quarta-feira, 15 de março de 2023

Outra vez os mitos sobre os controlos de preços?


No seu último artigo de opinião no Público, Outra vez o controlo de preços?!, o economista Ricardo Arroja critica o regresso da ideia do controlo de preços ao debate público. Apesar de reconhecer o “forte apelo social” da medida, Arroja assegura que se trata de uma “proposta que a história tem condenado sempre ao fracasso” e que não deve ser recuperada. “De uma forma simples, não funciona”, argumenta Arroja. No entanto, a história dos controlos de preços é bastante menos simples do que é dado a entender. Este é um resumo de uma perspetiva menos simplista sobre o assunto.

1. Que tipo de controlos de preços é que existem?

Há mais do que uma opção para regular preços. Os governos podem fixar preços específicos para um produto, podem definir limites máximos ou mínimos (como acontece em vários países com a definição de um salário mínimo) ou definir uma banda dentro da qual os preços podem flutuar, garantindo que não descem abaixo de um valor que se considere mínimo para assegurar um rendimento adequado para os produtores e que não excedem um valor que se considere o máximo comportável pelos consumidores.

Em alternativa, os governos podem definir limites às margens de lucro das empresas que comercializam determinados produtos: desta forma, não definem um preço que pode tornar-se pouco realista face à evolução dos custos das empresas, mas limitam a dimensão dos ganhos que as empresas podem obter a venda dos seus produtos.

Existe ainda a hipótese de influenciar a evolução dos preços de alguns produtos através da constituição de reservas de matérias-primas ou de outros bens não perecíveis. Nos casos em que essa gestão de stocks é possível, os Estados podem limitar as flutuações de preços dos produtos, intervindo no mercado para estabilizar a oferta do produto em questão e libertando reservas em períodos em que há menos produção e acumulando-as em períodos em que há oferta em excesso.

2. O controlo de preços provoca sempre escassez?

A oposição ao controlo de preços labora sobre um equívoco intelectual: o princípio de que a concorrência perfeita idealizada se verifica nos mercados dos produtos em que a inflação se tem concentrado ao longo dos últimos meses. Arroja explicita-o claramente quando diz que, para os “defensores da economia de mercado, […] os preços não se definem, sendo antes o resultado da interação entre um número potencialmente ilimitado de agentes económicos”.

Este raciocínio parte do pressuposto de que a oferta e a procura são suficientemente elásticas para responder aos incentivos do mercado – o que, traduzido do economês, significaria que as pessoas compram mais ou menos quantidades e as empresas produzem mais ou menos quantidades apenas em função do preço. “Numa economia de mercado, o preço regula a oferta e a procura dos bens e serviços. É tão simples quanto isto. É o preço dos bens e serviços que cria os incentivos que conduzem depois ao ajustamento da oferta e da procura”, explica Arroja.

O problema deste raciocínio é que nenhuma das condições se verifica atualmente: a energia é um bem essencial, indispensável para qualquer família e para a esmagadora maioria das empresas, pelo que a procura é bem menos flexível do que se supõe; além disso, os constrangimentos na oferta de energia levam tempo a resolver. O mesmo se aplica no caso dos bens alimentares essenciais.

Os mercados de produtos energéticos como o petróleo, o gás ou a eletricidade são tipicamente dominados por um pequeno conjunto de grandes empresas, à semelhança do que se verifica no setor da distribuição alimentar. Neste contexto, a concorrência é quase nula. Aquilo a que assistimos é a um aumento das desigualdades entre a maioria das pessoas, com dificuldades crescentes para pagar as contas da luz, do gás ou do supermercado, e as empresas que têm registado lucros recorde.

3. O controlo de preços nunca funcionou?

Ao longo da história, o controlo de preços foi utilizado por vários países, implementado de forma diferente e com resultados muito diversos. Até o país mais insuspeito – os EUA – recorreu à regulação pública dos preços durante e após a 2ª Guerra Mundial através da Agência de Administração de Preços criada por Roosevelt em 1941, com resultados não apenas ao nível da contenção dos preços, mas também da distribuição dos recursos, melhorando o acesso das pessoas com menores rendimentos a bens alimentares.

Atualmente, há políticas de regulação de preços aplicadas em vários países, por exemplo, na área da habitação. Quase metade dos países da União Europeia tem mecanismos de controlo de rendas, que também existem em vários estados dos EUA, onde os estudos realizados não indicam que estes tenham tido um impacto negativo na oferta de habitação, ao mesmo tempo que tornaram o seu custo comportável para as famílias.

Na Alemanha, o governo reuniu especialistas para desenhar recentemente um preço não-linear para o gás, fixando um teto para o consumo considerado essencial para as famílias (e outro para empresas) e permitindo que o preço de mercado se aplique acima desse valor. Embora possa haver dúvidas sobre alguns detalhes, nomeadamente no que diz respeito à possibilidade de revenda do gás obtido a custos mais baixos, o princípio é o mesmo: estabilizar o preço de um consumo essencial.

Em Portugal, o governo chegou a limitar a margem de lucro na venda de máscaras e testes rápidos de COVID-19 no início do confinamento com o objetivo de travar práticas especulativas, sem sinais de que tenha provocado escassez.

4. Para que serve o controlo de preços?

A ideia de que não devemos condicionar o funcionamento das empresas nestes mercados, como sugere Arroja, ignora ou omite os seus impactos distributivos. Em países como Portugal, com níveis elevados de pobreza energética e fraco isolamento térmico das casas, deixar as empresas da energia atuar é uma terapia de choque com enormes custos para os mais vulneráveis.

Ao longo dos últimos meses, os dados disponíveis nos EUA e na Zona Euro indicam que as pressões inflacionistas estão associadas sobretudo ao aumento das margens de lucro das empresas (e não dos salários). Um estudo de Isabella Weber e Evan Wasner, já referido neste blog, aponta uma explicação para este fenómeno: com os preços a aumentar de forma transversal num setor, nenhuma empresa corre o risco de perder quota de mercado ao aumentar os seus preços. Neste contexto, as disrupções na oferta de alguns produtos deram a empresas com maior poder de mercado a oportunidade de subir os preços de forma a manter ou até aumentar as margens.

As medidas de intervenção do Estado sobre os preços ou as margens de lucro obtidas na venda de determinados produtos servem para combater esta tendência. No caso de bens essenciais, o governo pode atuar de forma a regular os preços, seja através da definição de limites à evolução dos preços praticados pelas empresas (no caso da eletricidade, do gás ou das rendas das casas) ou através da limitação das margens de lucro que estas podem obter (no caso dos bens alimentares). Uma regulação eficaz dos preços em setores sistemicamente importantes – isto é, setores em que um aumento dos preços rapidamente se alastra ao resto da economia, como é o caso da energia – pode ajudar a prevenir pressões inflacionistas.

5. O controlo de preços é uma bala de prata?

A regulação temporária dos preços de bens essenciais é uma medida que pode ser equacionada para estancar práticas especulativas. Este tipo de medidas, complementada com outras medidas como a tributação dos lucros extraordinários, permite “comprar tempo” enquanto se resolvem os problemas estruturais da oferta. A sua eficácia depende do acesso ao máximo de informação possível, ao contrário do que acontece atualmente em setores como a distribuição, onde seria necessária mais transparência em relação aos algoritmos usados na definição de preços. E depende também das medidas que forem adotadas para a acompanhar.

É importante ter em conta que a inflação se traduz numa crise do custo de vida porque os salários não estão a acompanhar os preços. A manutenção e/ou aumento das margens das empresas acontece em simultâneo com a compressão da maioria dos salários, resultante das medidas de desregulação laboral que fragilizaram a posição dos trabalhadores e conduziram a sindicalização a mínimos históricos, bem como da política recessiva do BCE e da contenção salarial de governos como o português. Uma política económica progressista tem de ter como prioridade o reforço dos salários: os custos do trabalho não podem ser os únicos impedidos de aumentar neste contexto.

A médio prazo, a resposta progressista passa pelo investimento público, nomeadamente no setor da energia – o epicentro da inflação. O investimento serve tanto para aumentar a capacidade de produção de energias renováveis, como para reduzir o consumo de energia de forma socialmente justa, através do reforço dos transportes públicos (para substituir os carros) e da melhoria da eficiência energética (para reduzir o recurso ao aquecimento). Se queremos evitar problemas persistentes de inflação, é preciso atuar na raiz do problema.

Arroja cita Albert Einstein, que terá dito que “a insanidade consiste em repetir a mesma coisa, vez após vez, esperando resultados diferentes”. É uma frase que assenta como uma luva à ideia de que devemos continuar a confiar acriticamente nos mercados para produzir os melhores resultados, pelo menos entre quem se preocupa com o impacto distributivo da inflação. Ou à ideia de que devemos continuar a acreditar nos benefícios da livre concorrência em setores em que esta nunca existiu, pelo menos entre quem analisa os mercados e as empresas realmente existentes.

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