Ontem Macron ganhou a segunda volta das eleições francesas. Foi uma vitória com uma percentagem expressiva e, se pudesse votar, teria - nesta segunda volta - contribuído para ela. Muitos respiraram de alívio, mas, na verdade, a probabilidade de Marine Le Pen ser eleita presidente sempre foi muito próxima de zero - e não seria muito mais elevada com outro candidato (Fillon, Melénchon ou Hamon) na segunda volta.
Mas não foi apenas a derrota de Le Pen que muitos festejaram. Foi também a vitória de alguém que, tendo sido "inventado" por François Hollande, rompeu com o Partido Socialista Francês (PSF) e contribuiu para o seu péssimo resultado. A par da passagem à segunda volta de Marine Le Pen, a quase implosão do PSF ficará como uma marca profunda na história política francesa.
As questões mais difíceis surgem agora: a primeira, claro, é saber se Macron terá uma maioria no parlamento para governar com estabilidade. Daqui a umas semanas vamos saber, mas a possibilidade de as suas listas não obterem maioria é real.
A segunda é o que vai resultar do seu europeísmo. Recordo-me que em 2012 muitos consideravam François Hollande um lírico porque queria renegociar o Tratado Orçamental - na verdade, tratava-se de lhe acrescentar qualquer coisa sobre 'crescimento' -, mas aparentemente Macron já é um europeísta credível na sua defesa da existência de um governo (como se isto do
gouvernement économique não fosse um velho projeto francês), um orçamento (uma "união de transferências", portanto) e um parlamento para a Zona Euro (
um mecanismo híbrido de controlo político das não menos híbridas e opacas formas de governança da Zona Euro), bem como pela mutualização de dívidas futuras dos Estados-Membros.
Como vai convencer a Alemanha de tudo isto? E a troco de quê? Isto é importante tanto para a França (imagina-se que a Alemanha aceite ceder aqui e ali se em troca Macron liberalizar isto e aquilo, num negócio que cairá, como se imagina, extraordinariamente bem junto do eleitorado francês) como para o resto da Zona Euro, sobretudo em termos de soberania dos parlamentos nacionais - assumindo que esta questão ainda é relevante para quem defende um novo grande salto em frente na integração europeia.
A questão europeia é também central para perceber o que vai acontecer ao apoio à Frente Nacional (FN) nos próximos 5 anos. Talvez a esperança seja que a "agenda reformista" - para citar, não por acaso, o líder da nossa direita liberal - de Macron resolva os problemas que levam uma parte significativa do eleitorado a votar na FN (assumindo, claro, que há explicações socioeconómicas para que estas pessoas votem neste partido, e não sejam movidas apenas por inexplicáveis emoções como o racismo, a xenofobia, ou o ódio à democracia - mas já lá vamos). Talvez o tão esperado choque liberalizador de Macron eleve o crescimento francês, aumente a confiança, incentive o investimento privado, reduza o desemprego, etc. Cada um acredita no que quiser.
Na minha opinião, o problema é mais profundo e de mais difícil solução - em particular dentro das atuais regras orçamentais e do mercado interno - e não se resolve com mais 3 ou 4 décimas de crescimento. O crescimento da FN, obviamente, tem 30 anos, mas dois eventos recentes permitem perceber melhor um conjunto de dinâmicas que para ele contribuíram e vão continuar a contribuir: falo da eleição de Donald Trump e do Brexit. Na sociologia e geografia destes dois eventos, como também acontece com a progressiva ascensão da FN, está um
conflito silencioso entre a prosperidade das grandes metrópoles e a periferia dos outros territórios, nas zonas periurbanas e rurais. As primeiras, naturalmente, são as grandes vencedoras do processo de globalização da economia: são cada vez mais "cidades globais", atravessadas por poderosos fluxos de capital financeiro e humano, que por sua vez geram oportunidades de emprego mesmo para os menos qualificados que vivem nas suas periferias. Em quase todas as grandes cidades - Nova Iorque, Londres, Paris - Clinton, o Remain e Macron esmagaram o voto “populista”. Estes espaços económicos, marcados pela abertura e pela diversidade e impecavelmente cosmopolitas e liberais, tendem, não por acaso, a ser governados por forças de centro-esquerda.
Nos territórios distantes das cidades globais, a história é muito diferente. Uma longa história de desindustrialização e de fuga de capital humano para onde há oportunidades de emprego - as tais cidades globais, claro - leva a que as suas populações se sintam abandonadas pelos governos e pelas elites (as políticas e as económicas) que os acham provincianos, retrógrados ou, simplesmente, racistas. Se a opinião destas pessoas sobre os governos e as elites é correta ou justificada é uma outra (importante) discussão; todos sabemos as respostas que qualquer pessoa daria para rebater estes “preconceitos”: que esses territórios periféricos recebem mais dinheiro do centro do que pagam, e que são portanto beneficiários líquidos das transferências orçamentais domésticas (e/ou europeias); que a percentagem de imigrantes na população é mais baixa do que nas grandes cidades, e que portanto não têm nada que se queixar; que o índice de Gini está estável, e que por isso não há mais desigualdades do que no passado; que a desindustrialização é impossível de evitar, que o Estado não pode fazer nada excetuando pagar subsídios de desemprego ou financiar estágios e,
the
last but not the least, que "em todas as crises há oportunidades". No fim da discussão, estas pessoas não podem deixar de passar por ignorantes, racistas e mal-agradecidas, porque não conhecem as estatísticas sobre transferências orçamentais e da imigração e não valorizam o esforço que os outros contribuintes fazem para financiar os subsídios que os mantêm à tona de água.
Mas voltemos à questão central: se o que explica o crescimento da FN (e outros movimentos/partidos/candidatos populistas noutros países) são movimentos tectónicos deste tipo – exclusão de grande parte da população menos qualificada dos fluxos da economia global; fluxos migratórios de países com níveis de vida bastante mais baixos, como acontece com muitos migrantes de países da Europa do Leste, num espaço económico europeu que é bem mais desigual do que o norte-americano -, é realmente de esperar que o liberalismo e o europeísmo de Macron seja capaz de estancar este processo?
Muito provavelmente, estas dinâmicas só poderiam ser contrariadas com uma intervenção pública mais profunda do que aquela que as regras europeias - tanto as orçamentais como as da concorrência - permitem. Implicariam mais músculo do Estado na economia local, uma política industrial (em sentido lato) mais agressiva, menos liberalismo doméstico e menos respeito pelo "mercado interno" europeu - tudo ingredientes que fariam dela, junto de muitos, uma perigosa e irresponsável agenda populista e anti-europeia. Como ninguém espera que Macron vá defender coisas semelhantes junto de Berlim e de Bruxelas - e mesmo que defendesse, voltaria de mãos vazias -, não vejo o que o próximo presidente francês possa fazer para reduzir a força eleitoral da FN, e talvez mesmo não consiga sequer estancar o seu lento crescimento até 2022.
Uma nota final: referi, no início, que percebo que muitos, do centro à direita, regozijem com o que a eleição de Macron representa para o PSF e para a social-democracia francesa, e que até alguns no centro-esquerda europeu vejam esta como uma oportunidade histórica para acabar de vez com esse dinossauro dos tempos de Mitterrand. Tenho, porém, mais dificuldade em compreender como é que, em particular à esquerda, se perde tanto tempo a castigar os eleitores da FN sem gastar um minuto a perceber quem são estes eleitores e o que este apoio significa. Há muito que todos os estudos mostram quem são os eleitores da FN: operários e trabalhadores de serviços com baixas qualificações e baixos rendimentos, e experiência de, e/ou elevada vulnerabilidade ao desemprego e/ou à precariedade endémica. Se estas pessoas votam de forma consistente e crescente num certo partido, é porque, de alguma forma, se sentem representadas por ele (o que não significa que concordem com, ou sequer conheçam, tudo o que esse partido propõe, como se fossem ávidos leitores de programas eleitorais) e, em particular, não se sentem representadas por nenhuma das forças políticas que, histórica e ideologicamente, sempre se propuseram representar / defender / falar em nome dos económica, cultural e socialmente mais fracos. Não devia a esquerda confrontar-se com estas questões antes de, direta ou indiretamente, chamar estes eleitores de "racistas" ou "fascistas"? Esta tentação não só nos desobriga de compreender o que as leva a votar como votam (e não aceito o terrorismo intelectual inscrito na ideia de que "tentar compreender é começar a justificar") como, infelizmente, não traz nenhum voto de volta; só impede a construção de uma estratégia viável de compreensão e (posterior) convencimento dessas pessoas, ao mesmo tempo que reforça junto delas a ideia de que as "elites", lá de cima do seu mundo cosmopolita, não os compreendem (perguntem aos
deplorables de Hillary Clinton).
Talvez o que está em causa seja mais sério: talvez não haja sequer a vontade de "trazer votos de volta", ou de construir uma qualquer
"estratégia viável de convencimento". Talvez a social-democracia tenha mesmo desistido de representar os perdedores das dinâmicas do capitalismo e da globalização - sobretudo se isso possa parecer "anti-europeu". Nesse caso, a melhor estratégia a que ela pode aspirar no futuro é esperar que esses eleitores fiquem em casa.
Se assim for, ter-se-á então fechado o círculo e a vitória do europeísmo coincidirá com a irrelevância (que não é bem sinónimo de "derrota", porque algumas das suas conquistas perdurarão) da social-democracia: num mundo em que as desigualdades geram nos perdedores do mercado atitudes anti-europeias que as elites políticas não podem ou conseguem dar resposta e a social-democracia deixou (e, nalguns casos, incentivou) que a clivagem política fundamental se cristalizasse entre "sociedades abertas" e
"fechadas" (eclipsando a entre "esquerda" e "direita"), para quê votar em partidos social-democratas se um liberalismo centrista, defensor de todas as liberdades e de todos empreendedorismos contra todos os protecionismos, e com credenciais impecavelmente europeístas serve perfeitamente?