«Nenhum homem fez a terra. Ela é uma herança original da espécie no seu
conjunto. A sua apropriação é totalmente uma questão de conveniência. Quando a
propriedade privada da terra não é conveniente, é injusta.»
«O uso da terra para a agricultura, de facto, deve necessariamente ser,
por enquanto, exclusivo; a quem lavrou e semeou deve ser permitido
colher.»Mas...
«Quando não existe intenção de cultivar a terra , não é possível apresentar, em geral, uma boa razão para que ela seja propriedade privada.»
«O que está em jogo para a comunidade no que diz respeito ao cultivo
apropriado da terra é demasiado (...) para que estas questões sejam deixadas à
discrição de uma classe de pessoas chamada dos terratenentes, quando eles se
mostram incapazes de corresponder à confiança neles depositada.»
«Os donos de domínios na Irlanda não fazem nada pela terra senão drenar
dela o seu produto».
sexta-feira, 29 de agosto de 2008
A propriedade: afinal é ou não um roubo? VI
Para Mill, propriedade privada legítima era não só o que fosse adquirido pelo trabalho e a poupança como o que fosse obtido por contrato com os frutos desse trabalho e poupança. Além disso, pensava ele, o direito de propriedade não seria completo se não incluísse a prerrogativa de doar e, em consequência, de obter por doação.
Uma herança quando decorre de uma disposição testamentária é de certo modo uma doação. O mesmo não acontece quando tal disposição não existe. A posição de Mill sobre a instituição da herança distinguia os dois casos. No primeiro caso – disposição testamentária – Mill, ao mesmo tempo que reconhecia o direito de legar (dentro de certas condições), limitava o direito de herdar a montantes estipulados por lei, isto é, defendia o imposto sucessório que tão abominável parece ao liberalismo corrente. No segundo caso – quando não existe disposição testamentária – recusava o direito de herança a colaterais e aceitava-o, sujeito a imposto sucessório, para filhos e conjuges. O objectivo destas medidas de reforma do direito sucessório, explícito em Mill, seria evitar a acumulação inter-geracional de fortunas absurdas.
No que diz respeito à propriedade da terra o melhor é mesmo ouvirmos Mill:
A terra da Irlanda poderia então, segundo Mill com vantagem, ser entregue aos rendeiros, compensados que fossem os proprietários com uma pensão ou uma indemnização.
quinta-feira, 28 de agosto de 2008
Porque motivo havemos de manter este rumo, alguém nos explica?
Parece que Teixeira dos Santos quer "manter a solidez financeira fundamental" do Estado Português para resistir a "esta intempérie que vem do exterior". Infelizmente, continuo a não ver o Ministro das Finanças a sustentar esta sua orientação.
Há 3 tipos de argumentos recorrentemente utilizados para defender controlo do deficit das contas públicas: o do crowding-out dos investimentos privados, o da equidade intergeracional e o do aumento das pressões inflaccionistas . O primeiro sustenta que quando o Estado se endivida tem de pedir empréstimos ao sistema financeiro, competindo assim com os agentes privados, os quais vêem agravadas as condições de crédito (o que prejudica investimento e, logo, o crescimento económico e a criação de emprego). O segundo argumento relembra-nos que o défice público de hoje tem de ser pago amanhã pelas gerações vindouras – e ninguém gosta de herdar dívidas. O terceiro argumento aponta para o facto de um aumento das despesas públicas implicar maior procura agregada na economia, o que, em certas condições, contribuirá para uma aumento geral dos preços.
A verdade é que nenhum destes argumentos se aplica na actualidade. Com a participação no euro, a ligação entre o deficit público e as condições de financiamento dos privados nacionais diminui fortemente, na medida em que ambos vêem facilitada a possibilidade de obter empréstimos no sistema financeiro da zona euro. Em segundo lugar, com o défice orçamental abaixo dos 3% do PIB e uma dívida pública pouco acima dos 60% do PIB, dificilmente podemos considerar que a situação das finanças públicas portuguesas é insustentável no longo prazo, não havendo motivos para esperarmos que a factura a pagar pelas gerações vindouras esteja a aumentar (note-se que a despesa pública também implica investimento em infraestruturas, educação, saúde e outros factores que aumentam as perspectivas de criação de riqueza no futuro e, logo, maior capacidade para pagar dívidas). Finalmente, os dados disponíveis indicam que a economia europeia se encontra a crescer abaixo do potencial – posto em termos simples, isto sugere que seria possível aumentar a procura dirigida à economia europeia sem grandes riscos de aumento de preços.
Se todos os governos da Europa insistissem em "manter a solidez financeira" para resistir à "intempérie", o resultado seria uma diminuição geral da actividade económia na UE. No presente contexto, pelo contrário, seria recomendável que os países da zona euro se coordenassem no sentido de estimular a actividade económica, de forma a evitar a recessão e o aumento do desemprego, utilizando de forma coordenada os instrumentos que têm disponíveis para combater essa mesma crise – a começar pela política orçamental.
Há 3 tipos de argumentos recorrentemente utilizados para defender controlo do deficit das contas públicas: o do crowding-out dos investimentos privados, o da equidade intergeracional e o do aumento das pressões inflaccionistas . O primeiro sustenta que quando o Estado se endivida tem de pedir empréstimos ao sistema financeiro, competindo assim com os agentes privados, os quais vêem agravadas as condições de crédito (o que prejudica investimento e, logo, o crescimento económico e a criação de emprego). O segundo argumento relembra-nos que o défice público de hoje tem de ser pago amanhã pelas gerações vindouras – e ninguém gosta de herdar dívidas. O terceiro argumento aponta para o facto de um aumento das despesas públicas implicar maior procura agregada na economia, o que, em certas condições, contribuirá para uma aumento geral dos preços.
A verdade é que nenhum destes argumentos se aplica na actualidade. Com a participação no euro, a ligação entre o deficit público e as condições de financiamento dos privados nacionais diminui fortemente, na medida em que ambos vêem facilitada a possibilidade de obter empréstimos no sistema financeiro da zona euro. Em segundo lugar, com o défice orçamental abaixo dos 3% do PIB e uma dívida pública pouco acima dos 60% do PIB, dificilmente podemos considerar que a situação das finanças públicas portuguesas é insustentável no longo prazo, não havendo motivos para esperarmos que a factura a pagar pelas gerações vindouras esteja a aumentar (note-se que a despesa pública também implica investimento em infraestruturas, educação, saúde e outros factores que aumentam as perspectivas de criação de riqueza no futuro e, logo, maior capacidade para pagar dívidas). Finalmente, os dados disponíveis indicam que a economia europeia se encontra a crescer abaixo do potencial – posto em termos simples, isto sugere que seria possível aumentar a procura dirigida à economia europeia sem grandes riscos de aumento de preços.
Se todos os governos da Europa insistissem em "manter a solidez financeira" para resistir à "intempérie", o resultado seria uma diminuição geral da actividade económia na UE. No presente contexto, pelo contrário, seria recomendável que os países da zona euro se coordenassem no sentido de estimular a actividade económica, de forma a evitar a recessão e o aumento do desemprego, utilizando de forma coordenada os instrumentos que têm disponíveis para combater essa mesma crise – a começar pela política orçamental.
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
A propriedade: afinal é ou não um roubo? V
Jonh Stuart Mill (1806-1873), cujo liberalismo me parece ainda mais difícil de conciliar com o «liberalismo» corrente do que o de Lock, pensava a propriedade a partir dos princípios estabelecidos por este seu predecessor, emendando-os e complementando-os. Pela sua mão, o princípio em que se funda a propriedade privada legítima transforma-se no princípio que garante aos indivíduos os «frutos do seu trabalho e da sua abstinência [de consumo]»
Com esta reformulação Mill procurava legitimar os rendimentos que advêm da propriedade privada dos meios de produção que fossem adquiridos com a poupança própria. Podemos objectar que numa sociedade como a que Mill conheceu, e em certa medida ainda hoje, quem é dono apenas dos seus braços dificilmente poupa e quem poupa é dono de meios de produção. Mas isso não nos deve levar a desistir de ler o que Mill tem a dizer.
Para ele o problema reside em que existe propriedade privada no mundo real que não respeita o princípio em que se funda a legitimidade da propriedade privada. No mundo real é reconhecido o direito de propriedade a coisas que não foram produzidas com o trabalho nem provêm da «abstinência» do seu suposto dono. Que coisas? O que é herdado, quando é herdado sem disposição testamentária, a terra na sua forma original.
Com esta reformulação Mill procurava legitimar os rendimentos que advêm da propriedade privada dos meios de produção que fossem adquiridos com a poupança própria. Podemos objectar que numa sociedade como a que Mill conheceu, e em certa medida ainda hoje, quem é dono apenas dos seus braços dificilmente poupa e quem poupa é dono de meios de produção. Mas isso não nos deve levar a desistir de ler o que Mill tem a dizer.
Para ele o problema reside em que existe propriedade privada no mundo real que não respeita o princípio em que se funda a legitimidade da propriedade privada. No mundo real é reconhecido o direito de propriedade a coisas que não foram produzidas com o trabalho nem provêm da «abstinência» do seu suposto dono. Que coisas? O que é herdado, quando é herdado sem disposição testamentária, a terra na sua forma original.
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
A propriedade: afinal é ou não um roubo? IV
O que até aqui respigamos de Locke refere-se ao fundamento do direito de uso privado dos frutos da terra e não ao do direito à propriedade da terra em si mesma. Agora há um problema: se a terra não é fruto do trabalho de ninguém, em que princípio ou lei da Natureza se funda a sua apropriação? Locke pensava que o princípio era o mesmo: a terra que legitimamente pode ser apropriada seria tanta quanta um homem pode lavrar, cultivar e melhorar com o seu trabalho. O trabalho seria o que cerca a quinta e a separa do baldio.
Na origem, pensava Locke, o acto de lavrar e cultivar a terra, tornando-a deste modo em propriedade vedada ao acesso de outros, não prejudicava aqueles a quem o acesso passava a estar vedado e não dependia, portanto, do consentimento da comunidade. Como assim? No princípio, apesar da apropriação, haveria sempre terra bastante e de boa qualidade para os outros. Quem objecta a que alguém retire alguma água de uma fonte que não cessa de jorrar?
Na origem, portanto, a propriedade não era causa de desarmonia e conflito e, pensava Locke, continuaria ainda a não o ser, não tivesse ocorrido «a invenção do dinheiro e o acordo tácito dos homens em a ele atribuir valor». Sem dinheiro, explica Locke, é difícil acumular o excedente agrícola. Nessas condições o que não é usado transforma-se em desperdício. Mas com dinheiro torna-se possível vender o excedente e acumular o seu valor numa forma monetária que por sua vez permite aceder a outros bens, inclusive a mais terra. Conclusão:
Como é fácil de imaginar Locke não podia adivinhar que em vez de encerrar o debate sobre a legitimidade da propriedade privada, estava, por assim dizer, a inflamá-lo. No entanto, foi isso precisamente o que acabou por acontecer. Se o corpo é sagrado e ninguém pode cedê-lo em contrato para uso ou posse de outrem e se, por extensão, os frutos do trabalho legitimamente pertencem a quem os produziu, como justificar que parte dos frutos do trabalho de quem lavra a terra ou trabalha na oficina que um outro diz ser sua, passem a pertencer a quem se diz proprietário e não a quem os produziu?
Na origem, pensava Locke, o acto de lavrar e cultivar a terra, tornando-a deste modo em propriedade vedada ao acesso de outros, não prejudicava aqueles a quem o acesso passava a estar vedado e não dependia, portanto, do consentimento da comunidade. Como assim? No princípio, apesar da apropriação, haveria sempre terra bastante e de boa qualidade para os outros. Quem objecta a que alguém retire alguma água de uma fonte que não cessa de jorrar?
Na origem, portanto, a propriedade não era causa de desarmonia e conflito e, pensava Locke, continuaria ainda a não o ser, não tivesse ocorrido «a invenção do dinheiro e o acordo tácito dos homens em a ele atribuir valor». Sem dinheiro, explica Locke, é difícil acumular o excedente agrícola. Nessas condições o que não é usado transforma-se em desperdício. Mas com dinheiro torna-se possível vender o excedente e acumular o seu valor numa forma monetária que por sua vez permite aceder a outros bens, inclusive a mais terra. Conclusão:
«… no princípio todo o mundo era América, ainda mais do que é agora; porque em nenhum lugar nada que se assemelhasse a dinheiro era conhecido. Encontre-se algo que tenha o uso e o valor do dinheiro entre vizinhos e veremos o mesmo homem agora a começar a alargar as suas possessões».A propriedade não limitada pelas capacidades de trabalho e de uso seria então uma consequência do dinheiro. A escassez de terra livre e o conflito em torno da posse do bem escasso, também. Aqui Locke é prudente, dando lugar para diversas interpretações, mas mesmo assim não é fácil levar Locke a legitimar a propriedade individual sem limites – este tipo de propriedade resultaria do dinheiro, de uma instituição humana, e não de uma «lei natural».
Como é fácil de imaginar Locke não podia adivinhar que em vez de encerrar o debate sobre a legitimidade da propriedade privada, estava, por assim dizer, a inflamá-lo. No entanto, foi isso precisamente o que acabou por acontecer. Se o corpo é sagrado e ninguém pode cedê-lo em contrato para uso ou posse de outrem e se, por extensão, os frutos do trabalho legitimamente pertencem a quem os produziu, como justificar que parte dos frutos do trabalho de quem lavra a terra ou trabalha na oficina que um outro diz ser sua, passem a pertencer a quem se diz proprietário e não a quem os produziu?
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
A propriedade: afinal é ou não um roubo? III
Para John Locke (1632-1704) – a venerável referência comum de todos os liberalismos – a propriedade, ou pelo menos a propriedade legítima, era uma extensão natural do corpo. Pode parecer estranho, mas consideremos o argumento de Locke no Capitulo V do Segundo Tratado sobre o Governo:
1. Deus deu efectivamente a terra e os frutos que ela naturalmente produz à humanidade no seu conjunto e «originariamente, ninguém tem um domínio privado de algum deles que exclua o resto da humanidade»;
2. No entanto, tendo os frutos da natureza sido dados para o uso do homem, eles têm de ser apropriados antes que possam ser usados: «o fruto ou o veado que alimenta o Índio selvagem, que não conhece cercas e é ainda um detentor da terra em comunidade, deve ser dele – isto é, uma parte dele a que ninguém mais tem direito, antes que possa ser bom para si enquanto suporte à vida»;
3. Todo «o homem» é proprietário da sua pessoa. Por extensão, «podemos dizer que o ‘labor’ do seu corpo e o ‘trabalho’ das suas mãos são apropriadamente seus». Em consequência, tudo o que «o homem» retira da Natureza, toda a parcela da dádiva de Deus à humanidade em colectivo a que ele «mistura» o seu trabalho, transforma-se em propriedade sua.
O trabalho é então para Locke o que estabelece uma distinção entre o que é comum e aquilo a que, com propriedade, chamamos nosso: a maçã na árvore que ninguem semeou é de todos, a maça que colhi dessa árvore com o meu esforço é minha e ninguém a pode reclamar. Esta é para Locke «a lei da Natureza para a origem da propriedade».
Mas… se a colheita dos frutos é fundamento de um direito ao uso privado desses frutos, então qualquer um poderia açambarcar as dádivas de Deus para si, à sua vontade. «Não é assim», responde Locke: «A mesma lei da Natureza que deste modo nos dá a propriedade, limita também, doutro modo, a propriedade». Deus deu-nos os frutos da terra para que os gozemos, não para que os desperdicemos. Tudo o que ultrapassa a nossa capacidade de uso e se transforma em desperdício está para lá da nossa legítima porção e pertence a outros.
Isto já não é pouco. Mas Locke ainda não terminou.
1. Deus deu efectivamente a terra e os frutos que ela naturalmente produz à humanidade no seu conjunto e «originariamente, ninguém tem um domínio privado de algum deles que exclua o resto da humanidade»;
2. No entanto, tendo os frutos da natureza sido dados para o uso do homem, eles têm de ser apropriados antes que possam ser usados: «o fruto ou o veado que alimenta o Índio selvagem, que não conhece cercas e é ainda um detentor da terra em comunidade, deve ser dele – isto é, uma parte dele a que ninguém mais tem direito, antes que possa ser bom para si enquanto suporte à vida»;
3. Todo «o homem» é proprietário da sua pessoa. Por extensão, «podemos dizer que o ‘labor’ do seu corpo e o ‘trabalho’ das suas mãos são apropriadamente seus». Em consequência, tudo o que «o homem» retira da Natureza, toda a parcela da dádiva de Deus à humanidade em colectivo a que ele «mistura» o seu trabalho, transforma-se em propriedade sua.
O trabalho é então para Locke o que estabelece uma distinção entre o que é comum e aquilo a que, com propriedade, chamamos nosso: a maçã na árvore que ninguem semeou é de todos, a maça que colhi dessa árvore com o meu esforço é minha e ninguém a pode reclamar. Esta é para Locke «a lei da Natureza para a origem da propriedade».
Mas… se a colheita dos frutos é fundamento de um direito ao uso privado desses frutos, então qualquer um poderia açambarcar as dádivas de Deus para si, à sua vontade. «Não é assim», responde Locke: «A mesma lei da Natureza que deste modo nos dá a propriedade, limita também, doutro modo, a propriedade». Deus deu-nos os frutos da terra para que os gozemos, não para que os desperdicemos. Tudo o que ultrapassa a nossa capacidade de uso e se transforma em desperdício está para lá da nossa legítima porção e pertence a outros.
Isto já não é pouco. Mas Locke ainda não terminou.
quarta-feira, 13 de agosto de 2008
O romance de mercado tem um preço elevado
O crescimento económico anual em Portugal é medíocre, pouco ultrapassando, em média, 1% desde o início do novo milénio; o défice externo andará à volta de 11% do PIB no próximo ano e indicia uma inserção internacional crescentemente dependente e que se entregou às forças do mercado sem as procurar governar; a taxa de desemprego arrisca-se a permanecer duradouramente bem acima de 7%, num país com uma rede de protecção social fraca, e constitui-se em poderoso mecanismo disciplinar para forçar uma parte importante dos trabalhadores a aceitar uma continuada redução nos seus níveis de vida; o injustificado nível de desigualdades salariais e de rendimentos, quase sem precedentes na Europa, torna qualquer discurso que defenda o famoso "apertar do cinto" salarial, porque, afinal de contas, "estamos todos no mesmo barco", um exercício que oscila entre o cinismo e a insensibilidade; a taxa de pobreza, elevada e persistente, atinge um segmento importante das classes trabalhadoras, que estão também cada vez mais expostas à precariedade; a lotaria da vida, ou seja, o contexto socio-económico onde se nasce, determina, mais do que em qualquer outro país da Europa, aquilo que os indivíduos vão ser e fazer nas suas vidas, transformando, a par com o escândalo quase invisível da pobreza infantil, todo o discurso sobre a recompensa do mérito e do esforço numa grotesca farsa. O resto pode ser lido no Jornal de Negócios. Agora regresso às minhas férias virtuais. Volto em Setembro.
quarta-feira, 6 de agosto de 2008
A propriedade: afinal é ou não um roubo? II
Assim como Proudhon se encontrava dividido no que diz respeito à propriedade, também os cristãos de todos os tempos tinham pelo menos dúvidas. Afinal Jesus Cristo havia pregado o despojamento das coisas materiais, prevenido os ricos de uma iminente condenação e prometendo aos pobres a salvação, embora não nesta vida terrena. Os primeiros cristãos procuraram viver no despojamento e na partilha comunitária compatíveis com esta crença.
Mas quando no século XIII surgiram as universidades e com elas os professores, clérigos na sua maioria, já o cristianismo se tinha afastado desta atitude radical face riqueza para aprender a viver num mundo que afinal dava mostras de não estar nos seus últimos dias. Estes universitários medievais entre os quais se contam grandes filósofos, alguns deles santificados pela Igreja, como Tomás de Aquino (1225-1274), estavam longe do elogio do despojamento dos primeiros cristãos.
Tomás de Aquino procurava tornar a instituição da propriedade compatível com a moral cristã. Os argumentos a favor do direito de propriedade que formulou são muitas vezes evocados nos nossos dias: (a) a propriedade deve ser necessariamente privada porque as pessoas têm mais cuidado com o que é seu do que com o que é de todos; a sociedade fica a ganhar se cada um cuidar bem da sua parte; (b) a propriedade privada é essencial à ordem social - uma sociedade em que “tudo é de todos” e não há distinção entre o “meu” e o “teu”, é uma sociedade em que o conflito surge logo que a escassez se manifesta.1
Mas para Aquino, embora a propriedade tivesse de ser privada por estas razões, os frutos da propriedade (os frutos da terra) eram comuns e deviam ser partilhados. O excedente devia ser posto à disposição dos que dele necessitam. Isto tanto poderia ser feito através dádiva beneficente como através do comércio.
Tomás de Aquino não justifica a propriedade a partir de um qualquer direito primordial do indivíduo, mas antes da (suposta) vantagem que a sociedade dela retira. E quando a propriedade privada é legitimada a partir da vantagem que a sociedade retira desta instituição, a implicação não pode deixar de ser a de que o direito de propriedade está sujeito à prestação de um serviço útil à sociedade e acarreta obrigações; neste caso pelo menos a obrigação de cuidar bem do que é seu.
Serve assim Tomás de Aquino para relembrar um ponto de vista que parece ter sido esquecido: (a) a terra e os seus frutos foram uma dádiva do criador à humanidade no seu conjunto e devem ser repartidos; (b) o proprietário é quando muito um zelador; (c) o direito de propriedade envolve sempre obrigações e está sujeito ao cumprimento dessas obrigações.
Serve assim Tomás de Aquino para relembrar um ponto de vista que parece ter sido esquecido: (a) a terra e os seus frutos foram uma dádiva do criador à humanidade no seu conjunto e devem ser repartidos; (b) o proprietário é quando muito um zelador; (c) o direito de propriedade envolve sempre obrigações e está sujeito ao cumprimento dessas obrigações.
1 Os argumentos são Aristotélicos (Aristóteles, Política, Lisboa: Vega, 1998, pág. 109): “Quanto mais uma coisa é comum a um maior número, menos cuidado recebe. Cada um preocupa-se sobretudo com o que é seu; quanto ao que é comum preocupa-se menos, ou apenas na medida do seu interesse particular. Aliás, desleixa-se ainda mais ao pensar que outros cuidam dessas coisas.” E ainda (Op. Cit. pág. 109): “Por muito belo que pareça, que todos chamem ‘meu’ ao mesmo objecto, é impossível, e não conduz, de modo algum à concórdia.”
terça-feira, 5 de agosto de 2008
Afinal o Bloco Central parece estar já em funções, só falta mesmo oficializá-lo…
Não só neste blogue mas também nos meus artigos no Público (ver, nomeadamente, "Grande coligação ou esquerda plural?", em 23/6/08), tenho advertido para a forte possibilidade de, caso o vencedor nas próximas legislativas seja o PS e este não tenha maioria absoluta, se vir a formar um governo do bloco central: PS e PSD.
No seu blogue, bem como nos seus artigos no Público (ver, nomeadamente, "O Espantalho e a Sereia?", em 24/6/08, em que o colunista reage ao meu artigo do Público supra-citado), Vital Moreira tem dito que a hipótese do bloco central não só é uma hipótese improvável para 2009 ("uma carta fora do baralho") como seria mesmo "uma inventona conveniente para o canto de sereia esquerdista".
Mas um artigo recente da jornalista Susete Francisco, do Diário de Notícias (DN), veio revelar que o PSD e, em menor medida, o CDS-PP, têm sido os partidos que mais votaram favoravelmente as propostas de lei do PS (que, como se sabe, em princípio não precisa de tais apoios, pois tem maioria absoluta) na última sessão legislativa (findada em Julho passado): em 55 propostas de lei apresentadas pelo PS, os deputados do PSD aprovaram 30 (54,5%) e abstiveram-se em 11; no caso do CDS-PP, as votações favoráveis e as abstenções foram de 24 (43,6%) e 16, respectivamente (DN, 29/7/08, p. 16). Pelo contrário, é a esquerda que menos tem apoiado as propostas do PS: 32 votações contra (58,2%), ex aequo para PCP e BE. Ou seja, enquanto a direita votou mais vezes a favor do que contra, o oposto se passou com a esquerda. Mais, segundo a própria jornalista, "as votações da terceira sessão legislativa vêm confirmar a tendência de anos anteriores (…)." Claro que para uma avaliação mais cuidada seria preciso, primeiro, fazer algum escrutínio do tipo de propostas em que há (ou não) convergência com a direita e, segundo, descontar as propostas que carecem de dois terços para serem aprovadas (e onde é normal que haja uma convergência entre PS e PSD: são leis que estruturam as regras do jogo ou áreas consideradas estruturantes e, por isso, carecem de maiorias alargadas, até por exigência constitucional).
Porém, mesmo descontando as cautelas supra-referidas, podemos concluir (ainda que provisoriamente, isto é, esperando análises mais aprofundadas, nomeadamente de Susete Francisco) das estatísticas das votações na Assembleia da República, durante a presente legislatura, que o PS e a direita têm convergido bastante mais do que o PS e os partidos à sua esquerda. Ou seja, ao contrário do que tem alegado Vital Moreira, estes dados apontam para que o bloco central possa mesmo já estar em funções, só faltando por isso oficializá-lo, se o PS não tiver maioria absoluta nas próximas eleições…
Claro que o que se irá passar em 2009 não depende só do PS e da direita, pressupondo a perda da maioria absoluta (o que não é líquido!, ainda que bastante provável), uma certa estagnação do PSD (e do CDS-PP) e o crescimento da extrema-esquerda (o que também não é nada líquido, apesar de as sondagens actuais para aí apontarem!). Na minha perspectiva, o que se irá passar em 2009 dependerá também do comportamento dos partidos à esquerda do PS e, nomeadamente, da sua disponibilidade (mais ou menos dissimulada, como é normal em pré campanha eleitoral…) para apoiarem uma solução governativa do tipo "esquerda plural" (coligação ou acordo de incidência parlamentar). Caso não haja indícios dessa disponibilidade, tais partidos correm o risco de ver as respectivas previsões de crescimento furadas (estimulando o voto útil…) e/ou de contribuírem activamente para a oficialização do bloco central… Alguns alegados traços do comportamento do BE na coligação PS-BE na Câmara Municipal de Lisboa (veja-se o artigo de Daniel Oliveira no Expresso, 2/8/08) parecem indiciar que o BE poderá também vir a querer dar a sua ajuda à oficialização do bloco central em 2009… É que para se dançar o Tango são precisos (pelo menos) dois…
Mais: conforme tenho alegado noutros artigos, ou o sistema partidário é capaz de gerar soluções de governo (estáveis) em caso de maiorias relativas – como acontece por essa Europa fora! -, ou a tentação dos grandes partidos em cozinharem uma reforma eleitoral num sentido maioritário será cada vez maior… (tanto mais se tivermos um governo do bloco central…) Neste capítulo, nunca é demais lembrar que a direita já demonstrou à exaustão que é capaz de se entender e formar governos estáveis, a esquerda é que não…
No seu blogue, bem como nos seus artigos no Público (ver, nomeadamente, "O Espantalho e a Sereia?", em 24/6/08, em que o colunista reage ao meu artigo do Público supra-citado), Vital Moreira tem dito que a hipótese do bloco central não só é uma hipótese improvável para 2009 ("uma carta fora do baralho") como seria mesmo "uma inventona conveniente para o canto de sereia esquerdista".
Mas um artigo recente da jornalista Susete Francisco, do Diário de Notícias (DN), veio revelar que o PSD e, em menor medida, o CDS-PP, têm sido os partidos que mais votaram favoravelmente as propostas de lei do PS (que, como se sabe, em princípio não precisa de tais apoios, pois tem maioria absoluta) na última sessão legislativa (findada em Julho passado): em 55 propostas de lei apresentadas pelo PS, os deputados do PSD aprovaram 30 (54,5%) e abstiveram-se em 11; no caso do CDS-PP, as votações favoráveis e as abstenções foram de 24 (43,6%) e 16, respectivamente (DN, 29/7/08, p. 16). Pelo contrário, é a esquerda que menos tem apoiado as propostas do PS: 32 votações contra (58,2%), ex aequo para PCP e BE. Ou seja, enquanto a direita votou mais vezes a favor do que contra, o oposto se passou com a esquerda. Mais, segundo a própria jornalista, "as votações da terceira sessão legislativa vêm confirmar a tendência de anos anteriores (…)." Claro que para uma avaliação mais cuidada seria preciso, primeiro, fazer algum escrutínio do tipo de propostas em que há (ou não) convergência com a direita e, segundo, descontar as propostas que carecem de dois terços para serem aprovadas (e onde é normal que haja uma convergência entre PS e PSD: são leis que estruturam as regras do jogo ou áreas consideradas estruturantes e, por isso, carecem de maiorias alargadas, até por exigência constitucional).
Porém, mesmo descontando as cautelas supra-referidas, podemos concluir (ainda que provisoriamente, isto é, esperando análises mais aprofundadas, nomeadamente de Susete Francisco) das estatísticas das votações na Assembleia da República, durante a presente legislatura, que o PS e a direita têm convergido bastante mais do que o PS e os partidos à sua esquerda. Ou seja, ao contrário do que tem alegado Vital Moreira, estes dados apontam para que o bloco central possa mesmo já estar em funções, só faltando por isso oficializá-lo, se o PS não tiver maioria absoluta nas próximas eleições…
Claro que o que se irá passar em 2009 não depende só do PS e da direita, pressupondo a perda da maioria absoluta (o que não é líquido!, ainda que bastante provável), uma certa estagnação do PSD (e do CDS-PP) e o crescimento da extrema-esquerda (o que também não é nada líquido, apesar de as sondagens actuais para aí apontarem!). Na minha perspectiva, o que se irá passar em 2009 dependerá também do comportamento dos partidos à esquerda do PS e, nomeadamente, da sua disponibilidade (mais ou menos dissimulada, como é normal em pré campanha eleitoral…) para apoiarem uma solução governativa do tipo "esquerda plural" (coligação ou acordo de incidência parlamentar). Caso não haja indícios dessa disponibilidade, tais partidos correm o risco de ver as respectivas previsões de crescimento furadas (estimulando o voto útil…) e/ou de contribuírem activamente para a oficialização do bloco central… Alguns alegados traços do comportamento do BE na coligação PS-BE na Câmara Municipal de Lisboa (veja-se o artigo de Daniel Oliveira no Expresso, 2/8/08) parecem indiciar que o BE poderá também vir a querer dar a sua ajuda à oficialização do bloco central em 2009… É que para se dançar o Tango são precisos (pelo menos) dois…
Mais: conforme tenho alegado noutros artigos, ou o sistema partidário é capaz de gerar soluções de governo (estáveis) em caso de maiorias relativas – como acontece por essa Europa fora! -, ou a tentação dos grandes partidos em cozinharem uma reforma eleitoral num sentido maioritário será cada vez maior… (tanto mais se tivermos um governo do bloco central…) Neste capítulo, nunca é demais lembrar que a direita já demonstrou à exaustão que é capaz de se entender e formar governos estáveis, a esquerda é que não…
Subscrever:
Mensagens (Atom)