O tempo entre a 1ª e a 2ª voltas das Eleições presidenciais foi marcado por uma campanha, como tenho visto poucas, de ataque à única candidatura de esquerda que se atreveu a vencer, no meio do descalabro que foram os resultados. Sobre o que têm a dizer, à direita, os vários antifascistas de ocasião não me interessa particularmente falar. Pelo menos, até ouvir à direita portuguesa qualquer coisa contra o governo fascista efectivamente existente na Hungria, cujo partido continua a integrar o respeitável PPE, sem sobressalto de maior.
Interessa-me bastante mais a forma como uma certa esquerda europeísta embarcou nesta campanha. Repare-se que estamos bem para lá da questão de saber se Mélenchon deveria ter divulgado o seu voto depois da consulta ao movimento França Insubmissa, consulta essa que estava marcada antes do voto da 1ª volta. Estamos no domínio de uma campanha que visava atribuir a Mélenchon a responsabilidade de uma vitória de Marine Le Pen, do fascismo, da guerra, de todos os males da França, da Europa e do mundo.
Em primeiro lugar, é preciso perceber que o facto de essa campanha assentar essencialmente no pânico e na histeria não quer dizer que os seus instigadores estejam a agir de forma irracional. A campanha contra Mélenchon tem três propósitos inteiramente calculados:
1. A diversão – A primeira razão para a obsessão anti-Mélenchon é a de conseguir não dizer absolutamente nada sobre o descalabro do candidato do PSF e da proposta do Europeísmo de esquerda. É verdadeiramente extraordinária a forma como os entusiastas de Hamon saíram de mansinho ainda os votos não estavam contados. Hamon não ficou só sem votos. Ficou sem amigos. Em toda a esquerda europeísta, não se ouve uma reflexão, uma interrogação, um palpite que seja sobre o grau de descrédito a que chegou a proposta política do europeísmo de esquerda. Um momento que pode ajudar a perceber essa deserção foi aquele em que Hamon se disponibilizou a apoiar Mélenchon numa segunda volta, pondo a esquerda bem antes do europeísmo.
2. A amálgama – A segunda razão é a de forçar a esquerda soberanista num dos pólos que se pretende impingir a todos os povos. Ou se está com a Europa, ou se está com o fascismo. Se o pudor foi impedindo que esta imposição fosse formulada com esta clareza, o colapso do europeísmo de esquerda soltou todas as inibições. À esquerda que não desistiu de o ser só sobraria a possibilidade de se amalgamar com a direita fascista ou a direita ultra-liberal. Mélenchon só se livraria das acusações se, na noite das eleições, tivesse entregue a Macron votos que lhe foram entregues para um projecto incompatível. O preço da salvação para Mélenchon era o suicídio político.
3. A sobrevivência – A terceira razão decorre dessa exigência. A campanha dos europeístas contra Mélenchon é um esforço desesperado para reconquistar à cotovelada o espaço perdido. A esquerda que desistiu de enfrentar a Europa do liberalismo, a esquerda que passou alegremente dos panegíricos a Hamon aos panegíricos a Macron, a esquerda que passou do europeísmo de esquerda para o europeísmo-ponto, trava o seu combate mais virulento contra o resto da esquerda. A França representa em três actos a falência política do europeísmo de esquerda: os 6% de Hamon, o programa de Macron, a campanha contra Mélenchon.
Notará o leitor que não incluo nas motivações da campanha contra Mélenchon qualquer tipo de sobressalto antifascista. Não é por não acreditar que haja gente que pensa seriamente que o melhor curso de acção para Mélenchon teria sido declarar imediatamente o apoio a Macron. Tanto acredito, que continuo a achar que, depois da consulta ao seu movimento, Mélenchon deveria ter dado a conhecer o seu sentido de voto. Mas teria sido desastroso que Mélenchon o tivesse feito na noite eleitoral, curto-circuitando o seu próprio movimento e a consulta que ele próprio convocou. Dizer que ele estaria apenas a dar a sua opinião pessoal é só ridículo. Uma coisa é clara: não há qualquer motivação antifascista que possa motivar este concurso de tiro ao Mélenchon.
Comecemos pelos factos: Mélenchon foi o candidato que melhor combateu a Frente Nacional em todos os seus terrenos: Nos operários (22,4%), nos empregados (23,1%), nos desempregados (27,5 contra 29,9%) e nos jovens (24,6 contra 25,7). Se a Frente Nacional cavalgou nos sectores em que o descontentamento é maior, a França Insubmissa foi a única força capaz de lhe resistir, capaz de combater nesse terreno.
Quanto às transferências de voto, Macron teve 19% de eleitores Mélenchon, 18% de Fillon e 9% de Hamon. Se pensarmos na diferença, entre votos Macron-Le Pen, os contributos líquidos são 12% de Mélenchon, 8% de Hamon e 4% de Fillon. Claro que também se pode falar da proporção de eleitores, em que Hamon ganha claramente 90%, enquanto Mélenchon se fica pelos 73% e Fillon pelos 56%, mas estas contas têm um problema: o que conta é o número de votos. Para que um candidato possa “dar” votos contra Le Pen, primeiro é preciso que sejam ganhos, e quem o conseguiu fazer à esquerda foi Mélenchon. Acresce que Macron e Hamon são dois candidatos provenientes do mesmo espaço político, mesmo que diferentes e mesmo antagónicos, no plano da política económica e social.
Coloquemos, portanto, as responsabilidades onde elas assentam: o grande motor da extrema-direita em França são as políticas dos europeístas, o único travão é a esquerda de Mélenchon.
Um elemento da campanha particularmente sonso é a ideia de que Mélenchon, com este posicionamento, teria desbaratado a base de apoio que reuniu durante a sua campanha. As sondagens para as legislativas não parecem confirmar esse desejo. As previsões apontam para que Mélenchon perca para as legislativas cerca de um terço do seu eleitorado das presidenciais. Isto significa que acontecerá o mesmo, mas em menor grau, que aconteceu em 2012, quando Mélenchon caiu de 11,1 para 6,9% entre Presidenciais e Legislativas. Esta quebra terá, portanto, muito mais a ver com o escandaloso sistema eleitoral francês do que com qualquer castigo a Mélenchon. Mais uma vez, ninguém parece ter nada a dizer sobre o previsível colapso do PSF.
Finalmente, não deixa de ser sintomático que a esquerda europeísta cada vez mais introduza nas suas análises o grau de qualificação dos eleitores como critério qualitativo do voto europeísta de esquerda. Viu-se com o Brexit, volta a ver-se agora, o que se compreende. É que, por um lado, a quantidade escasseia e, por outro, quem defende a obstinação europeísta condena-se ao completo desaparecimento no eleitorado popular. A grande inovação aqui é o surgimento de uma esquerda que, não apenas se conforma, como celebra esse desaparecimento.
Felizmente, há uma esquerda popular que não desistiu de ser esquerda e de ser popular. Macron foi dos seis candidatos o que menos entusiasmo reunia entre os seus próprios eleitores da 1ª volta, 45% dos quais declararam ter votado nele, não por ser o seu candidato preferido, mas por estar em melhores condições para ganhar. É este o panorama. À medida que o campo europeísta se vai estreitando, política e eleitoralmente, à medida que o europeísmo ultra-liberal se torna o único europeísmo relevante, só há uma força que surge como alternativa à alternativa de Le Pen. Essa força é a França Insubmissa. Que haja uma esquerda que continua, mesmo depois das eleições, a fazer desta força o seu principal adversário é um bom sinal dos tempos. Pelo menos, ficamos esclarecidos.