domingo, 31 de dezembro de 2017

Desejo

Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Como já é hábito neste dia, lembro o artigo 1º da nossa Constituição. Tenham um bom ano de 2018.

sábado, 30 de dezembro de 2017

Em defesa dos produtos tradicionais portugueses

Dou valor aos produtos tradicionais portugueses. Não porque considere que o que é nacional é sempre bom, ou que os produtos feitos em Portugal são os melhores do mundo. Ninguém conhece o mundo suficientemente bem para dizer uma coisa dessas.

Valorizo os produtos tradicionais - tapeçaria, olaria, culinária e doçaria, vestuário e calçado, vinhos e licores, joalharia, trabalho em madeira, etc. - porque transportam em si muitos anos de conhecimento acumulado que seria um absurdo desperdiçar.

No entanto, esse valor tende a ser desperdiçado. Não porque os produtos sejam feios, pouco saborosos, pouco saudáveis ou disfuncionais - muitos são o contrário disto. O seu preço não é necessariamente muito mais alto do que os equivalentes "modernos" (quando existem).

As sociedades contemporâneas desperdiçam os produtos tradicionais por muitas outras razões. Desde logo, porque a maioria das pessoas tem pouco tempo para pensar no que compra e para procurar o que quer comprar. Ou quando tem tempo não tem o hábito de consumir com consciência. Gastamos boa parte do nosso dinheiro em espaços comerciais controlados por grandes empresas de distribuição, que preferem comprar produtos estandardizados e em grandes quantidades (o que se presta pouco à produção tradicional) e que investem milhões em publicidade para convencer as pessoas a comprá-los. Empresas que pagam miseravelmente a quem tem pouco poder negocial, como acontece com muitos produtores de bens tradicionais, contribuindo assim para o abandono dessas actividades.

Claro que não são só os produtos tradicionais feitos em Portugal que devem ser valorizados. Simplesmente estes estão mais próximos de nós, temos mais oportunidades para os conhecer e adquirir do que aos de outros países. Como em tantos outros domínios - arquitectura, vestígios de civilizações passadas, livros antigos, música regional, etc. - temos a responsabilidade individual e colectiva de preservar conhecimentos ancestrais que merecem ser preservados, mas que tendem a ser destruídos pela lógica do consumo de massas.

Valorizemos pois os produtos tradicionais portugueses. E como aqui escrevi há quase uma década (para quem o argumento é relevante), não entreguemos à direita o monopólio das tradições.

Refugiados



(filme de Matthieu Tribes para o Coletivo para uma Nação Refúgio)

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A Economia Política dos muito ricos (e dos impostos que pagam)

A desigualdade tem vindo a aumentar nas últimas décadas na generalidade dos países do mundo e Portugal não é excepção. Há vários factores que explicam esta evolução, incluindo factores tecnológicos, económicos e políticos. Estes factores são em larga medida interdependentes: a política regula a economia e a tecnologia, mas a correlação de forças entre os actores relevantes é influenciada pelas condições económicas e tecnológicas.

Por exemplo, é sabido que a progressividade dos sistemas fiscais afecta a distribuição dos rendimentos. Porém, quanto mais poder têm os muito ricos, mais bem-sucedidos são em garantir que a política fiscal não os penaliza.

Tendo isto presente, o gráfico anexo (retirado daqui) diz-nos muito do que se tem passado no mundo – e em particular em Portugal. Mostra-nos que os países que mais reduziram o valor máximo da taxa marginal de imposto (i.e., aquela que incide sobre os rendimentos mais elevados) são tendencialmente aqueles onde o peso dos mais ricos na economia mais aumentou. Portugal surge neste gráfico muito mais próximo dos EUA e do Reino Unido do que a maioria dos países do continente europeu.

Isto ajuda-nos a perceber não apenas como evoluiu a desigualdade em Portugal, mas também quem tem visto reforçado o seu poder político. Ajuda-nos também a perceber que não é politicamente fácil assegurar a existência de um sistema fiscal fortemente progressivo (isto é, que exige contribuições proporcionalmente maiores a quem tem mais rendimentos). Mas é certamente necessário.




quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Luz e trevas, num mundo que se move


«No tempo que se agita e que permanentemente se move, ao Papa 266 bastava seguir o curso dos antecessores e assumir que a Igreja, solidificada em verdades intemporais, observa quase estagnada os ousados movimentos do mundo. (...) A mudança que Francisco está a impor aproxima-o dos fiéis mas afasta-o da Igreja conservadora. Juntemos à tolerância religiosa o acolhimento dos homossexuais e dos divorciados na Igreja. "Quem sou eu para os julgar?", pergunta Francisco. O Papa sabe que o mundo se move e aconselha a Igreja a não fechar os olhos a esse movimento. Alguma Igreja, mal o ouve, fecha... (...) Há gestos do Papa que o fizeram descer à terra. Também eles são questionados pelo lado mais conservador da Igreja. Lavou os pés a mulheres, a refugiados e a toxicodependentes. A primeira viagem que fez foi a Lampedusa, ilha italiana onde desaguam milhares de refugiados. Essa primeira viagem foi de acolhimento. Filho de imigrantes, Bergoglio conhece-lhes por dentro o sofrimento. Francisco mexeu no poder da cúpula, incluindo no topo do Banco do Vaticano. Fez inimigos. O maior deles é o cardeal americano Raymond Burke, demitido do cargo que exercia no Tribunal do Vaticano. Burke é um conservador de vestes faustosas que, de acordo com a investigação do The Guardian, inspira figuras proeminentes da direita norte-americana, algumas delas muito próximas do Presidente Trump».

Excerto da síntese da SIC Notícias, que vale a pena ver na íntegra, sobre o artigo publicado pelo The Guardian, traduzido no Público do dia 24. A investigação do jornal britânico dá conta da reação dos setores mais conservadores da Igreja, «que temem que este novo espírito» a divida «ou até que a destrua». Para lá da divergência em torno de questões doutrinárias (como as «verdades intemporais», associadas à «infalibilidade papal», ou a questão do divórcio), os recentes «choques e ódios dentro da Igreja» derivam igualmente das posições do Papa «sobre as alterações climáticas, as migrações ou o capitalismo». Tal como sucedeu num outro momento de encruzilhada da história da Igreja, esta luta no seu interior, entre conservadores e progressistas, reflete divergências e alinhamentos políticos mais amplos, com o «mundo que se move».

sábado, 23 de dezembro de 2017

Dos «privilégios» da função pública face ao emprego no privado

No contexto da discussão do OE de 2018 e do descongelamento das carreiras da administração pública, o setor mais sacrificado pelo «ajustamento», ressurgiu o discurso sobre os privilégios dos funcionários públicos face aos do privado. A propósito dos professores, por exemplo, Lobo Xavier, referiu-se à existência de «dois sistemas»: o sistema «onde as pessoas podem fazer greve, fechar as escolas e pedir que o decurso do tempo lhes acrescente vencimentos» e o das «pessoas que sofrem desemprego (...) e que só progridem por mérito». Na mesma linha, Marques Mendes considerou que «para o país ligado ao Estado, parece que a austeridade acabou», ao contrário do «outro país, o do setor privado, dos trabalhadores por contra de outrem, dos trabalhadores independentes», que não viam «essa melhoria».


Um primeiro equívoco tem que ver, como mostra o gráfico, com a evolução do mercado de trabalho nos últimos anos. Ao contrário do que Marques Mendes supõe (ou prefere pensar), o setor público encolheu bastante mais que o privado. No período mais pesado do «ajustamento» (2011 a 2013, em valores homólogos para o 4º trimestre), o emprego na administração pública caiu -7,3%, bem acima da redução registada no privado (-3,8%). O mesmo sucede nos dois anos seguintes de vigência do anterior Governo, isto é, entre 2013 e 2015: enquanto o emprego privado regista já uma recuperação de +2,9%, o emprego público permanece em queda (-2,3%). E se analisarmos a variação homóloga para a média dos três primeiros trimestres, entre 2015 e 2017, a recuperação do emprego é mais significativa no privado (+5,5%) que no público (+1,9%). Não por acaso, aliás, a percentagem de emprego público no total da população empregada passa de 18,5% em 2012 para 16,4% em 2017.


Um segundo mito sobre os «privilégios da função pública» tem que ver com a ideia de que no privado se verificam menos progressões e promoções que na administração pública. Ora, um estudo recente do INE sobre empresas privadas mostra que, em 2016, 56% promoveram trabalhadores sem funções de gestão e que 45% das empresas atribuíram prémios de desempenho (metade a mais de 80% dos trabalhadores com funções de gestão e também metade a mais de 60% dos trabalhadores sem funções de gestão). Isto num ano em que as progressões da função pública e a materialização dos resultados das avaliações de desempenho continuavam congeladas. Tratando-se de um inquérito inédito, não sabemos o que terá acontecido no setor privado em anos anteriores, mas não é despropositado considerar que se tenham registado valores idênticos (pelo menos em 2015).


As diferenças salariais são uma terceira ideia de senso comum sobre o alegado desfavorecimento do setor privado face ao público. Nesses termos, os trabalhadores do Estado, tendo melhores salários (e sendo esses salários pagos por todos os contribuintes), sairiam injustamente beneficiados («vivendo à custa do privado», para usar a linguagem da mesa de café ou daqueles programas em que o Camilo Lourenço participa, sempre sem contraditório). Sabemos, porém, que os patamares salariais em Portugal refletem, em ampla medida, os diferentes níveis de qualificação escolar. Em 2015, por exemplo, a remuneração média de um trabalhador com o ensino superior era muito próxima dos 2 mil euros, sendo a de um trabalhador com o ensino secundário quase metade e a de um trabalhador com o ensino básico inferior a metade. Ora, considerando estes valores, e comparando a distribuição das qualificações no público e no privado (gráfico aqui em cima), percebe-se melhor a razão de ser das ditas «diferenças salariais».

Não se pense contudo que estes dados devem servir para colocar os trabalhadores do setor privado contra os do público (ou vice-versa). Essa é a lógica da direita que nos governou e que está hoje na oposição. E quanto a ela, não deixem de ler o recente artigo de Pacheco Pereira, sobre «o amor da direita radical pelos trabalhadores do setor privado». Perceberão melhor porque é que a ideia é sempre a de «puxar para baixo» (aproximando os padrões laborais do emprego público aos do privado), e porque é que esta direita - que não é social-democrata nem democrata-cristã - se opõe sempre, todos os anos, à subida do salário mínimo nacional.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

O problema não é a dívida pública, é a dívida externa


O euro conduziu ao enorme endividamento externo privado de Portugal, em percentagem do PIB, um dos maiores da UE. E agora?


Se o governo conseguir relançar a economia de forma continuada através da procura interna, o único caminho possível no imediato porque as exportações dependem sobretudo de terceiros, e também porque não podem todos crescer pelas exportações, então regressam os défices comerciais externos (as importações aceleram enquanto as exportações não alteram a tendência) e, portanto, a dívida externa volta a crescer. A sangria dos rendimentos associados a essa dívida permanecerá.

Portanto, só uma subida dos preços dos bens susceptíveis de ser importados dá condições para que seja possível relançar a industrialização do país. Condição necessária, claro, mas não suficiente. Isto é, sem desvalorizações e sem política industrial (proibida pela UE por violar as regras da concorrência) não há solução duradoura para o maior problema de política económica que temos de enfrentar. Usar os impostos para penalizar as importações supérfluas é apenas um triste remedeio, ainda mais triste se tal significar que já nos resignámos ao destino de país que abdicou dos instrumentos da política económica de desenvolvimento a troco de dinheiro fácil, de muito dinheiro fácil.

E quem pensa que só com esse dinheiro comunitário poderíamos ter feito as grandes infraestruturas do país não sabe o que é um país com moeda soberana. Os governos da altura não sabiam e os seus economistas também não. Aliás, ainda hoje não sabem. Vejam o vídeo porque trata disto e da forma de sair disto.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Ecos do passado

Numa altura em que José António Vieira da Silva era vice-presidente da assembleia geral da IPSS Raríssimas, o ministro da Solidariedade do CDS - partido que protagonizou anteontem o ataque mais violento no Parlamento ao actual ministro, acusando-o de favorecer a instituição - Pedro Mota Soares, aproveitou uma visita à mesma IPSS para anunciar um reforço de 50 milhões de euros para a rede de instituições sociais.

A foto é do Mário Cruz da Lusa, mas pu-la em pequeno porque não quero ser acusado de estar a piratear uma foto, ainda por cima num assunto que não merece. Tudo pode ser encontrado no Observador, aqui.

Após a reportagem da TVI que demonificou a presidente da instituição e apontou as luzes sobre o ministro, a direita começou por usar a utilização do cargo social detido por Vieira da Silva de 2013 a 2015 como uma prova de ligação entre a instituição e o político. Depois, usou a cronologia das denúncias de irregularidades - nunca as especificando - para mostrar que o Ministério actuou tarde ou sem eficácia, deixando no ar se não teria sido por causa dessa ligação, dando gás à denúncia de favorecimento. Ora, as ligações são possíveis de traçar a partir de outras imagens. Esta é a de Pedro Mota Soares - como há outras já a correr na internet - que, na sua visita à IPSS, poderia ter visto na instituição o BMW da presidente e nada fez. Aliás, o Ministério de Pedro Mota Soares foi ao encontro das pretensões da IPSS no alargamento do número de camas. Haverá uma ligação? Haverá um favorecimento?

Fazer política assim é fácil quando não se têm ideias para conseguir a convergência do rendimento nacional com o comunitário. Aliás, tinha-se. Foi durante o mandato 2011-15 e deu o que deu. Mais de 1,5 milhões de desempregados e inactivos desencorajados, de uma emigração histórica.

Tanto caminho por fazer

Fonte: AMECO

Não é possível discutir devidamente a economia política da crise e da retoma em Portugal sem ter em conta a questão da repartição funcional do rendimento. Entre o início do século e 2015, e em especial nos anos de chumbo do governo da direita, a parte dos salários no rendimento nacional caiu de forma muito significativa, o que quer dizer que a par da contracção da economia como um todo ocorrida nos últimos anos, teve lugar uma enorme transferência dos rendimentos do trabalho para os rendimentos do capital.

Esta redução da parte das remunerações do trabalho no rendimento deveu-se a vários factores. O elevado desemprego decorrente da crise – e da resposta política à crise – foi um deles, na medida em que aumentou a pressão sobre os trabalhadores para aceitarem cortes salariais e sobre os desempregados à procura de emprego para aceitarem salários mais baixos. Outros incluíram as medidas adoptadas no sentido da extensão do tempo de trabalho, os efeitos directos e indirectos dos cortes e congelamentos na função pública ou o congelamento do salário mínimo. E outros ainda passaram pelas alterações da legislação laboral no sentido do aumento da vulnerabilidade e atomização dos trabalhadores na sua relação com as entidades empregadoras, aliás com uma eficácia e rapidez tremendas no que diz respeito ao desmantelamento da contratação colectiva e à facilitação dos despedimentos.

A solução governativa saída das eleições de Outubro de 2015 permitiu, felizmente e finalmente, alterar o rumo político e reverter muitas das nefastas medidas introduzidas nos anos anteriores, o que não só teve consequências muito positivas ao nível do desempenho macroeconómico agregado como permitiu deter o acelerado declínio da parte das remunerações do trabalho no rendimento. Mas como é possível ver no gráfico que acompanha este post, ainda mais não fizeram de que começar a inverter timidamente esse declínio. É ainda muito o caminho que falta fazer para repor uma situação próxima do equilíbrio que existia há apenas alguns anos.

Isto sugere que a questão da legislação laboral, aquela em que este governo ainda não começou a corrigir o que foi feito nos últimos anos, é mesmo a questão-chave: não para a evolução do emprego e desemprego, que depende fundamentalmente da evolução da procura e não de outra coisa, mas para a determinação da repartição do rendimento – aliás tal como confirmado ainda ontem pelos representantes patronais, ao elegerem o congelamento da legislação laboral nos seus termos actuais como contrapartida para avalizarem o aumento do salário mínimo para 580€. É de saudar a indisponibilidade do governo para aceder a esta pretensão. Agora falta usar a margem de acção política sensatamente preservada. Será esta a prova dos nove para avaliar até que ponto este é um governo verdadeiramente de esquerda.

Badboys


Na audição parlamentar do ministro Vieira da Silva sobre o caso da IPSS Raríssimas, o CDS protagonizou um episódio próprio de um grupo liceal de meninos-bem (1h31). Portou-se de tal forma que foi o próprio ministro a deixar no ar o que poderia ter sido interpretado como "empolar este caso pode ter consequências graves para o terceiro sector", um sector de quem o CDS se diz protector...  

Aquele que supostamente deveria ter sido - pelo menos a julgar pela pressão mediática na semana anterior - o momento decisivo contra o governo, tornou-se num desbaratamento de forças em duas horas: o ministro do Trabalho entrou - como ele próprio admitiu - sensibilizado pela sua ligação institucional à IPSS e saiu reforçado como um ministro adulto, consciente dos seus deveres, e leal ao Estado.

Para quem não viu a sessão, o PSD - através de um dos poucos deputados que não detém qualquer cargo social (Clara Marques Mendes) - acusou o ministtro de actuar tardiamente, depois de tantas denúncias sobre "irregularidades".

O CDS -através de um deputado que não detém qualquer cargo social (António Carlos Monteiro) - fez o número do dia: foi mostrando, um a um, os diversos ofícios de denúncia do tesoureiro da IPSS (igualmente na mão da TVI), para concluir que o ministro actuou mais rapidamente após a reportagem da TVI do que com as denúncias do tesoureiro. Poderia ter sido eficaz, mas foi infantil. A intervenção da secretária de Estado da Segurança Social (2h41) colocou em perspectiva o que se passara: as denúncias tinham sido lacónicas, genéricas, formais, e todas tinham sido remetidas para a fiscalização dos serviços, que abrira uma investigação em Julho de 2017. As denúncias de gestão danosa tinham sido remetidas para o Ministério Público, com prevalência legal sobre outras investigações sectorais.

Segundo ataque do CDS: o ministro que assinou um protocolo em nome do Estado em que a IPSS se afirmava uma fundação, que não o era, e que acabou por nunca o ser, porque os serviços tutelados pelo ministro o negaram. Vieira da Silva negou ter assinado o protocolo, prometeu remeter cópia. Frisou a diferença entre a intenção política de se criar uma instituição fundacional e a determinação se teria condições para tal (revelando que o ministro estaria a favor da criação da fundação). E aproveitou a discrepância para dizer que, afinal, os serviços teriam ido contra o ministro, o que mostrava não ter havido favorecimento!

No final, o que é que restou? A jornalista Ana Leal - que se mostrou em plena sintonia argumentativa com o CDS - sublinhou-o a seguir à sessão: 1) Uma relação entre o ministro e a presidente da IPSS a ponto de a ter chamado ao seu gabinete; 2) o facto de a investigação dos serviços tutelados pelo ministro não ter ainda resultado em nada, o que deveria forçar a que rolassem cabeças. Já não a do ministro, mas a dos seus subordinados. Risível!  

Na verdade, houve questões que o ministro deixou no ar:

1)"Eu estarei aqui, senhores deputados, para vos garantir que DESTA VEZ não haverá nenhum relatório da inspecção que fique por homologar"(2h58). Que relatório a que instituição terá ficado por homologar? E por que ministro?

2) E outra mais importante que ficou por responder, por duas vezes - a perguntas do Bloco e do PCP e que talvez tenha a ver com a demora verificada nos serviços da Segurança Social - foi a de saber quantas pessoas estão nos serviços do Ministério que fazem inspecção. Por que foi que o ministro não o disse, por duas vezes?

Recordo-me, em 2001, de ter entrevistado o então secretário de Estado da Segurança Social Simões de Almeida e de lhe ter feito a mesma pergunta. Ele olhou para mim e disse-me que se recusava a responder-me. Porquê? Porque se respondesse, daria informação às diversas entidades de que a inspecção da Segurança Social era completamente ineficaz!

Mistério.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Combater (algum) consumismo faz bem à economia

Há quem pense que o consumismo é bom para o crescimento económico e a criação de emprego. Segundo este raciocínio, se as pessoas consumirem mais as empresas investem mais, criando emprego e obtendo lucros, que servem por sua vez para gerar mais consumo e mais investimento. Em termos genéricos faz sentido pensar assim. No entanto, as economias não são todas iguais e os produtos de consumo também não – o que faz toda a diferença.

Isto não é novidade nenhuma, mas a actualização recentemente feita pelo INE dos dados sobre conteúdos importados das várias componentes da procura agregada permitem ilustrar bem o que está em causa (a tabela anexa foi retirada do Boletim de Inverno do Banco de Portugal).

No que respeita ao consumo privado (feito pelo conjunto dos indivíduos e famílias portuguesas), é clara a diferença entre bens duradouros e não-duradouros. Cerca de metade dos primeiros – onde se incluem automóveis, produtos electrónicos, electrodomésticos, etc. – é produzida fora do país. Isto significa que o aumento do seu consumo tem efeitos moderados na actividade económica e no emprego em Portugal. Por contraste, só 1/5 dos bens não-duradouros consumidos vêm do exterior.

As diferenças ainda são mais marcadas quando se trata de investimento. Quando as empresas compram máquinas, equipamentos e material de transporte (incluindo os “automóveis da empresa”), quase ¾ do que gastam vai para fora do país, por envolver bens importados. Quando se trata de construção, só 1/6 é importado.

O que muita gente não nota é que também as exportações têm uma forte componente de importações. Isto é especialmente verdade quando se trata da exportação de bens: por exemplo, grande parte do que a Autoeuropa ou a Galp exportam (automóveis e petróleo refinado, respectivamente) tem por base produtos importados (componentes de automóvel e petróleo em bruto). A exportação de serviços (onde se inclui a prestação de serviços de transporte, alojamento e restauração a turistas que visitam Portugal) tem uma componente importada muito menor.

Já o consumo público – determinado essencialmente pelos gastos do Estado nos serviços públicos de saúde, educação e protecção social – tem uma componente de importações diminuta.

Estes dados sobre o conteúdo importado do consumo, do investimento e das exportações são indispensáveis para pensar a política económica de um país como Portugal, que tem uma tendência histórica para défices externos e uma dívida externa acumulada que é das maiores do mundo (e que é uma fonte permanente de instabilidade).

Há algumas mensagens que importa reter daqui:

1) Aumentar muito as exportações não deve ser um fim em si mesmo, pois não significa necessariamente reduzir muito a dívida externa, principalmente quando se trata da exportação de bens.

2) O estímulo ao investimento em capacidade produtiva deve ser altamente selectivo - e, desejavelmente, acompanhado de um maior esforço de desenvolvimento de capacidade tecnológica endógena.

3) A despesa social do Estado não só contribui para aumentar a equidade e o bem-estar da população (e, a longo prazo, para aumentar a produtividade), como tem um impacto directo reduzido no agravamento da dívida externa (ao contrário que vários tipos de consumo privado).

4) O consumo privado contribui tanto mais para a actividade económica quanto menos se basear nalguns dos produtos que são hoje vistos como símbolos de estatuto social. No dia em que formos consumistas não tanto em automóveis, smartphones e festivais de música, mas na utilização intensiva de transportes públicos, na compra de bens alimentares de produção local, no investimento em educação e formação, em visitas a monumentos históricos e áreas protegidas nacionais, ou em idas ao teatro e outros espectáculos produzidos por cá, aí sim poderemos dizer que o consumismo faz bem à economia.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Pecados pouco originais

Desde a passada 2ª feira, desde a conferência de imprensa da equipa política do Ministério do Trabalho sobre o caso Raríssimas, que o ministro Vieira da Silva ficou sob os holofotes.

O facto de ter sido vice-presidente da assembleia geral de 2013 a 2015 que aprovou as contas da instituição, colocou-o numa posição de fragilidade.

Apesar de ter afirmado que, antes de 2015, assumiu "a responsabilidade na instituição, em cargo não executivo, com um sentido de intervenção cívica"; apesar de ter dito que, entre 2013 e 2015 nunca tivera "nenhuma denúncia ou indicação ou facto que me tivesse colocado a mais pequena dúvida"; apesar de ter repetido que, enquanto ministro, nunca tomou conhecimento de factos ou denúncias, e que as denúncias feitas tinham sido endereçadas e tratadas pelo Instituto da Segurança Social que já desencadeara uma inspecção a 31/7/2017, que foi acelerada quando o caso se tornou público; apesar de ter remetido para o Ministério Público a queixa feita sobre desvio de dinheiros na delegação norte da IPSS; apesar de tudo isso, a demora na inspecção iniciada e sem resultados aparentes, sem que o denunciante - o tesoureiro - tivesse sido ouvido (diz a TVI), deixou - a julgar pelas perguntas feitas pelos jornalistas - a sensação não explicada nem clarificada pelos jornalistas de favorecimento, conivência ou apenas de extremo incómodo a ponto de lhe perguntarem se manteria "condições para ser ministro".

Claro que o ataque da direita a Vieira da Silva não é inocente: cavalga a onda e fere um elemento chave do Governo que é a cara da política social do Governo que está a desfazer a do governo anterior, tão cara à direita (Leia-se o post anterior de Nuno Serra). Até o presidente da República participa, mesmo quando reage dizendo que é prematuro suscitar a questão.

Mas o ministro está sob os holofotes sob nenhuma acusação em concreto. E tudo em geral. A razão nunca é dita, mas está subliminarmente traçada. Quem aceita um cargo social numa instituição onde espera não passar muito tempo, a ponto de não estar a par do que lá se passa, empresta a sua foto para qualquer coisa. Pode ser benignamente para mostrar o interesse político em geral por causas difíceis, mas a sua imagem pode ser usada para abrir "portas", mesmo que o dono da imagem não se aperceba disso - por inocência? - ou não queira saber se isso aconteceu ou espera que a natureza das "portas" seja a melhor. Ou seja, é potencialmente culpado mesmo que não o seja. E às vezes as coisas não correm bem.

Acontece que Vieira da Silva não está nem esteve só nesse pecado, que é aliás, um pecado muito pouco original. Mais de metade do Parlamento detém cargos sociais em diversos tipos de entidades. Faz parte da prática generalizada de entrosamento político usada sobretudo pelos dois partidos com mais deputados e sobretudo à direita. Não é, pois, por acaso que o PSD, por exemplo, tenha escolhido uma deputada para criticar publicamente Vieira da Silva, que não ocupa qualquer cargo social em instituições (Clara Marques Mendes). Já o CDS é mais difícil porque quase todos têm e dão mostras de estar um pouco incomodados no processo de intenções.

A partir da página do parlamento, é pois possível verificar que as listas de entidades em que os deputados participam - sabe-se lá com que controlo sobre as suas contas - são as mais variadas. E de diferentes graus de potencial cumplicidade. Vão desde empresas privadas (algumas relacionadas com sectores importantes, como águas, construção ou financeiro), passando por IPSS e Misercórdias, Fundações, clubes de futebol ou de outras modalidades, associações profissionais, locais, culturais. Para uma vistoria mais completa, embora se desconhecendo em cada caso o grau de envolvimento pessoal do deputado, queira inspeccionar-se a lista seguinte:

PSD

Álvaro Batista
Amadeu Albergaria
António Costa da Silva
António Leitão Amaro
António Lima Costa
António Topa 
Bruno Vitorino 
Carla Barros
Carlos Costa Neves
Carlos Peixoto
Cristóvão Crespo
Cristóvão Norte
Duarte Marques
Duarte Pacheco
Emídio Guerreiro 
Emília Santos
Fátima Ramos
Feliciano Barreiras Duarte
Fernando Virgílio Macedo
Firmino Pereira
Inês Domingos
Isaura Pedro
Joel Sá
Jorge Paulo Oliveira 
José de Matos Corrreia
José de Matos Rosa
José Silvano
Laura Monteiro Magalhães
Luís Campos Ferreira
Luís Leite Ramos
Luís Montenegro
Luís Vales
Manuel Frexes
Margarida Balseiro Lopes
Margarida Mano
Maria das Mercês Borges
Maria Luís Albuquerque
Manuela Tender
Maurício Marques
Nilza de Sena
Nuno Serra
Paulo Rios de Oliveira
Pedro do Ó Ramos
Pedro Pimpão
Pedro Pinto
Pedro Roque Oliveira
Ricardo Baptista Leite
Sandra Pereira
Sara Madruga da Costa
Sérgio Azevedo 
Susana Lamas
Teresa Leal Coelho
Ulisses Pereira

CDS

domingo, 17 de dezembro de 2017

O Estado e o escrutínio do Terceiro Setor

1. A direita que hoje tenta circunscrever o caso da Raríssimas a uma questão de «falhas do Estado» é a mesma direita que, nos anos do «ajustamento», reforçou significativamente o financiamento do Terceiro Setor, quando ao mesmo tempo cortava a eito nas prestações sociais e nos serviços públicos de proteção social. Isto é, a mesma direita que desqualificou e degradou as respostas (como sucedeu na substituição do RSI pelas cantinas sociais), que diminuiu os mecanismos de regulação (dispensando por exemplo a validação de contas por um ROC) e que reduziu a capacidade inspetiva do Estado (com os cortes, por exemplo, nos recursos humanos do Instituto de Segurança Social). Ou seja, a direita que quer que o Estado não perturbe a «autonomia» e não se intrometa nas lógicas de funcionamento próprias das IPSS (com o argumento de que estão mais próximas dos problemas e que sabem e fazem melhor) é a mesma direita que quer que o Estado as financie e esteja sempre pronto para assumir responsabilidades se as coisas correrem mal.

2. Sucede porém que se há domínio de atividade das IPSS e demais organizações do Terceiro Setor em que encontramos, apesar de tudo, um quadro de regras claro e patamares mais elevados de transparência e de escrutínio é, justamente, na esfera dos contratos que se estabelecem entre o Estado e estas entidades, tendo em vista a implementação, no terreno, de medidas de ação social. Com efeito, ao contrário do que tende a suceder com outros mecanismos de financiamento (como os donativos individuais ou de entidades coletivas), a atribuição de apoios públicos às organizações do Terceiro Setor é feita a partir de critérios de elegibilidade e de fixação de montantes de referência por utente que se aplicam a todas as entidades, anulando por conseguinte as margens de discricionariedade e possibilitando a verificação de casos de favorecimento injustificado, para além de serem deste modo criadas, à partida, condições adequadas para acompanhar a atividade e avaliar o resultado e impacto dos apoios concedidos.

3. Face aos problemas estruturais e entorses endémicos associados ao Terceiro Setor em Portugal (veja-se a este propósito o retrato muito claro traçado por Pedro Adão e Silva num programa televisivo da semana passada), e nunca sendo demais sublinhar que se trata de um universo de organizações muito heterogéneo - composto por entidades com práticas a todos os títulos exemplares e por outras em que se pode dizer impera a fraude instituída - percebe-se a tentação para encarar casos como o da Raríssimas como sendo «absolutamente excecionais» no que à gestão privada diz respeito e para, no resto, atirar de imediato e levianamente as responsabilidades para cima do Estado, que tem no nosso país as costas muito largas.

4. Compreende-se que casos como o da Raríssimas, entre outros, belisquem a imagem de um incensado Terceiro Setor, sobre o qual recai frequentemente, por diversas e válidas razões, uma certa ideia de benevolência, despojamento, altruísmo e generosidade. Mas se se quer que os problemas estruturais de muitas destas organizações se resolvam e as suas práticas melhorem substancialmente, superando uma espécie de pré-modernidade que as carateriza, não basta apontar o dedo ao Estado e a «falhas na regulação». De facto, se há aspetos a melhorar em termos de escrutínio público, na esfera da contratualização com estas entidades (reforçando por exemplo os princípios de equidade no acesso e fomentado a generalização de modelos de intervenção mais emancipatórios), o essencial estará por fazer na esfera da gestão privada destas organizações (incrementando por exemplo os níveis de democraticidade, transparência e participação). Isto é, na esfera da dita «sociedade civil».

sábado, 16 de dezembro de 2017

Note-se

Sinceramente, não compreendo como é que se pode andar por aí a saudar as decisões das agências de notação, mesmo que seja por oportunismo. O movimento recente de melhoria da notação da República dá jeito, eu bem sei. Note-se, no entanto, que quem não tem memória e quem aceita as estruturas financeiras por reformar, até pode ganhar alguma coisa no curto prazo, mas perde também sempre qualquer coisa no curto prazo e tudo no médio e no longo.

Note-se que estamos a falar de instituições que tiveram responsabilidades pela crise financeira, iniciada em 2007-2008, validando todo o lixo financeiro que a ganância sem trelas regulatórias relevantes conseguiu inventar até aí. Esta crise tramsmutou-se na zona euro em crise da dívida que não era, e que continua a não ser, soberana, dado que está denominada em moeda estrangeira. Neste caso, as agências validaram toda a especulação contra os elos periféricos mais fracos.

Enfim, é importante relembrar o movimento de opinião e de contestação que por cá se gerou em torno da acção destas instituições, cujo poder é, em larga medida, efeito do lugar que os poderes públicos lhes atribuem. Entretanto, nada mudou, note-se, porque a UE está feita para aprofundar e não para mudar a lógica neoliberal. É claro que para Estados monetariamente soberanos os danos que estes oligopólios norte-americanos podem inflingir são menores. Na realidade, estas anti-democráticas agências dançam ao ritmo do pós-democrático BCE, o soberano da zona. Os povos dos Estados, claro, não são tidos nem achados.

É por estas e por muitas outras que falar de uma próxima crise financeira não é nada descabelado. Afinal de contas é uma previsão que assenta num padrão recorrente desde que a liberalização financeira se generalizou nos anos oitenta.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

A imaginação do centro no poder


A chamada eleição de Mário Centeno para a chamada Presidência do chamado Eurogrupo revela a actualidade de um diagnóstico feito por Boaventura de Sousa Santos na década de noventa. Nele denunciava a “imaginação do centro”, ou seja, o hábito elitista de se pensar em Portugal como se fosse globalmente um país rico, ocultando as realidades de uma sociedade semiperiférica e as suas necessidades específicas de política. Desde então cresceu o fosso entre essa imaginação e a realidade económica de uma sociedade globalmente em processo de periferização. Esse crescimento deveu-se também às opções de política inspiradas por essa imaginação, incluindo a catastrófica adesão ao Euro, privando-nos de instrumentos necessários para o desenvolvimento nos nossos democráticos termos. O que explica então que essa imaginação, da qual não está ausente um complexo de inferioridade em relação aos países ricos e a tradicional superioridade em relação aos concidadãos populares, continue a ter influência?

O resto do artigo pode ser lido no Público.

Este é o meu último artigo no âmbito da parceria entre o Centro de Estudos Sociais e o Público. Desde Março, cinco investigadores alternaram semanalmente, à sexta-feira, na secção de opinião do jornal: Conceição Gomes, Hermes Costa, José Manuel Mendes, Marta Araújo e eu. No próximo ano será a vez de outros investigadores do CES escreverem no âmbito desta parceria. Pela minha parte, gostei da experiência. Em nove artigos, transportei para o Público temas sobre os quais vou escrevendo por aqui e por ali: das origens europeias da pós-verdade e da crise da social-democracia, passando pela economia política de quem trabalha ou pela defesa de um populismo que pode ser uma saudável reacção democrática ao neoliberalismo.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Distinguir

«A ver se nos entendendemos: toda a gente que conhecia a Raríssimas tinha a melhor opinião sobre o seu trabalho. As empresas que generosamente a patrocinavam (mais do que o Estado) e que estão a retirar os seus apoios, a anterior primeira-dama que lá levou a rainha de Espanha, Marcelo Rebelo de Sousa que lá foi, Vieira da Silva que aceitou o lugar de vice-presidente da Assembleia Geral, o deputado do PSD que tinha aceite integrar a vice-presidência da próxima direção, os serviços que decidiriam o financiamento (que corresponde a 25% dos recursos da Raríssimas, abaixo da média das IPSS, que andará pelos 50%). A não ser que se prove má-fé na ajuda que deram, a caça a quem ajudou uma IPSS que trabalha numa área tão difícil é absurda. Até porque a boa opinião que todos tinham do trabalho junto dos utentes dos serviços da Raríssimas não era injustificada. A instituição foi premiada em Portugal e no estrangeiro porque, ao que parece, faz mesmo um bom trabalho naquela área. Preocupa-me, aliás, a situação em que se encontra agora, pondo em risco as pessoas que dependem dela. Isso, por mais estranho que pareça, não é incompatível com uma presidente arrivista, abusadora e que maltrata o dinheiro que não é seu. As coisas na vida são mais contraditórias do que este tipo de polémicas faz pensar. O que revela muito sobre a fragilidade da nossa sociedade civil é sermos incapazes de fazer qualquer debate - incluíndo o do funcionamento do terceiro sector - sem que ele se transforme, mesmo quando isso é manifestamente forçado, num mero confronto partidário. Mas é natural. A maioria dos portugueses sabe o que são os partidos mas nunca meteu os pés numa associação. E essa anemia da nossa sociedade civil ajuda a explicar muito do que deveríamos estar discutir com este caso.»

Daniel Oliveira (facebook)

Economia tuk-tuk


O perfil com que a economia portuguesa saiu da crise é menos produtivo? A economia portuguesa no pós-crise assenta sobretudo no crescimento de emprego nos serviços (comércio, alojamento, restauração e outros serviços de apoio) que são tradicionalmente sectores com pouco potencial de crescimento da produtividade dada a difícil incorporação de inovação tecnológica e organizacional por comparação com outros sectores, como a indústria.

Isso torna a retoma da economia portuguesa potencialmente menos sustentável? A retoma tem-se baseado num significativo aumento do emprego em Portugal, só possível devido às elevadas taxas de desemprego existentes, sendo a única forma de compatibilizar crescimento com baixo investimento. A retoma parece estar apoiada em sectores que necessitam de pouco investimento e cujo crescimento é sobretudo extensivo e muito dependente de factores conjunturais, seja pelo aumento da procura interna via consumo, seja pela via aumento da procura externa, nomeadamente do turismo. Estes motores podem desaparecer rapidamente por motivos de conjuntura. O nosso trabalho mostra, por sua vez, como a reafectação de recursos na economia portuguesa entre diferentes sectores têm tido um impacto negativo na evolução da produtividade. 

Que sectores menos produtivos se estão a destacar? Parece-nos evidente que o comércio, alojamento, restauração e serviços de apoio empresarial são os que maior contributo têm dado ao crescimento. A construção tem vindo também a recuperar, embora com algum desfasamento temporal e, provavelmente, guiada pelos anteriores. A boa novidade é alguma recuperação da indústria, onde cresce o emprego e a produtividade. 

Que políticas públicas deveriam ser levadas a cabo para corrigir essa transferência de recursos para sectores menos produtivos? Toda a política económica é susceptível de fazer essa correcção: da monetária (que sectores beneficiam mais do acesso ao crédito) à orçamental (para onde é dirigido o investimento público), passando pela fiscal (como são taxados os diferentes sectores; por exemplo, o IVA da restauração). É certo que muitos destes instrumentos estão vedados ao Estado português devido às imposições europeias, mas isso não deve ser razão para evitar um debate político sobre a direcção desejável da economia.

Perguntas de Nuno Aguiar e respostas de Nuno Teles no Negócios de segunda-feira. O último barómetro das crises sobre a dupla face da recuperação, ou seja, o aumento do emprego mal pago e a estagnação da produtividade, realizado pelo Observatório sobre crises e alternativas do CES, foi o pretexto para este e outros interessantes trabalhos no jornal, incluindo um recomendável editorial de Manuel Esteves: Não se é produtivo ao volante de um tuk-tuk. Não se é de facto. Mas isto é parte decisiva do que nos está reservado, na melhor das hipóteses, enquanto permanecermos uma periferia europeia desprovida de instrumentos de política.
 

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

20 princípios possíveis para uma Economia Política Institucionalista

Hoje estive no ISEG a convite do Colectivo Economia Plural para falar sobre Economia Política Institucionalista. Não se trata propriamente de uma escola de pensamento na Ciência Económica. Trata-se antes de uma forma de olhar para as economias e para o modo de construir o conhecimento económico que se pode reclamar de uma tradição antiga, que vai desde economistas políticos clássicos (como Smith e Marx), a Escola Histórica Alemã e os velhos institucionalistas americanos (como Veblen), passando por Keynes, Schumpeter, Polanyi, Myrdal, Hirschman ou Galbraith - enfim, nomes pouco ou nada falados na generalidade dos cursos de Economia, mas que têm muito a ensinar-nos sobre como as economias funcionam e como devemos analisá-las.

Os 20 princípios que proponho abaixo não são nem pretendem ser canónicos, são apenas a minha forma de sistematizar o que entendo que podem ser os elementos básicos de uma Economia Política Institucionalista.


1. A Economia enquanto ciência tem por objectivo compreender o funcionamento das economias (i.e., os processos de produção, distribuição e acumulação das condições materiais que asseguram as necessidades humanas). Vê-la apenas como a ciência que estuda a relação entre fins e recursos escassos com aplicações alternativas (como é habitual) é tomar uma pequena parte pelo todo.

2. O funcionamento das economias assenta em diferentes tipos de interacções sociais, algumas de carácter esporádico, a maioria de carácter recorrente e que obedecem a regras sociais mais ou menos implícitas. É a regularidade de comportamentos que daqui resulta que permite a construção de conhecimento sistemático sobre as economias.

3. Aos sistemas de regras que estruturam as interacções sociais damos o nome de instituições. Assim definidas, as instituições incluem as organizações (e.g., empresas, Estados, bancos, sindicatos), outras instituições formais (e.g., leis, regulamentos vários, códigos de conduta, etc.) e instituições informais (e.g., convenções sociais). Sem compreender as instituições dificilmente percebemos os comportamentos e, logo, as economias.

4. Embora uma parte relevante das interacções sociais que determinam os processos económicos assuma um carácter mercantil (ou seja, correspondem à noção de relações de procura e oferta de mercado), a maioria das interacções relevantes faz-se no seio de organizações, segundo lógicas predominantemente não-mercantis (e.g., comando hierárquico, cooperação).

5. Na maioria das transacções mercantis que ocorrem nas economias actuais pelo menos uma das partes é uma organização formal (e.g., empresas, Estados, bancos), cujos padrões de comportamento resultam de interacções complexas entre uma multiplicidade de indivíduos e grupos (não podendo por isso o comportamento das organizações ser analisado como se tratasse de comportamentos individuais).

6. Os mercados são eles próprios sistemas de regras formais e informais que estruturam as interacções sociais (e.g., quem pode participar, o que se pode trocar, quais os direitos e obrigações envolvidos, quem assegura o cumprimento das regras). Ou seja, os mercados são instituições e como tal devem ser analisados.

7. As instituições (em particular as organizações) moldam o comportamento dos indivíduos restringindo as alternativas de acção, mas não só. Também estabelecem padrões de comportamento que não requerem decisão (e.g., rotinas) e influenciam preferências, valores e expectativas individuais.

8. Um dos motivos pelos quais as organizações (e outras instituições) são tão importantes no funcionamento dos sistemas económicos consiste precisamente no facto de facilitarem as interacções, reduzindo a incerteza e poupando nos custos de decisão individuais e colectivos.

9. Nesse sentido, as instituições (formais e informais) são fontes de eficiência económica – e não meros obstáculos à interacção “livre” entre indivíduos. Na verdade, não existem interacções "livres" de influências institucionais (e.g., o "livre funcionamento dos mercados" é uma ficção) - as interacções sociais são sempre de alguma forma enquadradas por sistemas de regras formais e informais.

10. As instituições são complexas e interdependentes, pelo que a eficiência relativa das diferentes soluções institucionais varia de contexto para contexto. Ou seja, um sistema de regras que funciona muito bem num dado contexto pode ser muito pouco adequado noutros.

11. As instituições (formais e informais) afectam não apenas a eficiência dos sistemas económicos, mas também a distribuição de recursos na sociedade.

12. Em qualquer sistema económico existem indivíduos, grupos e organizações que procuram influenciar os sistemas de regras formais e informais prevalecentes (i.e., as instituições) de acordo com os seus interesses, valores e convicções.

13. Assim, qualquer sistema económico é também um sistema político, onde diferentes indivíduos e grupos com interesses, valores e convicções potencialmente divergentes disputam a capacidade de influenciar os sistemas de regras vigentes.

14. A disputa na definição das regras relevantes assume diferentes configurações, dependendo dos contextos. Nas sociedades modernas, essa disputa passa frequentemente (mas não só) pelo Estado, dado o seu papel central no estabelecimento e implementação das leis.

15. A acção do Estado afecta não apenas o funcionamento das organizações centrais dos sistemas económicos (e.g., empresas, bancos, o próprio aparelho de Estado), mas também o funcionamento dos mercados e até as normas informais (e.g., por via do exemplo).

16. Não existe um critério absoluto para avaliar as acções específicas do Estado que afectam o funcionamento dos mercados e das organizações. Não só os critérios de valor são múltiplos (e.g., eficiência, equidade, relevância, sustentabilidade, etc.), como cada um deles está sujeito a avaliações potencialmente divergentes. (Por exemplo: a avaliação da equidade tende a depender da posição social de cada indivíduo/grupo; a eficiência relativa de cada solução depende fortemente do contexto e do horizonte temporal considerado.)

17. O papel da Economia enquanto ciência é ajudar a elucidar os pressupostos e as implicações (de eficiência, redistributivas, etc.) das acções do Estado que influenciam o funcionamento das várias instituições económicas, mais do que determinar qual “a acção mais adequada” em cada caso (o que depende sempre de julgamentos de valor, que devem ser sujeitos a processos de disputa política transparentes e democráticos).

18.@s economistas não devem assumir que os seus julgamentos estão livres de critérios de valor – porque não estão. Nem mesmo quando estão em causa apenas considerações de eficiência (por exemplo, ao contrário do que muitos acreditam, os economistas não estão todos de acordo sobre a desejabilidade do suposto ideal da concorrência perfeita, que serve habitualmente de referência na análise económica convencional como situação óptima de eficiência).

19. Compreender o funcionamento das economias implica conhecer as instituições, a sua influência nos comportamentos e as suas implicações à luz de diferentes critérios de valor, mas também perceber como evoluem ao longo do tempo. Tão ou mais importante do que conhecer as forças que contribuem para o equilíbrio dos mercados é perceber as forças que geram transformações permanentes nos sistemas económicos (e que também alteram as intenções de oferta e de procura nos diferentes mercados a cada momento).

20. A transformação das instituições é determinada pela dinâmica dos processos concorrenciais (políticos e de mercado) e pelas transformações culturais e tecnológicas (que são parcialmente endógenas aos processos concorrenciais referidos). Uma Economia Política Institucionalista é pois uma abordagem abrangente ao estudo dos sistemas económicos e da sua evolução, que não dispensa o contributo de diferentes ciências sociais.



Pistas de leitura sobre o tema

Chang, Ha-Joon (2002). “Breaking the mould: an institutionalist political economy alternative to the neo‐liberal theory of the market and the state”. Cambridge Journal of Economics, 26(5), 539-559.

Hodgson, Geoffrey M. (2006), “What Are Institutions?”, Journal of Economic Issues 40(1), 1-25.

Nelson, Richard R. & Sampat, Bhaven N. (2001), “Making sense of institutions as a factor shaping economic performance”, Journal of Economic Behavior & Organization 44(1), 31-54.

A despenalização do aborto nove anos depois

Passaram nove anos desde a realização do referendo à descriminalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), nos termos em que o mesmo foi estabelecido: a pedido da mulher e até às dez semanas. Os que se opunham ao salto civilizacional que o país deu, em fevereiro de 2007, são hoje interpelados por uma realidade que deita por terra os principais argumentos que então mobilizaram. Desde logo, o número de IVG por opção da mulher não só não aumentou de forma vertiginosa, como profetizavam os defensores da criminalização, como regista uma consistente tendência de redução, atingindo-se em 2016 o valor mais baixo dos últimos nove anos (cerca de 15 mil, de acordo com a DGS). Aliás, neste período o número de IVG foi sempre inferior à média anual que se estima ter existido até 2008, a rondar os 20 mil.


Mas para lá da redução global das IVG por opção da mulher, deve ainda destacar-se um outro dado relevante: assiste-se desde 2008 a uma diminuição significativa da incidência de IVG entre jovens adolescentes (com menos de 20 anos). De facto, se até 2011 as IVG realizadas neste grupo etário eram cerca de 4 por mil, em 2016 esse valor cai para 3 por mil, refletindo portanto a quebra em valores absolutos, que ronda as -800 mil. Ou seja, passando-se de quase 2.200 IVG, em 2008, para aproximadamente 1.600, em 2016.

Outros dados a assinalar: na média do período, de 2008 a 2016, cerca de 75% das mulheres nunca tinha recorrido anteriormente, por sua opção, à interrupção voluntária da gravidez, sendo de 20% as que o tinham feito uma vez (e apenas 6% as que tinham optado pela IVG mais que uma vez). E oscila entre 94 e 97% a percentagem de mulheres que adere, posteriormente, a um método contraceptivo.

Ou seja, não só não tinha fundamento a ideia de que a descriminalização do aborto abriria a caixa de Pandora da ligeireza e da irresponsabilidade, como tudo indica que ter mantido a criminalização resultaria num maior número de IVG e numa persistência da situação de risco, nesse contexto, para a saúde (e para a própria vida) da mulher. Isto é, factos que talvez devessem suscitar uma reflexão profunda entre os que votaram «não» no referendo de 2007. Para que pelo menos se pudesse distinguir, nesse universo, quem votou «não» por estar genuinamente centrado no «valor da vida» (ainda que impondo a terceiros as suas convicções, mas que hoje certamente se congratula com a evolução registada) de quem continua a mover-se por uma sanha de pura perseguição e moralismo (e que hoje provavelmente encara, com inconfessável frustração, os resultados da mudança).

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Frequentíssimas

Já começou o trabalho de contenção de danos ideológicos que a excelente reportagem da TVI sobre a instituição Raríssimas gerou no tão incensado quanto raramente escrutinado sector das IPSS e instituições conexas (a jornalista Ana Leal já tinha exposto o capitalismo educativo engordando com os contratos de associação, com o caso do grupo GPS). Este sector deve em certa medida ser encarado como parte da quinta-coluna para a destruição, discreta e silenciosa, do Estado social, parceria público-privada a parceria público-privada em versão social.

Nesta contenção de danos tem, por exemplo, a palavra David Dinis: “o Estado não chega a todo o lado (nem deve estar em todo o lado)”. É este o programa que conduziu na área da provisão social à naturalização da engenharia opaca da separação entre provisão, particular, e financiamento, público. O Estado pode e deve estar e chegar onde é necessário, mas deve fazê-lo por via da provisão pública, numa lógica de serviço público e de correspondente emprego público. Investigue-se, de resto, a precariedade laboral no chamado terceiro sector, aparente repositório de virtudes.

A contenção de danos do que não é tantas vezes mais do que parasitagem institucionalizada passa agora por valorizar os “empreendedores sociais”, a “inovação social” e o respectivo financiamento, adivinhem, social, também à boleia de fundos de uma UE apostada em expandir este programa ideológico de esvaziamento dos Estados agora com novas roupagens. Mais uma vez a esquerda dita moderna, o PS, anda nisto, tal como andou, a par das direitas, a insuflar as IPSS pelo menos desde os anos noventa. O resultado estará à vista em breve.

E as perguntas repetem-se sob variadas formas perante as múltiplas engenharias neoliberais: como se destrói e como se reconstrói o velho e tão necessário Estado?

Nos dez anos do Ladrões de Bicicletas


Neste 2017 que se aproxima agora do fim, o Ladrões de Bicicletas cumpriu dez anos de existência. Um excelente pretexto para fazer sair o «Economia com Todos», construído com capítulos de autores do blogue. Numa das sessões de lançamento, em Coimbra, o livro foi apresentado por José Reis, com um texto cuja partilha estava em falta e que publicamos hoje aqui.

Os Universos da Economia Política Culta: A propósito do livro «Economia com Todos»

São muitos os motivos para uma boa conversa quando estamos perante um trabalho «dos autores do blogue Ladrões de Bicicletas». Mas comecemos pelo livro, que foi ele que aqui nos trouxe. Ao lê-lo pareceu-me que se revela com razoável clareza que há um conjunto de grandes universos que povoam este texto coletivo. Sugiro três, a que resolvi dar primazia. O primeiro é o do estudo e do debate sobre o capitalismo. O segundo é o universo da economia política. E o terceiro é o das grandes ideias e linhas de pensamento, pontuado pelo conhecimento de grandes pensadores, que são para aqui chamados exatamente porque são grandes, mesmo que deles se divirja.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Das metáforas que não funcionam

Rui Tavares dedica a sua crónica do Público de hoje aos "vendilhões de apocalipses". Segundo o historiador, dizer que estamos a aproximar-nos da próxima crise financeira é o mesmo que anunciar que estamos mais perto do próximo grande terramoto de Lisboa - ambas as afirmações são óbvias, mas pouco úteis.

A metáfora soa bem, mas não funciona. Primeiro porque temos mais dados sobre a primeira do que sobre o segundo (o gráfico ao lado é bem ilustrativo do ponto onde estamos na euforia das bolsas). Depois, porque sabemos o que poderia ter sido feito para evitar o último colapso (em termos gerais, regulação financeira), o que não foi feito para evitar o que vem a caminho e a luta política que continua a ter de ser feita para travar a irracionalidade da finança liberalizada.

O nexo finança-habitação

No recente Relatório de Estabilidade Financeira do Banco de Portugal (BdP) fica finalmente claro para o regulador o modelo em que assentou e continua assentar a economia portuguesa: um modelo baseado numa intrincada relação entre a finança e o imobiliário, por nós descrita num livro recente.

Se se celebra alguma recuperação da economia portuguesa e do sistema financeiro, também se identificam vulnerabilidades e riscos que advêm do elevado endividamento das empresas e famílias, que continua em níveis acima dos registados para o conjunto da União Europeia, e que ameaça a estabilidade do sistema financeiro.

Empréstimos de Empresas e Famílias em percentagem do PIB, 2016
Fonte: Eurostat

Embora reconheça que os incentivos vão em sentido contrário, o BdP limita-se a apelar ao bom senso das instituições financeiras, pedindo-lhes “que continuem a avaliar adequadamente e de forma prospetiva a capacidade de crédito dos mutuários, evitando a assunção de riscos excessivos nos novos fluxos de crédito, nomeadamente no crédito à habitação”.

A timidez daquele apelo surpreende perante a elevada exposição do sector financeiro ao mercado imobiliário, constituindo uma importante vulnerabilidade do sector bancário português, por via do elevado volume da concessão de empréstimos às famílias para compra de casa própria e às empresas dos sectores de construção e das actividades imobiliárias.

Como a crise mostrou, as dificuldades financeiras das famílias e das empresas destes sectores tiveram um impacto devastador no sector financeiro português, levando à acumulação involuntária de imóveis recebidos em dação e de unidades de participação em fundos de investimento imobiliário. Embora o sector comece agora a vender parte dos imóveis, estas transações ainda ocorrem abaixo do seu valor contabilístico e frequentemente com concessão de crédito perpetuando a sua dependência no imobiliário.

A atual especulação imobiliária é um sinal de alerta para as já conhecidas interdependências entre o imobiliário e a finança. Contudo, apesar do crescimento dos preços da habitação em 20%, em termos reais, entre 2013 e 2017, e do contraste deste com a evolução registada para a restante zona euro, 7%, o mesmo relatório de estabilidade financeira conclui que os indicadores apontam “para a ausência de sinais de sobrevalorização no mercado imobiliário residencial”, com a reserva de que tal resultado “não permite afastar a possibilidade de existirem apreciações excessivas em determinadas áreas geográficas, nomeadamente em grandes centros urbanos”.

É prudente notar que a análise de dados agregados pode esconder consideráveis variações. Se assim é para indicadores macroeconómicos, maior prudência se recomenda quando se analisa o sector do imobiliário. O mercado imobiliário residencial tem uma dimensão intrinsecamente geográfica que se perde na escala nacional, regional ou até municipal. Quer isto dizer que as “apreciações excessivas em determinadas áreas” são sinais inequívocos de sobrevalorização no mercado imobiliário residencial, com impactos já conhecidos nas vidas de muitos residentes e localidades. Observe-se a variação do valor das vendas (por metro quadrado) apenas no último ano e em Lisboa. Embora o preço tenha crescido cerca de 15% no município, este valor mediano acomoda variações que oscilam entre 3,4% e os 46,1%.

Taxa de variação homóloga do valor mediano das vendas por m2 
Lisboa e freguesias, 2º Trimestre 2017
Fonte: INE

Lidar com o nexo finança-habitação da economia portuguesa exige superar a complacência do BdP. Exige muito mais que o reforço da avaliação, por parte de instituições de crédito, da capacidade creditícia dos mutuários particulares. Exige políticas públicas de regulação robusta do sector bancário e exige políticas que desfinanceirizem o acesso à habitação por parte da população portuguesa, sobretudo nos meios urbanos mais expostos a este nexo. Exige intervir na provisão pública de habitação com rendas controladas. Esta última área é um dos principais desafios para a nova e bem intencionada Secretária de Estado da Habitação.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Do Consenso de Bruxelas


Tenham muita paciência e muita fé em Merkron, num alinhamento do bloco central europeu para realizar reformas que de alguma forma aproximem as economias de um Euro de resto já muito mudado da agilidade de referência das economias anglo-saxónicas nos ajustamentos.

Este é o meu breve resumo da algo arrastada, mas instrutiva, entrevista que Teresa de Sousa fez ontem no Público a Mário Centeno; na realidade, não foi bem uma entrevista, antes uma amena conversa entre dois euro-liberais, sem questões perturbadoras (já basta o espectro de populismos tão necessários...).

Creio que a conversa confirma a hipótese em que temos insistido: Centeno não terá grandes adaptações a fazer para ser um executor das políticas de sempre do Eurogrupo e do resto da tralha institucional do Consenso de Bruxelas, de resto, e esta é a verdadeira mudança no Euro, cada vez mais pesada e condicionadora da soberania democrática.

Desatento, na melhor das hipóteses

O suplemento de economia do Expresso deste fim-de-semana inclui uma entrevista com o economista Ricardo Reis acerca da economia portuguesa. O título, chamado à primeira página do suplemento, anuncia o veredicto: “Este ano não é óptimo em termos de crescimento. É medíocre, na melhor das hipóteses”. Fiquei intrigado: que critério seria este à luz do qual um crescimento real de 2,6% é considerado medíocre, na melhor das hipóteses? A experiência recente não seria certamente, já que este é o ano de mais forte crescimento desde 2000.

Fui ver. Explica então Ricardo Reis, logo no início da entrevista, que “Portugal está a crescer mais do que o esperado, mas continua a crescer abaixo da União Europeia”. Bem, isto seria um critério razoável, mas há um problema. É que embora a comparação seja relevante, a afirmação está errada: segundo as previsões de outono da Comissão, o crescimento económico na UE em 2017 será de 2,3% e na zona euro será de 2,2%.

Logo a seguir, porém, o entrevistado parece emendar a mão e introduz uma subtileza: “O resto da Europa está a crescer ainda mais acima do que tinham sido as previsões iniciais. Como tal, o desempenho económico não é particularmente bom”. Ou seja, o desempenho da economia portuguesa não é julgado positiva ou negativamente consoante seja melhor ou pior em termos absolutos; consoante seja melhor ou pior do que o passado recente; ou consoante seja melhor ou pior face à média europeia. Não: a bitola considerada apropriada é até que ponto o desempenho excedeu as previsões iniciais. Um bocado forçado, convenhamos.

Mas logo a seguir surge nova afirmação surpreendente: “As boas notícias são que este crescimento não está a vir do lado do estímulo da procura, mas si do turismo e das exportações”. Foi nesta altura que pensei que devemos estar a olhar para países diferentes. É que se é certo que as exportações, que incluem o turismo, têm tido um crescimento notável, as Contas Nacionais mostram bem que os contributos da procura interna e da procura externa líquida para o crescimento do PIB nos últimos trimestres não são de todo como refere o entrevistado:

(Fonte: INE)
Percebo que Ricardo Reis discorde do rumo do nosso país e que defenda políticas diferentes. Eu próprio acho que há aspectos que devem ser criticados e que podem ser melhorados. Mas recomenda-se um pouco mais de atenção aos factos. A não ser que o problema não esteja tanto na atenção aos factos mas antes, como afirma o próprio entrevistado a certa altura, no facto das coisas que os economistas afirmam serem muitas vezes “mais ideológicas do que científicas”.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Sem soberania monetária não há desenvolvimento


Uma intervenção de 2014 que continua actual.

Tendo em conta o tema da intervenção, aproveito para responder, sucintamente, às perguntas mais frequentes sobre a saída do euro, uma súmula que tenho vindo a divulgar no Facebook:

Dúvidas sobre a saída do euro
a) Contratos entre residentes
Todos os contratos realizados ao abrigo da legislação nacional são convertidos na nova moeda. Isto inclui depósitos bancários e contratos de crédito realizados pelos privados junto dos bancos residentes em Portugal.
b) Dívida pública emitida pelo Estado
Os títulos de dívida são convertidos na nova moeda caso tenham sido emitidos ao abrigo da legislação nacional (Lex Monetae - ver no Financial Times um artigo de Gilles Thieffry sobre a Grécia). O Banco de Portugal é retirado do sistema do euro por decreto do governo.
c) Dívida privada externa
Deveria manter-se em euros para não prejudicar as relações comerciais. O acréscimo nas dívidas resultante da desvalorização deve ser tratado segundo o tipo de empresa (Petrogral, EDP e outras, suportam o encargo porque também têm activos no estrangeiro que se valorizam; as médias empresas são apoiadas pelo Estado nesse diferencial).
d) Salários de funcionários e investimento público
Estão garantidos porque o défice orçamental é financiado pela emissão na nova moeda de títulos de dívida que os bancos estão interessados em comprar, ou por emissão monetária sem juros.
e) Pensões
Estão garantidas porque as pensões pagas em cada mês são financiadas pelos descontos efectuados mensalmente, o que não é problema com desemprego baixo. Se necessário, um défice do orçamento da segurança social é sempre coberto por uma transferência do orçamento do Estado. Tal como os salários, as pensões serão indexadas à inflação.
f) Financiamento das importações de bens essenciais
Não é problema sério porque as contas externas estão perto do equilíbrio. Ainda assim, para ter uma reserva de segurança em divisas, não será difícil obter crédito comercial externo contra garantia em ouro, ou outras contrapartidas, até que a desvalorização (acompanhada de outras políticas) consolide o equilíbrio da balança corrente. O ADB (Banco Asiático de Desenvolvimento) pode ser uma alternativa ao FMI.
g) Nacionalização dos bancos
Para garantir que o controlo dos movimentos de capitais não fica nas mãos dos actuais banqueiros, e também porque há bancos que ficam falidos com dívidas ao exterior em euros, o sistema bancário será recapitalizado e nacionalizado. Mais tarde, encontrar-se-á uma fórmula institucional que impeça os governos de partidarizarem as administrações dos bancos. O crédito voltará a ser controlado pelo Banco de Portugal.
h) Espanha e Argentina
Uma saída de Portugal do euro obrigaria a Espanha a fazer o mesmo para não perder mercados. Aliás, quando um país sair, outros irão atrás, tal como aconteceu na Europa dos anos 30 com o padrão-ouro. Ao contrário do que alguns afirmam para assustar as pessoas, a Argentina foi conduzida à bancarrota pelas políticas neoliberais, incluindo a decisão de fixar uma paridade irreversível com o dólar. A recuperação começou logo no segundo trimestre após a desvalorização do peso. A crise mais recente é outra história e confirma a ideia de que a saída do euro é uma condição necessária para o desenvolvimento do país, mas não é suficiente.
i) Moeda comum
Após a saída do euro, para os países que queiram participar, é possível organizar uma zona de “moeda comum” (moeda bancária para as relações com o exterior da zona), com câmbio ajustável periodicamente face à evolução das respectivas balanças externas. As moedas nacionais ficariam protegidas da especulação financeira internacional.