Pedro Pita Barros (PPB) fez uma análise sobre o programa "Mais Habitação". Obviamente, vale a pena ler, não só pelos bons argumentos sobre as medidas do Governo, mas também porque, como já mostrei aqui, este debate nos continua a alimentar ótimas reflexões sobre temas mais profundos do pensamento económico.
O que me chamou a atenção no texto de PPB foi o seu ponto 7.2 O Mercado que me parece muito útil para discutir as ideias dos economistas sobre o assunto.
PPB critica o "soundbite" de não podermos ter o direito à habitação "refém do mercado" afirmando que quem usa essa expressão tem uma noção errada do que é um mercado. Eu considero que a expressão faz todo o sentido, mas é verdade que o seu texto, um pouco mais à frente, me deixa confuso sobre a quem PPB se está, de facto, a dirigir.
PPB define o mercado assim:
O mercado é o somatório de muitas decisões de compra e de venda de um bem (ou um serviço). Decisões essas que são tomadas em liberdade, usando a possibilidade de dispor do uso de propriedade privada para estabelecer transações mutuamente vantajosas. Sublinho aqui, fortemente, os termos “liberdade” e “mutuamente vantajosas”. Ninguém é forçado a participar num mercado privado. Se o faz, é porque nisso encontra vantagem.
Surpreende-me que depois de uma definição destas se tenha dúvidas sobre o que significa "habitação refém do mercado"? Alguém é verdadeiramente livre de participar ou não no mercado de habitação? Estamos a assumir que alternativa à participação nesse mercado? Percebe-se melhor no seguimento:
O preço do bem ou serviço decorre das intenções de compra e de venda de quem participa, livremente, nesse processo. Nem sempre estas intenções de compra e de venda levam a um preço de equilíbrio (renda, no mercado de arrendamento) que seja o que alguns comentadores gostariam que fosse.
Tal não significa que o “mercado” esteja a funcionar mal ou que haja falha de mercado (no sentido técnico do termo). Claro que também podem existir falhas de mercado (por exemplo, associadas com poder de mercado de alguns agentes, ou de assimetrias de informação). Mas não se pode saltar de “o mercado não dá aquilo que eu quero ver” para o “mercado não funciona”.
Ora, quem assume que entramos num mercado como o da habitação de forma livre também é capaz de achar que achar o preço de equilíbrio demasiado alto é uma questão de capricho dos comentadores.
O mercado idealizado pelos economistas é, de facto, um espaço neutro onde a oferta e a procura se encontram para definir preços e quantidades de equilíbrio. Mas quando os manuais nos apresentam o modelo falam-nos em preços e quantidades de armas e manteiga, nunca de habitação ou alimentos, nunca de coisas onde o modelo poderia mostrar que os preços e quantidades de equilíbrio poderiam ditar que pessoas têm de passar fome ou que pessoas têm de morar na rua.
Habitação é um direito. Não estamos a falar de coisas que "gostaríamos que fosse". A habitação acessível para todos não é um "gostaríamos". Esta é uma das falhas que muitos economistas heterodoxos apontam à economia mainstream. Não é equivalente que o mercado dite um equilíbrio de 10 ou de 1 pacote de arroz se um 1 pacote não for o suficiente para sobreviver.
Afirma depois PPB:
No caso do mercado de arrendamento, é difícil pensar num outro mecanismo de encontro de interesses que, de forma descentralizada, faça com que cada arrendatário encontre um imóvel que lhe interesse a um preço que possa pagar, tendo em conta as suas preferências e capacidade de pagamento, e que um senhorio consiga encontrar quem lhe alugue o imóvel.
Isto é exatamente o que o mercado não está a conseguir oferecer. Conseguiria, um mercado idealizado que não existe. Aliás, o mercado vai conseguindo, "reagindo" através das decisões descentralizadas de oferecer casas cada vez mais pequenas, a preços cada vez mais altos para viverem cada vez mais pessoas, com cada vez menos condições. Mas aí está outro problema do mercado puro e simples: qualquer um de nós (exceto sociopatas como Pedro Arroja) compreende que tem de haver mínimos.
Nos dois parágrafos seguintes, PPB até coloca as coisas de uma forma que faz parecer que a crítica anterior está deslocada.
Diferente é dizer que se devem tomar medidas para que o resultado de equilíbrio de mercado seja outro, cumprindo objetivos gerais, mas sem ter a pulsão de dirigir individualmente o que cada pessoa decide escolher (isto é, sem interferir na liberdade individual de escolha). Esta consideração aplica-se quer aos casos em que se quer que quem arrenda escolha cobrar rendas mais baixas, como aos casos em que quem arrenda quer ter arrendatários apenas com elevado poder económico. Apesar tudo a maior parte dos comentários de “controle das decisões dos outros” surge quanto ao que os arrendatários devem, ou não, fazer.
Tirando algumas opiniões bem marginais, eu não vejo ninguém a querer "dirigir individualmente o que cada pessoa decide escolher". A não ser que ele considere que controlar as rendas entra neste âmbito. Mas no fim do parágrafo até afirma que a maior parte dos comentários "surge quanto ao que os arrendatários devem, ou não, fazer" e aí fico mesmo confuso.
A liberdade é, de facto, uma coisa muito importante de preservar. Mas, tal como a propriedade, não pode ser um bem que existe na medida em que a restante massa da população não o tem. É não ter acesso à habitação que constitui, neste momento, um dos maiores ataques à liberdade com que os portugueses se defrontam. Como afirmei acima, não é a existência de um mercado que garante essa liberdade.
No fim mesmo, fico descansado, porque apesar de tudo, a opção que considero mais necessária neste contexto é aceite por PPB:
A intervenção pública pode ser através de regras e leis, pode ser através da presença direta de oferta pública no mercado de arrendamento.
É isso mesmo, oferta pública. Mas não deixa de haver um equívoco em submeter essa oferta pública ao mesmo mercado. A oferta pública não se deve guiar pelo mercado, mas antes limitá-lo e guiá-lo para assegurar o cumprimento de um direito de cidadania fundamental. Neste caso, o dito mercado idealizado é que deve ser um extra intelectual, assim como na troca de manteiga por armas.
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