quarta-feira, 22 de março de 2023

Controlo e descontrolo

No Expresso do passado sábado, voltei a enunciar alguns dos principais argumentos a favor do controlo dos preços na distribuição alimentar. Aqui fica para vossa leitura (carregar na imagem para aumentar).


5 comentários:

Anónimo disse...

Explicar a inflação, à escala social, com uma pretensa espiral lucros-preços é um mito tão grande como explicá-la com uma espiral salários-preços. São as duas faces, opostas, da mesma incompreensão.

Simplificando consideravelmente, lucros e salários são componentes do valor novo criado pelos trabalhadores na produção dos bens e serviços. Mas a esse valor novo tem que se acrescentar o valor transferido pelos meios de produção. O valor transferido pelo capital constante circulante, isto é, o valor das matérias-primas, materiais auxiliares, energia, etc., que reaparece, de uma só vez, no valor dos produtos, em cuja produção foram consumidos, e o valor do capital constante fixo, isto é, o valor das ferramentas, máquinas, equipamentos, edifícios, instalações, etc., que reaparece no valor dos produtos, dos vários ciclos de produção, em que participaram (ou seja, que reaparece apenas parcialmente no valor dos produtos de um ciclo de produção).

A distorção dos preços, em relação aos valores, pela movimentação dos capitais que tende a igualizar a taxa de lucro, não é relevante para esta discussão e pode-se tomar, como razoavelmente boa, a sua aproximação pelos valores (pelas quantidades de trabalho socialmente necessário para produzir as mercadorias). Visto que o valor transferido pelos meios de produção aos produtos (i.e., o valor do capital constante) tem que ser empregue na reaquisição de novos meios de produção para substituir os que foram consumidos, para se poder renovar a produção, resta o valor novo criado pelos trabalhadores, que se reparte – sempre neste grau de generalidade – pela parte que fica para eles próprios (os salários, i.e., o valor equivalente ao capital variável) e pela parte apropriada pelos capitalistas (os lucros).

Então a variação da parte dos lucros traduz-se apenas na variação inversa da parte dos salários, sem alterar o valor das mercadorias, sem alterar os eixos em torno dos quais a concorrência capitalista faz gravitar os preços. O aumento dos salários não causa inflação, causa é uma diminuição dos lucros; o aumento dos lucros também não causa inflação, causa é uma diminuição dos salários. Esse é precisamente um fundamento do antagonismo entre trabalhadores e capitalistas.

Entretanto, desproporções entre a oferta e a procura de mercadorias, como na situação decorrente dos estrangulamentos (nas cadeias produtivas) deixados pelas paralisações e restrições da pandemia, agravada pela guerra comercial entre os EUA e a China e a guerra na Ucrânia (e outros fatores, como as dificuldades meteorológicas na agricultura), podem fazer com que, por exemplo, a oferta de várias mercadorias cresça menos que a respetiva procura, elevando os preços dessas mercadorias acima do seu valor. Se essas mercadorias são meios de consumo, o consumidor paga diretamente mais caro. Se essas mercadorias são meios de produção, aumentam os custos dos fabricantes que os utilizam e, nessa medida, encarecem indiretamente as mercadorias produzidas por esses fabricantes, que os consumidores também pagam mais caro.

Isto, de alguma maneira, é reconhecido tanto pelo Alexandre Abreu como pela Deolinda Silva.

(continua)

Anónimo disse...

(continuação)

É sobretudo pertinente no caso daquelas mercadorias básicas, por exemplo matérias-primas energéticas, como o petróleo. Se o preço do barril do petróleo (ex. Brent), devido às tensões entre uma procura crescente e uma oferta insuficiente (para o que a guerra na Ucrânia também contribuiu), sobe de cerca de 70 e tal dólares por barril, no início de 2022, para perto de 120 dólares em meados desse ano, evidentemente isso encarecerá os custos de produção das mercadorias em que entra como matéria-prima. Por exemplo, da gasolina, do gasóleo e do fuel marítimo. E estes, por sua vez, na medida do aumento dos seus preços, encarecerão os bens e serviços em cuja produção são utilizados como combustível. Por exemplo, do frete marítimo.

Se além do aumento do preço devido ao aumento dos custos de produção, por exemplo do combustível do frete marítimo, houver também uma insuficiência da oferta em relação à procura, como na escassez de cargueiros para transportar para a Europa o gás natural, produzido por exemplo nos EUA, em substituição do gás natural russo (que chegava por gasodutos), o preço, neste caso do frete marítimo, pode aumentar mais ainda. O seu preço subiu por duas razões, pelo encarecimento dos custos e pela escassez da própria oferta.

Temos, por conseguinte, grandes diferenças entre os variados ramos da atividade económica. Temos aumentos enormes de lucros, em atividades como a exploração e produção petrolífera, em que os preços do output sobe muito mais do que os preços dos inputs. Temos ainda aumentos, mas menores, em atividades como a refinação petrolífera, em que o output é encarecido pelos preços dos inputs (o que, em si, não aumentaria os lucros) mas também pelo acréscimo da procura (o que aumenta os lucros). Por isso, numa empresa como a GALP, que combina atividades de exploração e produção (upstream) e atividades de refinação e distribuição (midstream e downstream), os lucros vêm naturalmente de todas as suas áreas de atividade, mas esmagadoramente das atividades de produção de petróleo, muito pouco das atividades de refinação desse petróleo.

Consulte-se o seu Relatório & Contas de 2022. A Galp não discrimina o seu resultado líquido por áreas de atividade. Mas fá-lo para os «resultados antes de juros, impostos, depreciações e amortizações» (EBITDA), que dá uma ideia: os ganhos no upstream representam 80% dos ganhos totais, os ganhos no industrial & midstream representam menos de 12% (cf. R&C-4 T-2022, p. 8). Na verdade, dispomos da desagregação de um indicador ainda mais próximo do resultado líquido, os «resultados antes de juros e impostos» (EBIT, já descontando as depreciações e amortizações). Pode-se confirmar (na mesma tabela) que os ganhos no upstream representam 95% dos ganhos totais do grupo empresarial, os ganhos no industrial & midstream representam menos de 3%. E, já agora, até para desfazer outros mitos, como a produção de petróleo e gás natural se faz, acima de 91%, no Brasil (cf. p. 11), bem se pode afirmar que os lucros da Galp são fundamentalmente realizados nesse país.

Existem ainda outros ramos de atividade em que o encarecimento dos produtos devido ao aumento dos custos de produção (nomeadamente energéticos e das matérias-primas) pode fazer retrair a procura dos consumidores. Nestes casos, os lucros não só podem não aumentar, como podem perfeitamente até diminuir. E, certamente, reduz-se a rentabilidade desses negócios, do volume de lucros em relação ao investimento (ou, noutra perspetiva, em relação ao volume de negócios).

(continua)

Anónimo disse...

(continuação)

Todas estas situações, aumento muito grande dos lucros, aumento de lucros, manutenção dos lucros ou diminuição de lucros, são possíveis. E basta procurar nas cotadas do PSI20, grandes empresas ou grupos empresariais, na componente das suas atividades realizadas em Portugal, não no estrangeiro, para confirmar essa diversidade. Margens líquidas que sobem, margens líquidas que aproximadamente se mantêm, margens líquidas que descem. Apesar do aumento do volume de negócios, quanto mais não seja nominal (pela inflação), volumes de lucro que naturalmente aumentam, mas também volumes de lucro que mais ou menos se mantêm, e mesmo volumes de lucro que diminuem. A explicação é simples e já foi avançada. Algumas empresas, de alguns setores, beneficiam mais do aumento de preços do que outras, beneficiam mais da inflação do que outras, que, pelo contrário, até podem ser prejudicadas.

O caso em análise, do retalho alimentar, apesar de não ser uma área da produção mas do comércio, é mesmo daqueles que, em 2022, não se compadeceu com as visões dogmáticas e ficcionais (que, perdoe o Alexandre, classificarei aqui de pós-keynesianas, obviamente não marxistas) de que as grandes empresas, graças à sua concentração e poder de mercado, mais ou menos concertadas, cartelizadas, especulando, teriam a capacidade de aumentar preços, de impor aumentos de margens, de elevar rentabilidades, sobrepondo-se à feroz concorrência entre elas, nem falando de potenciais adversárias que eventuais subidas de rentabilidade lançariam também nessa arena de combate. É que esta é que é a concorrência real do capitalismo, desde logo com a sua guerra de preços (e promoções), mas também na inovação, na publicidade, no marketing agressivo, na busca de facilidades e apoios governamentais, etc.

Há quem ponha a concorrência do capitalismo de cabeça para baixo. Em vez de as empresas competirem para cortar custos, cortar preços, vender em vez das rivais, ganhar quota de mercado, imagina que competem para aumentar preços, como se os lucros que realizam não dependessem das vendas efetivas mas apenas da sua vontade de fixar margens. E ache até que, mesmo em situações de dificuldade, em que mais depressa se dissolve qualquer arroubo de solidariedade entre capitalistas, cada um a tentar salvar o couro, as empresas poriam a guerra de parte e se concertariam em geral para subir, à sua medida, os preços e os lucros.

Como se MC Sonae (dos Continentes e Modelos) e Pingo Doce se juntassem à esquina a tocar a concertina. Quando, inversamente, as autênticas causas da inflação se atenuam e os preços abrandam, a conclusão do equívoco, de que os preços variam por vontade das empresas, seria inevitável: foram as beneméritas Sonae e Jerónimo Martins que se apiedaram dos clientes, dos consumidores, e decidiram então travar os aumentos. Devem-se ter fartado de lucrar tanto... Enfim, capitalismos de ficção.

Neste caso em discussão, como indica corretamente Deolinda Silva, é um facto que, em Portugal, em 2022, os preços dos produtos agrícolas subiram mais no produtor do que no consumidor. E para não obscurecer com quaisquer produções intermédias comparem-se apenas os preços dos bens agrícolas (vegetais ou animais) no produtor e os bens alimentares não transformados no consumidor (cf. a variação, entre 2021 e 2022, dos respetivos índices, na Base de Dados do INE). Só isto já deveria bastar para dar que pensar, sobre esse tal poder das grandes operadoras do retalho alimentar para elevarem, quase que diria a seu bel-prazer, os seus preços e as suas margens (líquidas). Caberia perguntar porque, se têm esse poder, não o usaram sem ter que esperar pelo aumento dos preços dos produtores. Ou, já agora, se têm esse poder, porque não aumentaram ainda mais os preços e, dessa forma, os lucros (pelo menos até começarem a perder com o encolhimento da procura). Mas nem vou por aí.

(continua)

Anónimo disse...

(continuação)

Aceitemos o desafio implícito no texto. Admitamos duas situações limite, que ajudam a fixar as ideias e a expor as diferenças.

Se os preços nos produtores não tivessem aumentado, mas os preços nos supermercados e nos hipermercados, por força do poder de mercado das grandes retalhistas, tivessem aumentado, então as margens brutas teriam aumentado e as margens líquidas (descontando às anteriores os custos operacionais da atividade comercial, como salários, energia, etc.) teriam aumentado. Isto é, teriam aumentado os lucros e teria aumentado a rentabilidade (para o que podemos tomar, como indicador expedito, a chamada margem operacional, a percentagem do EBITDA sobre o volume de negócios). Corresponde, no seu exagero limite, à tese da especulação, da espiral lucros-preços, da inflação por ela impulsionada.

Se, inversamente, os preços nos produtores tivessem aumentado, mas os preços nos estabelecimentos, por força da concorrência brutal entre as retalhistas, se tivessem mantido (1º caso), ou apenas tivessem aumentado na estrita medida do aumento dos custos de aquisição dos bens aos produtores (2º caso), então as margens brutas teriam diminuído (1º caso), ou ter-se-iam mantido (2º caso). De qualquer modo, teriam diminuído os lucros (porque, mesmo no 2º caso, que na melhor das hipóteses manteria os lucros, teria havido aumento dos custos operacionais da atividade comercial) e, obviamente, teria diminuído a rentabilidade (teria diminuído a margem operacional). Corresponde, no seu exagero limite, à tese da concorrência impiedosa entre as empresas, cada uma, sobretudo nestes ambientes, a tentar cortar custos e preços de venda para ganhar quota de mercado em lugar das rivais.

Então vamos ver. Tiremos a limpo, nos dois grandes casos portugueses. Como foi com a MC Sonae, a empresa de retalho alimentar do grupo Sonae. E como foi com o Pingo Doce, a empresa de retalho alimentar do grupo Jerónimo Martins. Os respetivos resultados foram comunicados, no caso da primeira, na semana passada (cf. MC Sonae, Resultados Anuais, 2022) e, no caso da segunda, hoje mesmo (cf. Jerónimo Martins, Comunicado Resultados 2022).

No caso da MC Sonae, como seria de esperar, a margem operacional (EBITDA em % do volume de negócios), de 2021 para 2022, baixou de 10,8% para 9,5% (cf. p. 2). O que, contudo, impressiona mais é que apesar do aumento do número de lojas (+ 61, cf. p. 7), apesar do grande aumento do volume de negócios (+ 11,5%, cf. p. 5), o EBITDA, em valor absoluto, em milhões de euros, diminuiu (de 578 M€ para 565 M€), e o próprio resultado líquido, ainda em valor absoluto, também diminuiu (de 218 M€ para 179 M€). Devo ainda chamar a atenção de que esta comparação está a ser feita em termos nominais, sem considerar a inflação, que como sabemos foi alta no ano passado. Ou seja, em termos reais, os lucros caíram ainda mais. Tudo ao contrário da tese dos aumentos especulativos.

No caso do Pingo Doce, basicamente a mesma coisa. A margem EBITDA, de 2021 para 2022, passou de 6,0% para 5,9% (cf. p. 11, Detalhe de EBITDA), isto é, não aumentou, até diminuiu ligeiramente. O grupo, neste comunicado, não discrimina o resultado líquido por empresas do grupo, mas fá-lo para o EBITDA. Apesar do aumento do número de lojas do Pingo Doce (sete adições líquidas), apesar do grande aumento das vendas (+ 11,2%, cf. p. 5), o EBITDA, em milhões de euros, aumentou nominalmente (de 244 M€ para 265 M€, cf. p. 11), mas manteve-se praticamente em termos reais (multiplicando o valor de 2021 pela inflação de 2022, para o que tomo a taxa de variação do IPC de 7,8%, daria 263 M€). Não se pode falar nem em aumento da rentabilidade, nem em aumento minimamente significativo dos lucros (EBITDA). Mais uma vez, um desmentido da tese dos aumentos especulativos. Vale ainda a pena realçar que, a julgar pelo detalhe do EBITDA do grupo, os lucros da Jerónimo Martins provêm, em cerca de 83%, da Polónia (da Biedronka); o PD contribui apenas com 14%.

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Anónimo disse...

(continuação)

Mas quer isto tudo dizer que não há especulação? Há normalmente sempre alguma especulação. E obviamente não me refiro àquela “especulação” que anda aí a ser confundida com aldrabices, a divergência dos preços na prateleira e na caixa, as pesagens fraudulentas, etc. (sim, a corrupção, o crime e a fraude são intrínsecas ao capitalismo, mas não explicam os seus lucros à escala social). Não obstante, achar que atividades especulativas, atribuíveis à concentração e poder de mercado de grandes empresas, que em maior ou menor medida existem aqui ou ali, são, como afirmam ou sugerem alguns, a causa dos aumentos gerais dos preços do país, a causa da inflação, é ter, em minha opinião, uma compreensão bem pobre do funcionamento real do capitalismo.

Muito especialmente, das verdadeiras causas da inflação, que não é impulsionada nem por uma espiral salários-preços, como pretendem os representantes da burguesia, nem por uma espiral lucros-preços, como pretendem os representantes da esquerda equivocada.

Claro que várias empresas, como apontei, de certos setores, não de todos, conseguem capturar os aumentos nominais dos preços sob a forma de lucros extraordinários. Não causam a inflação, mas aproveitam-se da inflação, ao contrário do que sucede com os trabalhadores beneficiam da inflação, ganham com a inflação.

Certo é que, em algumas áreas, insisto que noutras não, há lucros extraordinários substanciais. Que, evidentemente, devem ser taxados, e redistribuídos pela ação social do Estado, para que o peso das consequências inflacionárias não recaia exclusivamente, ou sobretudo, sobre os ombros dos trabalhadores e das camadas populares.

Que, noutras áreas, apesar de não haver lucros extraordinários, podendo até haver diminuições, existem contudo lucros, ainda assim, muito volumosos, que também podem e devem ser taxados e repartidos para defender os níveis de vida populares, para assegurar, nem que seja por via do Estado (apoios sociais e serviços públicos), uma distribuição mais justa do rendimento nacional, que, recorde-se sempre, é criado pelos trabalhadores.

Claro, também, que a regulação, ou controlo, dos preços, das margens, dos lucros extraordinários, dos juros, são, ao contrário do que dizem os representantes da burguesia, métodos historicamente comprovados, que, dentro de certos limites – e só uma boa teoria fornece a compreensão desses limites –, nomeadamente dentro de certos limites temporais, funcionam. Que podem e devem ser empregues.

Neste aspeto prático, crucial, não na análise, estou claramente, não com a Deolinda, mas com o Alexandre, a quem peço desculpa pelo verdadeiro abuso da extensão do comentário. É que me custa muito ver a esquerda a combater moinhos de vento, com as suas pretensas teses da especulação (que, evidentemente, tal como a corrupção, deve ser combatida) como impulsionadora, ou causa, da inflação.