João Vieira Pereira, sub-director do Expresso, escreveu
um artigo a criticar o manifesto dos 70. A minha resposta,
publicada no Expresso online, foi a seguinte:
1. O uso da palavra reestruturação só é um erro presumindo que os investidores são tolos. Ficamos sem perceber se João Vieira Pereira prefere outra palavra ou - o que é o mais provável - prefere que nem se fale do tema. Se for a segunda, a posição de JVP deve ser reformulada, passando a ser "aceitemos, de forma resignada, a nossa servidão", não ousando nunca pô-la em causa. Pelo menos ficava mais claro e sempre se percebia que o problema de JVP não é com um alegado erro deste manifesto, mas sim com toda e qualquer iniciativa que vise a reestruturação da dívida. Quanto ao facto de uma reestruturação ser "suja e traumática", importa perceber se será menos suja e traumática do que a estratégia alternativa, que é a que temos hoje e que não consta que seja limpa e regeneradora;
2. O problema dos saldos primários positivos é saber qual o seu impacto económico e o que precisamos de fazer para lá chegar, realidade que JVP parece desconhecer ou, pior, desvalorizar, assumindo, sem argumentar, que saldos primários positivos são naturalmente desejáveis e indolores. Reduzir o défice público por via da austeridade retira recursos da economia (mau para a economia), corta salários dos FP (mau para os FP e para a economia), corta pensões (mau para pensionistas e para a economia), corta prestações sociais (mau para quem delas precisa ou tem direito e mau para a economia), corta no investimento público (mau para a economia presente e futura), diminui a capacidade de desalavancagem do sector privado (empresas e famílias têm menos rendimento, logo têm mais dificuldade em poupar), etc. A austeridade é um erro económico, um erro financeiro, um erro social e, sim, um enorme erro político. Que JVP, depois da experiência dos últimos anos (em Portugal e não só), não perceba isto diz mais sobre JVP do que sobre qualquer dos subscritores do manifesto;
3. Os últimos dados do PIB não desmentem a afirmação de que sem reestruturar a dívida não será possível canalizar recursos para a economia; na verdade, confirmam-na. Basta ver o que nos dizem os dados do INE: a procura interna cai menos do que o previsto porque houve menos austeridade do que o previsto, pelo que mais austeridade, como defende JVP, prejudica a retoma, nunca o inverso. O manifesto não defende que o Estado é o motor da economia, limita-se a constatar verdades elementares de macroeconomia que qualquer estudante do primeiro ano de licenciatura tem o dever de conhecer;
4. Quem diz que "sem reestruturação a única via é a da austeridade" limita-se a constatar que se cerca de 8 mil milhões de juros forem intocáveis, então, para baixar o défice como está previsto nas regras europeias, temos de cortar salários, pensões, saúde, educação, prestações sociais e investimento público, o que prejudica o crescimento;
5. A reestruturação da dívida não tem um impacto menor nos balanços dos bancos do que a austeridade que está prevista, como se constata pelos valores do crédito mal-parado, que, em Janeiro, atingiram um novo máximo histórico. Mais, como dizem todos os estudos, o principal bloqueio à retoma do investimento é a falta de procura (ver, por exemplo, o inquérito de conjuntura publicado pelo INE), problema que é agravado pela insistência nas políticas de austeridade;
6. Entre os subscritores do manifesto, há quem sempre tenha dito que a entrada no euro foi um erro, outros que chegaram à conclusão que foi um erro, outros que acham que, não tendo sido um erro, o euro, na sua actual configuração, é insustentável, etc. Enfim, esta parece-me uma questão certamente fascinante, mas absolutamente irrelevante para avaliar o manifesto e o que lá está proposto;
7. As taxas de juro são baixas ou altas consoante o contexto. Taxas de 3.9% não têm de ser mais sustentáveis do que 5.6%, tudo depende da taxa de crescimento do PIB nominal. Ora, com crescimentos reais previstos não muito diferentes dos da (alegada) década perdida, mas num cenário de deflação, estas taxas não são mais sustentáveis. Aliás, basta ver o quadro que consta da página 36 do relatório do OE2014 para se perceber que, mesmo num contexto de taxas nominais historicamente reduzidas, o efeito bola-de-neve (diferença entre taxa de juro nominal e taxa de crescimento nominal do PIB) é a principal causa para o aumento da dívida pública;
8. A dívida ao sector oficial também inclui a dívida detida pelo BCE. Mesmo excluindo a dívida ao FMI, estamos a falar de mais de 70 mil milhões de euros, mais de um terço do total. É pouco? Quem se assusta tanto com a reacção dos investidores, devia apoiar esta posição: é a garantia de que os investidores não se assustavam tanto; isto até podia fazer baixar os juros nos mercados da dívida;
9. JVP acha que a crise que vivemos é da responsabilidade de políticas orçamentais do passado. Haverá certamente subscritores do manifesto que partilham dessa posição, mas será assim tão difícil de perceber que há muitos que olham para esta crise de uma forma radicalmente diferente de JVP. Eu, por exemplo, acho que esta não é uma crise de finanças públicas, mas sim uma crise de balança de pagamentos numa moeda que foi criada no pressuposto de que esse tipo de crise era uma impossibilidade. Esta minha posição não é uma excentricidade socialista, basta estar atento ao que muitos (em Portugal e, sobretudo, "lá fora") têm dito e escrito sobre os tempos que vivemos. A proposta de encontrar uma solução num quadro europeu abandona a interpretação moralista e comportamental da crise e coloca o problema da esfera de onde nunca devia ter saído, a da dimensão sistémica, e portanto, europeia desta crise;
JVP acha que este manifesto vem perturbar uma trajectória que, primeiro, até está a correr bem e, segundo, tem todas as condições para ser bem sucedida. Como este é o ponto que os subscritores do manifesto rejeitam, a argumentação de JVP incorre numa petição de princípio. Como manda a lógica, não se pode invocar um pressuposto contestado pelo manifesto para criticar o manifesto. É como alguém dizer que as regras do euro têm de ser revistas porque são insustentáveis e, depois, vir alguém criticar essa posição dizendo que ela viola as regras do euro. Tenho a certeza que JVP concordará que isso seria um absurdo argumentativo.