segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Como a direita pensa

Há dias, deram-me a conhecer um texto de Milton Friedman – O Neoliberalismo e as suas perspectivas –, de 1951, em plena Guerra Fria.

Nesse texto, curto e claro como água, Friedman anuncia que "o palco está montado para o crescimento de uma nova corrente que substitua a velha ideia" defensora do socialismo, entendido como colectivista, fruto de uma forte presença do Estado na economia.

O conceito dessa nova maré de opinião pública era então perfeitamente definido:
"O neoliberalismo aceitaria a ênfase liberal do séc XIX da importância fundamental do indivíduo, mas substituiria o objectivo do séc XIX de laissez-faire, como um meio para esse fim, pelo objectivo da ordem concorrencial. Procuraria o uso da concorrência entre produtores para proteger os consumidores da exploração [!], da concorrência entre empregadores para proteger trabalhadores e proprietários [!!], e concorrência entre consumidores para proteger as empresas [!]. O Estado policiaria este sistema, estabeleceria condições para favorecer a concorrência e prevenir os monopólios e aliviar a miséria aguda e a angústia. Os cidadãos seriam protegidos contra o Estado pela existência de um mercado privado livre; e contra si próprios pela preservação da concorrência."
Ora, todos sabemos aonde levou esta doutrina que, passados 65 anos, ainda vigora e em força. Algo diferente da teoria: a defesa do indivíduo justificou uma maior concentração de riqueza nalguns, a desigualdade e o nascimento de firmas transnacionais, cujo poder rivaliza e se sobrepõe ao poder dos próprios Estados.

Mas o que é interessante é verificar que esta direita económica é preserverante e reciclável, nunca esquecendo ao longo dos tempos o seu leit-motiv de fazer tudo contra o socialismo. Libertar ao máximo - egoisticamente - a contribuição individual para um colectivo (e aí os mais ricos têm mais a perder), porque, supostamente, essa libertação da obrigatória interajuda num colectivo social trará mais benefícios para a sociedade, tida como um somatório de indivíduos egoístas. Mas, claro, ajuda mais os ricos do que os pobres, porque os mais ricos são mais empreendedores e dão emprego aos mais pobres. Outra versão daquela máxima tão velha e ainda tão usada: São as empresas que criam o emprego.

E a Segurança Social é um caso exemplar das ideias matrizes da direita.

1. Uso indevido das verbas da Segurança Social para fins outros: Um dos aspectos frisados na declaração de voto de Boaventura Sousa Santos, Maria Bento, Maldonado Gonelha e Bruto da Costa no Livro Branco da Segurança Social, em Janeiro de 1998, foi o desprezo dos governantes pelo equilíbrio e sustentabilidade do sistema de protecção social, reflectido no incumprimento pelo Estado da Lei de Bases da Segurança Social de 1975 a 1995 (sobretudo por Cavaco Silva). A preços de 1997, a dívida ao sistema era de 5,9 mil milhões de contos (quase 30 mil milhões de euros). Na comissão do Livro Branco, Diogo de Lucena e Miguel Gouveia desvalorizaram esse tema ao afirmar que não tinha "existência comprovada" e que "falar de dívida do Estado é retórica para aumentar os impostos".

Ora, no governo PSD/CDS, aconteceu aparentemente o contrário. Veja-se o que vem no anexo ao relatório do Orçamento de Estado para 2017 sobre a sustentabilidade do sistema:


O Estado sobrefinanciou a Segurança Social - através de transferências extraordinárias - como forma de aumentar os seus excedentes, por forma a serem canalizados para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, de modo a ser usado para comprar títulos de dívida pública, compra devidamente autorizada por uma alteração legal - de última hora - que alargou a percentagem de investimento nesses activos. Foi o tal decreto aprovado por Vítor Gaspar nos seus últimos dias no Ministério das Finanças (aqui e aqui).

sábado, 29 de outubro de 2016

Ódios?


Num dos países mais brutalmente desiguais do mundo dito desenvolvido, Manuel Carvalho ecoava há dias, num aparte de um artigo sem grande interesse sobre a CGD, um refrão que me interessa há muito: “os portugueses odeiam quem ganha bem e esse é um dos atavismos que nos colam irremediavelmente ao atraso”.

E quem expõe os mecanismos da desigualdade e propõe políticas para as reduzir, a partir da crítica às práticas odiosas que vigoram entre as elites, é o quê, segundo Carvalho? Adivinharam: “populista”. O que para esta gente é um insulto, devemos nós tomar como um elogio. Se os populismos e, já agora, os nacionalismos, são o novo espectro que não sai da cabeça das elites ditas liberais, então devemos ligá-los na direcção certa: a tal vontade colectiva nacional e popular de que dependem as transformações democráticas necessárias.

Bom, reparem como a ideologia dominante gosta de se imaginar na oposição, de fora, contra o país: “os portugueses odeiam”. Pode ser que um dia isso se torne verdade. Pode ser. Numa cultura dominada e pervertida pelo poder do dinheiro concentrado, o diagnóstico diz pouco sobre “os portugueses”, mas muito sobre a ideologia dominante desde os anos oitenta e que inspirou as mudanças que demoliram grande parte da economia política do 25 de Abril, voltando a concentrar rendimentos no topo da pirâmide social depois do susto apanhado nas fases de democracia mais intensa e colocando o país nesta estagnação sem fim.

Apodar de atávica a preocupação de reconfigurar as instituições da economia para nelas inscrever princípios de justiça social é um velho truque neoliberal que qualquer leitor de Hayek identifica com facilidade. O debate aqui é entre os que querem regras que distribuam recursos de cima para baixo e os que querem regras que distribuam recursos de baixo para cima. Mais nada.

Enfim, se depender da linha dominante entre os que “transacionam ideias em segunda mão”, e a fórmula também é do grande pensador da direita intransigente no século XX, a economia política para os 1% continuará: de baixo para cima eternamente, irremediavelmente condenados?

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Um agosto quente, em Lisboa e Madrid


Thomas Urban, correspondente em Madrid do Süddeutsche Zeitung, um dos mais influentes jornais alemães, escreveu em agosto sobre a situação política e económica em Portugal e Espanha, descrita a partir das suas capitais. Vê em ambas os sinais de uma «preocupação emergente a sul» e estabelece uma tese simples: o resgate da UE permitiu que Portugal e Espanha regressassem ao caminho certo, mas as mudanças eleitorais entretanto ocorridas ameaçam deitar tudo a perder, travando as reformas em curso e colocando a península ibérica perante o risco de «regresso ao passado».

A tese de Urban está em linha com o padrão discursivo a que fomos sendo habituados. Aliás, qualquer semelhança com as recentes declarações de Wolfgang Schäuble é apenas coincidência. A conversa sobre os «malandros do sul» e o sucesso da austeridade não é de agora: ouvimo-la desde o início da crise, com o generoso contributo de uma comunicação social que parece ter ficado aprisionada nas malhas dessa narrativa, como se dela não se conseguisse libertar. Mesmo quando a realidade já demonstrou o fracasso do caminho único, o tal que não tinha alternativa.

É esse o problema do correspondente do Süddeutsche Zeitung: tentar encontrar na realidade a confirmação dos pressupostos de que parte. Olha para as duas capitais, «invadidas por andaimes» e mergulhadas em pó e entulho, e vê os sinais de regresso à economia do imobiliário e ao endividamento. Olha para o mercado de trabalho e vê o emprego a estagnar e desemprego na iminência de subir. Assinala o crescimento em queda e a degradação dos juros. A causa disto tudo? O entendimento entre as esquerdas em Portugal e o risco de se chegar a uma solução idêntica em Espanha. Pânico: a inconsciência e a irresponsabilidade dos eleitores ameaça o sucesso dos processos de ajustamento.

Thomas Urban não se preocupa em fazer assentar a análise na verdade dos factos. No Investigate Europe, o Paulo Pena trata de o demonstrar, através de dados e fontes oficiais. Lembra que o procedimento por défice excessivo deveria bastar para evitar qualquer alusão ao «sucesso» dos resgates ibéricos (tal como a classificação da dívida soberana portuguesa como «lixo», que remonta a 2011). E sobre os impactos da mudança de governo, Urban não reparou - porque não cuidou de reparar - mas o desemprego está em queda desde o início do ano e foram criados mais de 80 mil empregos até junho. A ideia de regresso à economia do betão, por sua vez, é negada pelas estatísticas e o aumento do turismo dispõe de melhores explicações que a da solução de governo em Portugal ou o impasse político em Espanha. Como conclui o Paulo Pena, no referido artigo (que merece ser lido na íntegra), «Thomas Urban viu uma hipótese e saltou de imediato para a tese. Mas esse salto não lhe correu bem».

Nota: Já depois da publicação do artigo do Paulo Pena, o editor do Süddeutsche Zeitung introduz alterações à versão inicial do texto de Thomas Urban. Nada que resolva, contudo, os problemas de fundo. Como sublinha o Paulo, o que está em causa não é a discussão entre austeridade e crescimento. Do que se trata é de um debate sobre o jornalismo e a veiculação de narrativas ancoradas em elementos que não resistem à mais elementar verificação dos factos.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

«Investigate Europe»: Desmitificar é preciso


Nove jornalistas europeus de diferentes nacionalidades constituíram, em julho passado, o Investigate Europe, uma plataforma editorial que vale a pena acompanhar. Trata-se de uma rede transfronteiriça de jornalismo de investigação que se propõe cruzar dados e verificar factos, por forma a confrontar muitas das narrativas hegemónicas da crise, da austeridade e das opções políticas dos países. Para nesses termos desmontar mitos e ideias feitas, os enviesamentos e as perceções infundadas a que essas narrativas dão lugar, numa ampla difusão nas televisões, rádios e na imprensa escrita.

Sabemos, desde o início da crise financeira, que a colonização do espaço público de debate pela narrativa dos «sacrifícios» e do «ajustamento», da «austeridade expansionista» e das «gorduras do Estado» foi decisiva para transmutar os efeitos nefastos da desregulação do sistema bancário e financeiro num problema de dívidas soberanas, apontando de caminho o dedo ao Estado, à social-democracia e às políticas keynesianas, como sendo os grandes responsáveis pela crise. Do «viver acima das possibilidades» ao «erro das políticas de investimento público e de redistribuição», das sacrossantas «reformas estruturais» ao mito dos «países preguiçosos» do sul e à necessidade de criar mercados e «flexibilizar» as relações laborais.

De facto, se «o mundo dos nossos dias não se circunscreve às fronteiras nacionais, os jornalistas também não se devem aí confinar», defendem os nove autores do Investigate Europe. Tanto mais quanto, acrescentam, «os factos e as análises que demonstram a interdependência» entre países, economias e sociedades tendem a rarear na comunicação social, à escala europeia. Razão pela qual, referem ainda, a constituição de redes de jornalistas de diferentes países permite recolher e decifrar a informação e os dados necessários à desconstrução de mitos, ideias feitas e falsas narrativas. O Investigate Europe pretende ser uma dessas redes e o seu surgimento é pois uma excelente notícia, desde logo para o pluralismo, no debate político-económico.

De derrota em derrota até...

Tudo isto deve ser muito confuso.

Na sua crónica de hoje na Antena 1, Helena Garrido critica as recentes declarações do ministro alemão das Finanças, Schauble - quando opina sobre os maus resultados económicos do Governo de esquerda, apoiado por forças radicais - porque agora já se pode dizer que as coisas estão a correr bem. Mas - imaginem! - estão a correr bem porque o Governo está aplicar uma política de austeridade!

Ou seja:
1. Primeiro, quando o Governo foi empossado, evitou-se qualquer análise crítica à aplicação de um modelo recessivo de austeridade, por si defendida desde o início. Quando o Governo apoiado pela esquerda quis aplicar outra política e de reversão da austeridade, criticou-se que seria suicida, sublinhou-se a necessidade de reformas estruturais - semelhantes às aplicadas pelo governo de direita - porque a situação económica estava ainda fragilizada, embora sem nunca admitir o papel nefasto da política de austeridade na fragilização social, do tecido económico e até da banca.

2. Depois, criticou-se o modelo seguido pelo Governo socialista - apoiado no consumo, alavancado por uma reposição de rendimentos - , que não ia dar resultado, que não estava a dar resultado, que o investimento estava a cair, que Portugal iria precisar de um segundo resgate, e que sabia-se lá o que iria acontecer depois das férias do verão. Para mais pormenores, tentem encontrar este número do Le Monde Diplomatique.

3. Agora, tudo está a correr bem, porque - pasme-se! - porque o Governo apoiado pela esquerda está, no fundo, aplicar uma política de austeridade, com o objectivo certeiro de reduzir o défice orçamental, e portanto, a austeridade funciona. Na verdade, a austeridade que se está a aplicar é fruto das imposições do Tratado Orçamental, veementemente vincadas pelas instâncias comunitárias, e que se está a tentar, a todo o custo e de forma mais justa, atenuar, progressivamente. E que, politicamente, talvez seja o caminho necessário para que os socialistas venham a perceber as limitações impossíveis de um tratado que antes apoiaram. Por seu lado, Helena Garrido não entende a necessidade de o ministro alemão ter que negar a realidade, ao aperceber-se que, a cada dia que passa, cai por terra o carácter fenixiano de uma política de austeridade. Os exemplos são úteis no contexto geral.

Era conveniente, pois, que os proeminentes colegas de profissão tivessem alguma seriedade na avaliação de tudo o que disseram no passado e do que se está a passar, sob pena de tudo isto se assemelhar àquelas práticas em que se vai apagando das fotografias as pessoas que vão caindo em desgraça. E antes que seja tarde, convinha perceber que, assim, vai ser difícil retirar a sua própria fotografia de um pensamento que se afunda.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O segredo, os direitos dos povos e... o Público

O direito à opinião é sagrado. O direito dos jornais a mudar de directores igualmente. E, por inerência, torna-se sagrado que esses directores tenham opiniões. Outra coisa é um editorial.

Um editorial é algo que, mesmo assinado por um director com o sagrado direito de poder expressar a sua opinião, condiciona o jornal. Ou melhor - mesmo que os jornalistas não entendam esta opinião como uma directriz - é algo que retrata o pensamento de quem faz opções, de quem dirige, de quem tem uma palavra final sobre o conteúdo do jornal. E é isso que me custa ver no Público.

Mas enfim, são tempos.


Resumindo: no editorial de hoje do Público, assinado por Diogo Queiroz de Andrade, a decisão de Juncker foi má porque a pôs à consideração dos representantes dos povos locais. Foi má porque ficou preso de decisões "populistas" (entenda-se, de acordo com a vontade dos povos). Foi má porque criou um precedente que porá de lado o TTIP. Foi má porque, ao fazer valer a decisão dos povos, a União Europeia deixa de ser um "parceiro credível"... Então perderam-se tantos meses a negociar - diga-se: sem dar cavaco a ninguém! - e agora só porque os povos não querem, perde-se tudo...

Ele há coisas que fazem muita confusão que se defenda no século XXI... Mas enfim são tempos de guerra. E em tempo de guerra não se limpam armas, nem se olha a princípios democráticos. É melhor que tudo corra já, sem interferências estranhas, antes que o vento mude e tudo se torne impossível. E nessa questão, o Público escolheu esse lado da barricada, em que os povos não decidem.

É pena e quase criminoso, na minha maneira de pensar que é sagrada, também.

Ainda as pensões mínimas


Uma pensão mínima do regime geral da Segurança Social pode ter duas parcelas:

1- A que resulta da aplicação da fórmula estabelecida na lei (‘pensão estatutária’), paga pelo Orçamento da SS;

2- A que resulta de um complemento, pago pelo Orçamento do Estado, quando a ‘pensão estatutária’ não alcança o nível mínimo fixado para as pensões de invalidez e velhice.

Por outro lado, existe uma “pensão social” que é paga a quem não fez descontos. Dado que estas pensões já estão sujeitas a condição de recursos, o actual debate só tem sentido relativamente ao complemento das pensões mínimas do regime geral, a segunda parcela que o Orçamento de Estado paga. É a isto que Mário Centeno se referiu na sua entrevista e era a isto que o programa do PS se referia quando orçamentava uma poupança de 1020 M€, em quatro anos, em resultado da introdução da condição de recursos.

À esquerda, há quem considere que o complemento pago no regime geral das pensões mínimas tem a mesma natureza do Complemento Solidário para Idosos (CSI) que visa reduzir a pobreza. Por isso, também deveria ser sujeito a condição de recursos.

Outros (Maria Clara Murteira, João Rodrigues, Ricardo Cabral, ... ) e eu próprio, entendemos que o nível mínimo da pensão constitui uma decisão política no quadro da solidariedade nacional para com os que trabalharam e fizeram descontos (por escalões, em função do número de anos). Para nós, é um adquirido civilizacional que quem trabalhou constituiu o direito a um nível mínimo de pensão. A sociedade, por decisão política, compromete-se com esse nível mínimo na medida em que o trabalho do cidadão foi comprovado pelos descontos que fez para que os inválidos e idosos, seus contemporâneos, também tivessem pensão. O direito à pensão mínima é independente da forma como esta é financiada. No caso do complemento do regime geral (segunda parcela), o Estado apenas está a concretizar a sua garantia política quanto ao nível mínimo da pensão.

Do nosso ponto de vista, quem defende a aplicação da condição de recursos, quando existe um complemento na pensão mínima, está a mutilar o direito à pensão porque pretende reduzi-la à pensão estatutária (primeira parcela), como se o direito à pensão tivesse sido constituído apenas ao nível da aplicação de uma fórmula de cálculo. Entende que, daí para cima, havendo pobreza comprovada, o cidadão poderá beneficiar do CSI ou qualquer outro apoio aos pobres. Isto é a erosão do Estado Social em direcção ao Assistencialismo.

A esquerda que repudia o paradigma neoliberal em todos os domínios, continuará a defender o direito a um nível mínimo de pensão como um instrumento de reconhecimento social do valor do trabalho, independentemente de outras fontes de rendimento de que o pensionista disponha. O imposto sobre o rendimento global das famílias, com taxas progressivas, encarregar-se-á do objectivo da justiça social ao tributar os que têm uma pensão mas não são pobres.

Acima de tudo, importa não confundir objectivos e instrumentos de política. E recusar a lógica do esfarelamento dos direitos que, sob a capa do combate à pobreza, visa desconstruir o Estado social. É tempo de a esquerda perceber que o combate à pobreza foi lançado no plano internacional para encobrir e legitimar o abandono da luta pelo desenvolvimento. Sobre isto, ver aqui.

Nota:
A segunda linha do texto foi alterada, tendo sido eliminada uma parte: (aplicação) "aos descontos efectuados pelo trabalhador".

Leituras: Revista Crítica - Económica e Social (n.º 9)


Na nona edição da Revista Crítica, três dossiers e uma secção de estudos e debates. O primeiro dossier reúne diversos temas de análise sobre a economia portuguesa: as «cinco palavras chave» para a situar e compreender (Ricardo Paes Mamede), energias renováveis (Adelino Fortunato), aumento do salário mínimo (Luís Casinhas) e mobilidade urbana (Carlos Gaivoto).

O segundo dossier é dedicado ao debate em curso acerca do novo imposto sobre o património imobiliário, com textos de Nuno Serra, Tiago Antunes e Francisco Louçã. No terceiro dossier discute-se a banca e o sistema financeiro, com uma análise de Ricardo Cabral sobre a crise no Deutsche Bank e outra sobre as ajudas do Estado à banca, e dois textos sobre o veto presidencial do decreto-lei relativo ao levantamento do sigilo bancário (Francisco Louçã e Eugénio Rosa).

Na secção Estudos e Debates, Pedro Adão e Silva reflete sobre o que resta nas esquerdas e nas suas visões estratégicas, e Ricardo Cabral e Viriato Soromenho Marques discutem os quarenta anos de democracia e integração europeia. Tal como as edições anteriores, o nº 9 da revista Crítica está disponível aqui, para download gratuito. Boas leituras.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O objectivo da ciência económica é mostrar que os mercados funcionam (ou não)

Os modelos básicos de microeconomia dizem que o aumento do salário mínimo leva a uma redução da procura de trabalho por parte dos empregadores - ou seja, a uma redução dos empregos disponíveis. Logo, os governos que aumentam os salários mínimos com base em argumentos sociais estão na verdade a provocar um aumento do desemprego e, possivelmente, um aumento das desigualdades (já que o emprego é fonte mais importante de rendimentos).

David Card (na foto) foi um dos economistas que mais contribuiu para questionar esta visão, através de estudos realizados na década de noventa e que lhe valeram importantes prémios. Nesta interessante entrevista fala sobre isso e muito mais.

Particularmente notável é a parte em que explica por que deixou de fazer investigação nessa área: "Em primeiro lugar, as minhas conclusões fizeram com que perdesse um monte de amigos. As pessoas que eu tinha conhecido durante muitos anos, por exemplo, alguns dos que eu conheci no meu primeiro emprego na Universidade de Chicago, ficaram muito irritados ou decepcionados. Eles pensaram que, ao publicar o nosso trabalho, estávamos a trair a causa da Economia como um todo."

É assim, para uma grande parte dos economistas académicos o objectivo da ciência económica é mostrar que os mercados funcionam. Quando a conclusão é outra, ficam irritados.

sábado, 22 de outubro de 2016

Caixas


O Negócios assinalava ontem que o BCE exigiu “autonomia salarial na Caixa”, decorrendo também a política remuneratória da CGD, que conduziu a um salário de 423 mil euros anuais brutos e brutais para António Domingues, da “lógica privada da capitalização que evitou regras das ajudas de Estado”.

É sempre assim neste regime europeu: os cidadãos nacionais pagam, mas o soberano pós-democrático europeu manda. A capitalização é pública, mas tem de fingir que é como se fosse privada, ou seja, de “mercado”, uma ficção no sector financeiro actual ou uma realidade no passado recente, conduzindo à maior crise desde a Grande Depressão, sendo também grandemente responsável pelo brutal aumento das desigualdades associado.

Ainda não saímos da crise e o “sector privado”, que conduziu ao desastre, é a referência também para o governo ao nível das remunerações. Um sinal de que Caixa continuará a não ser banco, ou seja, o banco público, orientado por uma lógica de serviço público, de que precisamos. Graças às perversas regras europeias, tem de continuar a comportar-se como se fosse um banco privado.

Entretanto, a abismal desigualdade salarial em Portugal também reflete as desigualdades de poder entre o topo e a base da pirâmide empresarial, refletindo, por exemplo, o enfraquecimento dos freios e contrapesos sindicais. Os poderes públicos demitem-se de corrigir essa situação, prescindindo de usar os instrumentos ao seu dispor, incluindo a propriedade. Basta pensar que jamais passou pela cabeça de alguém ter representantes dos trabalhadores, dos consumidores e de outras partes interessadas no novo conselho de administração. E mesmo que passasse, o BCE jamais permitiria veleidades de democracia económica. No topo só são admitidas mudanças dentro da mesma elite de sempre.

A alimentar a “vergonha”, para usar a apta expressão de uma militante socialista justamente indignada num debate com António Costa, está uma ideologia de celebração dos grandes homens da gestão, que por definição merecem tudo o que obtêm. Os trabalhadores que fazem as empresas são reduzidos a peões num xadrez. É claro que quando há crises, os grandes homens fazem-se pequenos, não sabem nada de nada. Pouco importa, já ganharam o suficiente. Ideologia é também o outro nome para a ofuscação do que realmente se passa e do que teria de se passar: limitação dos salários do topo, incluindo por via de uma taxa marginal de imposto a convergir para os 100%, fixando um salário máximo, já que também há um salário mínimo.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Por que não se aumentam, em agosto de 2017, todas as pensões mínimas?

1. Vale a pena voltar a olhar, com maior detalhe, para a tabela do Vítor Junqueira, que reproduzimos aqui. Essa tabela identifica um conjunto de pensões de valor reduzido (entre 200€ e 300€, na maior parte dos casos), assinalando o valor nominal dos aumentos verificado entre 2011 e 2015 (primeiro gráfico) e os aumentos registados em 2016 e 2017 (segundo gráfico), que resultam da reposição da atualização anual de pensões (suspensa nos últimos quatro anos) e da atualização extraordinária (em agosto do próximo ano), que permitirá que os aumentos atinjam nominalmente os 10€ no caso das pensões que não foram aumentadas entre 2011 e 2015.


2. A primeira constatação é a de que o governo de direita decidiu, entre 2011 e 2015, aumentar apenas parte destas pensões, excluindo outras com valores igualmente reduzidos (abaixo de 300€), mesmo quando são pensões que correspondem a carreiras contributivas mais longas. Esta decisão discricionária introduziu, ao longo dos últimos quatro anos, uma desigualdade incompreensível e um desnivelamento injustificado (que em nenhum caso é inferior a 10€).


3. A segunda constatação é a de que o atual governo decidiu não só atualizar todas as pensões a partir de 2016 (nos termos da atualização automática, entretanto reposta), como tratou de corrigir a injustiça relativa introduzida pelo governo anterior, ao aprovar aumentos apenas num subgrupo limitado de pensões (as que não serão, justamente, abrangidas pelo aumento extraordinário do próximo ano). Aliás, importa sublinhar-se que esse aumento extraordinário apenas permitirá uma atenuação da atual diferença de valores. De facto, mesmo com esse aumento, as pensões que serão agora compensadas continuam num patamar de atualização inferior ao verificado nas pensões aumentadas entre 2011 e 2015 (terceiro gráfico).


4. Assim, a pergunta que importa colocar é a seguinte: por que razão deveria o atual governo perpetuar a injustiça relativa criada pelo governo de direita, em vez de a corrigir? Dito de outro modo, custa assim tanto perceber que a decisão de abranger todas as pensões, no aumento extraordinário de 2017, significaria reproduzir e perpetuar o desnivelamento e a injustiça gerados com o aumento discricionário verificado nos últimos quatro anos?

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Tudo ligado, todo um debate


O abandono da referência salarial para a definição dos níveis mínimos de pensões e o início da divergência desses valores em relação ao SMN [salário mínimo nacional] líquido enquadram-se numa mudança de fundo das políticas de mínimos sociais para idosos. Os eixos essenciais que configuram o novo paradigma são bem explicitados no preâmbulo do diploma legal que introduziu o complemento solidário para idosos (CSI). Foi, aliás, com a instituição do CSI que se desencadeou a dinâmica de desconstrução do direito generalizado dos trabalhadores a um nível mínimo de pensão de reforma (…) O projecto é radical: deixar de reconhecer o direito a um nível mínimo de pensão de reforma a todos os trabalhadores para passar a assegurar um mínimo de rendimento aos idosos de forma selectiva, alegando ser esta a opção mais justa e eficaz no combate à pobreza (…) O projecto de substituir o complemento social por uma prestação sujeita a condição de recursos equivale a desmantelar o direito a um nível mínimo de pensão de reforma. A pensão de reforma passaria a corresponder ao valor estatuário — aquele que resulta da aplicação da regra de cálculo — por mais diminuto que fosse, só se atribuindo uma prestação complementar em situação de carência de recursos. Isto significa que a pensão mínima de reforma deixaria de ser reconhecida enquanto direito construído a partir do trabalho. O contrato de trabalho deixaria de dar uma garantia de segurança económica futura, pois o exercício prévio de uma actividade profissional deixaria de ser condição suficiente para ver reconhecido o direito. Depois de uma carreira laboral de 20, 30 ou 40 anos, um trabalhador com pensão estatutária diminuta só poderia beneficiar de uma prestação complementar se comprovasse carência de recursos.

Excertos de um artigo de Maria Clara Murteira, “Assistencialismo versus direitos dos trabalhadores: o caso das pensões mínimas”, publicado no Le Monde diplomatique – edição portuguesa em Novembro de 2015. Vale a pena recuperá-lo. A autora do excelente livro A Economia das Pensões tem sido uma das poucas vozes a denunciar, a partir da academia, a erosão em curso, desde há uma década, do sistema público de pensões. Estamos perante a progressiva passagem de uma lógica de Estado social universal, vinculado ao trabalho, para uma lógica assistencial, com a generalização da condição de recursos, marca de água da degradação dos sistemas de provisão. Hoje, a privatização das pensões promovida pela UE já não se faz necessariamente com plafonamento, mas sobretudo com a aceitação da erosão e subversão da provisão pública universal, como também denunciámos no livro A Financeirização do Capitalismo em Portugal.

Esta degradação é filha da austeridade sem fim, claro, e da adaptação regressiva das preferências políticas que lhe está associada, com a crise de toda uma cultura política no campo da provisão. Neste campo, reduz-se a pensão estatutária, através de regras de cálculo cada vez mais desfavoráveis, por um lado, e a pensão mínima torna-se um programa para indigentes, um sistema social para pobres, que tende a ser um sistema cada vez mais pobre, por outro. Quem tem família com algum rendimento não tem direitos, basicamente. No futuro, trabalhadores cada vez mais precários e com salários cada vez mais baixos, com carreiras fugazes, terão de se sujeitar a burocracias cada vez mais intrusivas e a reais barreiras no acesso para fazer prova de indigência e assim receber o que será basicamente uma versão do RSI para idosos.

E como isto está tudo ligado, daqui até à perversa subsidiação dos salários baixos é só um outro passo, como bem avisa Francisco Louçã, que pelos vistos neste governo também há quem queira percorrer. Estamos há uma década neste plano inclinado. E pelos vistos não vamos sair dele tão cedo. Quem pode aprovar isto? E quem ganha com esta discussão nesta altura?

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Duas notas sobre pensões

Que são, na verdade, uma referência a dois textos particularmente esclarecedores, sobre uma questão complexa.

1. No indispensável «Buracos na Estrada», o Vítor Junqueira explica por que razão haverá, em 2017, dois momentos distintos de aumento de pensões. O primeiro, em janeiro, decorre da atualização automática (que esteve suspensa até 2015 e que foi reposta em 2016) abrangendo quase dois milhões de pensões, incluindo pensões mínimas. O segundo, em agosto, respeita a um aumento extraordinário que beneficia os pensionistas que não foram objeto de qualquer aumento entre 2011 e 2015. Ou seja, constitui um mecanismo de compensação adicional das pensões que foram congeladas nos últimos anos, anulando o desequilíbrio de tratamento verificado (razão pela qual não abrange os pensionistas que foram, discricionariamente, beneficiários de aumento de pensões nesse período).


2. No Expresso diário, o Daniel Oliveira reflete sobre a intenção de passar a aplicar a condição de recursos a pensões não contributivas, designadamente às pensões mínimas, enquanto mecanismo de justiça social. Nesses termos, sublinha a distinção entre os casos de pensionistas que se encontram numa situação financeira desafogada (apesar de terem feito poucos descontos), dos pensionistas efetivamente carenciados, aos quais se poderá vir a ser atribuído um complemento de pensão (à semelhança do que sucede, já hoje, com o Complemento Social para Idosos). E recorda ainda, neste âmbito, um estudo de 2003 do Banco de Portugal (da autoria de Miguel Gouveia e Carlos Farinha Rodrigues), segundo o qual apenas «31,25% das pessoas que vivem em agregados familiares recebendo pensões mínimas são pobres». Ou seja, que conclui que apenas 1/3 das pensões mais baixas correspondiam, em 2003, a efetivas situações de pobreza.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Nota sobre o Orçamento de Estado

A economia portuguesa tem vivido uma situação bastante estranha durante os últimos dois anos. Com a imposição de um programa de profundos cortes na despesa pública e aumento da carga fiscal, sob o signo da intervenção externa da troika, a economia portuguesa comportou-se de forma bastante expectável: forte contracção do produto e aumento exponencial do desemprego. No entanto, com o aligeiramento e mesmo reversão dos cortes, a partir de 2014, observa-se uma situação paradoxal: os níveis de investimento, depois da queda abrupta provocada pela política do último governo, não recuperaram. O stock de capital do país, ou seja, a sua capacidade produtiva, tem caído de forma continuada, já que o investimento não é suficiente para substituir a degradação e obsolescência do capital previamente existente. No entanto, os níveis de emprego recuperaram. Quer a forma de cálculo do stock de capital, quer, sobretudo, as estatísticas do emprego estão sujeitas a variadas manipulações, já expostas neste blogue há muito. Ainda assim, parece-me razoável assumir a existência destes dois movimentos, aparentemente contraditórios, na economia portuguesa.

(Os dados do gráfico são da AMECO para o stock de capital e do INE para o emprego)

Como explicar tal paradoxo? Penso que existem duas explicações. Por um lado, a queda abrupta da procura interna resultou em capacidade produtiva existente não utilizada. No momento em que a procura recupera, como agora acontece, muitas empresas não têm de realizar novos investimentos para aumentar a sua produção, limitando-se a contratar mais trabalhadores para postos de trabalho antes extintos – o que mostra a enorme “flexibilidade” do mercado de trabalho português, ao contrário dos mitos urbanos em torno deste. Por outro lado, parece-me legítimo assumir que a maior parte do emprego criado se concentra nos serviços, mais reactivos ao andamento da procura interna, sendo de resto pouco intensivos em capital. Poderíamos concluir que estamos perante o sucesso do programa a que Portugal foi sujeito. Com o trabalho embaratecido, observamos algum dinamismo em sectores trabalho-intensivos, cada vez mais competitivos na esfera internacional, como acontece com o turismo, originando um novo ponto de equilíbrio da economia portuguesa, marcado por baixa produtividade e baixos salários. Contudo, a contínua queda do stock de capital não nos pode conduzir a essa conclusão. A actual situação de tímida criação de emprego é insustentável no futuro, tanto mais que beneficiamos de condições dificilmente repetíveis no futuro de baixo custo de combustíveis e baixas taxas de juro, já aqui assinaladas pelo Ricardo Paes Mamede, que permitem que o frágil equilíbrio externo se mantenha.

Isto tudo para fazer um pequeno comentário ao Orçamento de Estado. Com níveis de investimento público que são, em percentagem do PIB, metade do que eram ainda há poucos anos, não há milagres na inversão da presente tendência de destruição de capacidade produtiva. Acresce a isto uma evolução negativa dos gastos públicos que serão, em 2017, um permanente lastro a qualquer recuperação económica robusta, devido a uma redução da despesa em percentagem do PIB. Tudo isto em nome do bom cumprimento das imposições europeias, que obrigam a um saldo primário (saldo antes da despesa com o serviço da dívida) positivo de uns extraordinários 2,8% do PIB. Este orçamento é a continuação da estagnação económica.

A reforma é outra

Volta e meia vem à baila a necessidade de reforma da Segurança Social. A comunicação social - pressionada pela agenda da oposição de direita - insiste. Mas o discurso da insustentabilidade parte de pressupostos que representam a desistência de uma política económica com objectivos estratégicos.

O capítulo anexo do relatório do Orçamento de Estado sobre esse tema – a partir de estimativas europeias - apresenta na pagina 247 uma tabela que diz quase tudo. Dá-se por adquirido que a natalidade não progredirá de forma a compensar o envelhecimento; que a esperança de vida continuará a subir (ainda bem!) e que o saldo migratório se manterá negativo. Ou seja, que continuaremos a emigrar mais do que atraímos imigrantes. Espera-se – de braços cruzados – que Portugal perca 2,3 milhões de pessoas até 2060!! Claro que assim não há contas que resistam.

Além disso, espera-se que as contribuições e quotizações para a Segurança Social, feitas pelos trabalhadores e patronato, manterão o mesmo peso no PIB (8,1%) até 2060.


Isso quer dizer que o peso dos salários no PIB se manterá constante ao longo do tempo e que não haverá qualquer melhor redistribuição do valor acrescentado produzido do que a actual. Para que esse objectivo seja possível, isso pressupõe que a subida da massa salarial - o produto da subida do emprego com a subida dos salários - nunca possa ir além do crescimento do PIB. O que – segundo as previsões – ficará ao redor de 1%!!! De 1,4% em média anual até 2020, de 1,6% na de 20, de 1% na de 30, de 0,7% na de 40 e de 0,8% na década de 50!

Faça-se um exemplo: para que a massa salarial cresça 1,4% num ano, tanto o emprego como os salários deveriam crescer apenas 0,7%. Ou mais o emprego e menos os salários. Ou vice-versa. Estão a imaginar a chantagem que será feita... Para a massa salarial crescer 0,7%, será metade disso!

E, claro está, o nível de desemprego descerá ligeiramente, mas não muito. O que ajudará a pressionar os salários para baixo.

Ou seja, algo que prolonga o que se viveu até agora e que nos tem levado a esta situação.

Entre 2000 e 2011, Portugal perdeu 213,9 mil empregos e o desemprego em sentido lato abrangeu mais 520,4 mil trabalhadores. Mesmo assim, a população activa subiu quase 200 mil pessoas. Mas, a partir de 2011 e pela primeira vez, a população activa perdeu pessoas: cerca de 300 mil. Além do que se perdera antes, foram destruídos mais 260 mil postos de trabalho. A emigração foi o escape da estagnação.Os salários recuaram e a pobreza aumentou.

Por outras palavras, o Portugal que nos prometem já aí está. É o de um país em completa estagnação, em que os serviços públicos estão cada vez mais rarefeitos, em que os portugueses definham e emigram. E os que sobram envelhecem e recebem prestações sociais, necessariamente cada vez menores, porque a pressão do sistema será - neste quadro - para a ruptura e, por isso, há que fazer poupanças...

E mesmo assim, a crise do sistema - segundo as mesmas contas - apenas aparecerá lá para a década de 50...! Ou melhor, aparecerá mais cedo, mas o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), criado para as emergências, suportará o embate.


A solução não está, pois, numa reforma que reduza prestações sociais ou que reduza contribuições como querem as direitas. Porque essa “saída” levar-nos-á mais facilmente ao fundo, como aconteceu em 2011-2013, ou chegaremos mais rapidamente à ruptura (caso se retirem contribuições a alguns trabalhadores através do plafonamento).

A reforma deverá ser outra.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Novas praças de jorna

A emergência da erradamente intitulada "economia colaborativa" é anunciada como um admirável Mundo novo (...) À boleia de um deslumbramento tecnológico, que o discurso político utiliza amiúde, são impostas políticas que nada trazem em termos de ganhos da produtividade. O trabalhador, apresentado como empreendedor independente fica, de facto, nas mãos dos apetites de plataformas monopolistas, vendendo o seu trabalho na estrita medida das "tarefas" que surgem e colocado em concorrência selvagem com os seus companheiros de trabalho. Mais do que um futuro promissor, assistimos a um real regresso ao passado, ao trabalho à jorna ou à peça. Sem direitos coletivos (que ancoram os individuais), sem possibilidade de qualquer negociação séria.

Manuel Carvalho da Silva, Praça de jorna na palma da mão, Jornal de Notícias.

domingo, 16 de outubro de 2016

Meia dúzia de notas e um lembrete


1. No contexto da discussão Orçamento de Estado de 2016, António Costa fez uma declaração simples, mas realista: o OE ficou pior depois de ter ido a Bruxelas. No fundo, Costa reconhecia que a tal Europa já não estava connosco.

2. Uma das principais traduções deste facto está presente no relatório do OE de 2017: a reconhecida quebra do investimento público, que atinge este ano o valor mais baixo, em percentagem do PIB, da história democrática (1,9%), sendo responsável parcial pelo corte do crescimento previsto (e logo pelo menor crescimento da receita fiscal, ou não estivessem as finanças públicas dependentes do andamento do resto da economia por estas influenciada, facto ainda há dias sublinhado por Jorge Bateira neste blogue).

3. Este ano, o governo quer evitar que o OE venha pior de Bruxelas e isso nota-se já. Nota-se, por exemplo, no contributo negativo que o consumo público (quebra real prevista de 1,2%) dará para o crescimento económico: OE “restritivo”, de facto. O investimento público previsto recupera um pouco da queda deste ano, mas o seu peso previsto no PIB (2,2%) será ainda inferior ao de 2015 (2,3%).

4. As escolhas progressistas, no quadro dos pesados constrangimentos europeus, numa semicolónia, na realidade, são limitadas, por falta de instrumentos de política económica: veja-se o quadro 3 da página 37 do relatório do OE. Este quadro indica de forma transparente como a política orçamental que muda as relações sociais num sentido igualitário está limitada a umas curtas décimas e centésimas na política de despesa e na política fiscal. É por isto que a futilidade sempre me pareceu o melhor dispositivo no arsenal retórico reaccionário, sendo a UE o dispositivo material que melhor o pode confirmar. Entretanto, um dos muitos problemas estruturais aí está: o baixo investimento público e a quebra do emprego público, já há muito abaixo da média da OCDE, acentuam o risco de degradação dos serviços públicos.

5. É claro que mesmo o que é reduzido, em percentagem do PIB, pode fazer uma pequena, embora relevante, diferença para a vida de muitos pensionistas, trabalhadores ou beneficiários de prestações sociais, que deixarão de ver o seu poder de compra reduzido, como nos anos das direitas e da sua troika, podendo também fazer uma modesta diferença na redução das desigualdades e de hábitos com externalidades negativas, com custos sociais. Sem complacência, a esperança e a confiança populares dependem de resultados, por muito que estes estejam abaixo das necessidades.

6. Este orçamento procura ganhar tempo, como bem conclui Ricardo Cabral. Para quê? Para que alguma coisa mude na UE, dirá também um economista euro-liberal, como o deputado Paulo Trigo Pereira, no principal blogue da direita, reconhecendo de forma parcial a natureza do constrangimento. Nada mudará, já que tudo está trancado do ponto de vista institucional. Assinalaremos mesmo duas décadas de estagnação, acompanhadas de uma continuada punção de rendimentos canalizados para o exterior por via de uma dívida externa colossal, verdadeira expressão da euro-dependência. Só quando enfrentarmos os constrangimentos europeus é que poderemos vir a conhecer alguma mudança nesta trajetória. O tempo tem de ser usado para fazer com que mais ganhem consciência política deste facto com valor.

Relembremos: o comboio que rumava em direcção ao abismo foi travado, travando-se a lógica explicitamente privatizadora (um OE sem privatizações, assinale-se) e mesmo de desvalorização interna. No entanto, e na ausência de instrumentos para construir outra linha, o comboio não fica parado muito tempo, ainda para mais quando, a partir de dentro e de fora, nunca se desiste de retomar a marcha, eventualmente através da possibilidade de um golpe financeiro, assinalada recentemente por Carlos Carvalhas, seja indirecto, por via da agência canadiana controlada pelo BCE, fazendo mexer as forças espontâneas da especulação, seja directo, através de tantos instrumentos de política furtados a esta democracia.

Um orçamento é sempre de compromissos e escolhas políticas


Encontra-se aqui um conjunto de textos explicativos e infografias sobre o Orçamento de Estado de 2017 e seus objetivos, bem como a referência às medidas politicamente mais relevantes de cada ministério. Se é verdade que o exercício orçamental se move no quadro dos compromissos europeus e das suas balizas e constrangimentos, é também inequívoco que o OE 2017 traduz escolhas que consolidam o compromisso de rutura com a espiral de austeridade e empobrecimento, o tal «caminho único» defendido pela agenda ideológica da governação PàF. Basta aliás tentar imaginar que escolhas e compromissos fariam parte de uma proposta orçamental da coligação de direita, caso esta tivesse vencido as eleições há um ano atrás.

sábado, 15 de outubro de 2016

O que é e quem aumentou a carga fiscal?


A direita está a repetir o número da discussão sobre o OE2016 em que se escandalizou com um aumento previsto de uma décima de ponto percentual na carga fiscal. Hoje, todas as entidades concordam que a carga fiscal EM 2016 vai diminuir. Nestes últimos anos, estamos sempre a falar de décimas mas é útil olhar para os últimos anos para ver quando tivemos os grandes aumentos da carga fiscal. E ajuda também perceber melhor a dinâmica e as nuances deste indicador que deve ser usado com grande cautela.

1. Em primeiro lugar, o indicador da carga fiscal diz-nos pouco ou nada sobre a sua distribuição. Por exemplo, uma coisa é aumentar brutalmente os impostos sobre os rendimentos do trabalho ao mesmo tempo que se reduz brutalmente a tributação dos lucros como fez a direita com as reformas do IRS e do IRC. Outra coisa bem diferente é retirar uma parte do enorme aumento do IRS (bem sei, deveria ser todo mas não é isso que a direita defende), compensando-a com aumentos em consumos específicos, ao mesmo tempo que se tributa grandes património imobiliários, medida que afecta uma parcela ínfima da população.

2. Em segundo lugar, o indicador da carga fiscal é fortemente influenciado pela dinâmica da economia. Além disso, a função estabilizadora de alguns impostos (como o IRS e o IRC) leva-os a variar, por vezes de forma muito mais pronunciada do que o próprio PIB. É isso que explica que a carga fiscal tenha diminuído em 2012. O governo de Passos Coelho baixou os impostos em 2012? Não, pelo contrário, aumentou vários num total de 3350 milhões de euros, no que foi o primeiro de dois "enormes aumentos de impostos" (2012 e mais 3700M em 2013). A carga fiscal diminuiu apesar (e por causa) deste enorme aumento de impostos porque o agravamento da recessão provocou um cataclismo na receita fiscal dos impostos diretos da ordem dos 10%. Para isso, contribuíram decisivamente, claro, os cortes nos salários e pensões.

3. Finalmente, convém ter em conta a diferença entre o indicador geral da carga fiscal e o esforço fiscal das famílias. Essa diferença é muito relevante se tivermos em conta que a direita implementou os seus enormes aumentos de impostos no mesmo contexto em que aplicou violentos cortes nos salários e nas pensões e conduziu uma política generalizada de compressão dos rendimentos do trabalho.

4. Assim, em 2011 (Sócrates em Junho, com o memorando da troika), 2012 e 2013 tivemos sempre aumentos de impostos cujos impactos na carga fiscal variaram em função das consequências da política económica e da distribuição das medidas. Uma coisa é certa. Quem fez parte ou apoiou o anterior governo só com uma colossal falta de vergonha pode vir falar de aumentos da carga fiscal. Ainda por cima quando estes são, como é hoje evidente, absolutamente fictícios.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Para os tempos que correm



Tão surpreendente quanto oportuna, a atribuição do Nobel da Literatura a Bob Dylan, «por ter criado uma nova expressão poética no seio da grande tradição americana da canção». Um reconhecimento que vem além do mais em tempos certos, de necessária mudança, de recuperação da dignidade (em tantas, tantas coisas). Antes que fique demasiado escuro.

Hoje: Le Monde diplomatique (edição portugesa) debate o OE de 2017


O jantar debate promovido pelo Le Monde diplomatique - edição portuguesa, conta com a participação de João Paulo Correia, Pedro Filipe Soares e Carlos Carvalhas, e com a moderação de Nuno Teles. É a partir das 19h30 no restaurante Real Fábrica (Rua da Escola Politécnica, nº 275, junto ao Largo do Rato, em Lisboa). Inscrevam-se através do email [mondediplopt@gmail.com] e apareçam. São todos muito bem-vindos.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Dinheiro público desbaratado

Que eu saiba, é a primeira vez que se conhece uma desagregação dos estágios apoiados pelo Estado por ramos de actvidade. Mas posso estar mal informado.

Os números referem-se a 2014. Mas atenção: trata-se apenas de estágios profissionais e ainda faltariam analisar os apoios à contratação, à criação de emprego e a inserção profissional (onde estão os famosos contratos emprego-inserção que tanto a Função Pública usou):

         Fonte: gabinete do ministro MTSSS (Pedro Mota Soares), INE

Os dados do emprego são do INE. E relembre-se que os dados do INE, para lá dos grandes agregados, podem não ser muito fidedignos. Mas são os que há.

Os dados do número de estágios por actividade foram fornecidos como resposta à pergunta nº835 XII/4, feita a 30/1/2015 pelos deputados do PCP Rita Rato, David Costa e Jorge Machado e respondida, seis meses depois, a 25/7/2015, pelo então chefe de gabinete do então ministro Pedro Mota Soares. Refira-se que a pergunta feita pedia a listagem das empresas apoiadas que tinham feito contratação sem termo, a sua discriminação por distrito e actividade. E essa pergunta surgiu na sequência de uma outra pergunta feita em novembro de 2014, de molde a comprovar que os estágios correspondiam a empregabilidade de 70%, respondida em janeiro de 2015, ao lado. Ou seja, a resposta ficou muito aquém da perguntas. A tabela seguinte foi construída por mim.

Os números mostram várias coisas:

1) quais foram (são?) os sectores que têm abusado dos estágios;

2) que o Estado foi recipente desses apoios, enquanto se pugnava pela saída de funcionários públicos sem serem substituídos: veja-se o peso na Administração Pública, na Saúde ou na Educação. Caso se considere que o peso do sector privado nestes dois últimos sectores é de 20%, o peso do Estado atingiu os 9 mil estágios!;

3) que os apoios não foram orientados para nenhuma actividade em especial ou estratégica, apoiando o Estado tudo o que viesse à rede, mesmo actividades sem qualquer necessidade destes apoios, como as actividades de consultoria - desde advocacia, arquitectura, publicidade, etc. Agora imaginam a vida dessa significativa percentagem de mão-de-obra...;

4) que as actividades industriais foram as preteridas: um peso de estágios foi de 0,9%, abaixo da média nacional de 1,6%;

5) que o total do emprego criado em 2014 - cerca de 70 mil - correspondeu grosso modo à concessão desses estágios - 70450 estágios;

6) Que os 70450 estágios corresponderam a uma verba de 250,2 milhões de euros.

Nada disto é verdadeiramente uma novidade, mas dá para perceber que no reino dos subsídios, muito haveria a fazer. para que dinheiros públicos não fossem desbaratados. Façam as contas: a uma média de 3550 euros por estágio, só o sector de consultoria recebeu 45,8 milhões de euros!

Um jornal para afrontar tabus


As forças e os interesses neoliberais, domésticos e europeus, pressionam constantemente o executivo para que este volte ao receituário anterior, afinal o único compatível com o esmagamento do mundo do trabalho, com a transformação do Estado social no Estado assistencial, com a ortodoxia monetária e dos tratados europeus. Estas pressões vão fazendo o seu caminho e têm consequências. Começaram por influir na primeira proposta de Orçamento do Estado para 2016, que foi piorada em Bruxelas, e continuam a manifestar-se nas permanentes ameaças de sanções e suspensões dos fundos estruturais.

Excerto do editorial de Sandra Monteiro no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Outubro: Afrontar tabus. Aproveito para deixar aqui o resumo desta edição:

“Na edição de Outubro, José Castro Caldas analisa as propostas que estão em cima da mesa na União Europeia para a criação de um «pelotão da frente» e que colocarão Portugal perante uma escolha dilemática: tem vantagens em integrá-lo ou não? Pedro Bingre do Amaral reflecte sobre as tendências de substituição dos lucros por rendas nos processos de acumulação de riqueza e o que isso significa, não apenas para a habitação, mas para o regresso do patrimonialismo, com mais desigualdades. Ana Benavente faz um retrato do que os anos da Troika fizeram à educação e aponta pistas para o que é ainda urgente mudar. Victor Louro regressa à tragédia dos incêndios rurais e traça linhas para uma urgente de protecção da floresta que convoca a cidadania.

No internacional, destaque para a situação na Turquia depois do golpe falhado, analisada pelo prisma do exército, e para a interligação dos conflitos neste país, na Síria e em Israel com esse depósito de água que é o monte Golã. Também na América Central a questão dos recursos hídricos tem um papel fundamental, tendo levado a assassinatos de ameríndios e militantes ecologistas, como o de Berta Cáceres, nas Honduras. Propomos ainda para uma reportagem na Islândia para compreendermos aquela que foi uma saída audaciosa para a crise, bem como o que está ainda por reconstruir. E muito mais. Boas leituras!”

«Mais Participação, melhor saúde»


«Mais Participação, melhor saúde, promovido pelo GAT, em colaboração com outras 13 organizações de saúde e com o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, desenvolveu, ao longo do último ano, a Carta para a Participação Pública em Saúde, através da qual se pretende promover a participação das pessoas que vivem com ou sem doença e dos seus representantes, na tomada de decisão em saúde, tanto a nível político, como institucional.

Esta Carta resultou de um inquérito online aplicado a quase 80 organizações e a mais de 600 cidadãos e cidadãs, no qual ficou evidente a necessidade sentida por aqueles que lidam com a doença diariamente em participar mais na tomada de decisão em saúde, bem como a insatisfação generalizada face à falta de apelos à participação dos cidadão e das cidadãs.

A Carta está atualmente a ser objeto de uma Petição, promovida por 65 organizações e 26 individualidades de reconhecido mérito na área da saúde, dirigida à Assembleia da República, no sentido da sua implementação. Convidam-se todos e todas a assinar e a divulgar a petição.

Como culminar deste trabalho, o Mais Participação, melhor saúde, organiza no dia 18 de outubro, no Auditório do Edifício Novo da Assembleia da República, o «Fórum Mais Participação, melhor saúde», no qual será oficialmente lançada a Carta para a Participação Pública em Saúde. O programa provisório do Fórum está disponível aqui.»

terça-feira, 11 de outubro de 2016

O fim dos trabalhadores

Este filme é dedicado a todos os jornalistas. Vejam-no no fim-de-semana porque tem hora e meia. Lembrei-me dele por causa greve dos taxistas.


Um dos melhores momentos da greve dos taxistas, foi quando um grevista, ouvido pela SIC Notícias, disse à jornalista qualquer coisa como isto: “Vocês não deviam estar contra nós, porque um dia destes também chega aos jornalistas”. Não sei se alguém tinha dúvidas disso, mas a revista de imprensa da Antena 1 de hoje mostrou o coro de indignação dos jornalistas contra os taxistas e a defesa por eles da Uber.

Do que o taxista falava, obviamente, era da forma como a multinacional Uber entrou no mercado. Passou por cima das leis nacionais, "roubou" o mercado aos táxis sujeitos a contingentação e expandiu-se durante dois anos sem qualquer penalização, ao ponto de levar o actual Governo a querer regular o problema, como um facto consumado, porque "os clientes gostam".

Veremos o diploma em preparação, mas é estranho que o ministro já admita em entrevista à SIC que os carros da Uber não contarão para o contingente do serviço público que é o táxi, porque não são táxis...
"É inconstitucional que uma actividade comum - porque as plataformas e os operadores que trabalham debaixo dessas plataformas não prestam um serviço público - não podem ter um contingente. Desde o fim do condicionamento industrial que acaba com a Revolução de Abril não há contingente para actividades que não são serviço público". João Pedro Matos Fernandes falava de "uma nova actividade", de uma concorrência "potencialmente desleal" com o aumento da oferta dos transportes descaracterizados... (Aqui, minuto 3)
Ou seja, o governo optou por acabar com a contingentação e empurrar todos os táxis para actividades "comuns". E salve-se quem puder!

A penetração no mercado desta "nova actividade" foi, em tudo, semelhante aos outros países. Aliás, a actividade em Portugal é coordenada a nível europeu. Como se escreveu na Visão, todas “as decisões são tomadas pela Uber BV, a empresa que opera em todos os mercados da União Europeia”, com sede na Holanda, conhecido por ter um regime tributário privilegiado. “Mesmo os contratos de parceria com os operadores são feitos, a nível central”.

Os argumentos são os mais deliciosos. Diz Rui Bento, diretor geral da Uber Portugal: “A Uber é uma plataforma eletrónica que, através de uma aplicação, liga pessoas que se querem deslocar nas cidades a pessoas que estão disponíveis para as transportar”. “A Uber não contrata o motorista, logo o motorista não trabalha para a Uber. Quem contrata o serviço é o cliente; a Uber apenas os põe em contacto”.

Imagino já os argumentos futuros das confederações patronais nacionais: “Nós não somos patrões: apenas pomos em contacto produtores e consumidores”. Então no jornalismo – cada vez mais online - não será de estranhar que, um dia destes, apareça uma empresa que será apenas uma plataforma, que colocará em contacto "quem queira escrever notícias e quem as queira ler"!! Não haverá trabalhadores, apenas parcerias... E tudo ficará tão presente no mercado que, um dia, qualquer governo “terá” de legislar para legalizar a selva.

Este parece o paraíso no futuro do mundo do Trabalho, que começou há várias décadas com a contratação de assalariados a "recibo verde": os trabalhadores transmutam-se em empresários por conta própria. E quem paga a Segurança Social desses “parceiros”? Claro, os parceiros que trabalham...! Que bom!

Mas a opinião daquele taxista é – sem o saber - pertinente em relação aos jornalistas:

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Prioridades para um país decente: combater as desigualdades e recuperar a confiança na governação

No Society at a Glance 2016, um compêndio de indicadores sociais publicado bienalmente pela OCDE, Portugal surge destacado pelos piores motivos em dois domínios: a concentração do rendimento e da riqueza pelos 10% mais ricos da população; e a baixa confiança dos cidadãos na governação (ver gráficos abaixo). Estes dois indicadores surgem frequentemente associados: a percepção de que o Estado é incapaz de combater a concentração da riqueza nas mãos de uns poucos (ou que contribui activamente para essa concentração) desligitima a acção dos poderes públicos aos olhos de uma parcela significativa da população. O problema é que isto gera um círculo vicioso, pois quanto menos confiança se tem no Estado, mais difícil se torna mobilizar a população para as reformas sociais que importa levar adiante. É por isso que um governo transformador não pode deixar de trabalhar nas duas frentes: distribuir melhor os recursos sem nunca menosprezar a importância de se credibilizar aos olhos dos cidadãos.




Resistir

Talvez seja oportuno recuperar um artigo do Le Monde diplomatique – edição portuguesa de Setembro de 2015, já que é todo um programa necessário para o dia de hoje: resistir à uberização do mundo.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Hoje e amanhã


É das poucas coisas que sabemos em tempos incertos...


Uma República só pode viver da dedicação dos seus cidadãos porque é feita por eles. Isso faz dela o mais poderoso elemento de coesão nacional, face à crise. E, quem sabe, se não será outra vez no quadro do Estado-Nação, onde o republicanismo se armou ideologicamente, que não redescobriremos a res publica, sem o que não saberemos desafiar a incerteza?

João B. Serra, Historiador e Chefe da Casa Civil do antigo Presidente da República Jorge Sampaio, Público.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Jogo de sombras


O Presidente da República continua a mandar recados ao Governo sobre a manutenção do “rigor orçamental” e, ao mesmo tempo, a necessidade de acelerar o crescimento económico. Por seu turno, o primeiro-ministro insiste na garantia de que vai cumprir a meta dos 2,5%. Segundo Teresa de Sousa, “Costa quer provar fidelidade ao euro aceitando as regras do jogo de Bruxelas”.

O debate no espaço público sobre o défice orçamental é deprimente. Não se ouve uma única voz que mostre algum conhecimento básico sobre a economia política dos défices (sim, no plural). Como é possível que tantos jornalistas de assuntos económicos, tantos licenciados ou doutorados em economia, dominem os media com um discurso contabilista sobre o orçamento, ignorando a natureza sistémica da economia, onde várias causalidades se entrelaçam tornando interdependentes os saldos financeiros do Estado, do Sector Privado, e do país com o Resto do Mundo?

Apesar dos alertas do Alexandre Abreu, João Rodrigues, e outros, domina a ideia de que o défice depende da boa gestão do Ministro das Finanças e da sua capacidade de controlar o despesismo dos seus colegas de governo. E faz-se crer que um défice baixo, desejavelmente um excedente, é bom para a economia. Lembrando Krugman, um economista muito convencional, nos media só temos direito à teoria económica da idade das trevas.

No entanto, as primeiras páginas dos manuais convencionais de introdução à macroeconomia dizem-nos que o défice do Orçamento depende das decisões do Governo quanto à despesa e tributação que se conjugam com as decisões de despesa do sector Privado do país, e com as dos actores privados e Estado nos países com quem temos relações económicas e financeiras. É essa interdependência que está na origem do sistemático incumprimento das metas orçamentais dos governos e da periódica revisão das previsões das organizações internacionais. A verdade é esta, e a esquerda devia dizê-lo com toda a clareza: os governos não têm o poder de determinar o défice do orçamento do Estado.


Tal interdependência significa ainda que, numa conjuntura em degradação, o saldo externo piora, tornando mais difícil a redução do défice público porque tal exige um maior endividamento do sector privado quando este ainda está reticente. Vejamos os saldos financeiros dos sectores institucionais da economia portuguesa no segundo trimestre de 2016 (% do PIB):

Administração Pública (-3,4) + S. Privado (+4,3) = Resto do Mundo (+0,9)

Assim, se (por hipótese) nos trimestres seguintes a conjuntura internacional vier a anular o saldo externo, então, para que o défice público se situe nos 2,5%, o sector privado (onde se inclui a banca) terá de reduzir a sua poupança para 2,5%:

Administração Pública (-2,5) + S. Privado (+2,5) = Resto do Mundo (0)

Nesta hipótese, para que a meta do défice público seja alcançada, o Sector Privado terá de fazer o contrário do que preconizam os economistas “sérios”; terá de poupar muito menos. Aritmética simples, quase sempre ignorada.

Por conseguinte, o saldo orçamental deste ano depende muito do que os restantes sectores fizerem até ao fim do ano. Na medida do possível, este governo (tal como os anteriores) recorrerá à maquilhagem contabilística das contas para camuflar a derrapagem que possa ocorrer, mas que não pode impedir (os impostos dependem do produto; boa parte da despesa depende da evolução do subsídio de desemprego e outras prestações sociais). Como a Comissão Europeia faz de conta que o governo pode ter o défice que quiser, o que é falso, o folclore do Semestre Europeu, das previsões para todos os gostos, e das ameaças de sanções torna-se num verdadeiro jogo de sombras que dissimula o verdadeiro objectivo da UE: impedir uma política orçamental expansionista e subtrair à escolha democrática tudo o que diga respeito à política económica (ver aqui).

É politicamente defensável, até um certo ponto, que as esquerdas queiram sustentar este jogo em nome do ‘mal menor’. Mas, por favor, não rejubilem com um défice de 2,5% porque sabem muito bem que, para tirar o país desta morte lenta, é necessária (entre outras) uma fortíssima política orçamental expansionista, ou seja défices grandes e continuados (ver aqui). Ao menos, enquanto sustentam o governo do ‘mal menor’, preparem os cidadãos para a necessidade de sairmos do euro. Expliquem-lhes que a permanência na moeda única vincula o país a uma política económica errada, com consequências catastróficas bem conhecidas (ver aqui). Digam-lhes que esta política foi executada nos anos trinta do século passado e deu origem aos fascismos e que, desde há décadas, tem sido imposta pelo FMI por todo o mundo, com os resultados desastrosos que Stiglitz há muito denunciou. Não tenham medo das palavras, sejam frontais, porque a alternativa só se afirma com um discurso de verdade, o único que conquista a confiança e prepara para o passo seguinte.

A abrir


Quando um comportamento responsável dos povos de Estados organizados democraticamente significa deixar de dispor da sua soberania nacional e limitar-se, durante gerações, a assegurar a sua solvabilidade perante os seus credores, poderá afigurar-se mais responsável tentar comportar-se forma irresponsável. Se ser razoável significa pressupor que as exigências dos “mercados” à sociedade têm de ser cumpridas, nomeadamente à custa da maioria da sociedade à qual, após décadas de expansão neoliberal do mercado, nada resta senão prejuízos, então, o irracional poderia ser, de facto, a única coisa racional. 

Wolfgang Streeck, Tempo Comprado – A Crise Adiada do Capitalismo Democrático, Actual, p. 235.

Amanhã, terei o privilégio de fazer a apresentação de Wolfgang Streeck, que abrirá certamente com chave de ouro o Fórum de Outono da Manifesto. Direi três ou quatro coisas.

Em primeiro lugar, Streeck é o autor do que considero ser o melhor livro disponível entre nós sobre as origens do crescente divórcio entre capitalismo e democracia, que assume formas particulares no continente europeu, ou seja, do melhor livro de economia política escrito depois da crise de 2007-2008.

Em segundo lugar, Streeck tem sido, a partir do seu influente lugar no topo da academia alemã, um dos defensores do regresso da teoria social à economia política, na tradição de Karl Marx, Max Weber ou Karl Polanyi, referências que combina criativamente no seu trabalho.

Em terceiro lugar, e partindo de uma adequada compreensão das origens monetárias e financeiras das tendências pós-democráticas no continente, o que implica uma adequada compreensão da natureza política da moeda, enquanto produto em última instância de um poder soberano, Streeck tem sido um crítico denodado do Euro, que divide a Europa, defendendo o seu desmantelamento. Isto em nome de uma cooperação regional europeia compatível com ampla margem de manobra dos Estados. Tal processo de desmantelamento e reconfiguração monetária é uma condição necessária para travar esta trágica maquina hayekiana de liberalização que dá pelo nome de UE, incluindo também um Tribunal muito pouco escrutinado, que destrói a social-democracia em nome das liberdades cada vez mais irrestritas do capital.

Em quarto lugar, Streeck tem emergido como um intelectual público, um crítico vocal das ilusões federalistas pós-nacionais, entre outros, de um Habermas, uma espécie de anti-Habermas, na realidade, indicando como as análises e prescrições do filósofo de Frankfurt assentam numa visão altamente despolitizada da moeda e dos mercados, acabando a teoria crítica, divorciada da economia política, trágico destino, a elogiar Draghi, mesmo que o BCE seja o mais rematado exemplo institucional de desconsideração dos interesses sociais e democráticos dos tais povos dos Estados. A Grécia aí está: ao não controlar a moeda na qual a dívida está denominada, a democracia fica refém de um banco central para todos os efeitos estrangeiro e só um banco assim poderia montar uma operação de desestabilização de um sistema bancário nacional para alcançar objectivos políticos.

Não faltem. Haverá debate, certamente.