quarta-feira, 20 de agosto de 2008

A propriedade: afinal é ou não um roubo? III

Para John Locke (1632-1704) – a venerável referência comum de todos os liberalismos – a propriedade, ou pelo menos a propriedade legítima, era uma extensão natural do corpo. Pode parecer estranho, mas consideremos o argumento de Locke no Capitulo V do Segundo Tratado sobre o Governo:
1. Deus deu efectivamente a terra e os frutos que ela naturalmente produz à humanidade no seu conjunto e «originariamente, ninguém tem um domínio privado de algum deles que exclua o resto da humanidade»;
2. No entanto, tendo os frutos da natureza sido dados para o uso do homem, eles têm de ser apropriados antes que possam ser usados: «o fruto ou o veado que alimenta o Índio selvagem, que não conhece cercas e é ainda um detentor da terra em comunidade, deve ser dele – isto é, uma parte dele a que ninguém mais tem direito, antes que possa ser bom para si enquanto suporte à vida»;
3. Todo «o homem» é proprietário da sua pessoa. Por extensão, «podemos dizer que o ‘labor’ do seu corpo e o ‘trabalho’ das suas mãos são apropriadamente seus». Em consequência, tudo o que «o homem» retira da Natureza, toda a parcela da dádiva de Deus à humanidade em colectivo a que ele «mistura» o seu trabalho, transforma-se em propriedade sua.

O trabalho é então para Locke o que estabelece uma distinção entre o que é comum e aquilo a que, com propriedade, chamamos nosso: a maçã na árvore que ninguem semeou é de todos, a maça que colhi dessa árvore com o meu esforço é minha e ninguém a pode reclamar. Esta é para Locke «a lei da Natureza para a origem da propriedade».

Mas… se a colheita dos frutos é fundamento de um direito ao uso privado desses frutos, então qualquer um poderia açambarcar as dádivas de Deus para si, à sua vontade. «Não é assim», responde Locke: «A mesma lei da Natureza que deste modo nos dá a propriedade, limita também, doutro modo, a propriedade». Deus deu-nos os frutos da terra para que os gozemos, não para que os desperdicemos. Tudo o que ultrapassa a nossa capacidade de uso e se transforma em desperdício está para lá da nossa legítima porção e pertence a outros.

Isto já não é pouco. Mas Locke ainda não terminou.

1 comentário:

Anónimo disse...

Nota mental para os leitores:
Verificar qual a diferença entre direito de propriedade e direito de uso. Ler Proudhon e Kropotkin ...