sábado, 31 de dezembro de 2011

2012

Bem sei que a lógica dominante é mesmo a da saída, mas daqui ninguém nos tira. Cá nos encontraremos num 2012 com muita economia política, muita luta política. Tenham um ano feliz.

Ano novo, vida nossa

«Bateram as 12 badaladas e anunciaram que tínhamos ficado em 2011. Na televisão, um comentador explicava: "Seria uma irresponsabilidade mudar de ano agora, em plena crise." O colega de debate, especialista em finanças cronológicas, concordava: "Não estamos em tempo de comprar novos calendários, as pessoas têm de compreender que é preciso fazer sacrifícios."
Claro que nem toda a gente aceitou pacificamente a ideia. Milhares de jovens que iam fazer 18 anos em 2012 organizaram manifestações pelo direito ao futuro: "Não queremos ficar com as nossas vidas congeladas", gritavam nas ruas. Movimentos de cidadãos fizeram uma jornada contra o "recuo hsitórico" que significava voltar ao passado. Houve uma greve por um novo calendário e por melhores condições de vida. Clandestinamente, alguns começaram a produzir calendários alternativos e a funcionar com as datas de 2012. O Governo explicou que era "totalmente inviável" mudar de ano. Sugeriu que os jovens emigrassem. Perante os protestos, ameaçou prender quem tentasse fazer um ano novo à revelia do acordo estabelecido com parceiros internacionais.
De repente, as praças foram ocupadas pela gente. Fizeram-se músicas, contos, poemas, filmes sobre os futuros possíveis: como seria um ano novo? As pessoas começavam a criar aquilo de que falavam. Aguentaram semanas na rua, numa lenta impaciência. Até que um dia o poder viu-se impotente: já não restava ninguém em 2011.»

(A mensagem para 2012 de José Soeiro, no Público de ontem)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

RSI: Mitos e realidades


Clicar, para ampliar, nesta excelente infografia de Nuno Oliveira (via facebook), que reúne e analisa dados relativos ao Rendimento Social de Inserção (RSI) e que arrasa a propaganda populista e demagógica que desde há muito envenena a opinião pública. De acordo com os dados, relativos a 2009 e 2010 (hoje a situação será bem pior, em virtude dos sucessivos cortes posteriores), o RSI abrange apenas 18% da população a viver abaixo do limiar de pobreza (e 4% no total da população), representando um encargo para o orçamento da Segurança Social que não vai além dos 2,5% (bem inferior aos 30% relativos às dívidas das empresas). E a famosa fraude, que o discurso populista tenta colar a esta prestação, é estimada em apenas 3% (casos de cessação devida a «falsas declarações»), valor que tem vindo a diminuir, uma vez que o RSI é o programa mais ferozmente fiscalizado pela Segurança Social.

Adenda: A tripla tenaz da austeridade (corte nos rendimentos, aumento de impostos e tarifas e restrições no acesso a serviços públicos), para além do aumento galopante do desemprego (de 10,1% no final de 2009 para 12,4% em Setembro de 2011), elevaram certamente o número de portugueses a viver abaixo do limiar de pobreza (isto é, com menos de 360€ por mês). Mas mantendo os cálculos, por defeito, para esse valor, e considerando que em Setembro de 2011 o número de beneficiários do RSI caiu para cerca de 340 mil, o seu peso na população a viver abaixo do limiar de pobreza passa a ser de 17%.

Da austeridade assimétrica permanente

Através de Pedro Lains, tomei conhecimento de um estudo comparativo, feito para a Comissão Europeia, sobre os efeitos distributivos das políticas de austeridade em seis países europeus que intensamente aderiram, entre 2009 e Junho de 2011, a esta opção recessiva e regressiva. Deixo-vos excertos do comentário de Lains: "Você que até é um bocado socialista achava que Sócrates até tinha sido simpático com os mais pobres e que este governo é que lhes está a dar forte e feio? Pois, desengane-se, quem tem razão são os que estão à sua esquerda: Sócrates deu forte e feio nos mais pobres - e Passos ainda está a dar mais. Uma verdadeira carnificina, incomparável na Europa (...) A conclusão final do estudo é que a austeridade em Portugal até Junho de 2011 foi a mais regressiva deste conjunto de 6 países. Brilhante. Terão as coisas piorado desde então, quanto a isso? A resposta está aí a chegar, pelas vias oficiais, presumo."

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Sinais dos tempos (I)

Uma das consequências (porventura menos perceptível) da violenta compressão que está a ser exercida sobre os custos do trabalho (através do acréscimo - não remunerado - do tempo de laboração, dos cortes nos salários, da degradação das condições de acesso ao subsídio de desemprego ou da redução das indemnizações por despedimento), traduz-se no estímulo que é dado às mais retrógradas e indecorosas formas de exploração. Aparentemente adormecidas, em alguns segmentos da sociedade portuguesa (particularmente num certo estrato, bafiento, do terceiro sector), estas formas de exploração sentem-se confortáveis e legitimadas - neste ambiente de retrocesso civilizacional - para surgir com toda a naturalidade à luz do dia, sem qualquer rebate de consciência, escrúpulo ou pudor.

Este «Termo de Referência» da Fundação Fé e Cooperação (uma ONGD reconhecida e apoiada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e pela União Europeia) - tendo em vista a «contratação» de um voluntário para realizar trabalho de design e comunicação - é apenas um exemplo (que vale contudo a pena consultar). Repare-se na sofisticação que se aplica nas duas páginas do anúncio desta «oportunidade de voluntariado», que não dispensa o recurso às mais avançadas «técnicas» da «ciência» de contratação de recursos humanos: para além da indicação da duração do trabalho (quatro horas semanais) e da caracterização da instituição «empregadora», definem-se os objectivos e tarefas a cumprir pelo voluntário e estipula-se de forma detalhada o perfil que se pretende que este possua (aptidões, conhecimento, experiência e compromisso). Como contrapartida a todo este rigor e exigência, a Fundação Fé e Cooperação (FEC) oferece, generosamente, não um rendimento resultante da prestação de serviços em apreço, mas sim: «um programa de voluntariado baseado em objectivos e metas concretas», a «colaboração com uma equipa dinâmica e aberta a ideias novas e criativas» e uma «política clara de voluntariado em conformidade com as práticas, os objectivos, os valores e a ética da FEC». Fantástico, não é?

Deve ser mais ou menos esta leveza, este espírito de despojamento (aplicado aos outros, claro), que levou o ex-dirigente do PSD, António Pinto Leite (e que é hoje presidente da Associação Cristã de Empresários e Gestores - ACEGE), a sugerir que a legislação laboral devesse ser alterada para permitir às empresas baixar salários, por mútuo acordo (para além de pedir ao governo - como se fosse preciso - que alargue o leque de motivos legais de despedimento). Supondo que esta ideia luminosa não tenha em vista os proventos salariais auferidos pelos detentores de cargos de topo (num país em que a gritante desigualdade de rendimentos parece, afinal, cair do céu) e imaginando que reduções salariais por mútuo acordo não suscitem impedimentos de monta na legislação laboral em vigor, pergunto-me se o presidente da referida associação cristã não teria em mente (sem o querer contudo expressar) uma proposta de redução do valor do salário mínimo nacional. Seja como for, parece certo que estamos perante mais um líder patronal, deste capitalismo medíocre, que não consegue equacionar os desafios da competitividade da economia portuguesa para lá das fronteiras imorais do esmagamento dos custos do trabalho.

O elo mais fraco



Uma coisa que a crise de 2007-? tem deixado clara é que a aparência das crises económicas difere da sua substância. Tal como o João Rodrigues acaba de referir, e tal como tem sido também explicado, nas suas diversas vertentes e com algumas variantes, por analistas como KrugmanKeen ou Lapavitsas e associados, esta é, fundamentalmente: i) uma crise económica e não apenas financeira, causada em última instância pela retracção da procura agregada, de que os episódios financeiros (incluindo a crise das dívidas soberanas) são um sintoma e não a causa; ii) uma crise que é principalmente das economias capitalistas avançadas ‘ocidentais’, que se tem estendido às restantes sub-regiões da economia mundial por via de diversos canais de transmissão mas que não é delas originária; iii) uma crise causada pela súbita e descoordenada contracção da procura na sequência da acumulação de dívida privada a níveis insustentáveis; e iv) logo, verdadeiramente uma crise do neoliberalismo, na medida em que a acumulação insustentável de dívida privada não foi mais do que uma consequência da tentativa de manutenção de níveis relativos de consumo (e, tantas vezes, da simples satisfação de necessidades básicas, em áreas como a saúde, a educação ou a habitação, cuja satisfação deveria ser integralmente socializada) num contexto de compressão neoliberal dos salários directos e indirectos ao longo de três décadas.

Não é uma crise que, nos seus diversos episódios, tenha sido simplesmente causada pela irresponsabilidade dos segmentos mais pobres da população norte-americana na contracção de empréstimos à habitação; pela irresponsabilidade fiscal dos governos da periferia europeia; ou sequer pela desregulação financeira e pela explosão de bizantinos instrumentos derivados, por mais que estes últimos amplifiquem o potencial destrutivo multiplicador dos momentos agudos da crise. Os empréstimos sub-prime norte-americanos e a dívida soberana da periferia da zona euro são apenas os elos mais fracos nos quais ocorrem as rupturas. Estamos realmente perante a crise de um modelo socioeconómico, a crise de um modo de regulação – pelo que as tentativas a que assistimos de ultrapassá-la através de doses reforçadas do mesmo receituário estão, necessariamente, votadas ao fracasso. O problema é que este fracasso, pelo menos no curto e médio prazo, augura muito pouco de positivo.

Da dívida soberana


Via Paul Krugman, aqui ficam gráficos com a evolução das taxas de juro dos títulos da dívida pública a dez anos, em 2011, em quatro países desenvolvidos. A chamada crise da dívida soberana deu-se precisamente em países do euro, em países sem soberania monetária, em países que se endividam numa moeda que não controlam, o mesmo não se podendo dizer, por exemplo, da Alemanha, no topo da economia política do euro e beneficiando também dessa posição. Foram os países sem soberania monetária que ficaram à mercê da “esquizofrenia” dos especuladores em matéria de escolhas de política económica, a expressão é de Olivier Blanchard, economista-chefe do FMI, mais um que parece abandonar lentamente o romance dos mercados eficientes. De resto, a mensagem é clara: num contexto de uma recessão induzida pelo esforço descoordenado dos privados para recomporem os seus balanços, a quebra da procura e as forças da depressão só podem ser contrariadas pelos poderes públicos, pelo Tesouro e pelo Banco Central, pelos dois bem juntos. Na Zona Euro estão bem separados, por neoliberal construção, e daí a sua crise terminal. Escuso de repetir o que escrevi, por exemplo, em Setembro de 2010, até porque nada mudou entretanto...

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Redemocratizar a economia

[A] democratização da economia, a vertente económica da democracia, exige a subordinação do poder económico ao poder político, a propriedade pública de sectores básicos e estratégicos, a participação dos trabalhadores no processo de gestão das empresas de propriedade pública e uma maior igualdade económica entre os cidadãos. É o contrário de tudo isto que o Governo tem feito e projecta vir a aprofundar. É notória a crescente subordinação do poder político ao poder económico e financeiro nacional e internacional, bem como aos ditames da troika externa que democraticamente não respondem perante o povo.

Octávio Teixeira no Negócios. Não deixem de ler o seu artigo sobre a banca no
Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Janeiro.


Confiar na bancarrotocracia

A banca não confia na banca, preferindo os depósitos no BCE, que batem recordes, o que só nos indica como a concessão de crédito à economia requer hoje a socialização da banca, única forma de superar a desconfiança e a descoordenação mercantis. No entanto, o governo português confia nos accionistas dos bancos privados, fazendo de tudo para não diluir a sua posição. Só assim se explica a ideia peregrina de capitalizar os bancos ditos privados através de um instrumento híbrido, uma espécie de obrigação que só eventualmente se transformará numa acção. A imaginação financeira adia o inevitável. O crédito pode esperar?

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Wise up*

Nunca tivemos uma década tão má como a do euro, diz João Ferreira do Amaral (JFA). A medíocre performance económica, sem precedentes, foi responsável pela triplicação do desemprego, mesmo antes da austeridade em força. É a vida fácil, de que fala Cavaco. Adicionem a inserção dependente, fomentada por uma moeda forte e pela abertura irrestrita aos fluxos financeiros, e temos um padrão que muitos países do Sul global já conheceram. Sem uma reconfiguração profunda da moeda única, e admitindo a sua sobrevivência, a próxima década, de ajustamente estrutural ditado por Bruxelas-Frankfurt, será ainda pior. JFA foi dos poucos economistas académicos portugueses que, na década de noventa, escreveu sobre a forma como o neoliberalismo inspirou, em Maastricht, o desenho da UEM. Uma UEM forjada para destruir o Estado social e o mundo do trabalho organizado, fazendo do salário directo e indirecto a variável de ajustamento. Estou a pensar, por exemplo, num artigo que reli recentemente, publicado num número da Notas Económicas de 1998, e cujo título exprime bem o que hoje está em causa -"Maastricht: um Tratado contra o Modelo Social Europeu".

Durante vários anos, alguma literatura de economia política comparada, que poderá ter influenciado a complacência social-democrata na Península, afirmou que o euro seria compatível com modernização social e com convergência económica do Sul. A modernização do sistema fiscal, ainda que incompleta, ou a queda das taxas de juro foram alguns dos mecanismos que evitaram a desvalorização social e salarial aberta, assim retirando força à tese de JFA, mesmo que se tenham confirmado, em Portugal, os problemas económicos então previstos. Na realidade, a neoliberalização da economia, com alguma incrustração social legitimadora, que até correspondia num PS sob hegemonia social-liberal à divisão de tarefas intelectuais e políticas entre economistas e sociólogos ortodoxos, à divisão entre as finanças e a solidariedade social, revelar-se-ia cada vez mais insustentável, o produto de uma separação artificial cada dia mais frágil, destinada a ser destruída pela inserção dependente gerada. A natureza de um arranjo monetário revela-se totalmente em alturas de uma crise à qual não é alheia, nas respostas de política pública que permite ou não. Hoje é claro que sem alterações na moeda única, as respostas só podem ser retintamente anti-keynesianas, retintamente neoliberais, o que siginifica a destruição do Estado social. É por isso que estamos obrigados, à esquerda, a fazer política com p grande, aquela que trabalha na reforma das estruturas, sem separações artificiais entre economia e sociedade. As nossas armas, a partir da periferia, são, paradoxalmente, financeiras.

De resto, e como sublinhou um colunista conservador, Ambrose Evans-Pritchard, a quem as declarações de Pedro Nuno Santos não passaram desapercebidas, a esquerda europeia, em especial a social-democrata, está obrigada a pensar seriamente sobre a natureza da integração seguida e sobre os enviesamentos políticos que geram derrotas sem fim. Um artigo a ler com atenção. Em 2011 acabou a europeização feliz.


*Ponham-se finos.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Austeridade light: todo o sabor, nada de calorias



Depois do BCP ter proclamado a sua confiança e orgulho patrióticos (suprema ironia), a tentativa por parte da Coca-Cola de promover uma mistura palerma de voluntarismo e patriotismo de modo a vender mais refrigerantes já é realmente demais. Ainda bem que alguém respondeu à altura.

489 mil milhões (ou duas vezes e meia o nosso PIB)

O Banco Central Europeu emprestou à banca europeia, na semana passada, 489 mil milhões de euros, em cedências de liquidez que chegam a 3 anos (normalmente o BCE só empresta a curto prazo), a taxas de juro baixas. Esta operação de grande porte tem muitas implicações para o desenrolar da crise europeia, em particular, e os meandros da política monetária, em geral. Ficam algumas notas:

1- Estes empréstimos nascem da necessidade da banca se refinanciar. Os mercados interbancários estão congelados devido à desconfiança reinante. Face às obrigações financeiras da banca, sem esta cedência de liquidez, arriscávamos uma torrente de falências bancárias no espaço europeu.

2- Esta moeda, criada do nada, não terá, provavelmente, grandes efeitos na economia real. Face às necessidades de refinanciamento da e das obrigações no que toca ao aumento de rácios de capital, a banca europeia provavelmente ficará “sentada em cima” destes empréstimos, substituindo os seus empréstimos junto de agentes privados, por empréstimos públicos (o BCE). O mercado não funciona, logo voltamos ao planeamento neoliberal (em proveito de actores privados).

3- A pressão política, nomeadamente a francesa, é para a banca se servir deste financiamento para, por sua vez, financiar os estados através da compra de dívida pública. O negócio é prometedor, o financiamento público é barato e o endividamento caro. Esta fonte de lucros serviria para a banca compor os seus balanços, tornando-se mais lucrativa. A existência do tal “efeito cascata” é, no entanto, uma incógnita.

4- Os mercados reagiram com alívio a este financiamento. Se por um lado, ele é a prova da fragilidade do sector bancário europeu, por outro, não só as necessidades de financiamento estão resolvidas no curto prazo, como é prova de solvabilidade a quantidade de colateral (os activos usados como garantia) que os bancos conseguiram mobilizar. No entanto, embora esta operação tenha alguns limites quanto aos activos que podem ser usados como garantia, é notório um relaxamento dos critérios do BCE. Parece “quantitative easing”, cheira a “quantitative easing”, mas não é “quantitative easing”…

5- O balanço do BCE tem crescido a olhos vistos (ver gráfico abaixo), o que se traduz em criação monetária injectada pelo poder público. A bazooka que se pedia para os Estados, recusada pela direcção deste banco, é construída para a banca privada. Os impactos desta nova linha de financiamento no seu balanço serão aparentemente mitigados, mas os limites de intervenção do banco central vão sendo testados. Será que o BCE vai precisar de ser recapitalizado? Quem é que paga a conta?

6- Concluindo, os poderes europeus têm sido eficazes na defesa do seu sector bancário, não o deixando cair. Já em relação à economia europeia (em recessão e com mais austeridade anunciada) e ao financiamento estatal (não existem instrumentos financeiros para resgatar países como a Itália) continuamos no arame… A natureza desta UE é cada vez mais clara. Pena é que a complexidade destas operações possa dificultar a mobilização dos cidadãos.

Passos para uma economia antidemocrática

Passos promete reformas para democratização da economia. Todos os passos deste governo nos conduzem a uma economia cada vez menos democrática, cada vez menos compatível com a democracia. Uma economia onde, graças às privatizações de empresas estratégicas ou ao enfraquecimento da provisão pública de bens sociais, o alcance das escolhas democráticas será cada vez mais curto. Uma economia no fundo comandada a partir de fora por funcionários que ninguém elegeu, trabalhando no quadro de instituições que funcionam como o comité executivo do capital financeiro (trans)nacional, oriundo do centro, ao qual se junta algum capital industrial subordinado, apostados na expropriação financeira das periferias. Uma economia onde estão a ser destruídos todos os freios e contrapesos, todas as regras laborais, limitadores do poder das fracções mais reaccionárias do capital, as que dependem de uma acumulação assente em horários de trabalho cada dia mais longos e baralhados, na precariedade ou nos baixos salários. Uma economia de austeridade onde cada vez mais pessoas estarão desempregadas, acedendo, as que conseguirem, a um subsídio de desemprego cuja amputação pode chegar aos 75%, assim se criando as condições para todos os desesperos, para todas as subordinações, para todos os medíocres autoritarismos patronais, ainda para mais tendo em conta o contexto depressivo. Uma economia que será cada vez mais desigual na distribuição das oportunidades e dos activos, do rendimento e da riqueza, com todos os problemas sociais que estão associados a estes padrões. Uma economia onde o cada dia mais escasso crédito, se depender deste governo, continuará a ser controlado pelo mesmo tipo de instituições financeiras, com o mesmo tipo de enviesamentos e de ineficiências, incapazes de canalizar crédito para a economia produtiva e muito menos para projectos cooperativos que desafiem as formas de organização, escassamente democráticas, dominantes. Uma economia socialmente desincrustrada, incompatível com direitos sociais universais, uma economia de pobres e de ricos, de caridade, quando muito, ou seja, de dependência, de heteronomia. Uma economia que não é para cidadãos e que que não forja cidadãos, que não responde perante a soberania democrática. A (re)democratização de uma economia monetária de produção começa precisamente pela moeda, pelo crédito, pelo capital financeiro, recuperando a soberania democrática nesta área, o que significa que o Banco Central, responsável pela gestão monetária, tem de ter prioridades definidas por um verdadeiro comando político democrático, instituindo-se controlos de capitais, tais como os que vigoraram até aos anos oitenta e assegurando-se o reforço das instituições públicas de crédito. Como é também de desglobalizar que se trata, de renegociar o grau de abertura das economias, até tendo em conta o trilema da economia política internacional, a incompatibilidade destas globalização e europeização com a democracia, as tarefas começam pela finança. Tudo o resto virá por acréscimo...

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Hear, hear, Sir Skidelsky

«O acordo alcançado em Bruxelas exclui qualquer possibilidade de uma gestão keynesiana da procura para combater a recessão. Os défices orçamentais “estruturais” estarão limitados a 0,5% do PIB, com sanções (ainda não conhecidas) para os infractores.

Esta é a cura errada para a crise da Zona Euro. A doutrina Merkel parte do princípio que a crise resulta da irresponsabilidade dos governos e, assim, apenas uma regra “dura” sobre o orçamento pode evitar que estas crises voltem a acontecer.

Mas a análise de Merkel está totalmente errada. Não foram os défices excessivos que provocaram o colapso económico de 2007 e 2008 mas sim a excessiva concessão de créditos por parte do sector bancário. O aumento das dívidas públicas foram uma consequência da recessão económica e não a sua causa. O que deveria ter sido integrado na estrutura institucional da União Europeia era uma regulação financeira mais dura e não uma austeridade orçamental permanente. E tem havido poucos sinais no sentido de endurecer a regulação financeira.
»

Do capitalismo de Estado

A EDP registou, em 2010, lucros de cerca de 1000 milhões de euros e entregou ao Estado mais de 150 milhões de euros de dividendos. O Estado português vai agora desfazer-se dos 21,35% que lhe restam nesta empresa absolutamente estratégica por uns 2,69 mil milhões de euros considerados impressionantes. É fazer as contas e ver a miopia, lesiva do que resta da soberania democrática, de um encaixe que é um grau de areia no deserto de uma dívida na realidade não soberana e que terá de ser, mais tarde ou mais cedo, reestruturada. Assinale-se também a ironia estafada de ver a última fase da privatização de uma empresa construída pelo Estado democrático português ser ganha por uma empresa pública chinesa, expressão de uma variedade autoritária de capitalismo de Estado, lição para os que ainda dizem, à esquerda e à direita, que o capital não tem nacionalidade. Promete-se crédito, o que na China é sinónimo de bancos públicos. De resto, esta pontual viragem para a China ainda corre o risco de vir, muito mais tarde, a ser interpretada como um marco no reconhecimento nacional de que esta Zona Euro já deu o que tinha a dar.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Do capitalismo medíocre

Propostas do Governo dão às empresas 23 dias a mais por ano. Grátis, claro. Numa altura de desemprego de massas, de capacidade produtiva por utilizar, de falta de procura, em suma, o governo dá mais um contributo para desincentivar a contratação e para consolidar um capitalismo medíocre, ou seja, um capitalismo que só sabe encarar o trabalho como um custo a conter, uma mercadoria para usar e deitar fora.

Zonas de conforto

Recentemente, quando a OCDE anunciava que a taxa de desemprego em Portugal atingia os 12,9% (o quarto valor mais elevado no conjunto de países que fazem parte da organização) e o governo tratava de proceder a restrições adicionais no acesso ao subsídio de desemprego, o presidente da CIP, António Saraiva, entendeu por bem fazer este comentário notável (ver a partir do minuto 18): «há que retirar as pessoas, algumas delas estão desempregadas e estão em zonas de conforto. Preferem manter-se no subsídio de desemprego, porque vão tendo economias paralelas, o chamado "gancho". Vamos ter que lhes causar aí algum desconforto... Enfim, minorando tempos, minorando valores, porque se as pessoas tiverem um valor de subsídio de desemprego igual àquilo que se lhes possa oferecer em termos de emprego, admito - e isso acontece hoje lamentavelmente - algumas franjas vão-se mantendo desempregadas, vão encontrando formas para se manter com o subsídio de desemprego e isso é insustentável».

No post anterior, o João Rodrigues assinalou bem o que têm significado: a destruição massiva de postos de trabalho ao longo da última década (a um ritmo que se intensificou de forma dramática após os primeiros impactos da crise financeira sobre os Estados e as economias, em 2008); as sucessivas reformas liberais da legislação do trabalho; a perda de salários e de poder de compra e a violenta redução das indemnizações por despedimento. A este cenário dantesco de fragilização crescente do emprego, da própria economia e das condições de vida, acresce a erosão deliberada dos serviços públicos e de uma importante almofada social - o Rendimento Social de Inserção - que até à aprovação do PEC 1 (que dá início ao paradigma austeritário) acompanhava a evolução do desemprego, permitindo minorar os seus impactos (clicar no gráfico para ampliar).

Perante este quadro insustentável de degradação económica e social, a que «zonas de conforto» pretende exactamente referir-se António Saraiva? Não deveria antes pronunciar-se sobre a «zona de conforto» em que preguiçosamente vive um patronato medíocre e incompetente, que não é capaz de equacionar os desafios de competitividade da economia portuguesa a não ser pela compressão total dos custos do trabalho? Ou debruçar-se sobre a «zona de conforto» em que vive um governo inútil, cuja única estratégia de emprego que tem para apresentar aos portugueses consiste no incentivo à emigração?

Videos do ano


Para ver e rever. Uma oportuna montagem de peças televisivas da autoria de Ricardo Santos Pinto (do blogue Aventar), que constitui uma verdadeira iniciativa de serviço público.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Vida fácil

Nas últimas estimativas troikistas, as recessivas políticas de austeridade terão destruído 75 mil postos de trabalho, em 2011, para uma recessão de 1,6%, e destruirão 93 mil no próximo, para uma recessão de 3% e uma quebra do emprego de 1,9%, o dobro do que um OE apostado na emigração sem fim previa. 168 mil empregos num total que pecará por optimismo. É a procura e a sua compressão que marcam o ritmo da destruição. A taxa de desemprego quase que terá quadruplicado entre 1999 e 2012. Quantas reformas do código do trabalho liberais teremos tido neste período? O poder de compra dos funcionários públicos terá sido reduzido, entre 2000 e 2012, em cerca de 30%. O esforço político é também o de fazer com que os trabalhadores do "privado" que não acompanharam esta tendência o façam. Parece que Cavaco afirmou a um diário económico holandês que os "portugueses" tiveram uma "vida fácil" com um euro que sempre foi de estagnação e que agora é só de crise. Em que país vive esta gente? Enfim, como só há uma economia, toda a conversa deste desgoverno sobre a criação de emprego não passa, enquanto vigorar uma política económica pré-keynesiana, de uma rematada aldrabice. Aliás, medidas como a redução cada vez mais mais brutal das indemnizações por despedimento, que poderá agora chegar aos 70%, destinam-se a tornar mais saliente, porque mais barata, a estratégia do despedimento e também a gerar aquela insegurança que, sendo pouco produtiva, sempre facilita a transferência de rendimentos de baixo lá para cima, o objectivo que dá consistência sistémica a todas as políticas públicas actuais. Lembrem-se que o FMI tem estudos que atribuem a crise à desigualdade excessiva...

Nunca esquecer

Permitir que o mecanismo de mercado seja o único dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural, e até mesmo o árbitro da quantidade e do uso do poder de compra, resultaria no desmoronamento da sociedade. Esta suposta mercadoria, “a força de trabalho”, não pode ser impelida, usada indiscriminadamente, ou até mesmo não-utilizada, sem afectar o individuo que é o portador dessa mercadoria peculiar. Ao dispor da força de trabalho de um homem, o sistema disporia também, incidentalmente, da entidade física, psicológica e moral do “homem” ligado a essa etiqueta.

Karl Polanyi, A Grande Transformação, 1944.

Da bancarrotocracia

O presidente da Associação Portuguesa de Bancos, a expressão organizada da bancarratocracia, teve o desplante de afirmar que os bancos vão transferir os fundos de pensões para patrioticamente "ajudar" o país a "cumprir" a austeritária meta do défice. A verdade é que com os fundos vêm grandes responsabilidades, créditos fiscais e outras redes de apoio que a imaginação política consiga inventar. Alguém acredita que este negócio deixará de ser vantajoso para um sector que se especializou em gerar custos e a transferi-los para outros?

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Sensatez

O que disse o vice-presidente da bancada do PS e tanta celeuma levantou é o óbvio: um Governo que se preocupasse exclusivamente com os interesses dos portugueses e não fosse um mero núncio local dos interesses dos "mercados" deveria ter como absoluta prioridade a renegociação da dívida.

Percebe-se finalmente o que são as tais "gorduras do Estado": são os portugueses.

Manuel António Pina, Finalmente alguém sensato e Nós, as "gorduras", JN.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sinais de maré



Para os falantes de inglês, pois infelizmente sem legendas, uma interessante entrevista no HARDtalk da BBC com Steve Keen, economista pós-keynesiano australiano que é autor de uma devastadora crítica dos fundamentos epistemológicos e metodológicos da economia neoclássica no livro Debunking Economics.

Keen, que enjeita afirmar-se anti-capitalista, dá ainda assim uma rara demonstração de lucidez no espaço mediático ao referir-se às origens sistémicas da crise actual, nas suas diversas manifestações; ao estado da economia como ciência; à relação entre a crise do endividamento soberano e o aumento exponencial do endividamento privado (só faltando assinalar a relação com a compressão neoliberal dos salários directos e indirectos); e à necessidade de proceder à eutanásia dos sectores e interesses rentistas que, se não forem detidos, irão inevitavelmente condenar as nossas sociedades a um prolongado período de pauperização.

Keen advoga a eliminação de uma parte substancial de toda a dívida, pública e privada,  e a nacionalização da banca - e é sintomático que até um crítico relativamente tépido do capitalismo perceba a absoluta necessidade de que assim seja, como única alternativa à barbárie parasitária. A conversa perde-se um pouco na parte relativa aos detalhes de como implementar este plano - Keen sugere que a via deverá passar pelo financiamento monetário de défices públicos crescentes (precisamente o contrário do que, no contexto europeu, é actualmente imposto pelos estatutos do BCE no plano monetário e em vias de consagração constitucional nacional no plano orçamental), mas depois perde-se por alguns instantes perante a incompreensão da entrevistadora. Em todo o caso, bastantes elementos interessantes para animar a reflexão, o debate e o optimismo, nestes tempos em que ainda vão escasseando os motivos para tal. Depois de ontem ter visto a reportagem Contracorrente, na SIC, sobre os movimentos sociais anti-austeritários em Portugal, e da Convenção da Iniciativa de Auditoria à Dívida no fim-de-semana, a vontade fica um pouco mais optimista.

Ponham-se finos

O Ministro das Finanças irlandês avisa que sem uma redução significativa do fardo da dívida as novas regras europeias não serão aprovadas em referendo. Cada um usa as armas que pode, menos em Portugal onde negociar com credores é de mau tom, coisa para populistas, sei lá. Quando olhamos para um gráfico com a evolução do PIB e do PNB irlandeses - a diferença deve-se, fundamentalmente, aos rendimentos que as multinacionais transferem para o exterior - percebe-se bem a atitude irlandesa: a recuperação austeritária só existe na imaginação de elites tão subalternas quanto ignorantes (via Paul Krugman). Como é que se diz ponham-se finos em inglês?

Uma só economia

A sabedoria convencional nacional parece trabalhar com um modelo com duas economias estanques. Numa vigoraria a austeridade, com efeitos recessivos óbvios, traduzindo-se num continuado aumento do desemprego e em perdas de rendimentos e de capacidade produtiva. Na outra vigoraria o crescimento assente nas tais reformas estruturais neoliberais ou, para usar as palavras de que Relvas é capaz, na “concorrência e competitividade, articulação entre o Estado e a economia, valorização do capital humano e confiança”.

Na realidade, trata-se de uma única economia e de uma única política, sem separações, com uma só lógica. A economia de austeridade é a economia da alteração das regras do jogo. O objectivo é mudar estruturalmente a correlação das forças sociais por forma a facilitar a transferência de activos e de rendimentos de baixo para cima e de custos sociais de cima para baixo. A recessão e o desemprego de massas facilitam esta tarefa.

Concorrência? Uma ficção em sectores onde quem reina e reinará sempre é o poder das grandes empresas ou quanto muito uma realidade cujo efeito é favorecer a pressão sobre o trabalho e a redução dos investimentos de longo prazo em infra-estruturas e serviços de rede, desarticulando-os e promovendo a sua degradação. Competitividade? É o outro nome da desvalorização social e salarial permanente. Uma nova articulação? Este governo é bem a expressão da captura do Estado pela aliança possível entre a bancarrotocracia financeira e os poderes empresariais transnacionais. Valorização do capital humano? Quem aposta na formação numa economia de precariedade e de insegurança permanente? Confiança? Sabemos bem que o aumento das desigualdades que assim se gera corrói a confiança e aumenta a instabilidade social, como nos indica, uma vez mais, o último relatório da Organização Internacional do Trabalho. Estamos perante uma só economia. Indecente.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Votar


O "Ladrões de Bicicletas" foi nomeado como um dos blogues do ano pelo programa da TVI24, Combate de Blogs, nas categorias "Melhor Blogue de Esquerda" e "Melhor Blogue Colectivo". Para quem quiser participar, vota-se aqui.

A crise tem muitas faces

Hoje, a versão impressa do Público dá mais destaque ao anúncio de uma futura carta aberta, a que não tiveram acesso, dos militantes do Ruptura do que a uma iniciativa, com a participação de mais de 500 pessoas, que debateu, de forma séria e profunda, as questões da dívida e da crise. Critérios...

Mas ainda há mais. Em nota, não assinada e em tom jocoso, o Público dá conta da publicação no The Telegraph das declarações de Pedro Nuno Santos. Por favor, percam cinco minutos, leiam o artigo. Algum meio de comunicação português tratou as declarações com a mesma sobriedade do The Telegraph? Onde é que o Público leu que Pedro Nuno é tratado como "curioso espécimem" da esquerda continental? Em nenhum lado. O Telegraph aproveita as declarações do Pedro Nuno Santos, contextualizadas pela profunda crise que atravessamos, para dar conta da mudança de opinião de alguma esquerda europeia, seja na liderança do Partido Socialista Francês(que já recusou as recentes conclusões da cimeira europeia), seja nas declarações do ex-ministro das finanças alemão, Oskar Lafontaine. Alguns jornalistas andam bem "finos".

sábado, 17 de dezembro de 2011

Negociata máxima




O Negócios e a Máxima atribuíram o Prémio Mulher de Negócios 2011 a Isabel Vaz, presidente da comissão executiva da Espírito Santo Saúde, que, ao que parece, chegou a ser convidada para Ministra da Saúde deste governo. Negócios máximos, rendas máximas, até porque melhor negócio do que a saúde, como já assinalou Vaz à RTP, só mesmo a indústria de armamento, por sinal um outro negócio bem imbricado politicamente.

Um lindo sinal dado por esta imprensa com este prémio. Um sinal da fronteira da acumulação possível por expropriação de recursos públicos e por aproveitamento lucrativo de todas as vulnerabilidades humanas, de todas as assimetrias contratuais, de todos os governos submissos, de toda a captura de pessoal político. Uma sordidez sem fim. Uma sordidez com muito futuro se depender deste governo: das ruinosas, para o Estado, claro, parcerias público-privadas até a brutais aumentos das taxas moderadoras, co-pagamentos na realidade. O seu principal objectivo é criar barreiras no acesso universal aos serviços públicos de saúde e incentivar o recurso à saúde privada, a melhor forma de aumentar a injustiça social e a ineficiência na área de saúde, já que só serviços públicos de acesso universal, gratuitos para o utilizador e financiados por impostos progressivos, garantem bons cuidados para todos; quanto maior a percentagem de despesas a cargo do paciente, piores tendem a ser os indices de saúde dos países.

Enfim, na mesma rubrica do Negócios onde saúda Isabel Vaz, que prospera à custa da ineficiência e da iniquidade, Helena Garrido acusa Pedro Nuno Santos de ser um "perigoso populista", assim mostrando como anda desorientada a bússola ético-política. "Perigosa" é mesmo uma "mulher de negócios" que compara a saúde ao armamento. Assim, o epíteto de populista só pode ser um elogio: o capital financeiro predador tem mesmo de se pôr fino...

Auditar



Costas Lapavitsas, economista grego, professor na Universidade de Londres e um dos dinamizadores do Research on Money and Finance e da auditoria cidadã grega, esteve ontem a participar num debate e hoje na Convenção de Lisboa da Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida. Vale a pena ver.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

As sete vidas do argumentário neoliberal




Do meu artigo no Le Monde Diplomatique de Dezembro (nas bancas):


(...) O sucesso do neoliberalismo, particularmente no contexto de sociedades dotadas de mecanismos democráticos formais, tem assentado em grande medida na capacidade dos seus agentes ideológicos produzirem e disseminarem uma visão do mundo que, sendo conforme aos interesses dos grupos dominantes, consegue permear o senso comum da generalidade dos cidadãos. Pouco importa que a correspondência entre estes argumentos e a realidade seja escassa ou inexistente, pois assumem o estatuto de supostas evidências por via quer da repetição quer da legitimação através da aura de autoridade daqueles que os proferem. Pouco importa também a existência de tensões - e reais contradições - entre o discurso neoliberal, que se reclama herdeiro da tradição liberal de autores como John Locke e Adam Smith, e a realidade das políticas neoliberais, cuja implementação predatória não dispensa o papel central do Estado como instrumento ao serviço da subjugação das classes populares e da apropriação de recursos comuns. O poder performativo do discurso neoliberal não advém da sua superioridade em termos de validade interna ou de adequação à realidade, mas da sua capacidade de moldar a visão do mundo dos grupos dominados de modo a que estes encarem como inevitáveis – ou até desejáveis – as transformações sociais e políticas que reforçam as relações de desigualdade e dominação a que estão sujeitos (...)

Prioridades

A sabedora convencional neste país é tão subalterna, está tão habituada a pensar nos termos dos credores, está tão habituada a papaguear a história fraudulenta, racista, dos que nos tratam como alcoólicos, que uma declaração política que, no fundo, dá prioridade aos interesses de um país que não pode estar sujeito ao desenvolvimento do subdesenvolvimento, como a que o Pedro Nuno Santos fez, só pode ser recebida com a incompreensão de quem ignora o que se passou noutras experiências idênticas. É evidente que o fardo da dívida, que a recessão e as condições financeiras se encarregam de aumentar todos os dias, terá de ser reduzido. A renegociação da dívida é uma arma cujo uso só pode ser recomendado desde já por todos os que têm alguma noção das possibilidades do desenvolvimento das periferias, por todos os que colocam os interesses da maioria dos cidadãos em primeiro lugar, por todos os que não aceitam esta dominação. De resto, é como diz Manuel Alegre: “irresponsável é o servilismo”. O que vale é que a história económica dará razão a todos os que recusam a irresponsabilidade servil de elites que parecem estar convencidas que se destruirmos a economia portuguesa os credores terão piedade de nós.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

De cimeira em cimeira até ...


Da minha coluna no jornal i:

Segundo, à crise do euro junta-se uma crise política de consequências imprevisíveis. A Alemanha quer refundar a UE à luz dos princípios do ordoliberalismo, a versão do liberalismo económico teorizada por economistas alemães entre os anos 30 e 50 do século passado. Esta corrente de pensamento pretende substituir a intervenção política na condução da economia por regras que entende serem apolíticas. Normas jurídicas, algumas de nível constitucional, e a intervenção de tribunais para aplicar sanções aos prevaricadores garantem nas melhores condições o respeito pelos direitos de propriedade, a concorrência e o valor da moeda. O ideal ordoliberal é a redução da democracia ao estado de direito, ou seja, uma democracia com deliberação política mínima. Por isso, a política monetária deve ser conduzida por um banco central independente e a política orçamental deve ter regras que limitem a acção do governo.

Crente do ordoliberalismo, a Sr.a Merkel exigiu um governo económico do euro constituído por regras tanto quanto possível isentas de deliberação política no plano europeu. Através do visto prévio dos orçamentos, pretende liberalizar as leis do trabalho e formatar as instituições do estado-providência segundo o seu modelo, mesmo que isso signifique o desmantelamento da identidade institucional e cultural de cada estado-membro. Exigiu também, através de uma norma de nível constitucional, a eliminação da política orçamental nos períodos de recessão, mesmo que o modelo do “estado espectador” signifique o afundamento na depressão. Em rigor, e com excepção do Reino Unido por más razões, a Alemanha convenceu os governos dos estados-membros da UE a celebrarem um pacto de suicídio por fora do Tratado. Neste momento até os especuladores percebem que este caminho não tem saída. Vem aí outra cimeira.

Tomar a Iniciativa


A Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida é, provavelmente, a mais importante iniciativa política dos tempos que correm. Não só traduz a urgência de mudar os termos do debate em torno da dívida, colocando os direitos dos cidadãos acima da obscuridade da finança, como é uma oportunidade para a necessária pedagogia em torno da crise, quebrando a barragem mediática com que nos defrontamos. A conferência começa já esta Sexta-Feira com um debate com Eric Toussaint, Costas Lapavitsas e Ana Benavente. Participar é uma obrigação de cidadania.

Evidente



Pedro Nuno Santos diz aquilo que devia ser evidente para todos. As condições de pagamento da dívida são a única arma negocial ao dispor das periferias nesta era do protectorado de Merkozy. Eu diria mais, no actual contexto de austeridade recessiva é evidente que Portugal não conseguirá pagar esta dívida, nestas condições. A Grécia é o exemplo a ter em conta. Com a sua economia em depressão, os países europeus viram-se obrigados a um pequeno "perdão". Um não pagamento parcial que não resolve nada, pois impõe as mesmas políticas, agora em doses reforçadas. Daí a importância de serem os devedores a tomarem a iniciativa. É urgente mostrar o carácter "soberano" da dívida.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Só nós

«Salvo catástrofe natural (e mesmo as consequências podem ser minoradas), tudo o que acontece aos humanos é obra de humanos. Tudo aquilo que é mau nas sociedades humanas, e tudo o que se consegue fazer de bom, saiu de nós. De uma maneira ou de outra, aquilo que humanos conseguem fazer, outros humanos conseguem desfazer. A "ganância estúpida" que Keynes lamentou em 1919 é humana. A "prudente generosidade" que Marshall concretizou após 1945 também. Exigir o pagamento de dívidas até toda a gente se lixar é humano. Perdoar dívidas para suster um dano maior também. A escravidão e a abolição, ambas humanas. Os humanos podem escolher. O que foi feito na Europa nos últimos tempos tem que ser invertido, e depois reformulado. Tudo o que é antidemocrático, absurdo e irrealista pode ser substituído por coisas democráticas, que façam sentido e que sejam sustentáveis. E quem tem que fazer isso somos nós. Porquê? Porque os marcianos não virão cá fazer por nós. Porque os mortos já não podem. Porque os vindouros ainda não podem. Não há mais ninguém: só nós.»

Do luminoso ensaio de Rui Tavares no Público de hoje (que merece ser lido na íntegra), acerca das ameaças que pendem sobre a Europa e as lições que o passado nos oferece para as evitar. Um texto inspirado na visão nocturna de Paris que, a partir do céu, deixa perceber o «pequeno alfinete dourado espetado nas luzes da cidade». Depois da Exposição Universal de 1900, para a qual se construiu, a Torre Eiffel foi objecto de um debate sobre o destino que lhe devia ser dado, havendo quem defendesse o desmantelamento, em 1909, da engenhosa estrutura metálica. Invocando a sua utilidade científica (para observações meteorológicas e instalação de sistemas de comunicação sem fios), Gustave Eiffel conseguiu salvá-la da destruição. Tal como Paris seria hoje irreconhecível sem a sua «dama de ferro», também a Europa o será, se permanecer por mais algum tempo nas mãos dos principais irresponsáveis que a têm conduzido.

É a desigualdade

Desigualdade esteve na origem da crise, diz dirigente do FMI. Então por que é que insistem em politicas de ajustamento estrutural que só aumentam a tal desigualdade? Enfim, informativas quatro páginas do Negócios de ontem, da autoria de Pedro Romano, sobre este tema crucial. O estudo do FMI, a que o Ricardo já aludiu, é convergente com outros estudos sobre este tema ainda relativamente pouco escrutinado entre os economistas convencionais, em especial nos seus impactos macroeconómicos, mas que sempre fez parte da agenda da economia keynesiana, por exemplo. De facto, o aumento da desigualdade durante o regime neoliberal, com a estagnação salarial da maioria e com o seu maciço recurso ao endividamento, em articulação com a formação de bolhas em vários activos, caso do imobiliário, alimentou e alimentou-se do processo de financeirização da economia que traduziu a excessiva acumulação de rendimento e de riqueza em poucas mãos: a sua valorização através dos circuitos financeiros do crédito e da especulação ocultou o medíocre andamento do investimento produtivo e os problemas de procura. A crise revelou toda a insustentabilidade deste arranjo iníquo e ineficiente. De resto, Romano entrevista também Richard Wilkinson, co-autor do imprescindível O Espírito da Igualdade: a desigualdade económica corrói o laço social.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Populismo selectivo

Espera-se que Duarte Marques, líder da JSD, que se revelou tão afoito na defesa do apuramento de responsabilidades criminais dos agentes políticos «pela situação económica do país», já esteja a reunir documentos e a preparar um dossier sobre o processo de transferência dos fundos de pensões da banca para o Estado.

É que se trata de um negócio que constitui, ao mesmo tempo, uma forma deliberada de descapitalização da Segurança Social e mais um passo no descarado benefício do sector financeiro. De facto, os dois mil milhões de euros resultantes desta transferência não só não vão directos para os cofres da Segurança Social, como seria expectável (servindo antes, por decisão do governo, para «injectar liquidez na economia»), como se imputa ao sistema público de pensões uma pesada responsabilidade, que adia «para as gerações futuras o pagamento de compromissos assumidos no presente». E, como se não bastasse, ao abrigo desta despudorada negociata, permite-se que os custos – para as instituições financeiras – decorrentes da transferência, possam ser abatidos no seu lucro tributável, durante um período de 10 a 20 anos.

Em coerência, exige-se portanto que Duarte Marques agende novamente, em breve, uma audiência com o Procurador Pinto Monteiro, levando consigo este assunto e sugerindo, como fez no passado recente, que se está perante indícios criminais que apontam para «a irresponsabilidade daqueles que de forma óbvia e deliberada, movidos por interesses mais ou menos obscuros, atentaram vergonhosamente contra a nação». É que, tal como o sol, a demagogia e o populismo oportunista deviam, no mínimo, nascer para todos.

A integração Europeia de Portugal valeu a pena?

No passado dia 28 de Novembro participei num painel com o título deste post, no âmbito da Conferência “25 Anos na União Europeia - Onde Estamos? Para Onde Vamos?”, organizada pelo IDEFF/FDL. Na minha intervenção procurei pôr em causa a visão dominante sobre a crise das periferias da UE – e da portuguesa, em particular – ou seja, a ideia de que a origem de todos os males reside na indisciplina orçamental dos governos do sul. Para quem estiver interessad@, a intervenção pode ser vista na íntegra aqui. Este é o gráfico que surge projectado durante a sessão:


segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Razões económicas

A verdadeira razão para se estar contra a criação da Sociedade dos Amigos de Herbert Hoover (vulgo, pacto de estabilidade orçamental) de Angela Merkel e Nicolas Sarkozy é que esta condena a Europa a deflação e desemprego elevado permanentes, o que significa que o Primeiro-Ministro tomou a decisão certa pelas razões erradas.

Larry Elliot, editor de economia do britânico The Guardian.

Donos

Merkel falou com Passos sobre benefícios da oferta da E.ON pela EDP; Banca ganha 20 anos de créditos fiscais por transferir pensões. Duas notícias que indicam o mesmo: para compreender a economia política do capitalismo dependente é preciso prestar atenção aos negócios dos donos internos e externos de Portugal, à forma como se apropriam de activos públicos e como transferem custos para o público; sem esquecer, claro, os maciços investimentos em ideologia liberal que são necessários para tentar assegurar o consentimento cidadão, mais ou menos passivo, a este sórdido espectáculo.

domingo, 11 de dezembro de 2011

O melhor álbum do ano

Lições da Grande Depressão

A The Economist desta semana, com o pragmatismo liberal já aqui referido pelo João Rodrigues, tem uma longa peça sobre as lições dos tenebrosos anos trinta que vale a pena ser lida. É consensual que os Estados, quer pela política monetária quer pela política orçamental, conseguiram prevenir uma crise da dimensão comparável à Grande Depressão. Contudo, as opiniões sobre a importância de cada uma das faces das políticas públicas de intervenção são bastante divergentes (a minha apreciação está aqui).

A opinião da superior eficácia da política monetária expansionista face à política orçamental parece ser hoje a opinião dominante entre os economistas. Infelizmente, não surpreende, mas ajuda a explicar as actuais escolhas políticas feitas um pouco por todo o mundo neste momento. Face à suposta ineficácia de políticas orçamentais expansionistas, os governos têm enveredado pela austeridade orçamental, acompanhada pela concessão de crédito por parte dos bancos centrais à banca por forma forma a conseguir “olear” o esperado crescimento da economia. A passada semana foi muito clara neste aspecto. Ao mesmo tempo que os diferentes Estados europeus se comprometiam com suicidárias regras orçamentais, que, pura e simplesmente, nunca poderão ser cumpridas, o Banco Central Europeu diminuía a sua taxa de juro e anunciava novas linhas de crédito à banca europeia.

O problema, para além de tais escolhas serem a receita certa para a recessão, no facto de este programa ser contraditório nos seus próprios termos. É certo que os países do centro europeu irão beneficiar da acrescida liquidez fornecida pelo BCE. Todavia, devido à total liberdade de movimentos de capitais no espaço europeu e à fragilidade financeira dos países periféricos, a fuga de capitais da periferia para o centro é hoje uma realidade quase inevitável que se traduz em contracção monetária (ver o gráfico abaixo). Uma dinâmica só agravada pelas recentes indecisões. Acrescentem-se as doses cavalares de austeridade e, conclusão, o que se passa na periferia europeia ultrapassa qualquer lógica económica. Vamos mesmo rumo à depressão.

Da estupidez

O défice depende fundamentalmente do andamento da economia e por isso não faz qualquer sentido inscrever na lei um valor para esta “variável endógena”. E muito menos um valor para o défice estrutural, cujo cálculo é bastante controverso, de 0,5% do PIB, o que obrigará todos os países europeus a enveredar por políticas de austeridade permanente. No actual contexto, tal acção é sinonimo de depressão. A história mostra que crise após crise, estagnação após estagnação, bolha após bolha, crescimento fulgurante após crescimento fulgurante, a posição das finanças públicas numa economia capitalista avançada é sobretudo o reverso do andamento interno e externo da economia dita privada, dependendo também, mas em menor grau, da capacidade de ir contrariando o ineficiente e injusto “Estado fiscal de classe”. Um Estado que esta integração europeia tem aliás promovido, graças à libertinagem dos capitais que favoreceu.

Basta pensar que a Alemanha, nos últimos dez anos, não conseguiu cumprir a tal regra dita de ouro, devido à sua medíocre performance económica, idêntica à portuguesa entre 1999 e 2007. As dinâmicas Espanha e Irlanda, por exemplo, tiveram superávites orçamentais na borbulhante fase ascendente do seu ciclo económico, antes de 2007, e foram muito elogiadas por isso, pela sua disciplina e tal. A incensada e muito liberal Irlanda tinha assim uma dívida pública de 25% do PIB, em 2007, mas viu-a mais do que triplicar nos últimos depressivos anos de rebentamento bancário, enquanto que a Espanha, onde era pouco mais do que 30%, assistiu à sua duplicação.

Se há país que ilustra na perfeição a natureza cíclica da posição das finanças públicas numa economia capitalista é mesmo a Espanha. Os excedentes orçamentais e a dívida pública baixa foram a tradução da economia do tijolo alimentada pelo endividamento privado e pelos fluxos de capitais europeus. Os défices, a partir de 2008, e a duplicação da dívida pública, foram a inevitável tradução do rebentamento da bolha imobiliária, da fragilidade financeira e do esforço dos privados para reequilibrarem os seus balanços, gerando quebras das receitas fiscais. Já em Portugal, estagnado antes da grande recessão, mas com um défice abaixo dos 3%, obtido graças a políticas que não ajudaram ao crescimento, o aumento subsequente do défice foi também resultado do afundamento económico, com a consequente acção dos estabilizadores automáticos - da quebra das receitas fiscais ao aumento de algumas despesas.

Que dizer mais? Repetir que o plano inclinado da austeridade mina o crescimento e o emprego, de que depende em grande medida a almejada “consolidação” das finanças públicas, e que as elites erram sistematicamente no sentido da causalidade, porque o crescimento é uma condição para finanças públicas ditas sãs e não o contrário, e que esse crescimento requer investimento público e privado? Repetir pela enésima vez duas mensagens básicas – o governo pode controlar a despesa e assim cortar nos rendimentos e na procura, mas não controla o défice; o momento para resolver o problema das finanças é a fase ascendente do ciclo económico capitalista, fase que com esta austeridade corre o risco de não chegar? Não adianta perante o moralismo reinante. Esta fixação obtusa com os défices orçamentais não tem qualquer fundamento, já se sabe: trata-se apenas de um mau pretexto para reduzir os salários directos e indirectos da maioria. Há muita classe neste moralismo.

Do ponto de vista da social-democracia, a aceitação das taras ordoliberais das elites alemãs e dos seus lacaios nacionais é incompreensível. Tem a palavra João Pinto e Castro: “A única coisa que nesta circunstância parece ocupar a cabeça do PS de Seguro é saber se a limitação do défice a um máximo de 0,5% do PIB (porque não, como seria mais correcto, do PNB?) deve ser plasmada na Constituição ou numa mera lei ordinária. 
Poderemos concluir daqui que o PS está de acordo com o princípio em si mesmo, visto que desta vez não pode desculpar-se com os compromissos assumidos com a troika.
 Ora tanto a ideia de fixar limites legais ao défice como a de aplicar sanções automáticas a quem os ultrapassar são estúpidas.” Se o PEC já era estúpido…

Para tempos trágicos

Será na esfera pública, dando visibilidade a ideias disponíveis que são alternativas viáveis à tragédia europeia em curso, que poderá deter-se o colapso social que se anuncia. O projecto neoliberal deve grande parte da sua capacidade de implantação ao facto de não dizer o seu nome, de não ser claro quanto aos seus propósitos e, pelo contrário, se escudar em dispositivos discursivos e práticas que o elidem: não há alternativa, é assim porque é assim, a culpa é das vítimas (polícia mau) ou isto é o melhor para elas (polícia bom). Parte do combate à crise passa, de facto, por obrigar o neoliberalismo a dizer o seu nome. Não tratar os seus defensores, e menos ainda os que o aplicam, como adversários menores. Não lhes facilitar saídas fáceis, como acusá-los de serem mais técnicos do que políticos (quando são políticos a impor políticas neoliberais) ou de apenas gostarem de ser bons alunos da Europa (quando são políticos que se revêem ideologicamente na linha dominante na União Europeia).

Nas ocasiões em que os neoliberais falam com clareza, como fez o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho ao referir-se aos países sob intervenção dos planos de ajustamento estrutural como «aqueles que foram indisciplinados» e a Angela Merkel como alguém com quem «em vez de colagem há coincidência de posições» (Público, 4 de Dezembro de 2011), o que importa sublinhar é um posicionamento político-ideológico que é contrário aos interesses das periferias europeias no quadro do saque em curso. Porque só quando as escolhas políticas são claras podemos ter democracias substantivas. Já o sabemos mas, nestes tempos de certezas e incertezas trocadas, convém repeti-lo: sem política, as escolhas são cegas; sem instrumentos para as levar à prática, são vazias. E o nosso lugar não é entre a cegueira e o vazio
.

Excerto do editorial da Sandra Monteiro. Este número do Mdiplo tem muitos motivos de interesse na componente portuguesa: Alexandre Abreu, "As sete vidas do argumentário neoliberal", ou João Ferreira do Amaral, "Austeridade sem fim e sem fundo", são dois exemplos na área da economia política.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Terramotos

Em «O pequeno livro do grande terramoto», Rui Tavares descreve a forma como o moralismo religioso justificou a hecatombe que se abateu sobre Lisboa em 1755. As ondas do tsunami, o estremecer das entranhas da terra e os incêndios que devoraram a cidade não eram mais do que a expressão da justiça divina, que desse modo castigava o alastrar do pecado e do vício.

Poderá hoje dizer-se que esta explicação metafísica nasceu da incapacidade para compreender as causas de uma catástrofe natural (a teoria da tectónica de placas surgiria, de facto, apenas cerca de um século mais tarde). O insuportável vazio foi ocupado pelo obscurantismo, que a ausência de explicações alternativas, racionais, legitimou.

Um terramoto abala hoje a Europa e (de uma forma que até há muito pouco tempo diríamos não ser possível) os seus alicerces mais sólidos. Para os tecnocratas moralistas, a crise que a União atravessa não é senão a consequência do vício do endividamento, em que incorreram Estados irresponsáveis. Por isso se impõe penitência e disciplina. Por isso os incumpridores devem ser obrigados a abdicar da sua soberania e da própria democracia.

O futuro olhará para estes dias negros com a mesma perplexidade e estranheza com que hoje se encara a explicação moralista do terramoto de 1755. Mas com substanciais diferenças. Conhecemos bem as causas da catástrofe (uma crise financeira resultante da desregulamentação dos mercados, que expôs as fragilidades de uma zona euro disfuncional e de uma integração económica europeia assimétrica). E sabemos que o reforço continuado da fracassada receita austeritária apenas contribui para o agravar da situação, tal como temos noção dos caminhos que podem inverter a vertigem da crise (políticas expansionistas coordenadas, estímulo do crescimento e do emprego, e uma governação económica europeia que dote o BCE de plenos poderes, a par da regulação dos mercados financeiros, capaz de travar a especulação em dominó sobre as dívidas soberanas).

Ao contrário de 1755, o obscurantismo que a actual crise desencadeou é portanto mais complexo e incompreensível. Atravessa os moralistas obstinados e os seus mais fanáticos acólitos. Mas afecta igualmente aqueles que, tendo já compreendido a cegueira irracional que nos conduz para o desastre, respondem com a resignação e o silêncio. O Conselho Europeu que ontem teve lugar é a mais clara ilustração disto mesmo.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Bancarrotocracia

A estreita imbricação com o capital financeiro está na natureza do BCE, nas suas regras, estatutos, ideologia e pessoal político – sim, não há cargo mais politico do que presidente desta instituição decisiva para as dinâmicas de uma economia monetária de produção. Por isso, não é de admirar que, como bem afirmam Rui Peres Jorge e André Veríssimo, jornalistas do Negócios, Mário Draghi ontem tenha mostrado “que fará muito pelos bancos, mas não pelos Estados”. Esta assimetria mostra que o BCE só existe para defender os bancos, a bancarrotocracia de que fala Varoufakis no seu magnífico livro The Global Minotaur, e para esvaziar cada vez mais a soberania democrática. Os bancos, que estão na base da crise, têm empréstimos quase grátis com prazos cada vez mais dilatados e menos exigências, a maioria dos cidadãos tem direito a uma austeridade cada vez mais recessiva e que destrói as suas vidas, graças ao desemprego de massas permanente e à erosão das capacidades colectivas. Tudo acompanhado pela imposição das inviáveis taras ordoliberais alemãs, com renovados esforços de governos subalternos, que caberá aos cidadãos contrariar através de um referendo, para constitucionalizar um moralismo económico incapaz de compreender as origens dos desequilíbrios europeus.

Salvar a democracia

«Nas próximas 24 horas, os líderes europeus poderão aprovar o terrível plano de Merkel e Sarkosy, que permite abolir o direito a escolher políticas económicas progressistas. (...) Aterrorizados pelos grandes bancos, os governos europeus pretendem mudar as constituições e os tratados da União Europeia, banindo de forma permanente despesa pública essencial. E isto é insane: nos anos trinta, foi precisamente a despesa pública que permitiu que a Europa e os Estados Unidos escapassem à Grande Depressão. A Europa precisa de regular os bancos com rigor, e não de amarrar as mãos dos nossos governos.
Vivemos em democracia, o que significa que os nossos líderes não deveriam sequer poder decidir sozinhos sobre este plano. É necessário que sejam apresentadas propostas que impliquem a sua aprovação pelos cidadãos e parlamentos nacionais. Temos apenas 24 horas para salvar as nossas democracias deste ataque - o nosso apelo massivo poderá forçar os líderes a respeitar a democracia, regular os bancos, rejeitar a auteridade e investir no futuro.»

Excertos do texto que acompanha a petição lançada pela Avaaz e que pode ser assinada aqui. A lista de subscritores será divulgada junto dos líderes dos países membros e da comunicação social no final da cimeira europeia.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Alerta

A transferência de uma parte dos fundos de pensões da banca para a Segurança Social (a parcela correspondente a cerca de 30.000 trabalhadores bancários já reformados) é um negócio altamente vantajoso para a banca, que poderá vir a criar graves problemas tanto aos bancários reformados como a todos os trabalhadores abrangidos pela Segurança Social, e mesmo aos contribuintes, pelas graves consequências financeiras que poderá ter no futuro. É isso o que vamos procurar mostrar neste estudo alertando os trabalhadores e os reformados da banca e da Segurança Social para os perigos e consequências desta transferência.

Subalternos?

O desenvolvimento do subdesenvolvimento, indissociável da configuração crescentemente austeritária da integração europeia, tem a sua expressão ideológica num pensamento subalterno que recusa quase por princípio o dissenso em matéria europeia, afirmando as misteriosas virtudes do consenso europeu de bloco central que nos trouxe até aqui e que é hoje sinónimo da mais radical guinada para a direita numa democracia cada vez mais limitada. O editorial do Público de hoje é um bom exemplo desta postura enviesada. Tendo ainda uma incompreensível expectativa nas possibilidades da próxima cimeira, no editorial também se manifesta preocupação pelo facto de o PS manifestar algumas reservas, tímidas e pouco consistentes, ou não tivessem Maria João Rodrigues e outros eurocontentes ainda uma grande influência, em relação ao rumo de desastre que será uma vez mais confirmado. Euro-obrigações, intervenção do BCE como credor de último recurso ou a consciência dos efeitos perversos, a contrariar, da estratégia predadora da burguesia alemã, traduzida na obtenção a todo o custo de superávites na balança corrente, que tiveram como contrapartida necessária os défices externos das periferias, são sinais de um início de sentido crítico social-democrata. Se quiser ser levado a sério nesta linha, o PS terá seguramente de romper com a lógica da austeridade permanente e sem futuro, com o neo-colonialismo constitucional que lhe estará associado e com os paninhos quentes de editoriais que aceitam uma chantagem europeia geradora de empobrecimento desigual e de nada mais.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Poor standards...


Quinze países da zona euro, incluindo os distintos AAA, foram avisados pela Standard & Poor's que as suas notações podem ser cortadas. A Zona Euro caminha para o lixo e sem mandar estas instituições para o caixote do lixo da história financeira. É claro que para os Estados monetariamente soberanos, como os EUA ou o Japão, estas ameaças pouco aquecem ou arrefecem nas taxas de juro da dívida soberana.

Na Zona Euro, que reduziu os Estados, primeiro os periféricos, ao estatuto de regiões, sem criar nada que os substituísse na escala apropriada, a da moeda, o círculo vicioso, reforçado pelas profecias auto-realizadas destas instituições, é o mesmo de sempre: a austeridade também prescrita pelas agências gera recessão e ainda mais fragilidade financeira.

No meio de toda a pressão, as soluções de relançamento com escala europeia, que passam pela acção monetária do BCE, pela emissão de euro-obrigações garantidas por uma instituição europeia, pelo reforço do Banco Europeu de Investimento e pela recapitalização dos bancos, com correspondente aumento do controlo público, são definitivamente enterradas e substituídas pelo moralismo mais imoral, por um panóptico financeiro inviável, o que assegura que a única saída, a prazo, é mesmo o fim do euro.

Não é aliás por acaso que Yanis Varoufakis, um dos autores da proposta modesta para uma saída europeísta para a crise, começa relutantemente a encarar o cenário de abandono de um navio que se afunda. Costas Lapavitsas, outro economista político, e um dos dinamizadores do RMF, há muito que só conta com esse cenário. Tudo parece começar na Grécia.