1. Este gráfico sobre a fuga de depósitos da banca grega diz tudo sobre a situação. Sem controlos de capitais, sem o mínimo de soberania monetária, um governo democrático está sujeito a todas as operações políticas de desestabilização conduzidas pelo exterior e com efeitos no interior; neste caso, a operação é conduzida pelo BCE, um instrumento da guerra financeira dos credores de uma dívida que, como indica investigação recente conduzida no FMI, pode ser eficazmente reduzida pela chamada repressão financeira, de que os controlos de capitais são parte, e que historicamente garantiu, entre outras, taxas de juro reais negativas.
2. Neste contexto grego, é mesmo como diz Francisco Louçã: “Para os que acompanham com esperança a Grécia e a promessa do seu governo, a lição é forte e deve ser enunciada com todas as palavras: o euro não permite uma política de esquerda para corrigir ou combater os efeitos da crise financeira e social. Se a esquerda quer fingir que a Grécia ensina algo de bondoso e regenerador sobre a União Europeia, é melhor começar a fazer uma procissão a Berlim, porque será esse o seu destino.”
3. É por estas e por outras que já não tenho paciência para os apelos à unidade da esquerda, como o que hoje saiu no Público. É impressionante como pessoas muito respeitáveis repetem o mesmo método há vários anos: diagnóstico genérico da situação, formulação ainda mais vaga dos eixos programáticos e, claro, um entendam-se todos, dando a ideia que a situação se desbloqueia por um simples acto de vontade ou que está bloqueada por falta dela, assim como que uma birra de direcções partidárias pouco atreitas a compromissos de governo. Por exemplo, reconhecem no texto que há divergências sobre o euro e a UE, mas tais questões são obviamente detalhes que não justificam chatices, como se vê na Grécia. Desculpem, mas assim é fácil. Mais difícil é desencadear e justificar as iniciativas que contam, algumas delas impostas por condições bem objectivas e antecipáveis, e formular apelos à altura das circunstâncias em que os indivíduos têm de fazer a sua história. Pela minha parte, considero há muito que a unidade popular terá de se fazer em torno de um programa patriótico, para usar uma formulação dos autores, claramente definido e claramente indeclinável. Esse programa pode ajudar a criar a tal fronteira do
antagonismo que conta. Tudo o resto é pura perda de tempo.
terça-feira, 31 de março de 2015
Ouch...
Será mesmo este o caminho que o PS quer seguir? Para o fundo, rapidamente e em força, com a orquestra de bêbados a tocar no convés?
Ou
haverá algum rumo político que um dia vá emergir daquela amálgama? Algum pensamento que se consiga afirmar sem esperar pelo que o PSD tem a dizer e sem esperar pelo que a União Europeia queira autorizar?
JV Malheiros sobre o PS, a propósito da reacção à candidatura de Henrique Neto.
JV Malheiros sobre o PS, a propósito da reacção à candidatura de Henrique Neto.
segunda-feira, 30 de março de 2015
Do (des)emprego
A diminuição do desemprego e a criação de emprego são dois pontos oficialmente apontados como sinais da retoma da economia, do fim da crise e do sucesso do programa de ajustamento. Na realidade, o mercado de trabalho português encontra-se numa situação depressiva sem precedentes, e sem perspetivas de recuperar a prazo. Por outro lado, o aprofundamento da crise económica tem tido uma forte influência na crise dos próprios indicadores estatísticos.
Pela primeira vez, os valores do desemprego «não oficial» – que retratam dimensões do fenómeno do desemprego que o conceito de desempregado não abarca – ultrapassaram os números do desemprego "oficial". A descida gradual do número oficial de desempregados, a partir de 2013, tem sido paulatinamente contrariada pelo aumento do número de desempregados não reconhecido pelas estatísticas. Tendo em conta as diversas formas de desemprego, o subemprego e as estimativas prudentes sobre a situação laboral dos novos emigrantes, a taxa real de desemprego poderia situar-se, no segundo semestre de 2014, em 29% da população ativa, caso os trabalhadores emigrados tivessem ficado no país.
Excerto do enquadramento para o debate sobre desemprego e emprego que terá lugar amanhã, às 18h30m, no CES-Lisboa (Picoas Plaza). O seu ponto de partida é precisamente o último e muito informativo Barómetro das Crises - Crise e mercado de trabalho: menos desemprego sem mais emprego? João Ramos de Almeida apresenta este trabalho e Francisco Madelino (Presidente do Instituto de Políticas Públicas do ISCTE-IUL) e Jorge Gaspar (Presidente do IEFP) discutem-no. Manuel Carvalho da Silva modera.
Excerto do enquadramento para o debate sobre desemprego e emprego que terá lugar amanhã, às 18h30m, no CES-Lisboa (Picoas Plaza). O seu ponto de partida é precisamente o último e muito informativo Barómetro das Crises - Crise e mercado de trabalho: menos desemprego sem mais emprego? João Ramos de Almeida apresenta este trabalho e Francisco Madelino (Presidente do Instituto de Políticas Públicas do ISCTE-IUL) e Jorge Gaspar (Presidente do IEFP) discutem-no. Manuel Carvalho da Silva modera.
Água: Exemplo de financeirização
A propósito do ruinoso contrato feita pelo Município de Barcelos na concessão da provisão de água, notícia no Público, deixo aqui o artigo no Le Monde Diplomatique que escrevi sobre a evolução do sector e sua financeirização em Portugal.
Provisão pública, neoliberalização e movimentos nascentes
A luta pela água em Portugal
O sector da provisão e tratamento de água em Portugal é uma das estórias de maior progresso no nosso país das últimas décadas. Com investimento crescente ao longo dos últimos vinte anos, a cobertura de água potável atinge hoje praticamente todos os agregados familiares nacionais, com o saneamento e tratamento de esgotos a atingir cerca de três quartos da população. Este progresso não pode ser desligado do acesso a fundos estruturais europeus das últimas décadas. Contudo, também foi o processo de integração europeia que contribuiu decisivamente para a crescente neoliberalização do sector, crescentemente comandado segundo os ditames do mercado e da finança. De facto, este é um sector paradigmático das vantagens e desvantagens do processo de integração, bem como dos desafios com que hoje o nosso país se depara. No quadro da actual crise, o acesso universal a um bem tão essencial como a água pode estar ameaçado pelo peso do endividamento do sector e pela pressão para a privatização, resultado de um modelo de investimento e gestão pouco contestado ao longo de décadas.
Breve história da neoliberalização
Portugal entrou no seu período democrático com menos de metade da população com acesso a água e menos de um quinto com acesso a saneamento. Doenças provocadas por deficiente acesso a saneamento, como a cólera, conheceram surtos até 1974[i]. Com o 25 de Abril e um novo poder municipal reforçado, as deficiências do sector encontraram resposta no poder político, com o investimento público na infra-estruturação a conhecer um crescente progresso.
Contudo, a gestão fragmentada entre autarquias, empresas públicas, como a EPAL e a administração central, obrigou à redefinição do sector, em 1993, com o decreto n.º 372/93, entendida como condição para o acesso aos fundos europeus. A provisão de água e saneamento foi então dividida entre os sistemas «em alta» (captação e tratamento de água, normalmente sistemas mais capital intensivos) e os sistemas «em baixa» (provisão em retalho aos consumidores finais). Os municípios mantiveram o controlo sobre os segundos, continuando assim com o poder de fixar tarifas aos consumidores finais. Os sistema em alta foram, na sua maioria, colocados em recém-criadas empresas multimunicipais controladas pela empresa pública Águas de Portugal. O assentimento das autarquias foi conseguido nestes casos pela promessa do investimento necessário sem que este implicasse qualquer dívida para os seus orçamentos. À empresarialização do sector juntou-se a possibilidade de entrada de capital privado através de concessões municipais em baixa, realidade a que aderiram alguns municípios, sobretudo no norte e litoral do país. Finalmente, foi criada uma entidade regulatória, a Entidade Reguladora do Sector da Água e Resíduos (ERSAR), antes INSAR, que procura assegurar a provisão segundo critérios de boa gestão empresarial e protecção dos consumidores. Esta estratégia política, mantendo a propriedade do sector na sua maioria nas mãos de entidades públicas, introduziu assim um mimetismo de mercado no sector onde era impossível criar mercados concorrenciais. Estas novas entidades públicas passaram a reger-se por critérios de gestão da água tipicamente mercantis, entendidos como mais eficientes, como o princípio do utilizador-pagador e a «recuperação total de custos» – em que as tarifas devem reflectir os custos de investimento durante um período de tempo, definido normalmente de forma discricionária. De forma assimétrica e a velocidades muito diferentes, conforme a autarquia em questão, a água foi assim paulatinamente transformada numa mercadoria a ser provisionada e gerida segundo lógicas de mercado. No caso português, e com uma economia em acelerada financeirização, tal lógica traduz-se num sector altamente vulnerável aos voláteis desmandos dos mercados financeiros.
Financeirização e seus efeitos
De facto, se é o processo de integração europeia e a possibilidade de acesso a fundos estruturais que permite os saltos mais significativos na infra-estruturação do sector, também foi este processo que obrigou à sua empresarialização. Constrangido pelos limites ao défice público impostos pela arquitectura do euro, primeiro, pelos critérios de Maastricht e, mais tarde, pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento, o Estado privilegiou sobretudo um plano de investimento em que os fundos europeus foram acompanhados, não por financiamento do Orçamento de Estado, mas por endividamento, quer junto do sistema bancário nacional, quer nos mercados financeiros e instituições estrangeiras, como o Banco Europeu de Investimento. Este processo acelerou durante a década iniciada em 2000, beneficiando das baixas taxas de juro, tendo o seu pico em 2007, quando atingiu um investimento total de 1187 milhões de euros, com um participação média de fundos europeus de 35%, apoiado pela sofisticação e acesso aos mercados da empresa-mãe Águas de Portugal[ii]. Este investimento mais tardio foi concentrado nos sistemas em alta das regiões de população mais esparsa. Segundo a ERSAR, o endividamento atingiu assim níveis recorde em sistemas multimunicipais em regiões como a Alentejo e o Côa, onde o peso da dívida ultrapassou os 60% dos activos detidos por estas empresas, sendo por isso altamente vulneráveis na sua actividade às variações de taxas de juro.
Este parecia, portanto, um negócio onde todos os intervenientes ganhavam. Com endividamento garantido pelo Estado, este não tinha de assumir nas suas contas o esforço financeiro, colocado nos balanços das novas entidades empresariais. Por outro lado, tal modelo permitiu à banca nacional continuar a expandir o seu crédito num período em que o sector da habitação parecia esmorecer relativamente à década de 1990. Finalmente, as empresas de construção encontraram aqui um novo mercado, que lhes permitiu diversificar áreas de negócio, ganhar novas capacidades. De facto, estas últimas não só beneficiaram do investimento realizado, como foram elas que conseguiram capturar a maioria das concessões «em baixa», num mercado sem concorrência e, muitas vezes, com contratos leoninos[iii], como foi recentemente denunciado pelo Tribunal de Contas.
No entanto, o custo destes investimentos – necessariamente agravados com a crise financeira e a dificuldade de (re)financiamento da economia portuguesa – só foi parcialmente transferido nas tarifas dos consumidores. É certo que os preços do consumo de água têm crescido bem acima da inflação desde, pelo menos, 2005, com destaque para os preços médios do saneamento que mais que duplicaram entre 2005 e 2013. Todavia, muitas foram as autarquias que têm servido como almofada à imposição da «recuperação total dos custos», recusando transferir os custos aos consumidores finais. O poder local, mais sujeito às pressões da população que serve, permitiu, por isso, a incrustação social da neoliberalização do sector, com os principais movimentos de resistência a este movimento a sofrerem de uma implantação geograficamente limitada aos concelhos onde a «mercadorização» da água se encontra numa fase mais avançada. Contudo, face a investimentos «em alta» endemicamente sobredimensionados nas suas estimativas de consumo, muitos têm sido os municípios que, ao recusarem-se a transferir o crescente custo da água e saneamento, acumulam uma crescente dívida à Águas de Portugal. Criou-se, pois, uma situação financeiramente insustentável, cujos efeitos se tornaram particularmente salientes com a crise económica.
A crise e o fechar do círculo
A actual crise económica e os consequentes problemas financeiros do sector criaram, entretanto, a oportunidade para a conclusão do projecto neoliberal na provisão de água. Conquanto os custos operacionais no sector tenham caído, fruto sobretudo dos cortes salariais aplicados pelo actual governo de Pedro Passos Coelho, os custos financeiros cresceram, criando problemas de solvabilidade a muitas empresas multimunicipais. Ao contrário do que aconteceu no sector dos resíduos sólidos, os iniciais planos de privatização da Águas de Portugal deste governo foram adiados, dando lugar a uma reforma do sector cujo propósito é claramente tornar esta empresa apetecível a capital privado (dada a dimensão da empresa, provavelmente estrangeiro). O governo pretende agora fundir diferentes empresas multimunicipais em alta em cinco grandes empresas regionais, juntando as deficitárias e fortemente endividadas empresas do interior com as mais financeiramente saudáveis empresas do litoral. Pretende-se assim criar empresas que nas suas tarifas médias, que recuperam a totalidade dos custos, permitam um aumento dos preços mais lento do que aquele que teria de ser imposto aos municípios pelas empresas multimunicipais do interior.
Este plano foi apresentado como uma forma de (justa) homogeneização dos preços no território nacional, em que os consumidores terão de pagar mais ou menos conforme o município onde residam e os custos médios do serviço. Contudo, as notícias então publicadas esquecem o implícito aumento médio das tarifas em alta a nível nacional e, sobretudo, que tais tarifas não são cobradas aos consumidores finais, mas às autarquias. Neste quadro, o reforço dos poderes da ERSAR, que agora poderá fixar tarifas finais à revelia da vontade dos municípios segundo a «recuperação total dos custos», e a vulnerabilidade destes últimos devido ao peso das suas dívidas, permitirá transformar a Águas de Portugal numa empresa apetecível em futuros processos de privatização. Sem concorrência naquele que é um monopólio natural, a sua rentabilidade estará sempre garantida pelos poderes regulatórios do Estado Central que promove este processo.
O preço médio da provisão de água e saneamento consome só 1% do rendimento disponível dos portugueses. No entanto, tal estatística não só esconde os impactos diferenciados num dos países mais desiguais da Europa, como também esconde a disparidade de preços praticada em Portugal entre concelhos que detêm toda a provisão de água e saneamento (em alta e baixa) e os que optaram por concessões privadas ou com empresas públicas em parceria com privados[iv ]. Com o anunciado aumento de preços, o acesso à água está hoje em risco para os sectores mais vulneráveis da população portuguesa, como já acontece com outros bens, como a electricidade e o gás. Tal não significará necessariamente cortes generalizados, até porque a criação de tarifas sociais subsidiadas – mediante comprovação de rendimentos, que normalmente beneficiam pequenas franjas da população, como já acontece com a electricidade permitirá dissimular as dificuldades financeiras que muitas famílias enfrentarão no futuro com as suas facturas, num contexto de quebra de rendimentos e elevado desemprego. Portugal arrisca passar de uma situação em que os cidadãos não tinham água potável na torneira para uma realidade onde não têm dinheiro suficiente para a abrir.
Hoje, com os efeitos da mercadorização da água a serem sentidos ainda de forma muito assimétrica no território nacional, a luta pela água faz-se sobretudo no plano institucional, com os municípios a contestarem não só a perda de poderes face à ERSAR, como também a reestruturação em curso da Águas de Portugal. Neste âmbito, deve-se realçar a recente aprovação por unanimidade da «Declaração de Coimbra»[v] em defesa da água pública, na Assembleia Municipal desta cidade. Este manifesto pode, e deve, ser o ponto de partida de um movimento que se quer mais alargado e participado, de forma a aproveitar o momento eleitoral que se aproxima para conseguir um combate mais informado sobre um tema e um bem essencial.
* Economista, Investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
[i] Para um história da provisão de água e saneamento em Portugal recomenda-se o livro de João Pato, História da políticas públicas de abastecimento e saneamento de águas em Portugal, ERSAR/ICS, Lisboa, 2011.
[ii] Ainda que esta empresa tenha beneficiado de taxas de juro mais baixas do que aquelas cobradas, por exemplo, às autarquias, a Águas de Portugal não foi imune, ainda que em menor grau, às perdas tristemente célebres em instrumentos financeiros derivados, como os swaps de taxas de juro.
[iii] No caso do município de Barcelos, depois de um sobredimensionamento das infra-estruturas a construir em baixa (com estimativas de consumo médio de 160 litros per capita contra um consumo real que nunca excedeu os 80 litros), o município ficou obrigado a um pagamento extra de 6 milhões de euros anuais por água que não é consumida.
[iv] A factura média num concelho como Penedono, onde os serviços são totalmente municipais, ronda os 2,6 euros. Como exemplo contrário, em Paços de Ferreira – com concessão privada controlada por empresa antes detida pela SOMAGUE – a factura média mensal ronda os 28 euros.
[v] Ver http://cidadaosporcoimbra.pt/2014/12/22/declaracao-de-coimbra-sobre-um-bem-publico-essencial-a-agua.
Provisão pública, neoliberalização e movimentos nascentes
A luta pela água em Portugal
O sector da provisão e tratamento de água em Portugal é uma das estórias de maior progresso no nosso país das últimas décadas. Com investimento crescente ao longo dos últimos vinte anos, a cobertura de água potável atinge hoje praticamente todos os agregados familiares nacionais, com o saneamento e tratamento de esgotos a atingir cerca de três quartos da população. Este progresso não pode ser desligado do acesso a fundos estruturais europeus das últimas décadas. Contudo, também foi o processo de integração europeia que contribuiu decisivamente para a crescente neoliberalização do sector, crescentemente comandado segundo os ditames do mercado e da finança. De facto, este é um sector paradigmático das vantagens e desvantagens do processo de integração, bem como dos desafios com que hoje o nosso país se depara. No quadro da actual crise, o acesso universal a um bem tão essencial como a água pode estar ameaçado pelo peso do endividamento do sector e pela pressão para a privatização, resultado de um modelo de investimento e gestão pouco contestado ao longo de décadas.
Breve história da neoliberalização
Portugal entrou no seu período democrático com menos de metade da população com acesso a água e menos de um quinto com acesso a saneamento. Doenças provocadas por deficiente acesso a saneamento, como a cólera, conheceram surtos até 1974[i]. Com o 25 de Abril e um novo poder municipal reforçado, as deficiências do sector encontraram resposta no poder político, com o investimento público na infra-estruturação a conhecer um crescente progresso.
Contudo, a gestão fragmentada entre autarquias, empresas públicas, como a EPAL e a administração central, obrigou à redefinição do sector, em 1993, com o decreto n.º 372/93, entendida como condição para o acesso aos fundos europeus. A provisão de água e saneamento foi então dividida entre os sistemas «em alta» (captação e tratamento de água, normalmente sistemas mais capital intensivos) e os sistemas «em baixa» (provisão em retalho aos consumidores finais). Os municípios mantiveram o controlo sobre os segundos, continuando assim com o poder de fixar tarifas aos consumidores finais. Os sistema em alta foram, na sua maioria, colocados em recém-criadas empresas multimunicipais controladas pela empresa pública Águas de Portugal. O assentimento das autarquias foi conseguido nestes casos pela promessa do investimento necessário sem que este implicasse qualquer dívida para os seus orçamentos. À empresarialização do sector juntou-se a possibilidade de entrada de capital privado através de concessões municipais em baixa, realidade a que aderiram alguns municípios, sobretudo no norte e litoral do país. Finalmente, foi criada uma entidade regulatória, a Entidade Reguladora do Sector da Água e Resíduos (ERSAR), antes INSAR, que procura assegurar a provisão segundo critérios de boa gestão empresarial e protecção dos consumidores. Esta estratégia política, mantendo a propriedade do sector na sua maioria nas mãos de entidades públicas, introduziu assim um mimetismo de mercado no sector onde era impossível criar mercados concorrenciais. Estas novas entidades públicas passaram a reger-se por critérios de gestão da água tipicamente mercantis, entendidos como mais eficientes, como o princípio do utilizador-pagador e a «recuperação total de custos» – em que as tarifas devem reflectir os custos de investimento durante um período de tempo, definido normalmente de forma discricionária. De forma assimétrica e a velocidades muito diferentes, conforme a autarquia em questão, a água foi assim paulatinamente transformada numa mercadoria a ser provisionada e gerida segundo lógicas de mercado. No caso português, e com uma economia em acelerada financeirização, tal lógica traduz-se num sector altamente vulnerável aos voláteis desmandos dos mercados financeiros.
Financeirização e seus efeitos
De facto, se é o processo de integração europeia e a possibilidade de acesso a fundos estruturais que permite os saltos mais significativos na infra-estruturação do sector, também foi este processo que obrigou à sua empresarialização. Constrangido pelos limites ao défice público impostos pela arquitectura do euro, primeiro, pelos critérios de Maastricht e, mais tarde, pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento, o Estado privilegiou sobretudo um plano de investimento em que os fundos europeus foram acompanhados, não por financiamento do Orçamento de Estado, mas por endividamento, quer junto do sistema bancário nacional, quer nos mercados financeiros e instituições estrangeiras, como o Banco Europeu de Investimento. Este processo acelerou durante a década iniciada em 2000, beneficiando das baixas taxas de juro, tendo o seu pico em 2007, quando atingiu um investimento total de 1187 milhões de euros, com um participação média de fundos europeus de 35%, apoiado pela sofisticação e acesso aos mercados da empresa-mãe Águas de Portugal[ii]. Este investimento mais tardio foi concentrado nos sistemas em alta das regiões de população mais esparsa. Segundo a ERSAR, o endividamento atingiu assim níveis recorde em sistemas multimunicipais em regiões como a Alentejo e o Côa, onde o peso da dívida ultrapassou os 60% dos activos detidos por estas empresas, sendo por isso altamente vulneráveis na sua actividade às variações de taxas de juro.
Este parecia, portanto, um negócio onde todos os intervenientes ganhavam. Com endividamento garantido pelo Estado, este não tinha de assumir nas suas contas o esforço financeiro, colocado nos balanços das novas entidades empresariais. Por outro lado, tal modelo permitiu à banca nacional continuar a expandir o seu crédito num período em que o sector da habitação parecia esmorecer relativamente à década de 1990. Finalmente, as empresas de construção encontraram aqui um novo mercado, que lhes permitiu diversificar áreas de negócio, ganhar novas capacidades. De facto, estas últimas não só beneficiaram do investimento realizado, como foram elas que conseguiram capturar a maioria das concessões «em baixa», num mercado sem concorrência e, muitas vezes, com contratos leoninos[iii], como foi recentemente denunciado pelo Tribunal de Contas.
No entanto, o custo destes investimentos – necessariamente agravados com a crise financeira e a dificuldade de (re)financiamento da economia portuguesa – só foi parcialmente transferido nas tarifas dos consumidores. É certo que os preços do consumo de água têm crescido bem acima da inflação desde, pelo menos, 2005, com destaque para os preços médios do saneamento que mais que duplicaram entre 2005 e 2013. Todavia, muitas foram as autarquias que têm servido como almofada à imposição da «recuperação total dos custos», recusando transferir os custos aos consumidores finais. O poder local, mais sujeito às pressões da população que serve, permitiu, por isso, a incrustação social da neoliberalização do sector, com os principais movimentos de resistência a este movimento a sofrerem de uma implantação geograficamente limitada aos concelhos onde a «mercadorização» da água se encontra numa fase mais avançada. Contudo, face a investimentos «em alta» endemicamente sobredimensionados nas suas estimativas de consumo, muitos têm sido os municípios que, ao recusarem-se a transferir o crescente custo da água e saneamento, acumulam uma crescente dívida à Águas de Portugal. Criou-se, pois, uma situação financeiramente insustentável, cujos efeitos se tornaram particularmente salientes com a crise económica.
A crise e o fechar do círculo
A actual crise económica e os consequentes problemas financeiros do sector criaram, entretanto, a oportunidade para a conclusão do projecto neoliberal na provisão de água. Conquanto os custos operacionais no sector tenham caído, fruto sobretudo dos cortes salariais aplicados pelo actual governo de Pedro Passos Coelho, os custos financeiros cresceram, criando problemas de solvabilidade a muitas empresas multimunicipais. Ao contrário do que aconteceu no sector dos resíduos sólidos, os iniciais planos de privatização da Águas de Portugal deste governo foram adiados, dando lugar a uma reforma do sector cujo propósito é claramente tornar esta empresa apetecível a capital privado (dada a dimensão da empresa, provavelmente estrangeiro). O governo pretende agora fundir diferentes empresas multimunicipais em alta em cinco grandes empresas regionais, juntando as deficitárias e fortemente endividadas empresas do interior com as mais financeiramente saudáveis empresas do litoral. Pretende-se assim criar empresas que nas suas tarifas médias, que recuperam a totalidade dos custos, permitam um aumento dos preços mais lento do que aquele que teria de ser imposto aos municípios pelas empresas multimunicipais do interior.
Este plano foi apresentado como uma forma de (justa) homogeneização dos preços no território nacional, em que os consumidores terão de pagar mais ou menos conforme o município onde residam e os custos médios do serviço. Contudo, as notícias então publicadas esquecem o implícito aumento médio das tarifas em alta a nível nacional e, sobretudo, que tais tarifas não são cobradas aos consumidores finais, mas às autarquias. Neste quadro, o reforço dos poderes da ERSAR, que agora poderá fixar tarifas finais à revelia da vontade dos municípios segundo a «recuperação total dos custos», e a vulnerabilidade destes últimos devido ao peso das suas dívidas, permitirá transformar a Águas de Portugal numa empresa apetecível em futuros processos de privatização. Sem concorrência naquele que é um monopólio natural, a sua rentabilidade estará sempre garantida pelos poderes regulatórios do Estado Central que promove este processo.
O preço médio da provisão de água e saneamento consome só 1% do rendimento disponível dos portugueses. No entanto, tal estatística não só esconde os impactos diferenciados num dos países mais desiguais da Europa, como também esconde a disparidade de preços praticada em Portugal entre concelhos que detêm toda a provisão de água e saneamento (em alta e baixa) e os que optaram por concessões privadas ou com empresas públicas em parceria com privados[iv ]. Com o anunciado aumento de preços, o acesso à água está hoje em risco para os sectores mais vulneráveis da população portuguesa, como já acontece com outros bens, como a electricidade e o gás. Tal não significará necessariamente cortes generalizados, até porque a criação de tarifas sociais subsidiadas – mediante comprovação de rendimentos, que normalmente beneficiam pequenas franjas da população, como já acontece com a electricidade permitirá dissimular as dificuldades financeiras que muitas famílias enfrentarão no futuro com as suas facturas, num contexto de quebra de rendimentos e elevado desemprego. Portugal arrisca passar de uma situação em que os cidadãos não tinham água potável na torneira para uma realidade onde não têm dinheiro suficiente para a abrir.
Hoje, com os efeitos da mercadorização da água a serem sentidos ainda de forma muito assimétrica no território nacional, a luta pela água faz-se sobretudo no plano institucional, com os municípios a contestarem não só a perda de poderes face à ERSAR, como também a reestruturação em curso da Águas de Portugal. Neste âmbito, deve-se realçar a recente aprovação por unanimidade da «Declaração de Coimbra»[v] em defesa da água pública, na Assembleia Municipal desta cidade. Este manifesto pode, e deve, ser o ponto de partida de um movimento que se quer mais alargado e participado, de forma a aproveitar o momento eleitoral que se aproxima para conseguir um combate mais informado sobre um tema e um bem essencial.
* Economista, Investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
[i] Para um história da provisão de água e saneamento em Portugal recomenda-se o livro de João Pato, História da políticas públicas de abastecimento e saneamento de águas em Portugal, ERSAR/ICS, Lisboa, 2011.
[ii] Ainda que esta empresa tenha beneficiado de taxas de juro mais baixas do que aquelas cobradas, por exemplo, às autarquias, a Águas de Portugal não foi imune, ainda que em menor grau, às perdas tristemente célebres em instrumentos financeiros derivados, como os swaps de taxas de juro.
[iii] No caso do município de Barcelos, depois de um sobredimensionamento das infra-estruturas a construir em baixa (com estimativas de consumo médio de 160 litros per capita contra um consumo real que nunca excedeu os 80 litros), o município ficou obrigado a um pagamento extra de 6 milhões de euros anuais por água que não é consumida.
[iv] A factura média num concelho como Penedono, onde os serviços são totalmente municipais, ronda os 2,6 euros. Como exemplo contrário, em Paços de Ferreira – com concessão privada controlada por empresa antes detida pela SOMAGUE – a factura média mensal ronda os 28 euros.
[v] Ver http://cidadaosporcoimbra.pt/2014/12/22/declaracao-de-coimbra-sobre-um-bem-publico-essencial-a-agua.
Perguntas fáceis e perguntas difíceis
Desde a primeira metade de 2013 que o desemprego oficial deixou de abranger 197,7 mil pessoas. Mas o emprego apenas aumentou 54 mil pessoas. Para onde foram os outros?
No seu livro “Pensar depressa e devagar”, Daniel Kahneman conta que, uma vez, visitou um chefe do departamento de investimentos de uma grande firma financeira que lhe contou que comprara uma grande quantidade de acções da Ford Motor Company.Quando lhe perguntou como tomara essa decisão, ele respondeu-lhe que visitara uma exposição de automóveis e que ficara muito bem impressionado. Intuição.
“Quando a questão é difícil e uma solução proficiente não está acessível, a intuição tem ainda uma hipótese: pode surgir na mente rapidamente uma resposta – mas não é a resposta à questão inicial. A questão que o executivo enfrentava (deverei investir nas acções da Ford?) era difícil, mas a resposta a uma questão relacionada mais fácil (gosto dos carros Ford?) surgiu rapidamente na sua mente e determinou a sua escolha.”
Lembrei-me disto quando ouvi, na passada 5F, a ministra das Finanças, na comissão parlamentar.
O debate ficou centrado na lista VIP e Maria Luís queixou-se disso, dado que havia um assunto mais importante: a situação económica do país. Mas quando quis debatê-la – e confrontada com a análise de João Galamba de que o crescimento económico registado não era nem considerável nem sustentável (porque nada mudara e a procura interna iria deteriorar outra vez, e muito rapidamente, as contas externas), Maria Luís optou pela falsa questão. Disse que era inquestionável que a tendência era de aceleração do crescimento económico.
A pergunta difícil era como absorver nos próximos tempos um desemprego real que atinge 25% da população activa e fez emigrar mais 5 pontos percentuais? E sem essa absorção, como se manterá o Estado e a Segurança Social? A pergunta fácil era a ilusória: há sinais positivos na situação económica?
A resposta à pergunta inicial é: emigraram (a população total com mais de 15 anos reduziu-se em 64 mil pessoas e os inactivos aumentaram 15 mil). E mesmo o emprego criado teve apoio público - os desempregados ocupados somaram, nesse período 61,1 mil pessoas.
“Quando a questão é difícil e uma solução proficiente não está acessível, a intuição tem ainda uma hipótese: pode surgir na mente rapidamente uma resposta – mas não é a resposta à questão inicial. A questão que o executivo enfrentava (deverei investir nas acções da Ford?) era difícil, mas a resposta a uma questão relacionada mais fácil (gosto dos carros Ford?) surgiu rapidamente na sua mente e determinou a sua escolha.”
Lembrei-me disto quando ouvi, na passada 5F, a ministra das Finanças, na comissão parlamentar.
O debate ficou centrado na lista VIP e Maria Luís queixou-se disso, dado que havia um assunto mais importante: a situação económica do país. Mas quando quis debatê-la – e confrontada com a análise de João Galamba de que o crescimento económico registado não era nem considerável nem sustentável (porque nada mudara e a procura interna iria deteriorar outra vez, e muito rapidamente, as contas externas), Maria Luís optou pela falsa questão. Disse que era inquestionável que a tendência era de aceleração do crescimento económico.
A pergunta difícil era como absorver nos próximos tempos um desemprego real que atinge 25% da população activa e fez emigrar mais 5 pontos percentuais? E sem essa absorção, como se manterá o Estado e a Segurança Social? A pergunta fácil era a ilusória: há sinais positivos na situação económica?
A resposta à pergunta inicial é: emigraram (a população total com mais de 15 anos reduziu-se em 64 mil pessoas e os inactivos aumentaram 15 mil). E mesmo o emprego criado teve apoio público - os desempregados ocupados somaram, nesse período 61,1 mil pessoas.
domingo, 29 de março de 2015
Quadraturas
O PS está economicamente empenhado, antes da apresentação do programa, num exercício de construção de um “quadro macroeconómico” para a próxima legislatura. Este arrisca-se a ser mais uma quadratura do círculo vicioso, configurando uma inversão de Keynes – “mais vale estar vagamente certo do que precisamente errado” – e isto sem grandes instrumentos de política económica nacional para influenciar uma radicalmente incerta trajectória. Veremos se procurarão estar precisamente errados.
Entre os doze conselheiros económicos de António Costa, envolvidos no tal exercício de adivinhação, naturalmente parece predominar uma linha euroliberal, de Mário Centeno a Paulo Trigo Pereira. No entanto, parece também existir, além de João Galamba, pelo menos uma conselheira, Francisca Guedes Oliveira, que está disposta a sair de uma sabedoria convencional que só pode significar mais uma década perdida na agenda (e onde é que os “pilares” e “acções-chave” desta já vão...). No seu caso, trata-se de uma hipótese alternativa para “resgatar Portugal”:
Entre os doze conselheiros económicos de António Costa, envolvidos no tal exercício de adivinhação, naturalmente parece predominar uma linha euroliberal, de Mário Centeno a Paulo Trigo Pereira. No entanto, parece também existir, além de João Galamba, pelo menos uma conselheira, Francisca Guedes Oliveira, que está disposta a sair de uma sabedoria convencional que só pode significar mais uma década perdida na agenda (e onde é que os “pilares” e “acções-chave” desta já vão...). No seu caso, trata-se de uma hipótese alternativa para “resgatar Portugal”:
sexta-feira, 27 de março de 2015
Já têm sopa, que mais querem?
1. Numa entrevista ao jornal «i», o presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel de Lemos, disse há tempos que «em Portugal só passa fome quem quer». Sendo bombástica, a frase inseria-se numa referência às cantinas sociais, no contexto de uma entrevista que vale a pena ler na íntegra e que é mais interessante que o destaque, dado em título pelo «i», faria supor. Contudo, se quisermos encontrar um corolário para a «política social» da maioria de direita no poder, a frase de Manuel de Lemos serve como uma luva. Do que se trata é mesmo de responder com sopa à pobreza.
De facto, ao arrepio da degradação progressiva da situação social em Portugal, sobretudo a partir de 2011, as políticas sociais públicas foram sendo enfraquecidas e desmanteladas de forma gradual e determinada. Dois exemplos: ao aumento do número oficial de desempregados em cerca de 135 mil entre 2010 e 2014, o governo respondeu com a diminuição drástica das prestações de desemprego em cerca de 137 mil (menos 36%); e perante o agravamento da Taxa de Risco de Pobreza (de 43 para 48% entre 2010 e 2013), o governo reduziu o número de beneficiários de RSI em cerca de 166 mil (valor que passa para 315 mil ao actualizar as contas para o final de 2014).
2. Para além da contracção do apoio do Estado às situações de desemprego, estamos a falar de cortes em medidas de política social pública orientadas para responder às formas mais severas de pobreza e exclusão, como é o caso do Rendimento Social de Inserção (RSI) e do Complemento Solidário para Idosos (CSI). Sendo generalizado, o impacto desses cortes revela-se contudo particularmente contundente em segmentos mais vulneráveis da população.
No caso de crianças e jovens, perante um agravamento do risco de pobreza em cinco pontos percentuais entre 2010 e 2013 (de cerca de 43 para 48%, antes de quaisquer transferências sociais), são cerca de 65 mil os menores de 18 anos que perdem acesso ao RSI. No caso dos idosos, face a um aumento da Taxa de Risco de Pobreza na ordem dos quatro pontos percentuais (de 85 para 89%, antes de quaisquer transferências sociais), a quebra na prestações de CSI atinge cerca de 9 mil beneficiários. Um valor que se situa em menos 75 mil beneficiários caso a referência temporal passe a ser Dezembro de 2014.
3. Não se pense porém que as razões em que assentam estes cortes se fundamentam essencialmente nos objectivos de equilíbrio orçamental e redução do défice, decorrentes de «imposições» do memorando da troika. Na verdade eles traduzem, sobretudo, a concretização da agenda ideológica de desmantelamento das políticas sociais públicas e dos princípios que as regem, em favor da criação e robustecimento de um Estado paralelo nas áreas sociais, como oportunamente assinalou o Pedro Adão e Silva, ao denunciar a estratégia de «contratualização de serviços públicos, assegurando privilégios a negócios privados», em moldes que reforçam a discricionariedade na gestão, através de contratos «que não resistiriam ao mais elementar escrutínio público» do cumprimento de princípios basilares de política social pública (igualdade no acesso, critérios objectivos de priorização das situações sociais, etc.).
O exemplo das cantinas sociais é, neste sentido, particularmente obsceno. Como demonstrou Cláudia Joaquim, num relatório de leitura imprescindível, o Estado paga cerca de 600€ por mês a uma IPSS que sirva refeições a um agregado familiar constituído por um casal e dois filhos, agregado esse que apenas poderá receber, no máximo, uma prestação de 374€ mensais de RSI (e da qual poderá ter ainda que deduzir um montante de 240€ mensais, para pagar à IPSS a comparticipação dessas mesmas refeições).
4. Para lá da deliberada asfixia financeira das medidas de política social pública, tendo em vista alimentar a crescente transfega de recursos do Estado para IPSS e outras organizações afins, o que está igualmente em causa é uma mudança profunda nos modelos de política social e de combate à pobreza e exclusão. De um paradigma centrado no acompanhamento e trabalho social com as famílias e indivíduos, tendo em vista a sua autonomização e emancipação (que o espírito do RMG/RSI concretiza de forma particularmente eloquente),(*) passa-se para um modelo de política e acção social assente no entendimento de que aos pobres basta que não morram de fome - e que encontra paralelismo em modelos assentes na noção de que o problema da pobreza é apenas de falta de recursos financeiros (como se pressupõe, de certa forma, nas propostas associadas à ideia de um Rendimento Básico Incondicional). Isto é, ignorando que medidas como o RMG/RSI são sobretudo instrumentos de intervenção com as famílias e os indivíduos e não fins em si mesmos (como sucede no caso do apoio alimentar concedido pelas cantinas sociais).
(*) Num encontro recentemente realizado em Lisboa, em torno do tema «ciganos e educação», ficou demonstrado o impacto que o RMG/RSI teve por exemplo na escolarização das crianças ciganas ao longo das últimas duas décadas, criando assim condições favoráveis a uma verdadeira ruptura na reprodução dos ciclos geracionais de pobreza e exclusão.
De facto, ao arrepio da degradação progressiva da situação social em Portugal, sobretudo a partir de 2011, as políticas sociais públicas foram sendo enfraquecidas e desmanteladas de forma gradual e determinada. Dois exemplos: ao aumento do número oficial de desempregados em cerca de 135 mil entre 2010 e 2014, o governo respondeu com a diminuição drástica das prestações de desemprego em cerca de 137 mil (menos 36%); e perante o agravamento da Taxa de Risco de Pobreza (de 43 para 48% entre 2010 e 2013), o governo reduziu o número de beneficiários de RSI em cerca de 166 mil (valor que passa para 315 mil ao actualizar as contas para o final de 2014).
2. Para além da contracção do apoio do Estado às situações de desemprego, estamos a falar de cortes em medidas de política social pública orientadas para responder às formas mais severas de pobreza e exclusão, como é o caso do Rendimento Social de Inserção (RSI) e do Complemento Solidário para Idosos (CSI). Sendo generalizado, o impacto desses cortes revela-se contudo particularmente contundente em segmentos mais vulneráveis da população.
No caso de crianças e jovens, perante um agravamento do risco de pobreza em cinco pontos percentuais entre 2010 e 2013 (de cerca de 43 para 48%, antes de quaisquer transferências sociais), são cerca de 65 mil os menores de 18 anos que perdem acesso ao RSI. No caso dos idosos, face a um aumento da Taxa de Risco de Pobreza na ordem dos quatro pontos percentuais (de 85 para 89%, antes de quaisquer transferências sociais), a quebra na prestações de CSI atinge cerca de 9 mil beneficiários. Um valor que se situa em menos 75 mil beneficiários caso a referência temporal passe a ser Dezembro de 2014.
3. Não se pense porém que as razões em que assentam estes cortes se fundamentam essencialmente nos objectivos de equilíbrio orçamental e redução do défice, decorrentes de «imposições» do memorando da troika. Na verdade eles traduzem, sobretudo, a concretização da agenda ideológica de desmantelamento das políticas sociais públicas e dos princípios que as regem, em favor da criação e robustecimento de um Estado paralelo nas áreas sociais, como oportunamente assinalou o Pedro Adão e Silva, ao denunciar a estratégia de «contratualização de serviços públicos, assegurando privilégios a negócios privados», em moldes que reforçam a discricionariedade na gestão, através de contratos «que não resistiriam ao mais elementar escrutínio público» do cumprimento de princípios basilares de política social pública (igualdade no acesso, critérios objectivos de priorização das situações sociais, etc.).
O exemplo das cantinas sociais é, neste sentido, particularmente obsceno. Como demonstrou Cláudia Joaquim, num relatório de leitura imprescindível, o Estado paga cerca de 600€ por mês a uma IPSS que sirva refeições a um agregado familiar constituído por um casal e dois filhos, agregado esse que apenas poderá receber, no máximo, uma prestação de 374€ mensais de RSI (e da qual poderá ter ainda que deduzir um montante de 240€ mensais, para pagar à IPSS a comparticipação dessas mesmas refeições).
4. Para lá da deliberada asfixia financeira das medidas de política social pública, tendo em vista alimentar a crescente transfega de recursos do Estado para IPSS e outras organizações afins, o que está igualmente em causa é uma mudança profunda nos modelos de política social e de combate à pobreza e exclusão. De um paradigma centrado no acompanhamento e trabalho social com as famílias e indivíduos, tendo em vista a sua autonomização e emancipação (que o espírito do RMG/RSI concretiza de forma particularmente eloquente),(*) passa-se para um modelo de política e acção social assente no entendimento de que aos pobres basta que não morram de fome - e que encontra paralelismo em modelos assentes na noção de que o problema da pobreza é apenas de falta de recursos financeiros (como se pressupõe, de certa forma, nas propostas associadas à ideia de um Rendimento Básico Incondicional). Isto é, ignorando que medidas como o RMG/RSI são sobretudo instrumentos de intervenção com as famílias e os indivíduos e não fins em si mesmos (como sucede no caso do apoio alimentar concedido pelas cantinas sociais).
(*) Num encontro recentemente realizado em Lisboa, em torno do tema «ciganos e educação», ficou demonstrado o impacto que o RMG/RSI teve por exemplo na escolarização das crianças ciganas ao longo das últimas duas décadas, criando assim condições favoráveis a uma verdadeira ruptura na reprodução dos ciclos geracionais de pobreza e exclusão.
Índice Sintético de Desumanidade
Não está em primeiro lugar, mas está em segundo.
Motivado pelo artigo devastador sobre Angola que Nicholas Kristof, do New York Times, escreveu na semana passada, passei algum tempo nos últimos dias a observar o ranking mundial da mortalidade infantil disponibilizado nos indicadores de desenvolvimento do Banco Mundial. Em termos da taxa de mortalidade infantil (TMI), Angola não está em primeiro lugar a contar do fundo da tabela, mas está em segundo: em 2013, por cada mil crianças que nasceram neste país, 101 morreram antes de atingirem a idade de um ano.
Kristof, porém, refere-se a Angola como "o país mais mortal para as crianças" e há um outro sentido em que tem razão: no que se refere à taxa de mortalidade com menos de cinco anos, Angola está mesmo no fundo da tabela. Em todo o caso, mesmo o segundo lugar a contar do fim no que se refere à taxa de mortalidade infantil em sentido estrito tem muito pouco de honroso: é que enquanto a Serra Leoa, que está em último lugar com 107 óbitos de crianças por cada mil nascimentos, conta com um PIB per capita de 1.544 dólares, Angola tem um PIB per capita cinco vezes superior: 7.736 dólares. Ou seja, Angola dispõe, em termos médios, de cinco vezes mais recursos por pessoa do que a Serra Leoa - mas tem um desempenho praticamente idêntico em termos de vidas de crianças salvas.
quinta-feira, 26 de março de 2015
Três ideias bárbaras sobre a lista VIP
Primeira ideia: A lista VIP é um escudo institucional ao primeiro-ministro, numa utilização
abusiva da administração tributária para fins partidários; discutir a curiosidade dos funcionários ou a legalidade da lista VIP é aceitar uma diversão, um ilusionismo, porque os funcionários - curiosos ou não - já estão obrigados a confidencialidade, punível pela lei (Lei Geral Tributária) e a ilegalidade da lista VIP é flagrante - foi feita sem autorização parlamentar, da comissão de protecção de dados e surge ao arrepio da intenção da obrigação de divulgação pública de património.
Segunda ideia: O secretário devia ser demitido por, no mínimo, nada ter feito para impedir a utilização do aparelho do Estado.
Terceira ideia: Não deve haver privacidade dos contribuintes no que toca aos seus impostos. Os impostos são uma obrigação constitucional, mas o sigilo não (apenas o sigilo de correspondência e o profissional). Os impostos são uma obrigação cívica, um dever de solidariedade para um fim comum e, como tal, deveriam ser públicos e não privados. Um contribuinte é uma pessoa, mas é igualmente um cidadão. Esta publicitação de rendimentos e de impostos pagos não é contrária ao Estado de Direito porque até existe em diversos países, como os nórdicos, onde é conhecido o ritual anual de divulgação das listas de todos os cidadãos e onde ninguém ousa questionar o seu atraso social, mesquinho ou voyeurista. O sigilo fiscal protege, sobretudo, quem tem algo a esconder.
P.S.
Conselho gratuito 1 a membros do Governo: nunca se deve desmentir algo sobre o qual se desconhece se há algum relatório, documento, despacho ou gravação que o possa contrariar.
Conselho gratuito 2 a membros do Governo: nunca dizer "provem" a quem acusa: soa demasiado à "deixa" daqueles detidos nas esquadras das más séries norte-americanas, para mostrar ou baralhar o espectador sobre a culpa do detido. A cronologia dos acontecimentos mostra que, para serem inocentes, poderiam ter agido bem mais cedo.
Segunda ideia: O secretário devia ser demitido por, no mínimo, nada ter feito para impedir a utilização do aparelho do Estado.
Terceira ideia: Não deve haver privacidade dos contribuintes no que toca aos seus impostos. Os impostos são uma obrigação constitucional, mas o sigilo não (apenas o sigilo de correspondência e o profissional). Os impostos são uma obrigação cívica, um dever de solidariedade para um fim comum e, como tal, deveriam ser públicos e não privados. Um contribuinte é uma pessoa, mas é igualmente um cidadão. Esta publicitação de rendimentos e de impostos pagos não é contrária ao Estado de Direito porque até existe em diversos países, como os nórdicos, onde é conhecido o ritual anual de divulgação das listas de todos os cidadãos e onde ninguém ousa questionar o seu atraso social, mesquinho ou voyeurista. O sigilo fiscal protege, sobretudo, quem tem algo a esconder.
P.S.
Conselho gratuito 1 a membros do Governo: nunca se deve desmentir algo sobre o qual se desconhece se há algum relatório, documento, despacho ou gravação que o possa contrariar.
Conselho gratuito 2 a membros do Governo: nunca dizer "provem" a quem acusa: soa demasiado à "deixa" daqueles detidos nas esquadras das más séries norte-americanas, para mostrar ou baralhar o espectador sobre a culpa do detido. A cronologia dos acontecimentos mostra que, para serem inocentes, poderiam ter agido bem mais cedo.
terça-feira, 24 de março de 2015
Não é um slogan
Porque o neoliberalismo também não foi, e não é, um slogan nas periferias do sul do sistema europeu, amanhã reunir-nos-emos, mobilizados pelo Ricardo Noronha, no Instituto de História Contemporânea, em Lisboa, para trocar umas ideias sobre os assuntos: Neoliberalismo - História, Economia, Política. Apareçam.
Um cofre
Dois dos melhores jornalistas económicos nacionais, Rui Peres Jorge do Negócios e Sérgio Anibal do Público, estão de regresso no economiainfo. Um exemplo do que é uma excelente notícia: “Para o Estado português, que só tem estes depósitos [os tais “cofres cheios”] porque se endivida — e ainda a uma taxa média próxima de 4% — isso é particularmente grave. Se não vejamos: dos 24 mil milhões de euros de excedentes, cerca de 18,5 mil milhões são colocados no banco central, onde a taxa de depósitos oferecida é de -0,2%. Isto significa que, para além de pagar juros pelos empréstimos que pede para ter este excedente, o Estado português ainda paga juros pelos depósitos que tem de fazer com este excedente. Ao ano, mantendo-se um nível de depósitos como os actuais, serão qualquer coisa como 40 milhões de euros que o Estado paga ao BCE para este lhe guardar os cofres cheios.”
segunda-feira, 23 de março de 2015
Cronologia da crise da lista VIP ou as vantagens de se mostrar distraído
Proponho-lhe a revisitação à versão oficial sobre a lista VIP e tentar perceber se é verosímil.
O texto é longo, mas dá para perceber que o secretário de Estado Paulo Núncio (SEAF) esteve pelo menos um mês sem curiosidade de pedir mais informação à Administração Tributária (AT), ou de confrontar o seu director-geral com as saraivadas de notícias e comentários sobre a lista VIP. E que o director-geral esteve igual período sem achar que o assunto era suficientemente importante para informar a tutela do que se passara na realidade.
A tese oficial é seguinte:
1) Um estudo de um filtro VIP foi proposto em Setembro passado pelos serviços de segurança informática, chefiados por José Manuel Morujão Oliveira e Graciosa Delgado (após encontros técnicos com os serviços homólogos norte-americanos), com vista à "implementação de uma nova metodologia de proteção e segurança dos dados pessoais dos contribuintes";
2) A 10/10/2014, uma 6F, a proposta foi despachada favoravelmente pelo sub-director-geral José Maria Pires, que nesse mesmo dia estava em substituição do director-geral Brigas Afonso;
3) Nem o sub-director-geral achou por bem pedir autorização ou comunicar ao director-geral ou ao SEAF, nem Brigas Afonso o fez na 2ªF seguinte, nem se sabe se Pires a comunicou a Brigas Afonso - na audição parlamentar disse que não falou "com ninguém";
4) Em Fevereiro passado, Brigas Afonso decide abortar a iniciativa e não comunica essa decisão ao SEAF, informando-o que nunca existiu qualquer filtro VIP;
5) Finalmente, a 16/3/2015, à tarde, Brigas Afonso comunica ao SEAF que afinal essa ideia esteve em estudo, em teste, durante 3 meses, e - por ter faltado ao dever de informação - põe o lugar à disposição do SEAF, que o demite. O SEAF afirma ter pedido à IGF, logo nesse dia, a abertura de um inquérito.
Só este relato já dá uma ideia das fragilidades da tese oficial. A ser verdade, a maior "empresa" nacional, responsável pela receita pública, anda em desgoverno. Mas a fragilidade torna-se em farsa quando se lê o avolumar de informação que se foi acumulando na comunicação social, algo a que, aliás, o SEAF está sempre muito atento. E ainda mais à luz da informação - não confirmada, mas publicada - de que, no longo processo de substituição do ex-director-geral dos impostos Azevedo Pereira, de Janeiro a Julho de 2014 - José Maria Pires sempre foi a escolha do SEAF para director-geral da AT, mas que foi a ministra das Finanças quem escolheu Brigas Afonso. E, por outro, que a subdirectora dos serviços de Segurança Informática é a mulher de José Maria Pires.
Pede-se paciência ao leitor para as notas seguintes:
O texto é longo, mas dá para perceber que o secretário de Estado Paulo Núncio (SEAF) esteve pelo menos um mês sem curiosidade de pedir mais informação à Administração Tributária (AT), ou de confrontar o seu director-geral com as saraivadas de notícias e comentários sobre a lista VIP. E que o director-geral esteve igual período sem achar que o assunto era suficientemente importante para informar a tutela do que se passara na realidade.
A tese oficial é seguinte:
1) Um estudo de um filtro VIP foi proposto em Setembro passado pelos serviços de segurança informática, chefiados por José Manuel Morujão Oliveira e Graciosa Delgado (após encontros técnicos com os serviços homólogos norte-americanos), com vista à "implementação de uma nova metodologia de proteção e segurança dos dados pessoais dos contribuintes";
2) A 10/10/2014, uma 6F, a proposta foi despachada favoravelmente pelo sub-director-geral José Maria Pires, que nesse mesmo dia estava em substituição do director-geral Brigas Afonso;
3) Nem o sub-director-geral achou por bem pedir autorização ou comunicar ao director-geral ou ao SEAF, nem Brigas Afonso o fez na 2ªF seguinte, nem se sabe se Pires a comunicou a Brigas Afonso - na audição parlamentar disse que não falou "com ninguém";
4) Em Fevereiro passado, Brigas Afonso decide abortar a iniciativa e não comunica essa decisão ao SEAF, informando-o que nunca existiu qualquer filtro VIP;
5) Finalmente, a 16/3/2015, à tarde, Brigas Afonso comunica ao SEAF que afinal essa ideia esteve em estudo, em teste, durante 3 meses, e - por ter faltado ao dever de informação - põe o lugar à disposição do SEAF, que o demite. O SEAF afirma ter pedido à IGF, logo nesse dia, a abertura de um inquérito.
Só este relato já dá uma ideia das fragilidades da tese oficial. A ser verdade, a maior "empresa" nacional, responsável pela receita pública, anda em desgoverno. Mas a fragilidade torna-se em farsa quando se lê o avolumar de informação que se foi acumulando na comunicação social, algo a que, aliás, o SEAF está sempre muito atento. E ainda mais à luz da informação - não confirmada, mas publicada - de que, no longo processo de substituição do ex-director-geral dos impostos Azevedo Pereira, de Janeiro a Julho de 2014 - José Maria Pires sempre foi a escolha do SEAF para director-geral da AT, mas que foi a ministra das Finanças quem escolheu Brigas Afonso. E, por outro, que a subdirectora dos serviços de Segurança Informática é a mulher de José Maria Pires.
Pede-se paciência ao leitor para as notas seguintes:
- Em Junho de 2014, é feita acusação de que Pedro Passos Coelho (PM) teria recebido pagamentos do grupo Tecnoforma no valor de mais de 150 mil euros (em tranches mensais de cinco mil euros náo declarados) entre 1995 e 1998, quando era deputado em exclusividade. Estas informações adensaram-se com a denúncia anónima ao Ministério Público de que o PM teria recebido cinco mil euros mensais entre 1997 e 1999. No final do verão de 2014, soube-se que a declaração referente ao ano de 1999 não estava no Tribunal Constitucional, como obriga a lei. Algures em 10/2014, segundo o Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), as consultas aos rendimentos do PM subiram substancialmente, seguindo-se às declarações de PM que não recebera qualquer tipo de ordenado da Tecnoforma;
- A 10/10/2014, José Maria Pires despachou favoravelmente o estudo de uma "nova metodologia de proteção e segurança dos dados pessoais dos contribuintes";
- Algures em Novembro 2014, são detectadas as consultas ao cadastro do PM e são chamados os primeiros funcionários (JN, 12/12/2014);
- A 27/11/2014, foram feitas buscas, pela equipa do juiz Carlos Alexandre, na sede do Banco Espírito Santo (BES) e em 34 casas e escritórios de êx-administradores do banco liderado por Ricardo Salgado. Da sede do BES foi retirada uma quantidade enorme de informação e de ficheiros com nomes de clientes. Segundo os responsáveis do STI, considera-se "suspeito" que o número de processos contra funcionários da AT tenha disparado após as buscas;
- A 11/12/2014, é emitida uma nota do Ministério das Finanças em que refere que a consulta só pode ser realizada "no âmbito dos processes em curso que lhes sejam especificamente atribuidos e exclusivamente para esses efeitos";
- A 12/12/2014, é conhecido que os serviços de auditoria da AT abriram dois inquéritos a funcionários por consulta das declarações de rendimentos do PM. A denúncia é feita pelo STI que está a apoiar os dois funcionários. "Estas situações são inéditas. Nunca antes os funcionários foram alvo de inquérito apenas por consultarem informações", diz o STI ao jornal Sol. Funcionários do Algarve foram confrontados com a informação de terem consultado dados fiscais de políticos. Os funcionários não são acusados de terem divulgado informação confidencial para o exterior;
- Nesse mesmo dia, o director-geral emite uma nota em que justifica os procedimentos contra os funcionários, garantindo que, "sempre que são detectados indícios de acesso ou utilização indevida" de dados, essa busca "desencadeia os mecanismos consequentes de salvaguarda dos direitos dos contribuintes, incluindo a abertura de processos de averiguações ou outros". Brigas Afonso lembra ainda que, "desde a década de 90, a ex-DGCI, actual AT, tem instituídos diversos mecanismos que garantem o respeito pleno e integral do dever de sigilo fiscal por parte dos seus funcionários" (Público);
- Nesse mesmo dia, num artigo do JN fala-se de "um sistema recente que emite um alerta junto de responsáveis da AT sempre que um funcionário, sem ordem ou despacho de serviço para esse efeito, consulte as declarações fiscais de entidades e figuras públicas. O ‘intruso’ é facilmente reconhecido pela senha de identidade do computador, que fica registada no sistema.";
- A 20/1/2014, numa acção de formação para 300 inspetores tributárlos estagiários, na Torre do Tombo, o chefe de divisão dos serviços de auditoria, Vítor Lourenço, fala de um Pacote VIP que estará em vigor;
- A 21/1/2015, numa reunião entre o director-geral e a direcção do STI, Brigas Afonso afirma nada saber sobre o assunto da lista VIP;
- Algures em Fevereiro de 2015, o director-geral comunica ao SEAF que não há nenhuma lista VIP;
- A 14/2/2015, é conhecido haver "dezenas" de funcionários objecto de procedimento disciplinar (DN);
- A 24/2/2015, torna-se pública a informação do STI de há 27 processos disciplinares por acesso indevido ao cadastro fiscal do PM. O presidente do STI fala de "uma fúria sancionatória da AT". Os mesmos actos de funcionários não foram sancionados no caso de Sócrates que, juntamente com outras figuras públicas, se queixara à AT. Paulo Ralha faz eco de rumores na AT sobre o facto de ter "sido constituída uma lista de contrihuintes VIP" que fazem soar os alarmes informáticos. Esta é a informação que corre na Autoridade Tributária. O MF não responde directamente à questão, dizendo apenas ao Negócios que, "em todos os casos em que a AT tem conhecimento de suspeitas de violação do dever de confidencialidade relativamente a qualquer contribuinte português é instaurado o correspondente processo de auditoria interna" (Jornal de Negócios);
- A 28/2/2015, o jornal Público divulga a informação de que o PM não pagou Segurança Social durante 5 anos;
- A 1/3/2015 torna-se público que foram instaurados 137 processos disciplinares e de inquérito a funcionários que acederam a dados de contribuintes, dos quais 27 ao PM;
- No mesmo dia, a TVI menciona a existência de uma lista VIP de contribuintes que só pode ser consultada com autorização especial;
- A 6/3/2015, o Ministério das Finanças garante que não existe qualquer lista VIP de contribuintes. Numa nota enviada à TSF, o gabinete da ministra acrescenta que, de acordo com as informações prestadas pela AT, essa lista não existe. (TSF, TVI, Sic Notícias). O STI informa que já são mais de 130 funcionários com processos por consulta indevida de cadastro fiscal de contribuintes;
- Desde 2/3/2015, que Brigas Afonso tem nas suas mãos uma carta da Associação Sindical dos Inspectores Tributários (APIT) com dez questões sobre a lista VIP. O presidente da APIT, Nuno Barroso, admite que Brigas Afonso ainda não tenha respondido por recear que as suas respostas possam ser usadas politicamente (JN, de 15/3/2015);
- A 6/3/2015, António Costa refere-se às suspeitas do STI sobre lista VIP. "Houve uma denúncia gravíssima, feita pelo presidente do STI", revelando que "foi constituído um universo de contribuintes VIP, cujos dados revestem particular protecção e cuja consulta pelos funcionários da AT implica imediatamente o desencadear de mecanismo de alarme junto do respectivo director-geral";
- Nesse mesmo dia, é divulgada uma nota do MF em que se refere que "de acordo com as informações prestadas pela Autoridade Tributária, a referida lista não existe";
- A 7/3/2015, questões dos deputados ao Governo ficam sem resposta. É o caso daquela que se prende com o período em que o PM auferiu as remunerações a que respeitam os 2880 euros de contribuições pagos pelo antigo consultor e administrador da Tecnoforma. Também sem resposta ficou a questão (do PS) acerca do escalão de remuneração sobre o qual incidiu a taxa (de 25,4%) para cálculo das contribuições a pagar, para quem é que o PM trabalhou a recibos verdes, e em que períodos, entre 1999 e 2004 e em que datas, é que questionou a Segurança Social sobre a sua situação. Sobre estas datas referiu apenas "Novembro de 2012" e "Fevereiro de 2015" sem indicar os dias;
- No mesmo dia, o STI informa que pediu à PGR para esclarecer se os funcionários têm limitações na consulta de informações fiscais dos contribuintes, dado que já 140 processos levantados a funcionários;
- A 8/3/2015, a lista VIP é assunto de comentário de Marcelo Rebelo de Sousa. O STI refere que a maioria dos processos não se prende com dados de PM, mas com dados de empresas inspeccionadas e respectivos sócios, pessoas ligadas ao sistema financeiro e empresários mediáticos;
- A 11/3/2015, é conhecida parte da gravação da acção de formação realizada a 20/1/2015 (Sic Noticias);
- A 11/3/2015, o debate quinzenal é centrado nas dívidas do PM à Segurança Social. O PM nega a existência dessa lista. "Já é público que a AT desmentiu essas notícias" e "não há nenhuma bolsa VlP". "É esta a informação que foi prestada pela AT", acrescentou o PM. "Quanto à existência de processas disciplinares, sei aquilo que já expliquei: no que respeita a mim próprio, nunca agi pedindo à AT a instauração de qualquer processo disciplinar ou de averiguação", assinalou. "Sempre que apareceram notícias públicas foi por aí que tive conhecimento de que havia profissionais da AT que consultavam o meu processo, e fiquei a saber que não era só o meu caso", afiançou. "Os termos com que a AT procura averiguar internamente sobre a forma como cada funcionário actua é matéria da AT", e "foi desmentido que existisse qualquer bolsa VIP";
- A 12/3/2015, a Visão divulga os "segredos da Bolsa VIP". A reportagem relata o que sucedeu naquela acção de formação: Após as polémicas referências, gerou-se no auditório um burburinho enorme, "as pessoas ficaram alvoraçadas". A sessão terminou sem direito a perguntas e respostas. "No final, questionei-o sobre o assunto e expliquei que, além de tudo, aquilo era impraticável nos serviços. A resposta veio com pormenores: "Vítor Lourenço disse que a Bolsa VIP estava feita. (...). Agora imagine qual não foi o meu espanto quando o Ministério das Finanças veio dizer que a lista não existia", refere este elemento da direcção distrital de finanças de Portalegre e dirigente sindical (Visão). Na mesma reportagem, é referido que numa reunião ocorrida há meses com o diretor-geral da AT, os representantes do STI ficaram com a ideia de que António Brigas Afonso estaria à margem do processo. "Expusemos a questão e ele não pareceu nada familiarizado com ela. Falou muito do Manual de Combate à Corrupção";
- Na referida reportagem, é referido que "A Secretaria de Estado [dos Assuntos Fiscais] nunca deu qualquer instrução para a constituição de qualquer lista. Acresce que, de acordo com informações que já foram prestadas publicamente pela AT, não existe qualquer lista cujo acesso dos funcionários seja limitado», esclareceu a tutela à VISÃO alegando desconhecer as referéncias a uma "Bolsa VIP" em sessões da AT;
- Nesse mesmo dia, o diretor-geral emitiu uma nota lacónica, para desmentir apenas que "tenha recebido qualquer tipo de lista do senhor SEAF";
- Vários órgãos de comunicação social ecoam o noticiado (TVI, Sic, RTP, etc.). O tema é debatido, no frente a frente da Sic Notícias, entre Carlos Zorrinho e José Eduardo Martins, no programa "Quadratura do Círculo", onde António Lobo Xavier, militante do CDS diz: "Eu perguntei ao secretário de Estado, que é uma pessoa em quem confio, que nunca me mentiu nem acredito que me minta, se alguma vez tinha dado uma instrução ou uma lista para estes efeitos. Negou-me. Eu confio nesta declaração. Mas se o sindicato realmente demonstrar que isto não foi assim, eu fico perturbado (...)";
- A 12/3/2015, Paulo Núndo negou o envio de uma alegada "lista VIP" de contribuintes à AT.
- A 13/3/2015, Ana Gomes diz mesmo que os criminosos estão a tomar conta do Fisco e exige por isso uma auditoria da PGR. O tema é assunto de debate televisivo. Manuela Ferreira leite comenta a Lista VIP (TVI). O presidente do STI diz que a lista VIP foi entregue pelo SEAF (RTP). Ferro Rodrigues diz que a lista VIP é política e Francisco Louçã comenta o assunto (Sic Notícias). Os comentários são repetidos hora a hora;
- No mesmo dia, é noticiado que o STI recorreu a 6/3/2015 ao Provedor de Justiça em que pede que se pronuncie sobre "os limites de acesso às consultas das aplicações informáticas" da AT (Público). E o presidente do STI refere que Paulo Núncio teria feito chegar, em 2014, à direcção de segurança informática da AT uma lista de contribuintes "mediáticos, da área política, financeira e económica";
- Nesse mesmo dia, vice-presidente do PSD Marco António Costa sugeriu que Fisco fizesse uma averiguação para apurar os factos: "Uma averiguação para saber se é verdade ou não" e, sendo mentira, para haver "consequências" para o caso do chefe de divisão do Fisco que admitiu a existência da lista. "Espero que haja uma lista VIP mas dos 10 milhões de contribuintes";
- A 14/3/2015, o STI desenvolve a ideia de que foi Paulo Núncio quem entregou a lista, e que tudo começara em novembro de 2014. Segundo Paulo Ralha, houve duas fases no processo. Quando o caso Tecnoforma, que envolvia o nome de Passos Coelho, estava "em alta" na comunicação social, surgiu a lista, que terá sido entregue em outubro ou novembro de 2014 por Paulo Núncio à direção de segurança informática do Fisco. O presidente do STI situa a 20 de janeiro de 2015 a ordem direta para implementar um filtro que colocaria sob um resguardo maior politicos e banqueiros;
- Nesse mesmo dia, nas jornadas parlamentares do PS, Ferro Rodrigues afirma querer "saber exatamente o que se passa com a chamada bolsa de contribuintes VIP". "O PM respondeu-me que [a lista] não existia, mas resguardou-se num comunicado das Finanças e dos responsáveis administrativos. Agora, há um dirigente sindical a dizer que existe e que foi entregue pelo SEAF. Nesse mesmo dia, António Costa afirma: "O Governo tem de ir ao Parlamento e explicar muito bem se há ou não há - e que critérios terão sido eventualmente estabelecidos - contribuintes VIP com tratamento especial da nossa administração fiscal";
- A 15/3/2015, torna-se público que foram milhares as consultas aos rendimentos e património dos famosos durante os últimos anos por funcionários dos impostos no exercício da sua atividade. Destas consultas, pouco mais de uma centena deram origem notificações para abertura de processo disciplinar (CM). E que, segundo o STI, "a maior parte das notificações sobre acesso indevido tinha que ver com personalidades da área política ou económica relacionadas com o Grupo BES”;
- Nesse mesmo dia, dirigentes do STI e da APIT voltam a considerar insuficiente a resposta da AT sobre o assunto. "Enquanto se mantiver esta situação, sem respostas claras do diretor-geral da AT (...) é óbvio que o fantasma vai continuar a pairar e a condicionar os funcionários" (JN). Na mesma notícia, José Maria Pires é dado como sendo "próximo do CDS de Paulo Portas e Paulo Núncio" (JN);
- Nesse mesmo dia, Marcelo Rebelo de Sousa aborda o tema no seu espaço televisivo;
- A 16/3/2015, o SEAF reage dizendo que não fazia sentido abrir uma investigação à existência de lista porque não existe (Observador, citado pelo Expresso);
- Nesse mesmo dia, Paulo Núncio refere que Brigas Afonso lhe transmitiu terem havido propostas e procedimentos internos nessa matéria, mas garante que Governo não sancionou a lista. Brigas Afonso virá confirmar esta indicação (AR);
- Nesse mesmo dia, uma nota do Ministério das Finanças refere que, "tendo em conta notícias vindas recentemente a público, o Ministério das Finanças comunica que solicitou hoje à IGF a abertura de um inquérito sobre a alegada existência de uma lista de contribuintes na AT, cujo acesso seria alegadamente restrito". Segundo as Finanças, este inquérito "destina-se a realizar o apuramento de todos os factos relativos a este assunto";
- A 18/3/2015, Brigas Afonso põr o lugar à disposição e SEAF aceita a sua demissão. Na carta que envia refere que o fez para defender a AT;
- Nesse mesmo dia, o SEAF informa que foi por sua iniciativa que abriu uma investigação, enquanto a PGR colige informação para determinar se abre inquérito crime;
- A 19/3/2015, demite-se o subdirector-geral José Maria Pires. Na carta de despedida aos funcionários, José Maria Pires admitiu que, perante a constatação de um aumento significativo de consultas de dados fiscais sigilosos, deu luz verde a "um sistema que actuasse de forma prévia à efectiva violação";
- A 19/3/2015, torna-se público que fontes do Governo apontam que a lista VIP de contribuintes terá sido criada por José Maria Pires e a medida foi aprovada pelo SEAF.
Fogo e contrafogo
Se nos vêm agora explicar, como fazem em relação à Grécia, que os povos podem votar, mas que, na realidade, o seu voto não tem qualquer importância nem influência, quer dizer que estamos numa ditadura. É o que eu chamo uma ‘euroditadura’ (...) O euro e a austeridade estão indissociavelmente ligados (...) Se abandonarmos a defesa da nação, como faz actualmente a maioria da classe política, que está numa visão europeísta que, de facto é uma visão pós-nacional, caímos num sistema de ruína da grande maioria em benefício da ultraminoria (...) Tsipras serviu de veículo da revolta democrática do povo grego. Espero, repito, que ele e o seu governo não cedam à UE e que assumam porque arriscam-se a decepcionar os que votaram nele.
Podia ter escrito isto, já escrevi isto, concordo com isto. Quem disse isto foi Marine Le Pen, em entrevista ao Expresso do último sábado. Cá está, dirão os do costume: os extremos atraem-se, etc. As companhias nunca definiram a justeza de uma posição. De resto, é a própria Le Pen que reconhece que quando a esquerda assume a nação, a sua direita tem menos hipóteses. É o melhor contrafogo, de facto.
Acontece que grande parte da esquerda francesa, do PSF até ao PCF, abandonou de diferentes formas esse terreno que foi o seu historicamente e que era e é popular; tudo em nome de europeísmos sem raízes e sem resultados. Hoje, em parte por causa desse abandono, a Frente Nacional é o grande partido operário em França. Uma desgraça já várias vezes assinalada: como é que se diz depois queixem-se em francês?
Uma desgraça que não é portuguesa. É que por cá, certa esquerda, a minha esquerda, usa politicamente recursos intelectuais disponíveis, cultiva uma certa memória histórica e tem juízo político: do patriotismo republicano e socialista – ainda há dias assisti a uma interpelação corajosamente eurocéptica de António Arnaut, vinculada a uma mundivisão ético-política, dos direitos, liberdades e garantias, que é a antítese de Le Pen – até à ideia de uma revolução democrática e nacional da tradição do Rumo à Vitória, o antifascismo mais consequente. É por aqui: em nome das liberdades democráticas, que têm na soberania uma condição necessária, e da igualização de condições de todos os que vivem aqui, em nome de uma comunidade política inclusiva que está sendo destruída. É o poder do tal nós, que faz contramovimento, contra o euroliberalismo e contra os monstros que resultam da sua crise.
Podia ter escrito isto, já escrevi isto, concordo com isto. Quem disse isto foi Marine Le Pen, em entrevista ao Expresso do último sábado. Cá está, dirão os do costume: os extremos atraem-se, etc. As companhias nunca definiram a justeza de uma posição. De resto, é a própria Le Pen que reconhece que quando a esquerda assume a nação, a sua direita tem menos hipóteses. É o melhor contrafogo, de facto.
Acontece que grande parte da esquerda francesa, do PSF até ao PCF, abandonou de diferentes formas esse terreno que foi o seu historicamente e que era e é popular; tudo em nome de europeísmos sem raízes e sem resultados. Hoje, em parte por causa desse abandono, a Frente Nacional é o grande partido operário em França. Uma desgraça já várias vezes assinalada: como é que se diz depois queixem-se em francês?
Uma desgraça que não é portuguesa. É que por cá, certa esquerda, a minha esquerda, usa politicamente recursos intelectuais disponíveis, cultiva uma certa memória histórica e tem juízo político: do patriotismo republicano e socialista – ainda há dias assisti a uma interpelação corajosamente eurocéptica de António Arnaut, vinculada a uma mundivisão ético-política, dos direitos, liberdades e garantias, que é a antítese de Le Pen – até à ideia de uma revolução democrática e nacional da tradição do Rumo à Vitória, o antifascismo mais consequente. É por aqui: em nome das liberdades democráticas, que têm na soberania uma condição necessária, e da igualização de condições de todos os que vivem aqui, em nome de uma comunidade política inclusiva que está sendo destruída. É o poder do tal nós, que faz contramovimento, contra o euroliberalismo e contra os monstros que resultam da sua crise.
Reformas? Que reformas?
Para disfarçar o fracasso de uma estratégia, nada como alegar que ela não foi devidamente aplicada.
Portugal tem hoje uma sociedade mais doente e uma economia mais frágil do que quando começaram a ser aplicadas as medidas de liberalização e austeridade que revolucionaram o país nos últimos anos. Há menos criação de riqueza, menos capacidade produtiva e menos emprego. Mais desigualdade, mais população em risco de pobreza e mais pessoas em situação de privação grave. Foram vendidos ao desbarato activos públicos. E também há mais dívida pública e mais dívida externa.
As pessoas, claro está, sabem-no e sentem-no, o que cria um problema aos defensores da estratégia aplicada: é que ela não só produz uma economia e uma sociedade que as pessoas não querem, como produz também resultados muito diferentes do que havia sido prometido. As privatizações, recorde-se, eram apresentadas como promotoras da eficiência, dada a suposta evidência que o privado faz sempre melhor – evidência mais evidente quando não se sabia o que se sabe hoje sobre o BPN, o BES ou a PT. A desvalorização do trabalho, prosseguida de inúmeras formas, foi sempre promovida como geradora de emprego: o desemprego, aliás, era por definição causado pelo custo excessivo do trabalho. E a própria austeridade, vale a pena recordar, era apresentada como amiga do crescimento, em virtude dos supostos efeitos sobre o crowding-out ou sobre a confiança. Em vez disso, claro está, temos tido captura de rendas por interesses particulares, destruição de emprego e de capacidade produtiva, e vamos a caminho de uma década perdida em matéria de crescimento e desenvolvimento.
Ora, o que é se deve fazer quando a nossa estratégia produz resultados tão obviamente distintos do prometido e tão contrários às aspirações das pessoas? Simplesmente, negar que ela tenha sido devidamente aplicada. Os resultados não são os prometidos, alega o coro liberal, porque o ímpeto reformista não tem sido suficiente. Porque não se reformou verdadeiramente o estado. Na versão mais cínica, porque este governo "é na verdade anti-liberal", como se o liberalismo realmente existente dispensasse a instrumentalização do Estado para a garantia de rendas, para a fragilização do trabalho e para a abertura ao lucro privado de sectores protegidos.
Só que é este e não outro o liberalismo do Compromisso Portugal ou dos cronistas do Observador. São estes e não outros os seus resultados. E o discurso que, distanciando-se, procura agora branquear esse facto não é mais do que uma tentativa de eternizar este programa distópico.
(publicado originalmente no Expresso de 21/03)
domingo, 22 de março de 2015
Sermão aos peixes
(Bauhaus, The Three Shadows - Part III)
«De repente, tudo isto lembrou-me uma história. Conta-se que o período em que houve mais acidentes na China maoista foi no momento em que o regime decidiu modificar o sentido dos semáforos, porque o vermelho deveria ser sempre sinónimo de avanço. Apócrifa ou não, a história tem a virtude de nos ensinar que as propostas políticas, mesmo as bem intencionadas, devem sempre ter em conta o atrito do real. Este governo também o sabe mas finge não saber: e é por isso que, diante de plateia amigável, lá vai dizendo que o que é preciso é multiplicarmo-nos, acreditar muito, bater punho, cerrar os olhos com força e desejar com convicção. E nós vamos assistindo, até ver.»
O Miguel Cardina escreveu um belo texto com um belo título, «O evangelho segundo Maria Luís», que contém sugestivas evocações bíblicas: do milagre dos pães e dos peixes ao «crescei e multiplicai-vos». Tudo a propósito do sermão da ministra das Finanças a um tenro cardume laranja, numa iniciativa da JSD em Pombal.
sábado, 21 de março de 2015
Cordeiros para imolar
Concurso de professores: depois de instalado o caos nas escolas e da conversão de centenas de docentes em marionetas ambulantes, o ministro Nuno Crato pede desculpa e mantém-se no cargo. A cabeça que rola é a do director-geral da Administração Escolar, Mário Agostinho Pereira. Plataforma Citius: depois de instalado o caos nos tribunais, com milhões de processos a ficarem inacessíveis, a ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz «assume integralmente a responsabilidade política» e pede desculpa pelos «transtornos» inerentes à paralisação dos tribunais. As cabeças que rolam são as de Rui Mateus Pereira e Carlos Brito, dirigentes do Instituto do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça. Pacote VIP: depois de se confirmar a criação de um sistema de detecção de acesso a dados fiscais relativos a «um grupo [de contribuintes] associado a pessoas com cargos políticos, mais mediatizadas», por altura do episódio da Tecnoforma, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, e a ministra da Justiça, Maria Luís Albuqueruque, de nada dizem saber. As cabeças que rolam são as de António Brigas Afonso e José Maria Pires, director-geral e subdirector-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira.
O governo parece muito empenhado em deixar como legado uma nova noção de «responsabilidade política»: a que cuida de transferir sempre para os níveis inferiores da hierarquia as consequências concretas dessa mesma «responsabilidade», aplicadas a cordeiros prontos a degolar. Nada que surpreenda, se tivermos presente que a profunda regressão a que o país está a ser sujeito dificilmente se limitaria à destruição da economia e ao deslaçamento social, implicando também a deterioração gradual da vida política, da qualidade da democracia e a erosão do quadro de princípios do Estado de Direito. No meio do lodaçal, sobressai a dignidade do ex-ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, que decidiu sair do governo pelo seu próprio pé (apesar da resistência de Passos Coelho em aceitar a demissão), invocando a «diminuição da sua autoridade política», na sequência do escândalo dos Vistos Gold.
sexta-feira, 20 de março de 2015
Em defesa do pleno emprego
Enquanto se desenrolam as últimas cenas do drama grego em torno de uma decisão que é dilemática para muitos cidadãos – correr o risco de ser livres ou submeter-se ao Diktat germânico –, Portugal parece narcotizado pela propaganda dos media. O governo e o seu Presidente exaltam o crescimento medíocre do ano passado como prova de que nós não somos a Grécia e a austeridade foi aqui bem sucedida. A verdade é
que o nosso Tribunal Constitucional teve um papel importantíssimo: travou a espiral recessiva. Anulando cortes na despesa pública em salários e pensões, obrigou o governo a repor algum do rendimento disponível que havia cortado e aliviou a ansiedade em muitas famílias. O consumo pôde respirar, também ajudado pela baixa do preço dos combustíveis e pelas taxas de juro excepcionalmente baixas. A espiral recessiva existiu mesmo e ainda bem que foi travada, para desgosto dos peritos que insistem na “consolidação” orçamental por fazer.
Tudo isto é bem conhecido dos alunos de macroeconomia introdutória, mas é depois soterrado por outros modelos que, apesar de solidamente contraditados pela investigação empírica, continuam a pairar no debate público como se nada fosse. Como bem lembrou Michal Kalecki (“Political aspects of full employment”), “a ignorância obstinada é normalmente uma manifestação de razões políticas subjacentes”. Porém, a sobrevivência de teorias económicas erradas é um problema bem mais grave porque, além de instrumento de propaganda dos poderes instalados, acabou por enquadrar e infiltrar o pensamento de alguma esquerda, sinal evidente da longa hegemonia do pensamento neoliberal nos meios universitários, nos media e no debate político.
De facto, foi espantoso ver as oposições ao actual governo criticarem a incompetência do anterior ministro das Finanças por falhar as metas do défice que se tinha proposto alcançar, como se a economia não afundasse mais com um défice inferior. Desde quando um país em recessão gravíssima, de facto numa quase-depressão, ganha alguma coisa com défices reduzidos? Isto só se explica porque a oposição, sob a forma de guerrilha política, não tem um discurso compatível com o que faria no governo se tivesse maioria. Depois admirem-se da falta de credibilidade e da sensação de falta de alternativa que perpassa no eleitorado.
Um exemplo flagrante desta colonização intelectual do discurso das esquerdas é a sistemática omissão, pelo menos no discurso público, do objectivo do pleno emprego como meta da sua política económica. Aliás, na Grécia, a plataforma eleitoral do Syriza não previu a necessidade de défices públicos primários (excluídos os juros) para lançar um programa de emergência, em larga escala, destinado a criar empregos socialmente úteis. Seria um instrumento muito eficaz de reanimação da procura e recuperação da dignidade de milhares de cidadãos desempregados. Embora reduzindo a despesa com subsídios de desemprego, tal programa aumentaria bastante o défice, dado que há muita gente desencorajada, fora do mercado de trabalho e sem direito a transferências sociais. O problema desta proposta é evidente: ao defendê-la, o Syriza punha frontalmente em causa o colete-de-forças imposto por uma UE que recusa a utilização do défice como instrumento de política orçamental.
Uma esquerda consequente não pode assumir a economia da oferta e dizer aos desempregados que esperem pelo crescimento do sector privado. Deve defender uma política orçamental que reduza, drástica e rapidamente, o desemprego. É por esta via que se defende eficazmente um Estado social que queremos mais robusto. O que implica assumir que uma política económica para o pleno emprego só é possível com o país livre dos constrangimentos do ordoliberalismo, com moeda própria. Este discurso será cada vez mais popular à medida que o drama grego vai revelando a crueldade dos tratados da UE e dos seus guardiões, para quem até as despesas de emergência humanitária são dificilmente toleradas, quanto mais um programa de emergência para a criação de empregos, como foi feito na Argentina após 2002 (http://www.levyinstitute.org/pubs/wp_534.pdf).
(O meu artigo no jornal i)
Tudo isto é bem conhecido dos alunos de macroeconomia introdutória, mas é depois soterrado por outros modelos que, apesar de solidamente contraditados pela investigação empírica, continuam a pairar no debate público como se nada fosse. Como bem lembrou Michal Kalecki (“Political aspects of full employment”), “a ignorância obstinada é normalmente uma manifestação de razões políticas subjacentes”. Porém, a sobrevivência de teorias económicas erradas é um problema bem mais grave porque, além de instrumento de propaganda dos poderes instalados, acabou por enquadrar e infiltrar o pensamento de alguma esquerda, sinal evidente da longa hegemonia do pensamento neoliberal nos meios universitários, nos media e no debate político.
De facto, foi espantoso ver as oposições ao actual governo criticarem a incompetência do anterior ministro das Finanças por falhar as metas do défice que se tinha proposto alcançar, como se a economia não afundasse mais com um défice inferior. Desde quando um país em recessão gravíssima, de facto numa quase-depressão, ganha alguma coisa com défices reduzidos? Isto só se explica porque a oposição, sob a forma de guerrilha política, não tem um discurso compatível com o que faria no governo se tivesse maioria. Depois admirem-se da falta de credibilidade e da sensação de falta de alternativa que perpassa no eleitorado.
Um exemplo flagrante desta colonização intelectual do discurso das esquerdas é a sistemática omissão, pelo menos no discurso público, do objectivo do pleno emprego como meta da sua política económica. Aliás, na Grécia, a plataforma eleitoral do Syriza não previu a necessidade de défices públicos primários (excluídos os juros) para lançar um programa de emergência, em larga escala, destinado a criar empregos socialmente úteis. Seria um instrumento muito eficaz de reanimação da procura e recuperação da dignidade de milhares de cidadãos desempregados. Embora reduzindo a despesa com subsídios de desemprego, tal programa aumentaria bastante o défice, dado que há muita gente desencorajada, fora do mercado de trabalho e sem direito a transferências sociais. O problema desta proposta é evidente: ao defendê-la, o Syriza punha frontalmente em causa o colete-de-forças imposto por uma UE que recusa a utilização do défice como instrumento de política orçamental.
Uma esquerda consequente não pode assumir a economia da oferta e dizer aos desempregados que esperem pelo crescimento do sector privado. Deve defender uma política orçamental que reduza, drástica e rapidamente, o desemprego. É por esta via que se defende eficazmente um Estado social que queremos mais robusto. O que implica assumir que uma política económica para o pleno emprego só é possível com o país livre dos constrangimentos do ordoliberalismo, com moeda própria. Este discurso será cada vez mais popular à medida que o drama grego vai revelando a crueldade dos tratados da UE e dos seus guardiões, para quem até as despesas de emergência humanitária são dificilmente toleradas, quanto mais um programa de emergência para a criação de empregos, como foi feito na Argentina após 2002 (http://www.levyinstitute.org/pubs/wp_534.pdf).
(O meu artigo no jornal i)
Qual é o outro país distante, qual é ele?
Ainda a propósito da reflexão sobre a sensata decisão islandesa de não se enfiar na UE e no euro, que, sem surpresa, passou quase desapercebida entre nós, é de assinalar o seguinte: depois de ter atingido um máximo de 8%, em 2011, a taxa de desemprego islandesa ficará abaixo dos 5%, em 2015. Não é ainda pleno emprego, mas lá poderá chegar, contrariando assim a tese derrotista de que este é coisa do passado.
Deixo-vos uma pergunta: que outro país distante, neste caso antes do novo milénio, reparem, costumava registar este padrão na taxa de desemprego? Uma pista: esse país distante tinha relações laborais com regras mais favoráveis aos trabalhadores e agora é apresentado pelo seu lamentável Presidente da República como um exemplo de flexibilidade, ou seja, de regras favoráveis aos patrões, claro.
Bom, dou-vos mais duas pistas: o investimento ainda não tinha caído nesse país mais de 40% e a dívida externa liquida não tinha passado de valores relativamente baixos, antes de se ter começado a meter numa cruz de euros, para uma percentagem do PIB de mais de 100%.
Vá lá, assim ainda é mais fácil: é só por hábito que podemos ainda apodá-lo de país, já que é mais uma região, e periférica, do ponto de vista dos instrumentos de política económica de que dispõe; já as suas elites, cada vez mais estrangeiras, sempre desejaram viver numa região com sol...
Deixo-vos uma pergunta: que outro país distante, neste caso antes do novo milénio, reparem, costumava registar este padrão na taxa de desemprego? Uma pista: esse país distante tinha relações laborais com regras mais favoráveis aos trabalhadores e agora é apresentado pelo seu lamentável Presidente da República como um exemplo de flexibilidade, ou seja, de regras favoráveis aos patrões, claro.
Bom, dou-vos mais duas pistas: o investimento ainda não tinha caído nesse país mais de 40% e a dívida externa liquida não tinha passado de valores relativamente baixos, antes de se ter começado a meter numa cruz de euros, para uma percentagem do PIB de mais de 100%.
Vá lá, assim ainda é mais fácil: é só por hábito que podemos ainda apodá-lo de país, já que é mais uma região, e periférica, do ponto de vista dos instrumentos de política económica de que dispõe; já as suas elites, cada vez mais estrangeiras, sempre desejaram viver numa região com sol...
quinta-feira, 19 de março de 2015
A estratégia do Syriza chegou ao fim
Hoje à noite haverá uma reunião ao mais alto nível da UE com o Primeiro-Ministro grego. Há minutos, ouvi declarações de Angela Merkel que desvalorizam esta reunião. Não é este o enquadramento institucional para que se tomem decisões, disse. Manifestamente, a estratégia de confronto desenhada pelo Syriza não deu os resultados pretendidos.
Sobre a presente situação, o economista Costas Lapavitsas, deputado do Syriza, deu uma entrevista muito esclarecedora. Traduzo este pequeno excerto:
"Penso que a liderança do partido sabe que tem pela frente uma escolha difícil: mantemos-nos fiéis ao programa que apresentámos ao povo grego? Ou submetemos-nos ao que as instituições, o Grupo de Bruxelas, a troika ou o que lhe queiram chamar, nos querem obrigar a fazer? Estas duas coisas são incompatíveis.
Então não há um caminho intermédio?
Não há um caminho intermédio. A Zona Euro não o permite. Pergunta-me se penso que a liderança foi surpreendida? Sim, suspeito que foram em alguma medida. Porque a minha leitura da situação é a de que a liderança acreditava realmente que se poderia mudar os alinhamentos políticos, podia-se mudar a aritmética eleitoral e, nessa base, mudar a Europa, mudar as políticas europeias.
Então o que deverá fazer o governo grego, na sua opinião?
A Grécia precisa de ponderar o verdadeiro caminho alternativo, deixar esta união monetária falhada.
Claramente, é o único caminho que estava disponível desde o início - basicamente, a saída. Se vamos aplicar este programa, como o Syriza proclamou, e que não é radical - o programa do Syriza é apenas keynesianismo moderado -, precisamos de pensar seriamente sobre como vamos sair da Zona Euro."
quarta-feira, 18 de março de 2015
DesVIP-se
Na segunda-feira passada, o gabinete do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais comunica à imprensa que "nunca foram dadas instruções à Autoridade Tributária (AT) para elaborar qualquer tipo de listas de contribuintes" ilegal, pelo que a hipótese de abrir um inquérito "não faz sentido". Dois dias depois e após a demissão do director-geral da Administração Tributária, o secretário de Estados dos Assuntos Fiscais declara que "quando recebi na 2ªfeira a informação do director-geral da AT no sentido de que, (...) tinha havido propostas e tinha havido procedimentos internos nessa matéria, sem que jamais o Governo tivesse sido informado e sem que jamais o Governo tivesse tido conhecimento dessa situação, resolvi de imediato pedir um inquérito à IGF".
O que terá acontecido nessa 2ªfeira?
A verdadeira escolha
Há excelentes motivos para que a educação deva ser universal e gratuita, mas a tendência geral tem sido de retrocesso a esse nível. As conquistas dos estudantes chilenos devem inspirar-nos a invertermos esta tendência.
São muitas e boas as razões que justificam que o acesso à educação - e a todos os níveis de ensino - deva ser universal e gratuito. A primeira, mais imediatamente reconhecível pela economia dominante, é que a educação é caracterizada por aquilo que se costuma designar por "externalidades positivas". Isto é, os benefícios resultantes da aquisição de educação adicional não são exclusivamente apropriados pelos seus beneficiários directos: o resto da sociedade beneficia de inúmeras formas do facto de cada um dos seus membros apresentar um maior desenvolvimento cognitivo e cultural e competências interpessoais e técnicas mais desenvolvidas.
Como tipicamente sucede em presença de externalidades positivas, o mercado é incapaz, por si só, de assegurar o nível ideal de provisão do bem ou serviço em causa, uma vez que a disponibilidade ou capacidade para pagar de cada um dos indivíduos não tem em conta os benefícios externos que advêm a terceiros. As externalidades, positivas ou negativas, constituem aliás um dos exemplos clássicos das chamadas "falhas de mercado", precisamente devido ao facto da regulação mercantil da provisão resultar, mesmo num quadro de análise estritamente utilitarista, numa situação socialmente indesejável.
Mas há mais razões e não são menos importantes. Uma segunda razão consiste no facto do acesso diferencial à educação ser um dos mecanismos mais poderosos de reprodução intergeracional da desigualdade. Os filhos dos ricos têm tipicamente acesso a mais oportunidades de desenvolvimento cognitivo e cultural do que sucede com os filhos dos pobres, e esta dimensão da desigualdade interage e potencia com as outras dimensões (como a transmissão por herança da riqueza) de um modo tendente a perpetuar a desigualdade de geração em geração. O ensino público, universal e gratuito não consegue, por si só, compensar esta desvantagem, pois os filhos dos ricos continuam a ter, tipicamente, um melhor desempenho em consequência das vantagens adicionais de que beneficiam. Mas é uma das formas mais importantes de mitigar esta dimensão da desigualdade - e é uma forma tanto mais poderosa quanto mais efectivamente gratuita e universal for.
terça-feira, 17 de março de 2015
O FMI matou o Tratado Orçamental
A propósito do relatório hoje divulgado, revisitei o Primeiro Relatório do FMI Pós-Programa, apresentado em Janeiro. De repente apercebi-me de algo que me havia escapado na primeira leitura: ou estou a ver mal ou o FMI já assume como um dado que Portugal não vai cumprir o Tratado Orçamental (TO).
Recordam-se daquela regra do TO que diz que os países têm de reduzir todos os anos em 1/20 (ou 5%) a distância que separa o seu rácio da dívida pública da meta dos 60% do PIB? Pois vejam abaixo quais são as previsões da evolução deste rácio até 2019 e o que elas representam em termos de ritmo de redução do rácio:
Ou seja, o TO não é cumprido em nenhum dos anos. O FMI parece, pois, estar a assumir que Portugal vai reduzir o peso da dívida no PIB a um ritmo mais lento do que o anunciado pelo governo e previsto no TO. Este ritmo torna-se compatível, nas previsões do FMI, com um saldo orçamental primário de "apenas" 2,5% em 2018, contrastando com os 4,2% previstos pelo governo no Documento de Estratégia Orçamental de Maio do ano passado (trata-se, em qualquer caso, de valores tão improváveis quanto aqueles que aqui discuti, ainda que menos absurdos que os do governo).
Com esta ainda fico mais curioso sobre o Documento de Estratégia Orçamental para 2015-2019 que o governo apresentará até Maio deste ano...
Recordam-se daquela regra do TO que diz que os países têm de reduzir todos os anos em 1/20 (ou 5%) a distância que separa o seu rácio da dívida pública da meta dos 60% do PIB? Pois vejam abaixo quais são as previsões da evolução deste rácio até 2019 e o que elas representam em termos de ritmo de redução do rácio:
Ou seja, o TO não é cumprido em nenhum dos anos. O FMI parece, pois, estar a assumir que Portugal vai reduzir o peso da dívida no PIB a um ritmo mais lento do que o anunciado pelo governo e previsto no TO. Este ritmo torna-se compatível, nas previsões do FMI, com um saldo orçamental primário de "apenas" 2,5% em 2018, contrastando com os 4,2% previstos pelo governo no Documento de Estratégia Orçamental de Maio do ano passado (trata-se, em qualquer caso, de valores tão improváveis quanto aqueles que aqui discuti, ainda que menos absurdos que os do governo).
Com esta ainda fico mais curioso sobre o Documento de Estratégia Orçamental para 2015-2019 que o governo apresentará até Maio deste ano...
segunda-feira, 16 de março de 2015
Estes islandeses...
Estes islandeses são loucos, dirão as nossas elites intelectuais e políticas: sem grande eco por cá, na semana passada, a Islândia decidiu meter mesmo na gaveta um pedido de adesão à UE e eventualmente ao euro, estranhamente aí apoiado por alguns sectores de esquerda, o que de resto pode ajudar a explicar a sua derrota nas últimas eleições.
Não se esqueçam que controlos de capitais, política cambial, Estado social robusto, imposição de perdas aos credores e recuperação económica já com anos não são para nós. Nós por cá somos então mais assim: a soberania é coisa do passado e o Estado-nação também, já que a UE e o euro protegem os nossos interesses ou podem, por milagre, vir a protegê-los. E, de qualquer forma, são irreversíveis, tal como a globalização.
Também não se esqueçam que quem pensa o contrário, quem pensa que é possível e necessário recuperar margem de manobra nacional, só pode um perigoso populista, um aliado objectivo, e até quiçá subjectivo, de Le Pen ou mesmo um admirador de Estaline. Ou todas estas coisas ao mesmo tempo, tanto faz. E guerra, fale-se muitas vezes de guerra, com um ar grave de quem sabe do que está a falar.
A sabedoria convencional e o que passa por pensamento crítico em certas áreas acabam por partilhar o mesmo desígnio pós-nacional, com a diferença que a sabedoria convencional ainda proclama hipocritamente “Portugal acima de tudo”, mas só porque os partidos que dela se servem têm eleições para disputar. É que a ideia de soberania ainda é popular...
Não se esqueçam que controlos de capitais, política cambial, Estado social robusto, imposição de perdas aos credores e recuperação económica já com anos não são para nós. Nós por cá somos então mais assim: a soberania é coisa do passado e o Estado-nação também, já que a UE e o euro protegem os nossos interesses ou podem, por milagre, vir a protegê-los. E, de qualquer forma, são irreversíveis, tal como a globalização.
Também não se esqueçam que quem pensa o contrário, quem pensa que é possível e necessário recuperar margem de manobra nacional, só pode um perigoso populista, um aliado objectivo, e até quiçá subjectivo, de Le Pen ou mesmo um admirador de Estaline. Ou todas estas coisas ao mesmo tempo, tanto faz. E guerra, fale-se muitas vezes de guerra, com um ar grave de quem sabe do que está a falar.
A sabedoria convencional e o que passa por pensamento crítico em certas áreas acabam por partilhar o mesmo desígnio pós-nacional, com a diferença que a sabedoria convencional ainda proclama hipocritamente “Portugal acima de tudo”, mas só porque os partidos que dela se servem têm eleições para disputar. É que a ideia de soberania ainda é popular...
Optimismo e o novo Memorando
"Quando até os nossos adversários olham para o futuro com mais esperança é porque de certeza Portugal é hoje um país mais livre, mais confiante e mais optimista no futuro do que aquele que nos legaram em 2011".
Palavras de Pedro Passos Coelho - ontem à noite em Oliveira de Azeméis - que são sinal de uma reconstrução da História, que já começa a aparecer em alguma comunicação social.
Tópicos da nova releitura da História:
1) O programa de ajustamento não foi feito para reformar a economia, mas sim para endireitar as finanças públicas;
2) O programa de ajustamento não foi delineado para criar emprego, nem criar um novo paradigma económico que tornasse Portugal mais competitivo; mas sim para tornar o Estado saudável, para que a economia possa respirar e, assim, crescer. E isso acontecerá quando as empresas quiserem, porque o Estado não deve ter uma palavra sobre isso, nem interferir nos assuntos privados.
3) As empresas é que criam emprego, não o Estado.
Já nem refuto nenhuma dessas premissas com vídeos com membros do Governo em 2011. Nem digo que o desemprego não desce porque são os estágios e os empregos apoiados que sobem. Nem comento a 3) quando é o Estado quem está a criar metade do emprego surgido recentemente!
Basta olhar para o desemprego oficial (gráfico acima) para perceber que o OPTIMISMO nunca deveria passar pela cabeça de alguém. Só os políticos que expurgam o emprego e o desemprego da equação podem sentir-se assim. Porque a doença de Portugal é o desastre completo que o programa de ajustamento criou no emprego, em que desempregados de longa duração estão em ascensão. Ainda. E em que a taxa de desemprego lato ultrapassa os 20%, já sem contar com a emigração jovem!
"Não queremos olhar para o futuro de uma forma imprevidente, de uma maneira que pudesse colocar em causa os sacrifícios que fizemos e os equilíbrios que tanto nos custou alcançar.".
Como se os sacrifícios tivessem passado e os desequilíbrios não estejam aí e nem passarão tão cedo.
"Nos últimos anos gastámos muito dinheiro em Portugal sem qualquer retorno. Se tivéssemos de fazer uma avaliação do que representou o investimento em Portugal, a despesa suportada por financiamento público e financiamento europeu, chegaríamos à conclusão que o resultado é não só frustrante como capaz de gerar indignação".
Pois, estamos muito melhor agora. Sobretudo quando pouco foi feito nas PPPs, quando a procura foi apertada e o financiamento das empresas fechado por força da aplicação do Memorando.
A pergunta é simples: Quando se espera que o emprego e o investimento atinjam o nível de 2011? E esperem-se engasganços...
domingo, 15 de março de 2015
Conferência IDEFF: «Portugal - Um ponto de situação»
«A dívida externa líquida da economia portuguesa é, diria eu, o desafio número um que se coloca a qualquer política económica em Portugal e vai ser assim durante vários anos. Temos, como é sabido, uma dívida externa que é das maiores da União Europeia e mesmo das maiores do mundo. (...) Um outro dado que é particularmente preocupante diz respeito à posição financeira das empresas. (...) Passámos de uma situação em que tínhamos empresas extremamente endividadas para uma situação de empresas que estão ainda mais endividadas. (...) Um outro aspecto que eu gostava de referir tem a ver com a ideia de que o ajustamento por que passámos favoreceu uma reestruturação da economia portuguesa, estando hoje melhor preparada para enfrentar os desafios da globalização. (...) Se olharmos para o conjunto dos sectores, nós vemos que alguns dos sectores que são fundamentais para a afirmação competitiva da economia portuguesa (a indústria transformadora, os restaurantes e hotéis - que são a base do turismo -, a agricultura, silvicultura e pescas), têm hoje muito menos emprego do que tinham em 2008. (...) A pergunta que devemos fazer é: está hoje a economia portuguesa menos exposta à concorrência por parte de países que baseiam a sua competitividade na mão-de-obra barata? A resposta é não. (...) Todos os sinais que levavam alguns analistas a considerar que Portugal estava em 2009 à beira do colapso estão hoje muitíssimo mais graves do que estavam em 2009.» (Ricardo Paes Mamede).
«O investimento, ao contrário do que diz o ministro Paulo Portas, não cresceu 5%, cresceu 2,3%, estando hoje ao nível de 1986, o ano em que começaram a vir fundos europeus para Portugal. Portanto, nós regredimos 30 anos em níveis de investimento e o que conseguimos crescer nem serve para manter a capacidade produtiva. (...) Nós temos aqui se quisermos uma quadratura do círculo que é: ajustámos brutalmente o défice externo quando o défice público correu mal. Porquê? Porque como fizemos colapsar a procura interna e fizemos colapsar o emprego — havia menos contribuições sociais, menos IVA, menos consumo, e, portanto, as receitas fiscais foram por aí abaixo. Agora, que deixamos de corrigir o défice externo e até o estamos a degradar, corre mal no défice externo e corre bem no défice público. Porquê? Porque grande parte do crescimento do consumo foi assente em automóveis, que pagam muitos impostos — pagam imposto automóvel, pagam o IVA. Portanto, paradoxalmente quando correu bem no défice externo correu mal no défice público e quando agora corre mal no défice externo volta a correr mal no défice público. O que é que isto mostra? Que não corrigimos nada, apenas andámos aqui conjunturalmente a ajustar as coisas, mas não ajustámos nada de verdadeiramente estrutural e a prova disso é que, quando começamos a recuperar um bocadinho, voltam logo os desequilíbrios do passado.» (João Galamba)
Via Câmara Corporativa, excertos das intervenções (a ver na íntegra) de Ricardo Paes Mamede e de João Galamba na conferência promovida pelo Instituto de Direito Económico Financeiro e Fiscal (IDEFF), «Grécia e agora?», realizada no passado dia 4 de Março. Os restantes vídeos da conferência encontram-se aqui.
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