sábado, 29 de junho de 2019
Visão de classe
“Assim que se chega à região do Douro, ela arrebata. E pensa-se logo em quem se teria lembrado de plantar vinha nestas encostas íngremes, que hoje lhe dão um floreado tão especial.” Luísa Oliveira foi ao Douro e pensou nos termos da classe dominante da região, mas em versão eterno feminino, o que deve fazer toda a diferença, sei lá.
A jornalista da Visão não pensou logo em quem construiu os socalcos, plantou as vinhas ou colheu as uvas; em quem fez e faz o Douro, em suma, nas condições em que o fez e faz. Já se escreveu sobre o Douro de forma arrebatadoramente neo-realista. Nestes tempos de celebração sem fim dos ricos e das ricas, de corrosão moral sem fim, escreve-se de forma confrangedoramente neo-ilusionista, esquecendo as perguntas fundamentais, as perguntas sobre as mãos de novo invisíveis.
Obviamente, este neo-ilusionismo está em linha ideológica com o porno-riquismo que esta revista celebra semanalmente, de norte a sul deste país fracturado – Bellino e Ralph Lauren investem em empreendimento de luxo para fazer Hamptons no Alentejo.
Leituras: Cidades, Comunidades e Territórios (nº 38)
Já está disponível, com acesso gratuito, o nº 38 da revista Cidades: Comunidades e Territórios, editada pelo Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa. Mais um sinal do regresso da questão da habitação ao debate científico e político.
Lista de Artigos:
MARIA ASSUNÇÃO GATO e ANA RITA CRUZ, Editorial..■..SIMONE TULUMELLO, O Estado e a habitação: regulação, financiamento e planeamento..■..MARCO ALLEGRA e ALESSANDRO COLOMBO, A governança das políticas de habitação: (co)produção do conhecimento e capacitação institucional..■..ANA RITA ALVES e ROBERTO FALANGA, (Des)encontros entre Academia e Política: Conhecimento, engajamento e habitação em Portugal..■..GIOVANNI ALLEGRETTI e NELSON DIAS, Participação cívica e políticas habitacionais: que desafios para Portugal?..■..ANA PINHO (entrevista, por Eduardo Ascensão, Rita Cachado e Ana Estevens), «A Habitação é para as pessoas!»..■..RITA SILVA (entrevista, por Rita Cachado, Ana Estevens e Eduardo Ascenção), «Estamos numa febre de especulação pela procura de mais-valias»..■..PAULA MARQUES (entrevista, por Ana Estevens, Eduardo Ascensão e Rita Cachado), «O património público dever ser usado para responder às solicitações de cada tempo»..■..JOÃO FERRÃO (comentário), O estado da habitação em Portugal: Uma trajetória promissora mas ainda excessivamente em aberto..■..NUNO SERRA (comentário), O Estado e a habitação numa encruzilhada?..■..ELENA TAVIANI, Das políticas de habitação ao espaço urbano: Trajetória espacial dos Afrodescendentes na Área Metropolitana de Lisboa..■..JOANA FAZENDA MOURÃO, Regeneração urbana integrada, proteção do património cultural e eficiência ambiental como objetivos divergentes nas políticas urbanas em Portugal (2000 – 2020)..■..MANUEL B. AALBERS e BRETT CHRISTOPHERS, A Habitação no Centro da Economia Política..■..JORGE DA ROSA NEVES e PAULO TORMENTA PINTO, Heranças e Contextos na Avenida Alferes Malheiro e na Estrutura Verde do Bairro de Alvalade (1940-1970)..■..BRUNA RIGHI DOTTO e ANDRÉ SOUZA SILVA, A representatividade da mobilidade urbana em certificações de sustentabilidade.
Lista de Artigos:
MARIA ASSUNÇÃO GATO e ANA RITA CRUZ, Editorial..■..SIMONE TULUMELLO, O Estado e a habitação: regulação, financiamento e planeamento..■..MARCO ALLEGRA e ALESSANDRO COLOMBO, A governança das políticas de habitação: (co)produção do conhecimento e capacitação institucional..■..ANA RITA ALVES e ROBERTO FALANGA, (Des)encontros entre Academia e Política: Conhecimento, engajamento e habitação em Portugal..■..GIOVANNI ALLEGRETTI e NELSON DIAS, Participação cívica e políticas habitacionais: que desafios para Portugal?..■..ANA PINHO (entrevista, por Eduardo Ascensão, Rita Cachado e Ana Estevens), «A Habitação é para as pessoas!»..■..RITA SILVA (entrevista, por Rita Cachado, Ana Estevens e Eduardo Ascenção), «Estamos numa febre de especulação pela procura de mais-valias»..■..PAULA MARQUES (entrevista, por Ana Estevens, Eduardo Ascensão e Rita Cachado), «O património público dever ser usado para responder às solicitações de cada tempo»..■..JOÃO FERRÃO (comentário), O estado da habitação em Portugal: Uma trajetória promissora mas ainda excessivamente em aberto..■..NUNO SERRA (comentário), O Estado e a habitação numa encruzilhada?..■..ELENA TAVIANI, Das políticas de habitação ao espaço urbano: Trajetória espacial dos Afrodescendentes na Área Metropolitana de Lisboa..■..JOANA FAZENDA MOURÃO, Regeneração urbana integrada, proteção do património cultural e eficiência ambiental como objetivos divergentes nas políticas urbanas em Portugal (2000 – 2020)..■..MANUEL B. AALBERS e BRETT CHRISTOPHERS, A Habitação no Centro da Economia Política..■..JORGE DA ROSA NEVES e PAULO TORMENTA PINTO, Heranças e Contextos na Avenida Alferes Malheiro e na Estrutura Verde do Bairro de Alvalade (1940-1970)..■..BRUNA RIGHI DOTTO e ANDRÉ SOUZA SILVA, A representatividade da mobilidade urbana em certificações de sustentabilidade.
sexta-feira, 28 de junho de 2019
O Estado é a mãe do CDS
Não há excepção nas ideias do CDS.
O Estado deve servir para angariar fundos - dos tais contribuintes que tanto dizem proteger - para os canalizar para as empresas.
Foi isso que se passou com as diversas propostas eleitorais até agora lançadas. No sector da Saúde, primeiro defendeu-se que o Estado contrate o sector privado quando não consiga atender as pessoas; depois propôs-se o alargamento da ADSE aos trabalhadores do sector privado - sem que se conheça em que termos e com que direitos - sabendo-se que a ADSE é o principal financiador do sector privado da Saúde. Neste caso, não seria o Estado, mas os próprios "contribuintes" (vulgo cidadãos, trabalhadores, etc) a pagar directamente para um seguro de saúde.
Agora é a ideia de que a formação profissional - entenda-se, a realizada pelo Estado, através dos centros do IEFP e protocolados - deve estar sujeita a um ranking de forma a melhor se adequar às necessidades de mão-de-obra das empresas e quanto mais bem posicionado no ranking, mais verbas públicas receberiam. Caso não fosse por aí, as empresas poderiam fazer a formação directamente, mas beneficiando um "cheque-formação":
Assim dito, até parece bem, embora se pressinta neste raciocínio uma deriva para a segmentação do ensino: à pala da ideia de que "nem todos podemos ser doutores", o risco é desviar cada vez mais certas camadas sociais para uma aprendizagem puramente técnica, prendendo-as no seu mundo, e isolando a aprendizagem superior para um grupo mais restrito. Isso já está acontecer.
E sobre a aprendizagem técnica, muito haveria a dizer sobre a formação do IEFP.
Mas a principal dúvida que se levanta é por que razão essa formação mais adequada à realidade das empresas não é feita pelas próprias empresas?
O Estado deve servir para angariar fundos - dos tais contribuintes que tanto dizem proteger - para os canalizar para as empresas.
Foi isso que se passou com as diversas propostas eleitorais até agora lançadas. No sector da Saúde, primeiro defendeu-se que o Estado contrate o sector privado quando não consiga atender as pessoas; depois propôs-se o alargamento da ADSE aos trabalhadores do sector privado - sem que se conheça em que termos e com que direitos - sabendo-se que a ADSE é o principal financiador do sector privado da Saúde. Neste caso, não seria o Estado, mas os próprios "contribuintes" (vulgo cidadãos, trabalhadores, etc) a pagar directamente para um seguro de saúde.
Agora é a ideia de que a formação profissional - entenda-se, a realizada pelo Estado, através dos centros do IEFP e protocolados - deve estar sujeita a um ranking de forma a melhor se adequar às necessidades de mão-de-obra das empresas e quanto mais bem posicionado no ranking, mais verbas públicas receberiam. Caso não fosse por aí, as empresas poderiam fazer a formação directamente, mas beneficiando um "cheque-formação":
o objetivo é contornar o atual contexto do mercado de trabalho, onde “a indústria exportadora quer mão de obra qualificada mas não a consegue encontrar” porque a formação profissional não está adequada às suas necessidades. Assim sendo, os centristas querem que a formação profissional deixe de estar orientada para as qualificações académicas, como atualmente está, e passe a estar orientada para a “capacitação das pessoas” em função das necessidades reais do mercado da economia — saindo do seu atual estado de “abstração”.
Assim dito, até parece bem, embora se pressinta neste raciocínio uma deriva para a segmentação do ensino: à pala da ideia de que "nem todos podemos ser doutores", o risco é desviar cada vez mais certas camadas sociais para uma aprendizagem puramente técnica, prendendo-as no seu mundo, e isolando a aprendizagem superior para um grupo mais restrito. Isso já está acontecer.
E sobre a aprendizagem técnica, muito haveria a dizer sobre a formação do IEFP.
Mas a principal dúvida que se levanta é por que razão essa formação mais adequada à realidade das empresas não é feita pelas próprias empresas?
quinta-feira, 27 de junho de 2019
As pessoas deviam saber
Fotograma de um dos filmes "Guerra das Estrelas" |
Desde 1986 que, como jornalista, assisto a debates parlamentares e, no entanto, aquele fez-me particular impressão. Parecia um recreio de uma escola secundária de meninos mal educados, a mando de pais ausentes da sala.
Sobre a mesa estavam alterações ao Código do Trabalho, propostas pelo Governo, na sequência de um acordo de concertação social sobre combate à precariedade laboral. O acordo foi assinado há cerca de um ano, sem o voto da CGTP, e - ao contrário do que poderia parecer - quem tem feito finca-pé para que a lei do Parlamento corresponda textualmente ao acordo têm sido as confederações patronais, com a CIP à cabeça. E a reunião daquele grupo de trabalho foi exemplar disso.
Primeiro, as votações decorreram a mata-cavalos. Quem presidia à reunião era a deputada social-democrata Clara Marques Mendes, mas era o deputado do CDS António Carlos Monteiro quem imprimia o ritmo. E era para despachar quanto antes.
Não havia debate. Os cidadãos-votantes poderão esperar que, sendo um grupo de trabalho, as reuniões servissem para aclarar pontos dos vista, discutir argumentos, num ambiente de informalidade e abertura. Nada disso. Eram raros os momentos que interrompiam as votações. Caso um deputado - do Bloco ou do PCP - levantasse o braço para se pronunciar sobre um dado ponto, todos os restantes - presidente da mesa, pessoal de apoio, deputados da direita, deputados do PS conversavam para o lado, sonoramente. O deputado mal se ouvia, cumpria o seu dever e calava-se. E mal se calava, todos se calavam também. E as votações prosseguiam, aceleradas.
Os deputados da direita estavam esfuziantes, felicíssimos. O deputado do PS - Tiago Barbosa Ribeiro (TBR), um socialista que costuma intervir sobre assuntos laborais num tom à esquerda - estava na ingrata função que lhe fora dada - propositadamente? - de se abster nas propostas do BE e PCP, para que os votos do PSD e CDS as inviabilizassem, sob a gozação da direita. Eram gozadas como se fossem apenas palavras, jogos, e não medidas que poderiam, um dia, ter efeito na vida de alguém. E sempre a favor de um dos lados.
quarta-feira, 26 de junho de 2019
Portugal e os vinte anos do euro em gráficos
Em linha com o artigo anterior, que explica boa parte dos problemas associados à entrada de Portugal no euro, importa olhar para alguns gráficos ilustrativos da evolução do país nos últimos 20 anos (todos os dados utilizados são do INE e do Pordata).
Por um lado, o endividamento externo do país cresceu significativamente neste período, mas ao contrário da tese da indisciplina orçamental dos sucessivos governos, o setor que mais se endividou foi o privado (e, dentro deste, o financeiro), aproveitando a descida das taxas de juro e a redução dos custos de financiamento após a adesão à moeda única. O aumento da dívida externa até à crise de 2007-08 é notório, sendo que esta cresce bastante mais rápido que a dívida pública; a partir deste momento, os efeitos recessivos da crise e do programa de ajustamento da troika (menos atividade económica e emprego, menos receitas fiscais e mais despesas com transferências sociais), bem como a absorção de parte das perdas privadas (através de resgate ou capitalização dos bancos, por exemplo) fizeram disparar a dívida pública para níveis historicamente elevados.
Por outro lado, o desemprego, que antes da entrada no euro era tipicamente baixo no país, começou a aumentar desde a viragem do século, tendo disparado com a crise antes de regressar a valores menos expressivos já na atual legislatura. Os números do desemprego escondem, ainda assim, o emprego parcial e as formas de emprego atípicas, pelo que o indicador da subutilização do trabalho nos permite ter uma perspetiva mais estruturada sobre o mundo do trabalho. Este indicador mostra como a precariedade se tem tornado o novo normal num país em que os salários estão estagnados.
Esta tendência tem ainda sido acompanhada pela queda dos salários e ordenados em percentagem do PIB.
O cenário é manifestamente desolador - os vinte anos do país no euro foram marcados pelo enorme endividamento (primeiro maioritariamente privado, depois público), pelo aumento dos níveis de desemprego, pela precariedade e pela estagnação dos salários. Além disso, atravessámos ainda um processo de financeirização no qual os bancos, que começaram por ter lucros elevados e promover atividades especulativas ou pouco produtivas, chegaram a 2008 com grande acumulação de crédito concedido que se tornou "malparado", acentuando a fragilidade da economia do país. A capitalização de um setor financeiro altamente endividado agravou os efeitos da crise.
Da análise das duas décadas do euro podemos retirar uma conclusão - sem uma alteração profunda dos mecanismos de redistribuição de rendimento na zona euro, ou uma eventual rutura com a moeda única, será muito difícil evitar que os próximos vinte anos arrastem este doloroso caminho que se apelida de "integração".
Nos vinte anos do euro
Partilho alguns parágrafos de um texto que escrevi para um livro que tarda em sair: Ascensão e Queda da UE: uma avaliação negativa dos 20 anos do euro, capítulo de Ética, Economia e Sociedade, eds. Sandra Lima Coelho e Gonçalo Marcelo (Porto: Universidade Católica Editora - Porto) [no prelo].
É dedicado àqueles que querem que o euro sobreviva mais vinte anos até que o país se transforme numa estância turística subdesenvolvida; um território (não um País) onde a maioria dos nossos netos só encontrarão empregos precários com salários de subsistência.
"Em boa verdade, a gestação da crise começou logo após o Tratado de Maastricht com a preparação para a entrada na moeda única. Os países da periferia abdicaram da desvalorização das suas moedas ficando a sua competitividade determinada pela evolução dos custos internos. Sendo a inflação o factor decisivo, cedo se percebeu que a Alemanha conseguia fazer evoluir os seus custos salariais em linha com uma inflação inferior à dos seus concorrentes, em particular a Itália e a França. Ou seja, na ausência de uma taxa de câmbio nominal susceptível de desvalorização, é a taxa de câmbio real – um indicador da posição relativa dos custos de produção – que sinaliza a competitividade de sistemas produtivos nacionais. Tendo estes características sociais, culturais, institucionais e políticas muito específicas, naturalmente a dinâmica dos salários e preços será muito diferente no centro e na periferia. A verdade é que, na concorrência pela mais baixa inflação, a Alemanha vence sempre. Após as reformas Hartz (2003-5), a eficácia alemã na contenção salarial permitiu a criação de elevados excedentes comerciais. Em contrapartida, as periferias acumularam défices e dívida externa (Storm, 2017). Portugal, não sendo concorrente directo dos produtos industriais alemães, foi sobretudo afectado pela sobrevalorização do euro, pela abertura do mercado único à China, e pelo alargamento a Leste. Como se não bastasse a crise financeira, com os seus efeitos no crédito às empresas, consumo, investimento e emprego, a União Europeia acrescentou a partir de 2010 um novo factor de crise para os países da periferia: a imposição de uma política orçamental recessiva, a liberalização do mercado de trabalho, e o recuo na protecção do frágil Estado social, como condição para os empréstimos que haveriam de garantir a solvência da dívida pública pré-existente e o resgate dos bancos falidos. Mais ainda, desmentindo a ideia de que a moeda única oferecia protecção contra choques externos, a UE chamou o FMI para beneficiar da sua experiência na aplicação da terapia de choque executada noutros continentes, a estratégia consagrada no Consenso de Washington (Chang e Grabel, 2004)."
terça-feira, 25 de junho de 2019
Pergunta a Marcelo
Em vésperas de S.João, Marcelo Rebelo de Sousa - na verdade sem muito para dizer - elogiou as contas orçamentais do primeiro trimestre. Entre dois croquetes, foi alinhando palavras, meio envenenadas:
Foi "uma política muito rigorosa do ponto de vista orçamental, uma grande contenção do ponto de vista orçamental e a preocupação, não apenas de cumprir a meta dos 0%, mas, porventura, até de ir mais longe" [leia-se: foi "além da troica", como o PS acusara em 2011 o PSD e o CDS]. Que isso "significa, portanto, que, durante meio ano, a execução orçamental foi feita sem necessidade de decreto de execução orçamental, o que revela uma subtileza e uma inteligência de gestão financeira grandes que se traduzem nos números" [leia-se: "Assim também eu, para isso não se aprovavam novos orçamentos e vivíamos de duodécimos]. "O Governo preferiu prevenir a remediar, preferiu prevenir de uma forma muito intensa [leia-se: "austeritária"], com uma contenção muito intensa para poder ter sucesso, aconteça o que acontecer, lá fora, na Europa ou no mundo." [leia-se: "o ministro está a trabalhar para si, lá para o Eurogrupo, para os mercados", outra acusação ao Governo PSD/CDS de 2011]."Segurou-se para não correr riscos", e, por isso, "há um preço: atirou para um bocadinho mais tarde, porventura, o abrir os cordões à bolsa". [leia-se: está a fazer um eleitoralismo invertido: poupa em vez de gastar em tempo de campanha e, depois de ganhar as eleições, gasta mais...!]. Mas "vamos ver os custos que isso teve, num ou noutro caso, em termos de funcionamento de serviços públicos ou despesas sociais" [leia-se: poupa-se, mas entretanto o Estado rebenta e o Governo não faz nada, argumento que a direita embandeira, embora sem dizer como o faria sem criticar o Tratado].Ou seja, Marcelo ficou perdido no mesmo pântano do PSD e CDS.
O presidente que já se assumiu como podendo ser no futuro o mais eficaz contrapeso da direita, viu-se esvaziado de discurso quando o PS aplica a sua receita orçamental "de uma forma muito intensa", indo mesmo além das regras e das lógicas subjacentes ao Tratado Orçamental, que foram criadas para conduzir ao desinvestimento público e, com ele, à degradação dos serviços públicos e da importância do Estado na sociedade e na economia.
Mas no meio desta confusão na direita, ninguém pergunta a Marcelo: "Acha que seria preferível menos superávite e mais défice, mas com melhores serviços públicos?"
Talvez os jornalistas não a façam porque já se antecipam a sua fuga clássica, quando está nervoso e sem pensamento: "O Presidente não é um comentador...", o que faz as maravilhas dos humoristas quando apanhado em contradição.
sexta-feira, 21 de junho de 2019
O medo é um país distante (II)
Como se procurou demonstrar há uns tempos (ver aqui), a propósito da Hungria, um dos mitos no debate sobre migrações à escala europeia reside na ideia de que são os países com maior proporção de residentes estrangeiros que mais se opõem ao acolhimento de refugiados. Na verdade, quando se relaciona a percentagem de inquiridos que apoiam políticas de acolhimento de refugiados com a percentagem de residentes estrangeiros na população total, verifica-se a tendência para que sejam as sociedades multiculturais - e que portanto mais convivem com a diferença - a expressar maior apoio ao acolhimento de refugiados (e que mais os acolhem).
Um outro mito, devidamente explorado pelas forças da extrema-direita europeia, é o de que a Europa está já a acolher demasiados refugiados, correndo-se o risco de esse apoio colocar em causa, no mínimo, o acesso aos serviços públicos e ao emprego ou, no máximo, a própria identidade europeia, dada a alegada «invasão» em curso. Vale por isso a pena ter uma noção dos números: em 2017, o número de refugiados acolhido pela UE rondava os 22 por 5 mil habitantes, enquanto o mesmo indicador se situava em cerca de 38 no norte de África e nos 83 no Médio Oriente. E se a Europa representa 58% do número total de residentes nestas três regiões do globo, ela acolhe apenas 25% dos refugiados que por ela se distribuem.
É verdade que há diferenças abissais nos números de acolhimento registados nos diversos Estados membros (com a Suécia e a Alemanha, por exemplo, a destacar-se claramente pela positiva), naquele que é justamente um dos principais entorses das políticas da UE nesta matéria. O que não se poderá seguramente afirmar é que a Europa, no seu conjunto, esteja a acolher os refugiados que, por todas as razões e mais algumas, deveria estar a acolher.
Um outro mito, devidamente explorado pelas forças da extrema-direita europeia, é o de que a Europa está já a acolher demasiados refugiados, correndo-se o risco de esse apoio colocar em causa, no mínimo, o acesso aos serviços públicos e ao emprego ou, no máximo, a própria identidade europeia, dada a alegada «invasão» em curso. Vale por isso a pena ter uma noção dos números: em 2017, o número de refugiados acolhido pela UE rondava os 22 por 5 mil habitantes, enquanto o mesmo indicador se situava em cerca de 38 no norte de África e nos 83 no Médio Oriente. E se a Europa representa 58% do número total de residentes nestas três regiões do globo, ela acolhe apenas 25% dos refugiados que por ela se distribuem.
É verdade que há diferenças abissais nos números de acolhimento registados nos diversos Estados membros (com a Suécia e a Alemanha, por exemplo, a destacar-se claramente pela positiva), naquele que é justamente um dos principais entorses das políticas da UE nesta matéria. O que não se poderá seguramente afirmar é que a Europa, no seu conjunto, esteja a acolher os refugiados que, por todas as razões e mais algumas, deveria estar a acolher.
E depois do neoliberalismo?
O economista norte-americano Joseph Stiglitz, que recebeu o equivalente ao prémio Nobel da Economia em 2001, escreveu recentemente um artigo intitulado “After Neoliberalism” na revista Project Syndicate. Vale a pena ler os primeiros parágrafos do artigo (tradução livre):
“Que tipo de sistema económico permite alcançar o bem-estar da espécie humana? A questão tem vindo a definir a presente era, já que, depois de 40 anos de neoliberalismo nos Estados Unidos e outras economias avançadas, já sabemos o que não funciona.
A experiência neoliberal – redução de impostos para os ricos, desregulação dos mercados de produtos e de trabalho, a financeirização e a globalização – tem sido um falhanço sensacional. O crescimento é inferior ao registado no quarto de século que se seguiu à 2ª Guerra Mundial, e grande parte deste tem-se concentrado na parte mais alta da escala de rendimentos. Após décadas de rendimentos estagnados ou mesmo em declínio para o resto da população, devemos declarar o neoliberalismo morto e enterrado.
Na disputa para lhe suceder encontram-se três grandes alternativas políticas: o nacionalismo de extrema-direita, o reformismo de centro-esquerda, e a esquerda progressista (com o centro-direita a representar o fracasso neoliberal). No entanto, com a exceção da esquerda progressista, estas alternativas mantêm-se vinculadas de alguma forma à ideologia que já se esgotou (ou deveria ter-se esgotado).
O centro-esquerda, por exemplo, representa o neoliberalismo de 'face humana'. O seu objetivo principal é recuperar para o século XXI as políticas do ex-presidente dos EUA Bill Clinton e do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, procurando apenas ligeiras modificações aos modelos vigentes de financeirização e globalização. Por sua vez, a direita nacionalista rejeita a globalização, culpando migrantes e estrangeiros por todos os problemas do presente. Contudo, como a presidência de Donald Trump tem demonstrado, este projeto mantém-se comprometido – pelo menos, na sua variante americana – com cortes de impostos para os ricos e com processos de desregulação, bem como com a diminuição ou eliminação de programas sociais. Por contraste, o terceiro campo político defende aquilo a que chamo capitalismo progressista.”
Depois de uma análise interessante do fracasso do projeto neoliberal e das forças em disputa nos tempos que vivemos, Stiglitz descreve a terceira alternativa política que refere, baseada em prioridades que incluem o aumento da presença e regulação do Estado nos mercados, de forma a combater fenómenos como o fraco crescimento, a desigualdade crescente, a degradação ambiental, o poder crescente dos monopólios e a corrupção, bem como sobre a necessidade de investimento público em áreas como a investigação ou a educação.
A proposta de Stiglitz é discutível e a sua viabilidade pode ser questionada, sobretudo devido ao caráter limitado da alternativa – será possível levar a cabo um combate consequente a todos os problemas enunciados sem colocar em causa a base do sistema que os encerra? Existe mesmo um modelo de “capitalismo progressista” capaz de reduzir desigualdades sociais de classe, etnia, género, ou de combater eficazmente as alterações climáticas sem alterar profundamente a estrutura das sociedades em que vivemos? Não é verdade que existem, à esquerda, projetos políticos alternativos ao capitalismo, sustentados na defesa de mudanças estruturais da organização da vida em comunidade?
No entanto, o autor não se engana num ponto: o sistema atual, baseado na acumulação de lucros financeiros num contexto de estagnação económica prolongada, é o foco fundamental da desagregação social e assenta o seu poder na capacidade de afastar a população das decisões essenciais. O descontentamento social e o surgimento de alternativas são a expressão mais evidente de um sistema moribundo. O período que atravessamos é, por isso, de mudanças profundas e a atual disputa de alternativas marcará por muitos anos o rumo das sociedades em que vivemos.
“Que tipo de sistema económico permite alcançar o bem-estar da espécie humana? A questão tem vindo a definir a presente era, já que, depois de 40 anos de neoliberalismo nos Estados Unidos e outras economias avançadas, já sabemos o que não funciona.
A experiência neoliberal – redução de impostos para os ricos, desregulação dos mercados de produtos e de trabalho, a financeirização e a globalização – tem sido um falhanço sensacional. O crescimento é inferior ao registado no quarto de século que se seguiu à 2ª Guerra Mundial, e grande parte deste tem-se concentrado na parte mais alta da escala de rendimentos. Após décadas de rendimentos estagnados ou mesmo em declínio para o resto da população, devemos declarar o neoliberalismo morto e enterrado.
Na disputa para lhe suceder encontram-se três grandes alternativas políticas: o nacionalismo de extrema-direita, o reformismo de centro-esquerda, e a esquerda progressista (com o centro-direita a representar o fracasso neoliberal). No entanto, com a exceção da esquerda progressista, estas alternativas mantêm-se vinculadas de alguma forma à ideologia que já se esgotou (ou deveria ter-se esgotado).
O centro-esquerda, por exemplo, representa o neoliberalismo de 'face humana'. O seu objetivo principal é recuperar para o século XXI as políticas do ex-presidente dos EUA Bill Clinton e do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, procurando apenas ligeiras modificações aos modelos vigentes de financeirização e globalização. Por sua vez, a direita nacionalista rejeita a globalização, culpando migrantes e estrangeiros por todos os problemas do presente. Contudo, como a presidência de Donald Trump tem demonstrado, este projeto mantém-se comprometido – pelo menos, na sua variante americana – com cortes de impostos para os ricos e com processos de desregulação, bem como com a diminuição ou eliminação de programas sociais. Por contraste, o terceiro campo político defende aquilo a que chamo capitalismo progressista.”
Depois de uma análise interessante do fracasso do projeto neoliberal e das forças em disputa nos tempos que vivemos, Stiglitz descreve a terceira alternativa política que refere, baseada em prioridades que incluem o aumento da presença e regulação do Estado nos mercados, de forma a combater fenómenos como o fraco crescimento, a desigualdade crescente, a degradação ambiental, o poder crescente dos monopólios e a corrupção, bem como sobre a necessidade de investimento público em áreas como a investigação ou a educação.
A proposta de Stiglitz é discutível e a sua viabilidade pode ser questionada, sobretudo devido ao caráter limitado da alternativa – será possível levar a cabo um combate consequente a todos os problemas enunciados sem colocar em causa a base do sistema que os encerra? Existe mesmo um modelo de “capitalismo progressista” capaz de reduzir desigualdades sociais de classe, etnia, género, ou de combater eficazmente as alterações climáticas sem alterar profundamente a estrutura das sociedades em que vivemos? Não é verdade que existem, à esquerda, projetos políticos alternativos ao capitalismo, sustentados na defesa de mudanças estruturais da organização da vida em comunidade?
No entanto, o autor não se engana num ponto: o sistema atual, baseado na acumulação de lucros financeiros num contexto de estagnação económica prolongada, é o foco fundamental da desagregação social e assenta o seu poder na capacidade de afastar a população das decisões essenciais. O descontentamento social e o surgimento de alternativas são a expressão mais evidente de um sistema moribundo. O período que atravessamos é, por isso, de mudanças profundas e a atual disputa de alternativas marcará por muitos anos o rumo das sociedades em que vivemos.
quarta-feira, 19 de junho de 2019
Sábado: Jantar tertúlia do Le Monde Diplomatique
«O que pode ser mudado numa arquitectura institucional que aprofunda rotas divergentes entre as economias dos vários países?
Que consequências tem uma configuração política mais concentrada nas ameaças dos populismos de direita, extremas-direitas e direitas extremas do que na crítica ao projecto neoliberal e na efectivação de justiça social?
Que futuro para políticas públicas robustas, do trabalho aos serviços públicos, e que Estados sociais haverá em países da periferia da UE e do euro? Que ameaças a sistemas e serviços públicos, desde logo à Segurança Social?
Que políticas migratórias inclusivas e que papel nos conflitos e nos fluxos de migrantes e refugiados, em particular no Norte de África e Mediterrâneo?
E quanto ao combate contra as alterações climáticas, irá o enfoque em modificações comportamentais deixar incólume um sistema predador de recursos e estruturalmente inigualitário?»
Algumas das interrogações que servem de mote para debate no jantar tertúlia do Le Monde Diplomatique - edição portuguesa e que terá como oradores Hugo Santos Mendes (sociólogo), José Gusmão (eurodeputado) e Maria Clara Murteira (economista), sendo moderado por João Luís Lisboa (professor universitário).
Integrado na festa dos 20 anos da edição portuguesa do Le Monde, o jantar tertúlia realiza-se no próximo sábado, 22 de junho, a partir das 19h30, na Casa do Concelho de Alvaiázere (Rua Eça de Queiroz, nº 13, na zona do Marquês de Pombal, em Lisboa). Inscrições aqui, apareçam.
Que consequências tem uma configuração política mais concentrada nas ameaças dos populismos de direita, extremas-direitas e direitas extremas do que na crítica ao projecto neoliberal e na efectivação de justiça social?
Que futuro para políticas públicas robustas, do trabalho aos serviços públicos, e que Estados sociais haverá em países da periferia da UE e do euro? Que ameaças a sistemas e serviços públicos, desde logo à Segurança Social?
Que políticas migratórias inclusivas e que papel nos conflitos e nos fluxos de migrantes e refugiados, em particular no Norte de África e Mediterrâneo?
E quanto ao combate contra as alterações climáticas, irá o enfoque em modificações comportamentais deixar incólume um sistema predador de recursos e estruturalmente inigualitário?»
Algumas das interrogações que servem de mote para debate no jantar tertúlia do Le Monde Diplomatique - edição portuguesa e que terá como oradores Hugo Santos Mendes (sociólogo), José Gusmão (eurodeputado) e Maria Clara Murteira (economista), sendo moderado por João Luís Lisboa (professor universitário).
Integrado na festa dos 20 anos da edição portuguesa do Le Monde, o jantar tertúlia realiza-se no próximo sábado, 22 de junho, a partir das 19h30, na Casa do Concelho de Alvaiázere (Rua Eça de Queiroz, nº 13, na zona do Marquês de Pombal, em Lisboa). Inscrições aqui, apareçam.
terça-feira, 18 de junho de 2019
Uma espécie de reestruturação da dívida
"As regras orçamentais têm sido cumpridas (com alguma margem de tolerância, é certo), o Estado social não colapsou (apesar dos estrangulamentos conhecidos em todos os serviços colectivos) e isto foi conseguido sem que tenha sido posto em causa o pagamento da dívida pública segundo as regras em vigor.
Como foi possível? A resposta é simples: houve uma espécie de reestruturação da dívida, ainda que ninguém lhe quisesse dar esse nome."
O resto do meu texto no DN de hoje pode ser lido aqui.
Como foi possível? A resposta é simples: houve uma espécie de reestruturação da dívida, ainda que ninguém lhe quisesse dar esse nome."
O resto do meu texto no DN de hoje pode ser lido aqui.
segunda-feira, 17 de junho de 2019
Produtividade, crescimento e emprego
Na edição deste mês do Le Monde diplomatique -
edição portuguesa, assino um artigo onde analiso criticamente a narrativa
construída pelo pensamento económico conservador em torno dos temas do
crescimento do emprego e a sua relação com a evolução da produtividade.
Retomo assim um tema que já tinha abordado de modo
menos aprofundado num momento num anterior post do blogue (aqui).
Aqui fica um excerto do que podem encontrar por
lá:
A direita procurou basear parte da retoma da sua narrativa económica na ideia de que o crescimento significativo do emprego deveria ter gerado um crescimento económico muito superior se o país conseguisse apresentar valores de produtividade
semelhantes a países com igual nível de desenvolvimento. Pretendia assim
demonstrar a ineficácia das políticas da actual maioria parlamentar em
estimular a produtividade. Como vimos, esta narrativa está duplamente errada.
Num primeiro plano, porque a evolução da produtividade foi, neste período,
essencialmente endógena e esteve relacionada com a alteração de estrutura da
economia. Sem essa alteração, o emprego nunca teria crescido tanto, pelo que
pensar as duas variáveis de forma independente não faz sentido.
Adicionalmente, porque as medidas propostas para
aumentar a produtividade no longo-prazo são contraproducentes: ao defender o
aumento da flexibilidade laboral e ao manter uma postura acrítica face ao
enquadramento económico europeu que determina uma especialização adversa para a
economia nacional, o pensamento económico conservador está, na verdade, a
contribuir para que o problema da baixa produtividade persista.
domingo, 16 de junho de 2019
PS
PS é tanto Post Scriptum ao meu último texto contra o empresarialmente correcto como Partido Socialista e seu governo. Este último resolveu acabar com a embrulhada parceria público-privada do SIRESP, passando o Estado a deter o controlo integral do sistema. O governo fez bem em fazer na quinta-feira o que já devia ter feito muito antes.
Mais destas e acaba a reconhecer que a propriedade pública é condição necessária para garantir a defesa do bem público. Isto sim, seria a superação da terceira via, a passagem de um Estado desintegrado a um Estado integrado. Para isso, o europeísmo teria também de ser superado, até para que o país pudesse recuperar cruciais instrumentos de política entretanto perdidos.
O resto são, comparativamente, detalhes, embora o diabo possa estar neles escondido. De facto, e como logo sublinharam os comunistas portugueses, não havia necessidade de premiar os privados com 7 milhões de euros, dados os incumprimentos registados. Com este pagamento, o governo beneficia a ausência de contributo privado para essa contradicção nos termos que é um serviço público-privado.
sábado, 15 de junho de 2019
Dead Can Dance - Sanvean
«Vivemos num tempo em que os poderes ocidentais são coniventes com a desestabilização de certas zonas do globo, que forçaram a migrações por causa da guerra. E são diretamente responsáveis e culpabilizáveis e deviam ser responsabilizados pelos seus cidadãos. Nenhum destes migrantes quer verdadeiramente abandonar o sítio onde vive. É preciso muito medo, de ser morto, assassinado, violado, para que povos migrem em massa. Devíamos, enquanto povos que reconhecem que os seus líderes são cúmplices desses crimes, mesmo que de forma indireta, abraçar e ter uma casa para estas pessoas, para estas minorias. Isso é verdadeira base da caridade e empatia humana. Quando vês estes movimentos de direita que baseiam os seus princípios em questões de raça e secularidade a ganhar mais poder… é chocante. Enoja-me, porque não têm compaixão, só se preocupam com a cor da tua pele ou a etnia dos teus antepassados. Os tempos que vivemos são tristes, verdadeiramente tristes.»
Brendan Perry (entrevista à Blitz)
sexta-feira, 14 de junho de 2019
Incongruências laborais
A jornalista Bárbara Reis, ex-directora do jornal Público, escreveu nesse mesmo jornal um artigo em que contesta a atitude laboral do PCP num processo envolvendo um dos seus funcionários.
O artigo poderia ter sido muitas coisas.
Poderia ter sido uma forma de suscitar um debate sobre as incongruências da lei. Por exemplo, se o Código o Trabalho se aplica às relações contratuais de funcionários partidários - e que, de facto, se aplica -, o que deve acontecer a um funcionário do CDS que muda de opinião e passa a ser comunista? Pode o CDS expulsá-lo? Não pode. Pode afastá-lo de ser funcionário? Não pode, porque o Código do Trabalho se sobrepõe aos estatutos do partido e ninguém pode ser despedido por crime de opinião. Pode o CDS retirar-lhe a confiança política e esvaziá-lo de funções? Não, porque será considerado assédio e deverá dar-lhe trabalho. Pode montar um processo disciplinar? Pode, mas apenas à luz do Código do Trabalho e não dos estatutos do partido.
Faz tudo isto sentido? Não muito no quadro da vida de um partido, mas enquanto relação laboral faz todo o sentido, como defesa do elo fraco nessa relação. Interessante, não é?
O artigo poderia ter sido uma forma de questionar as práticas das igrejas, nomeadamente a Católica. Um padre que viva da sua actividade remunerada de padre, e que decida casar, pode ser expulso da Igreja? Não pode, porque a Constituição lhe concede esse direito e o facto de o padre ter optado por casar não o pode prejudicar na sua relação laboral. Pode a hierarquia da Igreja castigá-lo e afastá-lo para uma paróquia distante? Não pode, porque o padre pode alegar prejuízo grave, baseando-se no Código do Trabalho. Faz sentido? Para esse padre, sim. E, no entendimento de muita gente católica, também. Mas aos olhos das actuais regras da Igreja Católica, faria sentido manter esse padre?
Há milhentas questões que poderiam suscitar ideias interessantes e polémicas ou formas de as resolver. Haveria que pensar um pouco, estudar experiências internacionais (parece, por exemplo, que em Espanha há regras especiais para os partidos). Mas Bárbara Reis não fez isso.
Confundiu partidos e empresas, jogou apenas com a contradição de o PCP se dizer o partido de defesa dos trabalhadores e ser ao mesmo tempo uma entidade patronal envolvida num despedimento, para concluir - de forma ligeira - em favor do mainstream básico de que às empresas deve ser concedida toda a margem legal. Escreveu coisas como:
O artigo poderia ter sido muitas coisas.
Poderia ter sido uma forma de suscitar um debate sobre as incongruências da lei. Por exemplo, se o Código o Trabalho se aplica às relações contratuais de funcionários partidários - e que, de facto, se aplica -, o que deve acontecer a um funcionário do CDS que muda de opinião e passa a ser comunista? Pode o CDS expulsá-lo? Não pode. Pode afastá-lo de ser funcionário? Não pode, porque o Código do Trabalho se sobrepõe aos estatutos do partido e ninguém pode ser despedido por crime de opinião. Pode o CDS retirar-lhe a confiança política e esvaziá-lo de funções? Não, porque será considerado assédio e deverá dar-lhe trabalho. Pode montar um processo disciplinar? Pode, mas apenas à luz do Código do Trabalho e não dos estatutos do partido.
Faz tudo isto sentido? Não muito no quadro da vida de um partido, mas enquanto relação laboral faz todo o sentido, como defesa do elo fraco nessa relação. Interessante, não é?
O artigo poderia ter sido uma forma de questionar as práticas das igrejas, nomeadamente a Católica. Um padre que viva da sua actividade remunerada de padre, e que decida casar, pode ser expulso da Igreja? Não pode, porque a Constituição lhe concede esse direito e o facto de o padre ter optado por casar não o pode prejudicar na sua relação laboral. Pode a hierarquia da Igreja castigá-lo e afastá-lo para uma paróquia distante? Não pode, porque o padre pode alegar prejuízo grave, baseando-se no Código do Trabalho. Faz sentido? Para esse padre, sim. E, no entendimento de muita gente católica, também. Mas aos olhos das actuais regras da Igreja Católica, faria sentido manter esse padre?
Há milhentas questões que poderiam suscitar ideias interessantes e polémicas ou formas de as resolver. Haveria que pensar um pouco, estudar experiências internacionais (parece, por exemplo, que em Espanha há regras especiais para os partidos). Mas Bárbara Reis não fez isso.
Confundiu partidos e empresas, jogou apenas com a contradição de o PCP se dizer o partido de defesa dos trabalhadores e ser ao mesmo tempo uma entidade patronal envolvida num despedimento, para concluir - de forma ligeira - em favor do mainstream básico de que às empresas deve ser concedida toda a margem legal. Escreveu coisas como:
Estou a constatar que um dos efeitos perversos da inflexibilidade da nossa lei laboral é pôr as empresas a criar armadilhas para apanhar trabalhadores em “ilegalidades técnicas” em busca de argumentos de “justa causa” para apresentar em tribunal. (...) Muitos portugueses concordarão que há formas mais honestas para despedir uma pessoa. Mas também muitos portugueses concordarão que o Código do Trabalho deveria permitir despedir um trabalhador que não contribui para os objectivos de uma empresa." E deve ser assim porque "em conflitos laborais, os tribunais portugueses costumam dar razão aos trabalhadores (...) é raro darem razão aos patrões".Ora, nenhuma destas opiniões é pacífica.
quinta-feira, 13 de junho de 2019
Contra o empresarialmente correcto
Portugal é um país pornograficamente desigual e ainda dominado por um pouco escrutinado discurso do empresarialmente correcto, a versão neoliberal do chamado politicamente correcto. Neste país, é possível ouvir gente que se diz de esquerda afirmar na televisão, de resto dominada pelas direitas, que o pessoal político ou do topo da administração pública ganha pouco.
A questão é: pouco comparado com quem? A resposta implícita é com o pessoal de topo da tecnoestrutura das grandes empresas ditas privadas, mas que têm efeitos bem públicos. Desde pelo menos John Kenneth Galbraith que sabemos que a conversa do mercado e do mérito só serve para aí ofuscar as relações de poder que em última instância determinam quem fica com o quê e porquê.
A solução, portanto, não passa por aumentar o salário dos primeiros, gerando mais desigualdades num sector público que até as comprime comparativamente, mas por diminuir o poder dos segundos. Isto pode fazer-se por via fiscal, fixando um salário máximo implícito, através de uma taxa marginal de IRS muito superior, englobando todas as fontes de rendimento pelo menos em pé de igualdade, por via do empoderamento dos poderes compensatórios de natureza laboral e por via do exemplo dado pelo Estado, incluindo ao nível da tecnoestrutura do seu infelizmente minguado sector empresarial.
Vem esta conversa a propósito do sórdido caso dos prémios na TAP, que tem de continuar a merecer toda a atenção, até porque reflecte uma das dimensões do empresarialmente correcto: uma cultura do incentivo pecuniário sem limites e que erode todas as motivações intrínsecas. O governo parece ser impotente para reverter a corrosiva decisão da arrogante comissão executiva de uma empresa que deve voltar a ser 100% pública. A possibilidade de nacionalização serve também para manter um saudável regramento entre o capital monopolista.
Um dos problemas é que, como discípulo da terceira via dos anos noventa e da integração europeia realmente existente, António Costa é especialista em soluções de parceria público-privada em que o Estado não manda, mas assume demasiados riscos: do SIRESP à banca, passando pelas PPP na saúde ou pelas jigajogas financeiras na habitação. Porque é que na TAP tinha de ser diferente?
quarta-feira, 12 de junho de 2019
Lesados da SIC?
A recém contratada apresentadora da SIC Cristina Ferreira, bem como outras figuras da estação televisiva, vai começar a vender aos espectadores da SIC obrigações SIC que prometem uma taxa de juro anual de 4,5%.
A frágil situação financeira da Impresa é conhecida e, por isso, é de questionar de que forma vai o grupo investir os 30 milhões de euros que se pretende obter, de forma a garantir esse rendimento. É que quando as taxas de juro prometidas se tornam elevadas, é caso para suspeitar.
Aconteceu isso em operações dos CTT (que roeram o capital dos investidores), na Caixa Económica Açoreana (e faliu), no BES (e viu-se no que deu), só para falar naqueles casos de que me lembro.
Só esperemos que o Estado não venha, mais tarde, a ser chamado a cobrir os eventuais prejuízos desta operação, em nome da defesa da comunicação social livre.
A frágil situação financeira da Impresa é conhecida e, por isso, é de questionar de que forma vai o grupo investir os 30 milhões de euros que se pretende obter, de forma a garantir esse rendimento. É que quando as taxas de juro prometidas se tornam elevadas, é caso para suspeitar.
Aconteceu isso em operações dos CTT (que roeram o capital dos investidores), na Caixa Económica Açoreana (e faliu), no BES (e viu-se no que deu), só para falar naqueles casos de que me lembro.
Só esperemos que o Estado não venha, mais tarde, a ser chamado a cobrir os eventuais prejuízos desta operação, em nome da defesa da comunicação social livre.
segunda-feira, 10 de junho de 2019
Para tirar da gaveta
Apontamentos sobre política externa (ou será interna?)
Devo dizer que apreciei particularmente as tomadas de posição frontais do Presidente da República e, em nome do Governo, do Ministro dos Negócios Estrangeiros sobre os trinta anos dos terríveis acontecimentos no centro da capital chinesa e para lá dela; afinal, sempre afoitos na promoção da visão liberal dos direitos humanos.
Enfim, a visão liberal dos direitos humanos foi pensada para ser selectivamente convocada, geralmente em função de uma vontade de ingerência externa, ao serviço da entrada de capitais, com consequências desastrosas. Face à Venezuela de Maduro, sim, face ao Egipto de Sisi, não, e por aí fora. Perante tal hipocrisia, o melhor mesmo é adoptar uma postura anti-liberal realista, modesta, defensiva e mais consistente, baseada no respeito pela autodeterminação dos povos, a linha colectiva de resto dominante antes da hegemonia liberal no que aos direitos humanos diz respeito, como se indica numa muito informativa história sobre o tema. E o mundo até era melhor em termos de possibilidades reais de emancipação.
Bom, por falar ou não de China e de política externa, devo dizer que fiquei, uma vez mais, banzado com um artigo do responsável do PSD por esta área, Tiago Moreira de Sá. Como bom cultor da sabedoria convencional, segundo a qual a melhor política externa é a que é definida algures entre Bruxelas e Washington, ou seja, a melhor política externa é a ausência de política externa, Sá está agora preocupado com a influência chinesa em Portugal. Quais foram os partidos que entregaram a nossa energia a empresas públicas chinesas, quais foram? As relações internacionais são impensáveis se as desligarmos da economia política (inter)nacional, afinal de contas.
Na realidade, o melhor que as elites conseguem fazer é multiplicar dependências e hipocrisias. Num mundo mais multipolar, tal vai gerar cada vez mais tensões e contradições, claro. Isto não é necessariamente mau. Para lá da economia, se há área condicionada e que precisa de mudar é a da política externa, resistindo aos alinhamentos com a confrontação imperial ensaiada pelos EUA e por algumas potências europeias face à Rússia ou face à China: nem papão, nem modelo, como já aqui defendi. Se no Financial Times estão a ver bem o cenário de uma espécie de nova Guerra Fria, vamos precisar de uma nova política de não alinhamento, baseada numa nova versão do chamado nacionalismo internacionalista.
No campo da integração europeia, o melhor é apostar numa geometria cada vez mais variável, já que este processo dirigido pelo directório vai ser cada vez mais justificado pela perigosa invenção de inimigos externos (e internos). Enquanto a variegação genuína não chega, num continente que sempre dependeu dela para prosperar, quanto mais paralisia e dispersão das instituições ditas europeias, melhor, como se viu nestes anos, onde o Brexit e outros processos democráticos evitaram males ainda maiores neste rectângulo. Vai ser preciso pensar a partir de uma desintegração europeia controlada e selectiva, a começar pelo mercado único e pela moeda única, ou seja, pela política fundamentalmente única. É por estas e por outras que é preciso acompanhar a situação italiana com todo o interesse.
A vantagem de sermos relativamente pequenos é que podemos conseguir passar pelos pingos da chuva, descobrindo os nossos nichos, como se defende neste artigo luminoso, sempre com um objetivo: recuperar e manter alguma margem de manobra nacional, base da democracia e do desenvolvimento nos nossos termos. Para isso, precisamos de recuperar instrumentos de política económica. Só assim podemos garantir pleno emprego com equilíbrio externo, condição necessária para não ficarmos nas mãos dos credores internacionais.
No actual contexto de dependência nacional, compreende-se que os nossos diplomatas estejam frustrados. As áreas básicas da soberania têm sido exauridas e esvaziadas. Mas o mundo que se avizinha vai tornar as suas missões cada vez mais relevantes, sabendo-se que não há mudança na política externa sem uma mudança profunda na política interna.
Adenda. Afinal, Augusto Santos Silva até escreveu um ensaio sobre a China ontem no Público. Fala vagamente de direitos humanos, sem qualquer especificação histórica. Os tais direitos estão clara e reveladoramente subordinados à vontade dita europeia de abrir mais mercados na China, apercebendo-se que afinal tem havido alguma assimetria neste processo político entre cá e lá. Creio que os chineses se lembram da forma como os imperialismos europeus abriram aí mercados no século XIX, desde as guerras do ópio. Espero que abram ou fechem nos seus termos, em função da melhor avaliação dos seus interesses, e que nós façamos o mesmo. O nós terá de voltar a ser nacional, claro. Enfim, para isto será preciso superar também as quadraturas do círculo, ou as circulaturas do quadrado, deste influente intelectual de todos os ismos da rendição da social-democracia desde o guterrismo.
sexta-feira, 7 de junho de 2019
Ainda a questão
Recentemente, o Público tem feito uma boa cobertura da questão da habitação em Portugal, o que se reflecte hoje no editorial de Ana Sá Lopes: “o governo subsidia casas de ricos”. O chamado programa de renda acessível é de facto um pobre programa para ricos. Nem de propósito, num dos capítulos do livro A nova questão da habitação, acabado de sair, Ana Cordeiro Santos, afirma o seguinte:
“Esta medida afigura-se como ineficaz porque o seu efeito sobre a oferta de novos alojamentos para o arrendamento será diminuto onde estes são mais necessários, isto é, nos centros urbanos onde a atratividade de usos alternativos ao arrendamento acessível ou de longa duração se faz sentir com mais intensidade (…) Em virtude do atual momento especulativo do mercado imobiliário, um desconto de 20 % sobre o ‘valor de referência de mercado’, tal como é apresentado, não tornará as casas mais acessíveis (...) um desconto de 20 % não compensará a evolução recente das rendas onde estas são mais inacessíveis. Por outro lado, ao tomar como referência o valor de mercado das rendas, esta medida não só não trava a sua subida, como acaba por contribuir para a dinâmica especulativa que procura conter. Assim sucede porque, efetivamente, o preço das rendas mantém-se, já que o desconto a conceder aos inquilinos, definido a partir dos valores de mercado em crescimento, será pelo menos parcialmente pago pelo Estado aos proprietários através de descontos ou isenções fiscais. Em suma, nos principais centros urbanos as rendas só continuarão a ser acessíveis às classes de rendimentos mais elevadas.”
“Esta medida afigura-se como ineficaz porque o seu efeito sobre a oferta de novos alojamentos para o arrendamento será diminuto onde estes são mais necessários, isto é, nos centros urbanos onde a atratividade de usos alternativos ao arrendamento acessível ou de longa duração se faz sentir com mais intensidade (…) Em virtude do atual momento especulativo do mercado imobiliário, um desconto de 20 % sobre o ‘valor de referência de mercado’, tal como é apresentado, não tornará as casas mais acessíveis (...) um desconto de 20 % não compensará a evolução recente das rendas onde estas são mais inacessíveis. Por outro lado, ao tomar como referência o valor de mercado das rendas, esta medida não só não trava a sua subida, como acaba por contribuir para a dinâmica especulativa que procura conter. Assim sucede porque, efetivamente, o preço das rendas mantém-se, já que o desconto a conceder aos inquilinos, definido a partir dos valores de mercado em crescimento, será pelo menos parcialmente pago pelo Estado aos proprietários através de descontos ou isenções fiscais. Em suma, nos principais centros urbanos as rendas só continuarão a ser acessíveis às classes de rendimentos mais elevadas.”
A questão
A nova questão da habitação em Portugal examina desenvolvimentos recentes do nexo finança-habitação. Após um período de explosão do crédito para a construção e compra de casa própria, segue-se agora uma crescente procura internacional dirigida ao imobiliário nacional em busca de elevadas rendibilidades. Estes desenvolvimentos decorrem da última crise internacional e do programa de ajustamento. Os desequilíbrios estruturais do país não foram resolvidos, saindo reforçado o peso político do sector imobiliário. Neste contexto, assumem relevância os estímulos fiscais e as engenharias financeiras que transformam a habitação num ativo financeiro, enquanto o rendimento de muitas famílias escasseia para aceder a este bem essencial. São necessárias outras políticas para que o direito à habitação seja uma realidade.
Sinopse do livro, coordenado por Ana Cordeiro Santos, cruzando os contributos da economia e da geografia, ou seja, da economia política com raízes, e retomando a questão de Engels para o actual contexto nacional.
quinta-feira, 6 de junho de 2019
Quem domina o presente
Os jornais estão cheios com o 75º aniversário do desembarque aliado na Normandia.
A BBC denomina-o como o “dia decisivo”. A enviada da Antena 1 à Normandia lembrou o dia que foi “o princípio do fim da segunda guerra mundial”. O Diário de Notícias menciona-o como o dia que “marcou a reviravolta na Segunda Guerra Mundial e o princípio do fim da ocupação nazi”. O El Pais sublinha a coincidência da visita de Donald Trump, Emmanuel Macron e Justin Trudeau que "acompanham a rainha Isabel II (...) para celebrar “a batalha que mudou o curso da história". João Carlos Espada no Observador usa o “o épico desembarque na Normandia das tropas aliadas britânicas” para desenvolver toda uma análise sobre os aliados de hoje.
As operações mediáticas são igualmente operações militares. A contrainformação não é apenas aquilo que pode ser considerado fake news. Nestes dias, assistimos - sem notar - a mais uma dessas operações, de remontagem dos cenários da forma que mais se ajeita a quem está - hoje! - a fazer a História. Muito à laia da velha máxima de George Orwell: "Quem domina o passado, domina o futuro. E quem domina o presente, domina o passado".
Na verdade, a reviravolta na segunda guerra não se deu na Normandia, mas na União Soviética. E é pena como a história dos vencedores - de alguns vencedores - passa na cabeça dos jornalistas como faca quente por manteiga.
Dois terços dos efectivos alemães deslocados para a frente leste foram lá derrotados. Mesmo no campeonato de mortos na guerra, a Europa ocidental fica muito atrás da URSS, precisamente devido ao atraso na abertura dessa segunda frente na Europa.
A correspondente da Antena 1 lembrou que existe um canto dos Estados Unidos doado pelo Estado francês, para albergar os dez mil mortos caídos em defesa da Europa. Mas se os Estados Unidos perderam cerca de 300 mil homens desde a sua entrada no conflito em 1941, e a Inglaterra cerca de 375 mil, a União Soviética viu desaparecer cerca de um décimo da sua população (uns 27 milhões de habitantes). A guerra arrasou cerca de 70 mil cidades e aldeias, seis milhões de casas, 98 mil quintas, 32 mil fábricas, 82 mil escolas, 43 mil bibliotecas, seis mil hospitais, milhares de quilómetros de estradas e caminhos de ferro. Para os povos que constituíram a URSS, a guerra tornou-se num sentimento politizado de orgulho nacional.
Mas veja-se como a História se reescreve.
A BBC denomina-o como o “dia decisivo”. A enviada da Antena 1 à Normandia lembrou o dia que foi “o princípio do fim da segunda guerra mundial”. O Diário de Notícias menciona-o como o dia que “marcou a reviravolta na Segunda Guerra Mundial e o princípio do fim da ocupação nazi”. O El Pais sublinha a coincidência da visita de Donald Trump, Emmanuel Macron e Justin Trudeau que "acompanham a rainha Isabel II (...) para celebrar “a batalha que mudou o curso da história". João Carlos Espada no Observador usa o “o épico desembarque na Normandia das tropas aliadas britânicas” para desenvolver toda uma análise sobre os aliados de hoje.
As operações mediáticas são igualmente operações militares. A contrainformação não é apenas aquilo que pode ser considerado fake news. Nestes dias, assistimos - sem notar - a mais uma dessas operações, de remontagem dos cenários da forma que mais se ajeita a quem está - hoje! - a fazer a História. Muito à laia da velha máxima de George Orwell: "Quem domina o passado, domina o futuro. E quem domina o presente, domina o passado".
Na verdade, a reviravolta na segunda guerra não se deu na Normandia, mas na União Soviética. E é pena como a história dos vencedores - de alguns vencedores - passa na cabeça dos jornalistas como faca quente por manteiga.
Dois terços dos efectivos alemães deslocados para a frente leste foram lá derrotados. Mesmo no campeonato de mortos na guerra, a Europa ocidental fica muito atrás da URSS, precisamente devido ao atraso na abertura dessa segunda frente na Europa.
A correspondente da Antena 1 lembrou que existe um canto dos Estados Unidos doado pelo Estado francês, para albergar os dez mil mortos caídos em defesa da Europa. Mas se os Estados Unidos perderam cerca de 300 mil homens desde a sua entrada no conflito em 1941, e a Inglaterra cerca de 375 mil, a União Soviética viu desaparecer cerca de um décimo da sua população (uns 27 milhões de habitantes). A guerra arrasou cerca de 70 mil cidades e aldeias, seis milhões de casas, 98 mil quintas, 32 mil fábricas, 82 mil escolas, 43 mil bibliotecas, seis mil hospitais, milhares de quilómetros de estradas e caminhos de ferro. Para os povos que constituíram a URSS, a guerra tornou-se num sentimento politizado de orgulho nacional.
Mas veja-se como a História se reescreve.
Suspirar de alívio, Europa?
Quando nas europeias de 2014 se assistiu a um reforço da votação na extrema-direita em vários Estados membros, com destaque para a subida da Frente Nacional em França e da Aurora Dourada na Grécia, a par da estreia do Alternative für Deutschland na Alemanha e do Vox em Espanha (ambos fundados em 2013), poderia pensar-se que se tratava apenas de uma onda de choque temporária, gerada pelos efeitos das políticas de austeridade impostas pela Comissão Europeia, na sequência do impacto da crise financeira de 2008.
Ou seja, com o relaxamento das políticas punitivas, que permitiu que as economias começassem a poder respirar a partir de 2013, e já depois da aplicação de programas de «ajustamento» mais severos e específicos a alguns Estados (nomeadamente países do sul), seria expectável que o acto eleitoral seguinte (as europeias de 2019), traduzisse já o consequente desanuviamento político e social, com o recuo da extrema-direita um pouco por toda a Europa.
Não foi isso, porém, que aconteceu. De facto, se tomarmos como referência o conjunto de partidos de extrema-direita associados à «Aliança Europeia de dos povos e das nações», não só não se regista um recuo em termos de resultados eleitorais (antes pelo contrário), como esse conjunto de partidos se sente impelido, dada a sua redobrada força, a reivindicar a formação de um grupo próprio no Parlamento Europeu. Com efeito, a votação nesses partidos de treze países (que representam cerca de 56% do total da população europeia em 2018) quase duplica entre 2014 e 2019, passando de cerca de 11 para 19% do total de votos válidos, nesse período. Trata-se, aliás, da maior subida entre eleições desde 1999: quase mais 8 pontos percentuais (quando a subida entre 2009 e 2014 não foi além de 4 pontos percentuais).
Terá pois que se encontrar uma explicação mais profunda e credível para a persistência do mal-estar europeu, não servindo de muito suspirar de alívio e continuar a assobiar para o ar, como se a normalidade estivesse reposta e o perigo da ascensão da extrema-direita estivesse contido. Para ir ao encontro dessa explicação, talvez valha a pena recuperar um texto recente de João Ferrão ou ler na íntegra a excelente entrevista de Hugo Mendes a Wolfgang Streeck no último número da Manifesto, da qual se destaca a seguinte passagem:
«A social-democracia europeia abraçou, na década de 1990, a onda da globalização, quando a internacionalização económica parecia a única forma de revitalizar o capitalismo e retomar a acumulação de capital. Como consequência, tornou-se difícil de distinguir os sociais-democratas de outros apoiantes da revolução neoliberal, o que levou a que o seu eleitorado tradicional os abandonasse. Mais tarde, muitos destes eleitores mudaram-se para os novos “populistas”, sobretudo os de direita, já que a esquerda era e é ainda fiel a uma espécie de internacionalismo que não encontra espaço para uma democracia plebeia a partir de “baixo”. (...) Os “populistas” de direita não têm qualquer resposta construtiva para a estagnação económica, para as crescentes desigualdades entre classes e regiões ou para a emergência de uma nova crise orçamental dos Estados. Mas eles têm uma intuição correta: que o nível para uma mobilização democrática eficaz é o nível nacional – o Estado-nação é a única instituição capaz de ser democratizada, com direitos de cidadania que podem ser utilizados para mudar governos e políticas. Precisamente esta intuição, infelizmente, é um anátema para a esquerda, ou para a maioria esmagadora da esquerda. Ela prefere que a democracia ao nível nacional seja condicionada, para que seja, ou tenha de ser transferida para instituições internacionais – que, porém, ela é incapaz de criar.»
Ou seja, com o relaxamento das políticas punitivas, que permitiu que as economias começassem a poder respirar a partir de 2013, e já depois da aplicação de programas de «ajustamento» mais severos e específicos a alguns Estados (nomeadamente países do sul), seria expectável que o acto eleitoral seguinte (as europeias de 2019), traduzisse já o consequente desanuviamento político e social, com o recuo da extrema-direita um pouco por toda a Europa.
Não foi isso, porém, que aconteceu. De facto, se tomarmos como referência o conjunto de partidos de extrema-direita associados à «Aliança Europeia de dos povos e das nações», não só não se regista um recuo em termos de resultados eleitorais (antes pelo contrário), como esse conjunto de partidos se sente impelido, dada a sua redobrada força, a reivindicar a formação de um grupo próprio no Parlamento Europeu. Com efeito, a votação nesses partidos de treze países (que representam cerca de 56% do total da população europeia em 2018) quase duplica entre 2014 e 2019, passando de cerca de 11 para 19% do total de votos válidos, nesse período. Trata-se, aliás, da maior subida entre eleições desde 1999: quase mais 8 pontos percentuais (quando a subida entre 2009 e 2014 não foi além de 4 pontos percentuais).
Terá pois que se encontrar uma explicação mais profunda e credível para a persistência do mal-estar europeu, não servindo de muito suspirar de alívio e continuar a assobiar para o ar, como se a normalidade estivesse reposta e o perigo da ascensão da extrema-direita estivesse contido. Para ir ao encontro dessa explicação, talvez valha a pena recuperar um texto recente de João Ferrão ou ler na íntegra a excelente entrevista de Hugo Mendes a Wolfgang Streeck no último número da Manifesto, da qual se destaca a seguinte passagem:
«A social-democracia europeia abraçou, na década de 1990, a onda da globalização, quando a internacionalização económica parecia a única forma de revitalizar o capitalismo e retomar a acumulação de capital. Como consequência, tornou-se difícil de distinguir os sociais-democratas de outros apoiantes da revolução neoliberal, o que levou a que o seu eleitorado tradicional os abandonasse. Mais tarde, muitos destes eleitores mudaram-se para os novos “populistas”, sobretudo os de direita, já que a esquerda era e é ainda fiel a uma espécie de internacionalismo que não encontra espaço para uma democracia plebeia a partir de “baixo”. (...) Os “populistas” de direita não têm qualquer resposta construtiva para a estagnação económica, para as crescentes desigualdades entre classes e regiões ou para a emergência de uma nova crise orçamental dos Estados. Mas eles têm uma intuição correta: que o nível para uma mobilização democrática eficaz é o nível nacional – o Estado-nação é a única instituição capaz de ser democratizada, com direitos de cidadania que podem ser utilizados para mudar governos e políticas. Precisamente esta intuição, infelizmente, é um anátema para a esquerda, ou para a maioria esmagadora da esquerda. Ela prefere que a democracia ao nível nacional seja condicionada, para que seja, ou tenha de ser transferida para instituições internacionais – que, porém, ela é incapaz de criar.»
terça-feira, 4 de junho de 2019
Capital
Tenho face às conspirações a mesma atitude que em relação às bruxas: não acredito, mas lá que existem, existem. Vem isto a propósito de mais uma reunião do Clube de Bilderberg. Pela mão dessa referência ético-política progressista, como agora se diz, que é o banqueiro Durão Barroso, Fernando Medina estreou-se, na semana passada, neste clube secreto.
Medina já tinha sido convidado, em 2016, juntamente com outra referência, Maria Luís Albuquerque, mas não tinha ido. Pensei que tivesse sido uma saudável tomada de posição política a favor da transparência democrática, mas afinal parece que foi um problema de agenda.
Conspirações e bruxas à parte, o Clube de Bildberberg é uma dessas instâncias de articulação elitista para a continuada reorganização, supostamente pós-nacional e claramente pós-democrática, do capitalismo, sempre a favor do tal 1%. A ida assinala que o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa tem ambições políticas para lá da capital, mas não para lá das fracções dominantes do capital.
Duvido que o social-liberalismo de bolha imobiliária e turística lisboeta, num país cada vez mais desequilibrado territorialmente a favor da capital e do capital financeiro e especulativo, tenha grande futuro político. Mas isto sou eu, que sou um incorrigível optimista da vontade.
segunda-feira, 3 de junho de 2019
Sempre contra a economia do medo
Em Abril, a comunicação social deu
ampla divulgação aos resultados
de um estudo patrocinado pela
Fundação Francisco Manuel dos Santos,
coordenado por Amílcar Moreira, cuja
ideia central dá a sensação de déjà-vu: o
envelhecimento demográfico vai pôr em
causa a sustentabilidade financeira do sistema
público de pensões.
(...)[U]ma análise sumária do estudo permite concluir que este não tem relevância para o entendimento do horizonte futuro da Segurança Social, não contribui para um debate informado e não é neutro. Na realidade, não se pode extrair nenhuma conclusão relevante sobre o futuro do sistema de Segurança Social a partir de um exercício desta natureza. Formular hipóteses sobre o comportamento futuro de variáveis demográficas e económicas (até 2070), para depois projectar receitas e despesas nesse horizonte temporal, é um mero exercício especulativo. Pura e simplesmente, não é possível fazer previsões sobre o comportamento destas variáveis num horizonte temporal tão longo. É impossível prever os níveis do produto e do emprego, a evolução salarial, as alterações do comportamento demográfico, etc., que se irão registar nos próximos 51 anos, tal como, no ano de 1968, era impossível prever o valor que estas variáveis assumem hoje, em 2019. O problema é que o resultado deste exercício especulativo é tomado como prova da insustentabilidade financeira da Segurança Social.
(...)
O estudo também não contribui para «a promoção de um debate mais informado» sobre o tema, como pretendem os autores. É enganador, porque a projecção de défices futuros resulta das hipóteses pessimistas assumidas a priori. O estudo é enganador, também, pela forma como enquadra o debate sobre a sustentabilidade financeira. Os equilíbrios financeiros futuros do sistema público de pensões são equacionados sem colocar a política económica do centro da discussão. Admitindo a priori que a economia portuguesa irá enfrentar cinquenta anos de estagnação, o assunto fica encerrado.
(...)
E há uma questão essencial que o estudo omite: Portugal já introduziu reformas radicais no domínio das pensões. As próprias instituições da União Europeia, implicitamente, o reconhecem. Alguns documentos oficiais recentes revelam preocupação com a sustentabilidade política das reformas que reduziram substancialmente a generosidade das pensões nas próximas décadas. Portugal é considerado um dos países com maior «risco de reversão das reformas», porque se espera que se verifique um maior crescimento do índice de dependência dos idosos e que venha a sofrer maiores reduções, quer no rácio das prestações (quociente entre a pensão média do sistema público e o salário médio na economia), quer na taxa de substituição (quociente entre a média da primeira pensão do sistema público e a média do salário no momento da passagem à reforma). Reduzir ainda mais as pensões, alterando parâmetros ou transitando para modelos que convertem a pensão em variável de ajustamento (como o sueco ou um sistema de pontos), poderá ser opção a considerar?
Excertos do artigo, com referências omitidas, “novas-velhas profecias sobre o futuro das pensões”, da autoria de Maria Clara Murteira e publicado no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Maio. As análises desta economista, especialista em questões da segurança social, são o melhor antídoto que eu conheço em Portugal à economia do medo, ou seja, à aposta ideológica na desconfiança em relação à provisão pública de pensões, na boa lógica da repartição, abrindo caminho à sua continuada erosão.
sábado, 1 de junho de 2019
É na 2ª feira!
Pode parecer estranho, mas é a lei.
Quem faça uma hora de trabalho extraordinário, receberá menos do que receberia por uma hora em horário normal de trabalho. Trabalha para lá do seu horário e ainda recebe menos.
Se trabalhar duas horas, essa segunda hora corresponderá a uma remuneração apenas 8% superior a qualquer outra em horário normal de trabalho.
Caso queira perceber porquê, lei aqui. Mas assim sendo, o que acha que as empresas fazem? Empregam mais pessoas ou colocam as empregadas a trabalhar mais horas? Deve o trabalho suplementar ser assim incentivado por lei? Deve este paradoxo ser resolvido? Deve a lei ser mudada? E se sim, dever-se-á aproveitar precisamente este momento em que se discute no Parlamento mais um pacote de mudanças à lei laboral?
Se quiser saber o que pensam as principais confederações patronal e sindical sobre o assunto, apareça! Será na 2ª feira, no CIUL de Lisboa, no Picoas Praza, pelas 18h. E lá estarão presente os autores do estudo do Observatório sobre Crises e Alternativas em que se mostra esta contradição, mas sobretudo o responsável pela área jurídica da CIP, Gregório Rocha Novo, e o ex-responsável pelo departamento jurídico da CGTP, Joaquim Dionísio.
A não perder.
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