A atuação subsequente da Reserva Federal (o banco central dos EUA) visa impedir que o sistema financeiro se desmorone como um castelo de cartas, impedindo outras falências, essencialmente isentando as obrigações detidas pelos bancos das consequências das suas próprias operações de política monetária, ou seja, das consequências da maior subida da taxa de juros dos últimos 40 anos.
Usando uma nova ferramenta criada para o efeito, uma linha de financiamento de emergência, a Reserva empresta dinheiro aos bancos, desde que estes possam depositar obrigações como garantia colateral.
Até aqui nada de particularmente novo, é isto que fazem quotidianamente os bancos centrais no seu papel de prestamistas de último recurso.
No entanto, em vez de condicionar o empréstimo ao valor da obrigação no mercado – valor que colapsou –, a Reserva permitirá que os bancos lhe peçam emprestado o montante total que inicialmente pagaram pelas obrigações. É uma economia que basicamente isenta os banqueiros do risco que impende sobre todos os outros.
Ou seja, se os bancos têm os seus balanços recheados de obrigações que perderam valor em resultado da subida da taxa de juro imposta pela Reserva (o preço de uma obrigação varia - variava - inversamente à taxa de juro), e se esta perda de valor erodiu o capital dos bancos e os faliu, a Reserva finge que não, que aquelas obrigações não perderam valor nenhum.
Dito de outro modo, o valor das obrigações deixou de importar se estas forem detidas por um banco. Estamos num capitalismo de risco socializado no sistema financeiro, um capitalismo de farsa para uns poucos e de tragédia para os restantes. Um período histórico onde os banqueiros recebem quantias cada vez mais obscenas para nos colocarem, novamente, à beira de uma crise talvez sem precedentes.
Já em 1930, Keynes escrevia que, relativamente às questões monetárias, os Estados soberanos reivindicam para si não só a prerrogativa de decidir qual é o dicionário em vigor no seu espaço nacional, mas também a de escrever e reescrever os termos desse dicionário. É só pena que esta capacidade editorial não seja colocada à disposição dos 99% de baixo.
Entretanto, o que dizer do estado da agenda de política monetária da Reserva (e dos restantes bancos centrais que, subordinadamente, a têm acompanhado, como o BCE e o Banco de Inglaterra)?
No mínimo, que esta agenda está em grandes dificuldades e que a credibilidade destes governadores é irrecuperável. Tudo, mas não o Banco do Japão, no mesmo barco. E este mete água.
Os bancos centrais aumentaram vertiginosamente as taxas de juro porque esperavam que condições financeiras mais apertadas gerassem desemprego e salários mais baixos e, no fim, preços mais baixos.
Se foi sempre evidente que o efeito destas políticas na sociedade tinha sido escandalosamente descurado, agora tornou-se patente que as suas consequências no sistema financeiro também não foram devidamente ponderadas. Técnicos ‘independentes’ tão habilitados: tanta irresponsabilidade não é uma forma de sociopatia?
Entretanto parece que é certo que os bancos europeus também estão sentados em grandes perdas não realizadas [ainda não registadas nos seus balanços] e que ninguém sabe realmente quão grandes são os números.
Daí que também pareça mesmo que estamos no momento ideal para fazer regressar as mais que desacreditadas regras dos tais 3% de défice e 60% de dívida que, no passado, tão bons resultados produziram.
Como diz um amigo, ‘Brace yourselves [agarrem-se bem], estamos à beira de descobrir que andámos a viver acima das nossas possibilidades’.
2 comentários:
Faltou dizer que a carteira de obrigações do SVB era constituída fundamentalmente por obrigações do Tesouro norte-americano.
Bom texto. Entretanto consta que esta pronta intervenção, salvação neste caso, dos depositantes do SVB -diminuto à escala dos EUA- tem mais a ver o facto de se tratar de um vasto grupo de contribuintes do partido Democratas/Biden e pouco com a crise do sistema, que realmente existe. Curioso este mix política partidária e finança nacional. Para onde vamos?.
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