A última reunião do BCE reacendeu o debate sobre a natureza da crise inflacionista que atravessamos. De acordo com alguns economistas presentes, o banco central tem dados (ainda não divulgados publicamente) que mostram que as pressões inflacionistas estão associadas sobretudo ao aumento das margens de lucro das empresas e não à evolução dos salários.
Não se pode dizer que a conclusão seja nova: afinal, no último ano, algumas análises sobre a subida dos preços nos EUA e na Zona Euro já indicavam que eram os lucros, e não os salários, que estavam a subir de forma mais acentuada em simultâneo com a subida generalizada dos preços. A análise mais recente do FMI, com dados até ao terceiro trimestre do ano passado, aponta no mesmo sentido: os salários reais caíram substancialmente na maioria dos países e não há risco de estarem a alimentar a inflação. Na verdade, ao longo do último ano, houve uma quebra generalizada do poder de compra – em Portugal, a queda dos salários reais atingiu os 5% no ano passado.
Enquanto os salários se mantiveram praticamente estagnados em termos nominais (o que se traduz numa queda em termos reais, isto é, tendo em consideração a subida dos preços), no 3º trimestre de 2022, o excedente bruto de exploração das empresas portuguesas portuguesa, que traduz margens de lucro no valor acrescentado bruto, registou um aumento de 7% face a um ano antes. A única espiral observável no ano passado foi a das margens de lucro.
Um estudo publicado recentemente por Isabella Weber e Evan Wasner, já referido neste blog, aponta uma explicação para este fenómeno: com os preços a aumentar de forma transversal num setor, nenhuma empresa corre o risco de perder quota de mercado ao aumentar os seus preços. Neste contexto, as disrupções na oferta de alguns produtos deram a empresas com maior poder de mercado a oportunidade de subir os preços de forma a manter ou até aumentar as margens. Alguns analistas que olharam para os relatórios de várias grandes empresas norte-americanas falam mesmo num fenómeno de “excuseflation”, que se refere ao facto de muitas empresas poderem estar a aproveitar as disrupções verificadas na oferta como pretexto para aumentar os preços dos seus bens e serviços, permitindo expandir as margens.
Noutros contextos, a subida dos preços seria acompanhada de pressão acrescida por parte dos trabalhadores para tentar garantir que os salários os acompanhavam. Só que, com a sindicalização em mínimos históricos, os trabalhadores têm cada vez menos poder negocial no conflito distributivo inerente à inflação. Tanto nos EUA como na Zona Euro, as taxas de sindicalização caíram a pique nas últimas décadas, incluindo em Portugal, o que foi acompanhado pela redução da parte do rendimento produzido que é recebida pelo trabalho (e um aumento da parte recebida pelo capital). A pressão para aumentos salariais é muito menor do que na última grande crise inflacionista, na década de 1970. Se a isso se juntar a política monetária recessiva do BCE e as medidas de contenção salarial de governos como o português, o resultado é o que se conhece: uma transferência de rendimento da base para o topo.
2 comentários:
Acho o estudo referido da Isabella M. Weber e do Evan Wasner bem fraco. Com uma incompreensão muito grande do que é a concorrência real no capitalismo (não as idealizações dessa concorrência nos típicos manuais universitários, que os autores, no fundo, acriticamente aceitam, enxertando-lhe apenas algumas “imperfeições”).
Na prática, o estudo legitima a tese da espiral inflacionária dos aumentos de salário. Porque, se lhe se opõe, não é pela compreensão de que o aumento dos salários o que fundamentalmente faz é reduzir os lucros e não aumentar o nível geral dos preços. Daí, acrescente-se a propósito, a resistência violenta da classe capitalista.
Não. Para os autores, a subida dos salários aumentaria os preços, seria inflacionária, porque as empresas, com o seu poder de mercado concentrado, transfeririam esse aumento de custos para os compradores. Tal como sucede com quaisquer outros custos. O que revela bem como os autores não têm ideia da distinção entre uma transferência de valor (dos meios de produção) e de uma criação de valor novo (pela força de trabalho), que se reparte, falando com esquematismo simplificador, entre os trabalhadores, que o criam e recuperam parcialmente nos salários, e os capitalistas, que dele se apoderam parcialmente nos lucros.
Se tal não acontece, segundos os autores, não é porque os preços se regulam, afinal de contas (embora de forma modificada pela tendência para a uniformização do lucro), pelos valores, nem pelo facto de a competição feroz entre as empresas não lhes permitir, em geral, estabelecer, sem perdas de rentabilidade, os seus preços acima dessa determinação social. Muito especialmente, e exatamente ao contrário do que consideram os autores, em situações de dificuldade ou de crise, em que a solidariedade de classe (ou concertação) entre os capitalistas se desfaz mais rapidamente e se acirram todos contra todos.
Nada disso. Para os autores, a subida dos salários funciona, por exemplo, como uma subida dos preços da energia. Na realidade, dizem-nos, só não tem aumentado os preços, como a energia, porque os trabalhadores, e os seus sindicatos, andam fracos. Não fora isso, lá teríamos o respetivo aumento de preços, o respetivo contributo inflacionário, como dizem os representantes da burguesia, que, ao contrário destes economistas, nunca se fiam completamente na fraqueza do movimento operário e popular.
Os autores têm uma incompreensão – não direi completa, mas muito grande – das verdadeiras causas inflacionárias. E, como tal, especialmente com o número ridiculamente pequeno dos seus estudos de caso, não conseguem perceber a diferença básica entre as grandes empresas se aproveitarem, ou beneficiarem, dos aumentos de preços e as grandes empresas provocarem, ou causarem, os aumentos de preços.
Como diria um velho economista, muito mal digerido, quando não muito esquecido, «se estivesse na mão dos produtores capitalistas elevarem à vontade os preços das suas mercadorias, poderiam fazê-lo, e fá-lo-iam, também sem um subir do salário», «a classe dos capitalistas nunca se oporia aos sindicatos, uma vez que sempre e em todas as circunstâncias podia fazer o que agora, excecionalmente, em condições determinadas, particulares e, por assim dizer, locais, realmente faz – a saber: utilizar cada elevação do salário para elevar os preços das mercadorias em grau muito mais elevado, portanto, para arrecadar maior lucro» [O Capital, editorial «Avante!», lv. 2, tm. 4, p. 364). Weber e Wasner elevam as exceções particulares, ainda por cima mal identificadas, à categoria de regra geral. Volta, Marx, que fazes tanta falta!
(continua)
(continuação)
Ainda o que de melhor se aproveita no equivocado estudo, defensor da tese de uma inflação pretensamente impulsionada pelos lucros, é a ressalva que deixaram obscuramente num apêndice metodológico e sobre a qual deveriam ter refletido melhor: «Observe-se também, contudo, que este cálculo obviamente não fornece uma explicação causal para a inflação. Uma captura superior à média da inflação, quer pelos lucros quer pelo trabalho, reflete simplesmente o facto de que um fator foi capaz de beneficiar da inflação, na forma de um fluxo de rendimento nominal acrescido, relativamente mais do que o outro; isso não significa necessariamente que a razão para os aumentos de preços foram esforços conscientes para aumentar ou compensar esses fluxos de rendimento» [itálicos meus; cf. apêndice A, « Calculating the capture of inflation by profits and wages»].
Pois é. Os autores invertem a causalidade do fenómeno. Tal qual como os representantes da burguesia. De que se distinguem apenas, o que não é coisa menor, pelas propostas de regulação (de preços, dos juros, dos lucros extraordinários), queremos crer, em benefício das camadas populares. Valha-nos isso.
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