Diria que é um documentário generalista e acessível, mas dirigido a um público informado e interessado em questões económicas e políticas, e que algum conhecimento prévio do trabalho de economistas não neoclássicos pode ajudar.
Por exemplo, a hipótese da instabilidade financeira de Hyman Minsky (aqui resumida por Steve Keen) e a conclusão de Keynes e Schumpeter segundo a qual o investimento não é financiado por poupança, mas pela expansão endógena da oferta monetária bancária (aqui confirmada pelo Banco de Inglaterra), sendo pilares fundamentais da compreensão do capitalismo e da sua inerente instabilidade, constituem também o tipo de conhecimento que permite perceber, por exemplo, o funcionamento opaco e muito pouco escrutinado dos bancos centrais e, simultaneamente, expor a ficção neoliberal da sua independência e a sua real dependência dos mercados financeiros. Tudo questões, mais ou menos, diretamente tratadas no documentário.
Num relato cadenciado e repleto de informação histórica, o trabalho de Richard Werner permite-nos compreender, por exemplo, como a articulação entre Tesouro e banco central, entre a política orçamental e a política monetária, se constituiu como o arranjo institucional que produziu uma política de crédito, fortemente expansionista, assente, não na poupança prévia, mas na criação monetária, capaz de suportar a transformação radical da devastada estrutura produtiva japonesa pós 2ª guerra mundial, fazendo emergir, literalmente, dos escombros uma economia com pleno emprego, enorme prosperidade e razoável igualdade.
O documentário evidencia também como, entre os anos 80 e os anos 90 do século passado, sob forte influência, senão mesmo imposição, da potência monetária que, com o fim de Bretton Woods, consolidou a sua posição hegemónica no novo arranjo monetário internacional (os EUA), o banco central do Japão é objeto de uma profunda reconfiguração que o compatibiliza com a nova ordem imposta pela antiga potência ocupante e o torna, pretensamente, independente.
É, a meu ver, um momento importante do filme até porque, de seguida, Werner expõe a responsabilidade daquele reconfigurado ator monetário, o banco central do Japão, na criação de uma enorme bolha de crédito, à qual se seguiria uma inevitável crise económico-social que acabaria por produzir o consentimento - que não existia na sociedade nipónica - para uma reestruturação neoliberal da economia, ou seja, para as tais ‘reformas estruturais’ que nós, no sul da Europa, infelizmente, tão bem conhecemos.
Um outro momento de particular interesse (1h22m24s) é aquele em que as questões relacionadas com a zona euro são abordadas. Começa assim: “Os exemplos das crises japonesa e asiática ilustram como crises podem ser manipuladas para facilitar a redistribuição da propriedade económica e para implementar mudanças legais, estruturais e políticas. Hoje [2014] eventos similares estão em progresso na zona euro”.
Nesta parte, o documentário, para além de apontar a responsabilidade do BCE na bolha de crédito que antecedeu a crise, erradamente designada, das “dívidas soberanas”, também denuncia, primeiro, o facto de aquele banco central ter podido prevenir as crises bancárias que se seguiram e não o ter feito, e, segundo, de só ter agido depois de ter promovido a transferência de parcelas de soberania orçamental dos estados membros do euro para a União Europeia e de a ter obtido.
“As deliberações dos órgãos de decisão do BCE são secretas. A mera tentativa de influenciar o BCE – por exemplo, através do debate democrático e da discussão - é proibida de acordo com o Tratado de Maastricht”, ouve-se, a seguir, no documentário, que continua assim: “o BCE é uma organização internacional que está acima e fora das leis e jurisdição de qualquer nação individual. Os seus quadros superiores transportam passaportes diplomáticos e os arquivos e documentos dentro do BCE não podem ser alvo de busca ou retenção por qualquer força policial ou do ministério público”.
Quando estamos a aproximar-nos da parte final (1h22m24s), vemos Richard Werner a perguntar a Trichet, o antecessor de Draghi e Lagarde na presidência do BCE: “Onde é que, no tratado de Maastricht ou nos estatutos do BCE, diz que é trabalho do BCE apoiar a reforma estrutural ou qualquer outra agenda política?”. Vale a pena atentar no descaramento e no viés ideológico da resposta de Trichet, mas para isso terão de ver o documentário. Se o fizerem, não se arrependerão, prometo.
De seguida, Richard Werner, continua chamando a atenção para o facto da comissão europeia se ter apoiado num único estudo para justificar a independência do BCE e desse estudo ter sido manipulado para obter o resultado desejado, ou seja, para concluir indevidamente que os bancos centrais independentes conseguem inflações mais baixas.
O documentário termina recordando diferentes e muito significativos episódios históricos em que as manobras (“deception”) de bancos centrais independentes, bancos que não prestam contas a nenhum tipo de órgão eleito, resultaram em verdadeiras calamidades públicas, com repercussões muito graves e conhecidas de todos.
Como é possível estarmos na posse de toda esta informação e não concluirmos que é mais que tempo de colocar os bancos centrais sob escrutínio democrático?
* Legendas em português disponíveis nas definições do documentário no YouTube.
** Republicação parcial; originalmente dado à estampa a 2 de abril de 2020, aqui.
1 comentário:
MUito bom. Entretanto, "...o BCE é uma organização internacional que está acima e fora das leis e jurisdição de qualquer nação individual. Os seus quadros superiores transportam passaportes diplomáticos...".
Lembremo-nso que os diplomatas estão inseridos numa hierarquia estatal, reconhecida e resultante de algum tipo de eleição democrática.
O BCE não é um País (da UE). Não é um Estado. Curiosamente os Países (e os aderentes) da União Europeia aceitaram semelhante estatuto para quadros superiores, funcionários, (com algum poder e pelos visto com nenhuma exercível responsabilização) de "um BCE", estatuto esse apenas atribuível a um País.
Dá que pensar no facto e, sobretudo, na resultante.
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