos e deveres que o Estado vem garantindo, como procuram responder ao problema habitacional através da concessão de novos estímulos à iniciativa privada.
Os direitos e deveres de propriedade
A proposta que prevê o arrendamento obrigatório de casas devolutas não introduz qualquer alteração dos direitos e deveres associados à propriedade. Quer isto dizer que a reacção violenta a esta proposta é apenas suscitada pela manifesta e tardia intenção governamental de fazer cumprir a lei, que já prevê o dever de uso efectivo de habitações privadas devolutas.
Efectivamente, o Artigo 14.º da Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento de Território e de Urbanismo, de 2014, determina que os proprietários têm o dever de «utilizar, conservar e reabilitar imóveis, designadamente, o edificado existente». Por sua vez, o artigo 5.º da Lei de Bases da Habitação, de 2019, declara que a «habitação que se encontre, injustificada e continuadamente, durante o prazo definido na lei, sem uso habitacional efetivo, por motivo imputável ao proprietário, é considerada devoluta», e que «os proprietários de habitações devolutas estão sujeitos às sanções previstas na lei». Em conformidade, o artigo 3º da mesma lei explicita que o «Estado promove o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade pública e incentiva o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade privada».
A proposta de arrendamento obrigatório de casas devolutas encontra-se, portanto, enquadrada pela lei e a sua aplicação será faseada, dando suficiente margem aos proprietários para que possam determinar o uso a dar aos seus imóveis. Como é explicitado no documento colocado em consulta pública, «pretende-se, antes de mais, dar um incentivo a essa utilização». Tal poderá ser concretizado por três vias distintas: 1) o proprietário celebra de livre vontade um contrato de arrendamento do imóvel com o organismo público (o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IHRU), «estabelecendo-se livremente as condições de tal contrato»; 2) o proprietário dá outro uso ao imóvel por sua iniciativa durante um prazo formal; 3) findo este prazo, o Estado pode, então, arrendar o imóvel de forma obrigatória, «por forca do incumprimento do dever de utilização do imóvel pelo seu proprietário, quer pela função social da habitação e dever de utilização, princípios também consagrados nos artigos 4.º e 5.º da Lei de Bases da Habitação». Em suma, o governo pretende promover o uso dos fogos devolutos, designadamente por iniciativa dos proprietários, dispondo estes de um prazo para o fazer. Ademais, a proposta exclui um conjunto de situações, como as casas de férias, as casas de emigrantes ou de pessoas deslocadas por diversas razões (saúde, profissionais ou formativas), entre outras.
O que está em causa é, pois, estimular o uso da propriedade privada, preferencialmente por iniciativa dos proprietários. Quando tal não sucede, cumpre ao Estado garantir o uso efectivo dos imóveis. Nesta medida, o que a resistência por parte dos representantes dos proprietários revela é uma indisponibilidade para assumirem os deveres associados à propriedade. Reivindicam o direito de protecção da propriedade, não estando, no entanto, disponíveis para cumprir o seu dever, isto é, de garantirem a sua função social, numa atitude apelidada pela jurista Leonor Caldeira de «activistas das casas vazias».
Esta postura de reivindicação de mais direitos associados à propriedade e de indiferença perante a comunidade na qual estes direitos são exercidos é o resultado de uma correlação de forças crescentemente favorável aos proprietários. Contudo, é o reconhecimento da utilidade social da propriedade para a comunidade que legitima o exercício do poder estatal na protecção dessa mesma propriedade. Um pressuposto que está contido no conceito de função social da propriedade, que integra as Constituições modernas e orienta a prática de Estados europeus socialmente mais avançados, da Dinamarca à Irlanda.
O resto do artigo pode ser lido, em papel ou no site, no Le Monde diplomatique - edição portuguesa deste mês.
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