segunda-feira, 31 de março de 2014

Do excedente externo (I)


Portugal conseguiu um excedente externo de 2% do PIB no ano passado. Não só não nos endividamos, como já financiamos o resto do mundo. No entanto, uma leitura do boletim do INE mostra uma realidade pouco risonha.

Em primeiro lugar, assistimos a um crescimento da poupança das famílias, mas o seu rendimento disponível diminuiu. Ou seja, com a actual instabilidade em relação ao futuro, o consumo das famílias caiu mais do que o rendimento.

Mais importante é o que passa ao nível das empresas. Aqui as necessidades de financiamento mantiveram-se ao nível de 2012. Contudo, o investimento teve uma enorme quebra (-7,3%). Mesmo poupando drasticamente no investimento, as empresas portuguesa têm resultados de tal forma maus que continuam a ter as mesmas necessidades de endividamento.

Em suma, conseguimos gerar um excedente externo através de dois mecanismos: o empobrecimento e medo das famílias, por um lado, e a hipoteca do futuro da economia que se traduz na redução do investimento, por outro.

Dir-me-ão: esta leitura esquece o fantástico progresso das exportações (5,4%) face às importações (0,9%). Certo. Mas vejamos, se o consumo das famílias caiu e o investimento também, qual é a origem deste aumento das importações? Não tenho dado certos, mas tenho uma hipótese: talvez o aumento das exportações se deva, em boa medida, a um sector dependente das importações dos seus consumos intermédios, como o dos produtos petrolíferos que beneficiou da nova refinaria em Sines...

Fazer parte do consenso, fazer parte do debate


No mesmo dia em que Paulo Rangel afiançava que o Manifesto dos 74 «já saiu da agenda», não tendo tido a «adesão dos portugueses» e que por isso já «ninguém fala dele», os seus promotores lançavam a Petição pública «Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente» (que pode ser lida e subscrita aqui), dirigida à Presidente da Assembleia da República, tendo em vista «a aprovação de uma resolução recomendando ao governo o desenvolvimento de um processo preparatório tendente à reestruturação da dívida, com os fundamentos constantes do manifesto» e «a realização de um processo parlamentar de audição pública de personalidades relevantes para o objectivo em causa».

Em apenas três dias, a petição reuniu mais de 18 mil assinaturas, demonstrando assim o amplo e crescente consenso que o Manifesto 74 está a suscitar na sociedade portuguesa e obrigando a abrir o debate que governo e seus fieis correlegionários (entre os quais o presidente da República, Cavaco Silva, e o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso), desejariam irresponsavelmente manter fechado a sete chaves. E entretanto, para além da criação da petição pública e do apoio recebido por 74 economistas estrangeiros, associaram-se ao manifesto nomes como os de Jorge Miranda, Alfredo José de Sousa, Lídia Jorge, Pinto Ramalho, Melo Gomes, Januário Torgal Ferreira, Seixas da Costa, Eugénio da Fonseca, Ana Gomes e Pacheco Pereira, entre outros.

É no contexto deste debate, cada vez mais premente, que o Congresso Democrático das Alternativas promove, no próximo dia 2 de Abril, a sessão pública «Reestruturar ou empobrecer», que conta com a participação de Hugo Mendes (abertura), João Cravinho, Ana Drago, José Castro Caldas e Manuel Carvalho da Silva (encerramento). É a partir das 21h00 no Auditório Camões, em Lisboa, e estamos todos convidados.

Sucesso a martelo

Os defensores da estratégia da austeridade e das chamadas reformas estruturais embandeiraram em arco quando viram as últimas previsões do Banco de Portugal (BdP). Neste jornal, António Costa, ufano, chegou mesmo a escrever que a economia tinha regressado, mas, agora, mais equilibrada e sustentável e sem os desequilíbrios externos que (alegadamente) nos trouxeram até à 'troika'.

Um sucesso que justifica todos os disparates que se escreveram sobre o manifesto dos 74 e que nos permite olhar para o futuro com otimismo, sem necessidade de pensar em alternativas, que, como mostram as previsões do BdP, se tornaram desnecessárias. Esta história seria, sem dúvida, edificante, não fosse não fazer grande sentido.

Não sei que números é que António Costa viu, mas não foram seguramente os do BdP, porque o que o BdP nos diz é que, em termos de crescimento e do seu perfil, o pós-‘troika' não é melhor que o pré-‘troika', antes pelo contrário. No período 2000-8, a economia cresceu, em média, 1,3%, o contributo da procura interna foi 1,3% e o da procura externa líquida 0%. No triénio 2014-6, o BdP prevê que a economia cresça, em média, 1,4%, o contributo da procura interna seja 1,3% e o da procura externa líquida 0,1%. Tendo em conta que o desemprego e a dívida pública em percentagem do PIB são mais do dobro do que eram no período pré-‘troika', que o investimento caiu mais de 30% nos últimos 3 anos, torna-se difícil, para não dizer impossível, olhar para estes números e vislumbrar o tal sucesso económico que permita encarar o futuro com otimismo.

A tão falada transformação estrutural pura e simplesmente não existiu. A suposta marca do crescimento mais equilibrado e sustentável - o facto do défice externo ter sido eliminado - não se deve a qualquer transformação qualitativa da economia portuguesa, deve-se, isso sim, ao facto do PIB estar ao nível do que estava em 2000, do desemprego estar acima dos 15% e das importações terem caído a pique. Ou seja, tirando a destruição causada pela austeridade, nada de estruturalmente positivo foi construído. O alegado sucesso depende, pois, da manutenção da recessão e do desemprego, porque, quando vemos o crescimento económico regressar, este não só tem taxas de crescimento muito semelhantes ao período pré-crise, como tem exatamente o mesmo perfil. Por outras palavras, quando o PIB recuperar da destruição dos últimos anos, o desequilíbrio externo regressará.

Se olharmos para previsões anteriores do BdP, o que mudou foi que, súbita e misteriosamente, o crescimento económico do pós-‘troika' deixou de assentar na procura externa líquida, tendo a procura interna voltado a ser o motor (exclusivo) da economia... como no passado. Não deixa de ser bizarro ver instituições que sempre disseram que o único crescimento sustentável era o que assentava na procura externa líquida, e que previram que as reformas estruturais assegurariam esse perfil de crescimento no pós-‘troika', virem agora, quando nos aproximamos do fim do programa da ‘troika', celebrar a negação de tudo isto. A explicação para esta pirueta é simples: o BdP (e o Governo e o António Costa) decidiu decretar que este programa tinha de ser um sucesso. Se necessário, um sucesso a martelo e ao arrepio de todos os factos. É o caso.

(artigo publicado no Económico)

O momento «Vítor Gaspar» de Paulo Portas

No início de Junho de 2013, o então ainda ministro Vítor Gaspar tentava justificar, no Parlamento, a quebra do investimento no primeiro trimestre desse ano com a adversidade das «condições meteorológicas» que, segundo o titular da pasta das Finanças, teria prejudicado «a actividade da construção». A chuva - e não o impacto da sua visionária «austeridade expansionista» - seria pois a grande responsável pela contracção da economia nos primeiros meses do ano.

Porém, uma simples consulta do «Inquérito Qualitativo de Conjuntura à Construção e Obras Públicas», relativo a esse mesmo período, tratava de denunciar a mentira leviana do então ministro: de acordo com os empresários do sector, a insuficiência da procura constituía o principal obstáculo ao investimento (85%), seguindo-se a deterioração das perspectivas de venda (58%) e a dificuldade na obtenção de crédito bancário (54%). Quanto às famosas condições climatéricas desfavoráveis, surgiam na cauda da tabela, sendo referidas por apenas 5% dos inquiridos.

Na passada sexta-feira, no final da interpelação ao governo feita pelo BE, ao ser questionado sobre a diminuição do número de beneficiários de RSI, o vice-primeiro-ministro Paulo Portas decidiu ter o seu momento «Vítor Gaspar», ensaiando uma resposta pouco limpa e nada cautelar. Segundo Portas, os ex-beneficiários em questão teriam deixado «de ter rendimento mínimo porque, por acaso, tinham mais de 100 mil euros na conta bancária», o que levou o deputado Pedro Marques a anunciar que o PS iria dirigir uma pergunta por escrito ao governo, tendo em vista saber quantos, dos cem mil beneficiários do RSI que perderam recentemente o direito à prestação, «tinham 100 mil euros no banco».

Infelizmente, com a extinção, pelo actual executivo, da Comissão Nacional do Rendimento Social de Inserção (CNRSI) - que produzia relatórios da execução da medida e de caracterização dos beneficiários - torna-se hoje mais difícil aceder a dados detalhados que escrutinem a afirmação do ministro Paulo Portas. O que é pena, pois o último relatório desta comissão, de Junho de 2011, permitia por exemplo concluir que as situações de «fraude e abuso» (por incumprimento do programa de inserção, falsas declarações, falta à convocatória do IEFP, recusa do plano pessoal de emprego ou posse de património mobiliário superior ao limite, entre outras), representavam apenas cerca de 3% dos motivos de cessação da prestação, desmentindo portanto a tese, insistentemente propagada pela direita (e em particular pelo irrevogável partido de Paulo Portas), de que o RSI constituía um simples «subsídio à preguiça», concedido a uns malandros que dele não precisavam e apenas não pretendiam trabalhar.

Ora, é exactamente no quadro desta mesma sanha persecutória e miséria moral que se inscreve a insidiosa afirmação proferida por Paulo Portas. De facto, não só o Regulamento de Acesso ao RSI em vigor não determina a cessação da prestação a agregados familiares com depósitos bancários superiores a 100 mil euros (mas sim superiores a 25 mil euros), como a redução no número de beneficiários se verificou, paulatinamente, muito antes da fixação desse limite, para efeitos acesso ao RSI. O que a mentira descabelada de Paulo Portas procura esconder é pois outra coisa: ao apertar progressivo dos critérios de acesso à prestação, juntou-se, mais recentemente, um outro factor de exclusão, decorrente de regras administrativas responsáveis por sucessivos erros e atrasos dos serviços e que apenas servem para dificultar e até impedir, burocraticamente, o acesso e a permanência das famílias e indivíduos no RSI. Mas aguardemos, com expectante curiosidade, pela resposta que o ministro democrata-cristão Mota Soares fará chegar entretanto ao deputado socialista Pedro Marques.

domingo, 30 de março de 2014

Da subserviência, da farsa e da mediocridade

 

«Reestruturação, essa é a palavra que Portugal não pode pronunciar. Porque quem diz reestruturação, em termos de mercados pensa-se logo em perdão da dívida, ou em corte da dívida, ou no "não pagamos". Ora, neste momento, Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu, todos os agentes internacionais... os principais credores, acham que Portugal está em condições, que a sua dívida é sustentável. E são os próprios portugueses que vão dizer que não vão pagar?» (José Manuel Durão Barroso, na entrevista à SIC/Expresso).

O Durão Barroso que invoca, tal como Cavaco, as garantias da Comissão Europeia, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Central Europeu sobre a sustentabilidade da dívida pública portuguesa (sem que trate de a demonstrar), é o mesmo Durão Barroso que, há 11 anos atrás, garantia ter visto em Londres (sem as exibir), as provas da existência de armas de destruição maciça que conduziriam à invasão do Iraque.
Sabe-se hoje que o Iraque não possuía armas de destruição maciça e que a sua invocação apenas visou legitimar a invasão do país e a deposição do regime de Saddam Hussein. Tal como se sabe, já hoje, que é apenas em nome dos seus próprios interesses que os credores se empenham em manter e prolongar, o mais possível, a falsa ilusão da sustentabilidade da dívida portuguesa. Que o façam, não surpreende. Mas que Durão desempenhe, uma vez mais (e mentindo descaradamente sobre os termos da proposta do Manifesto dos 74), o papel de capacho subserviente e sem escrúpulos, diz tudo sobre a criatura.

Leituras

«Em 2012, o ano em que o país foi sujeito a um processo geral de empobrecimento, houve mais 85 mil pessoas atiradas para baixo dos limiares de subsistência. Se usarmos o rendimento de 2009 como referencial, são mais 360 mil pobres num ano. (...) O cerco montado aos candidatos a rendimento social de inserção, uma prestação atribuída a quem chegou ao fim da linha e já não dispõe de outras fontes de rendimento para se sustentar, tem tradução na intensidade da pobreza, que passou de 24,1% para os 27,3%. E o aperto em tudo o que é prestação social levou a que o contributo das transferências sociais relacionadas com doença, incapacidade, família, desemprego e inclusão contribuíssem cada vez menos para reduzir a pobreza. (...) É por isso que os cortes não concretizam a falaciosa "ética social na austeridade" e vulnerabilizam franjas cada vez maiores da população. (...) Em apenas um ano, a sociedade portuguesa ficou mais desigual, com mais pobres, maior intensidade de pobreza e maior taxa de privação material severa. Em reacção aos números, o primeiro-ministro veio dizer que é preciso proteger os portugueses que não podem dispensar apoios sociais e que é preciso reduzir "as desigualdades e injustiças sociais". O Documento de Estratégia Orçamental será a primeira oportunidade para demonstrá-lo.»

Elisabete Miranda, Os elos mais fracos

«Comecemos por desfazer um equívoco: este empobrecimento não era inevitável. Convém lembrar que os dados revelados pelo INE se referem aos rendimentos dos portugueses no ano de 2012, precisamente o ano em que o Governo foi mais longe na sua opção por uma austeridade "além da troika". Na verdade, esse foi o ano em que o Governo decidiu aplicar 9,6 mil milhões de euros de medidas de austeridade, duplicando o valor previsto no Memorando inicial da "troika" (4,8 mil milhões). (...) Acontece que esta política de austeridade reforçada teve graves consequências. Já se sabia que foi uma opção trágica para a economia e para o emprego, conduzindo a uma recessão muito mais profunda (-3.2% do PIB) e a um desemprego muito mais alto (15,7%) do que estava previsto. Mas faltava ainda saber o impacto da "estratégia de empobrecimento" no empobrecimento propriamente dito. Os resultados agora divulgados são elucidativos sobre o real significado do "sucesso" de que falam Passos Coelho e Paulo Portas. (...) Os dados são inequívocos e mostram que a política do Governo se transformou numa tremenda fábrica de fazer pobres. Em apenas ano e meio, esta absurda "estratégia de empobrecimento" provocou um duplo retrocesso social, de proporções gigantescas: um retrocesso de seis anos no combate às desigualdades e um retrocesso de oito anos no combate à pobreza.»

Pedro Silva Pereira, A fábrica de fazer pobres

«O Governo prometeu empenhar-se em fazer o País "sair desta situação, empobrecendo". Cumpriu uma parte: a do empobrecimento. Os dados esta semana publicados pelo INE relativos a 2012 mostram, de facto, como o Governo honrou a promessa de empobrecer a grande maioria dos portugueses. Há neste relatório duas informações essenciais sobre o que é o País depois do choque de empobrecimento prometido e cumprido. A primeira é a de que a austeridade agravou e espalhou a pobreza. Um milhão e cem mil pessoas - mais 200 mil do que em 2010 - vivem em condição de pobreza severa (ou seja, não conseguem satisfazer as suas necessidades mais elementares). Um em cada quatro portugueses é pobre - uma subida de 25% em apenas quatro anos. (...) Mas os números do INE revelam-nos uma segunda imagem do País sob as políticas de austeridade. A diferença entre o rendimento dos 10% mais ricos e dos 10% mais pobres passou de 9,2 vezes em 2009 para 10,7 vezes em 2012. Os números são como o algodão: não mentem. E neles vai clara a demonstração de que houve uma parte do País a quem a promessa governamental de empobrecimento não se aplicou de todo.»

José Manuel Pureza, Promessas cumpridas

«Vítor Bento, economista, conselheiro de Estado, disse, no mesmo dia em que novos dados sobre a gravidade do empobrecimento dos portugueses vieram a público, que "o país empobreceu menos do que parece. O país já era pobre, vivia era com vida de rico". (...) A legitimação do ataque a salários, pensões e reformas, do quase confisco administrativo e fiscal do rendimento das pessoas e das famílias, da facilitação do despedimento para criar um exército de mão-de-obra barata, enquadra-se na ideia de que é aí que está a "riqueza aparente" que uma sã economia não pode tolerar, primeiro porque as pessoas consomem mais do que o que devem, depois porque é preciso baixar os salários para o "custo" da mão-de-obra ser "competitivo". Atacar essa "riqueza" inexistente para abrir caminho à absoluta necessidade da pobreza, é um instrumento político, e é uma ideia sobre Portugal e os portugueses. Por isso, esperem por mais, porque se "o país empobreceu menos do que parece", é porque ele ainda não empobreceu tudo o que podia e devia.»

José Pacheco Pereira, O país que vivia "vida de rico"

sábado, 29 de março de 2014

A joão-miguel-tavarização da opinião




Dead Combo: Sopa de cavalo cansado



No Portugal das expectativas pequenitas


No Portugal das expectativas cada vez mais pequenitas, o nosso país no Euro, qualquer recuperação, por mais tímida que seja, é sempre mais valorizada do que a mais forte destruição anterior. Esta assimetria só significa que o declínio e o desemprego de massas fazem parte do regime económico nacional, sobredeterminado pela arquitectura europeia, com que corremos o risco de nos conformar politicamente, sobretudo na ausência de alternativas reais com força.

A recuperação actual assenta exclusivamente na procura interna, até porque o crescimento do consumo privado tende a fazer aumentar as importações e a procura externa liquida deixa assim de funcionar como motor do que quer que seja. Lá se vai o pensamento mágico da transformação estrutural por via da desvalorização interna.

Vários economistas europeus, de resto conservadores, com excepção de João Ferreira do Amaral, assinaram um artigo a defender o desmantelamento do Euro, identificando precisamente o dilema que marca o nosso destino nesta Zona: “ou as economias mais fracas da Zona Euro expandem em linha com o potencial produtivo e incorrem em défices externos ou aplicam a austeridade, eliminando os défices”, mas com custos elevados em termos de potencial produtivo.

A proposta de desmantelamento organizado da Zona Euro já antes formulada, entre outros, por Oskar Lafontaine, parece-me generosa. Neste contexto, noto que João Ferreira do Amaral afirmou ao Negócios o seguinte: “O que me parece importante é que Portugal saia da Zona Euro de forma unilateral se for necessário, ou em conjunto se isso for possível”. A disponibilidade intelectual e política para fazer o que é necessário pode bem aumentar o campo do que é possível.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Sonic Youth - "Incinerate"


A propósito desta bela entrevista hoje publicada no i.

Bem-vindos à Europa

Este artigo do Público sobre a troika de credores oficiais da Ucrânia (EU, EUA, FMI), por detrás do agora aprovado empréstimo de 28 mil milhões de dólares parece uma má sequela do filme da história recente em Portugal. Um novo governo atribui as culpas ao anterior e ameaçando com o default soberano sobre a dívida, anuncia um acordo para um empréstimo oficial que tem como contrapartida um duríssimo programa de austeridade. Ouvimos as mesmas falaciosas metáforas “"Se o país fosse uma entidade comercial, já estaríamos na bancarrota" e a mesma redenção pela crise "Uma garrafa de vodka custava 32 hrivnias e vai custar 35.(…) Vocês deviam beber menos e praticar mais exercício físico". Entretanto com um aumento do preço do gás em 50%, mais impostos sobre o rendimento, aumento do IVA, os próximos tempos serão negros para a economia e povo ucraniano. Nada de original para quem vive neste rectângulo à beira mar plantado.

Culturgest: «A crise é sempre uma oportunidade: o caso da zona euro»


Hoje, o culminar do ciclo de conferências promovido pela Culturgest, «O neoliberalismo não é um slogan - histórias de uma ideia perigosa», proferidas pelo João Rodrigues durante o mês de Março. Para fechar, e devidamente enquadrado pela sequência das sessões anteriores, a discussão centra-se em torno dos arranjos institucionais subjacentes à arquitectura da moeda que nos desgoverna: «A crise é sempre uma oportunidade: o caso da zona euro».
É no Pequeno Auditório (Rua Arco do Cego, Piso 1), a partir das 18h30. A entrada é gratuita (devendo as senhas de acesso ser levantadas 30 minutos antes) e a conferência será transmitida em directo aqui (na página onde se encontram disponíveis os vídeos das três sessões anteriores).

quinta-feira, 27 de março de 2014

Sempre a ajudar

“Se alguma vez chegarmos ao ponto de ter de estabilizar a Ucrânia, retiraremos muitas experiências da Grécia”, diz Wolfgang Schauble. A Grécia é então o modelo para quem manda a ocidente e diz querer estabilizar, segundo a Bloomberg. E ainda há quem apele ao que chama de ajuda por parte de uma UE que tratou logo de assinar acordos com um governo ucraniano dotado de “legitimidade revolucionária” (aspas, notem), com fascistas e tudo a tomar conta do aparelho de Estado, mas sem legitimidade democrática (sem aspas, notem). Entretanto, o FMI também já lá está quase, em linha com os interesses de quem nele sempre mandou. Juntos, FMI e UE, representam a condicionalidade dos empréstimos que se avizinham, ou seja, a austeridade brutal feita de aumentos de preços de bens essenciais, como o gás natural para aquecimento, e de quebras de rendimentos. Diz-se que agora é uma boa altura para fazer isto porque já estamos na Primavera e as temperaturas subiram. O tempo está bom para cobrar o que um analista, citado no Financial Times, designou como o “preço da liberdade”. Enfim, será preciso muito idealismo para ofuscar a realidade do elevado preço que os povos pagam pela lógica do imperialismo e das suas rivalidades.

Areia para os olhos

Através da miserável campanha recentemente lançada, a Carris e o Metro de Lisboa decidiram desafiar os seus passageiros a converter-se em empreendedores da bufaria (uma bela forma, aliás, de celebrar os 40 anos do 25 de Abril), incentivando-os a vigiar e denunciar situações de não validação de títulos de transporte. «Abra os olhos e combata a fraude» foi o mote escolhido para a abjecta campanha e os incentivos para que os utentes a ela adiram - na useira e vezeira lógica de colocar cidadãos contra cidadãos - reflectem a tentativa de estabelecer uma relação causal entre a ocorrência de fraudes e a supressão de carreiras e carruagens, o aumento do tempo de espera ou a degradação dos próprios serviços de transporte.

Sim, é verdade, a qualidade e a acessibilidade dos serviços degradou-se significativamente nos últimos anos: entre 2010 e 2012 verificou-se uma redução substancial da oferta no número de carruagens (-23%) e de lugares (-22%), que causou o ensardinhamento de passageiros em hora de ponta. Sim, é verdade que as ocorrências de atrasos, por exemplo com duração igual ou superior a 10 minutos, se tornaram bastante mais frequentes (+67%) e os tarifários registaram agravamentos brutais, com o aumento em 55% do passe urbano mensal (de 19 para 29 euros), ou com o custo do bilhete de uma viagem a passar dos 80 cêntimos de 2010 para 1,25 euros em 2012. E sim, entre 2011 e 2012 registou-se uma quebra inaudita no número de passageiros, passando-se de cerca de 179 para 154 milhões (-14%).

A administração do Metropolitano de Lisboa tratou aliás de explicar esta diminuição histórica do número de passageiros, apontando o dedo ao impacto da «crise económica (...) na redução da mobilidade na área urbana» e «ao aumento da fraude constatado nas acções de fiscalização desenvolvidas ao longo do ano», sublinhando porém, estranhamente, que esse «aumento percepcionado da fraude ainda não se encontra reflectido na taxa de fraude utilizada para o ano de 2012», que assim «permanece em 5,5%, tal como em 2011» (como refere o Relatório e Contas de 2012). Ora, o que justamente os dados do próprio Metropolitano de Lisboa nos dizem é que as situações de fraude não só não aumentaram como a tendência que se verifica nos últimos anos é de diminuição (ver gráfico). O que confirma, de resto, a percepção dominante (já que as coisas se colocam ao nível do «percepcionado») de quem viaja quotidianamente no Metro de Lisboa: as fraudes continuam a ser manifestamente pontuais e episódicas, não sendo hoje mais frequentes do que eram «antes da crise».

Com efeito, se exceptuarmos os anos de 2006 a 2009 (com valores a rondar os cerca de 4,5%), é justamente em 2011 e 2012 que as taxas de fraude atingem os valores mais baixos verificados desde 2001 (ano que registou um valor próximo de 7%). Não é portanto aqui que, seguramente, se encontram as causas (e os riscos) dos problemas de sustentabilidade económica e financeira do Metropolitano de Lisboa, que a empresa procura justificar com o aumento das situações de não validação de títulos de transporte. Essas causas estão já bem identificadas (vejam-se, a este respeito, as conclusões a que chega o Relatório Preliminar do Grupo Técnico da IAC) e às mesmas acresce o efeito contraproducente da política de aumento de tarifas, redução de recursos humanos e de deliberada degradação dos serviços, responsável por quebras significativas, nos últimos anos, ao nível dos resultados operacionais e dos resultados líquidos da empresa. É esse efeito que a campanha em curso pretende precisamente camuflar, pelo que tudo o mais não passa, de facto, de um simples e perverso atirar de areia para os olhos.

terça-feira, 25 de março de 2014

Depois queixem-se

O péssimo resultado da esquerda francesa e a confirmação do cada vez mais forte enraizamento da Frente Nacional nas eleições municipais são outros tantos pretextos para voltar a perguntar ainda antes das europeias: como é que se diz depois queixem-se em francês? A maioria da esquerda francesa prefere continuar a pertencer ao “partido único do euro”, na apta expressão de Jacques Sapir, que só garante austeridade e neoliberalização no “poder” e inconsequência programática na oposição, abandonando em larga medida o plástico terreno do nacional que é popular à Frente Nacional.

Hoje é claro o paradoxo, digamos assim, na base de uma parte das derrotas passadas, presentes e futuras: uma parte da esquerda converteu-se de forma aparentemente irremediável à “Europa” no preciso momento em que o neoliberalismo aí ficou seguramente inscrito, nos anos oitenta e noventa, em clara ruptura com o eurocepticismo muito generalizado à esquerda em tempos anteriores que até eram de integração menos intrusiva e menos claramente neoliberal. É um país muito distante aquele em que Olof Palme, referido pelo historiador Bernard H. Moss, só para dar um exemplo, se referia à CEE pelos quatro C: conservadora, capitalista, clerical e colonialista...

segunda-feira, 24 de março de 2014

Pobreza e desigualdade

Foram publicados finalmente os dados sobre pobreza e desigualdade em Portugal para 2012, ano em que o impacto da austeridade na vida dos portugueses foi maior. À partida, os dados não oferecem grandes surpresas: a taxa de pobreza subiu de 17,9% para 18,7%, afectando sobretudo desempregados e famílias monoparentais. No entanto, um olhar mais detalhado sobre os dados mostra-nos um cenário bastante mais assustador. A taxa de pobreza é uma medida relativa - 60% do rendimento mediano. Ora, em 2012 o rendimento mediano caiu. Assim, só foi considerado pobre quem tinha menos de 409 euros mensais. Se tomarmos como referência o valor de 2009 (ano em que o rendimento disponível também diminuiu), a taxa de pobreza em Portugal dá um salto de 21,3% em 2011 para 24,7% em 2012, já depois de transferências sociais. Ou seja, basta aumentar o limiar de pobreza em 60 euros, para 469 euros, para obtermos um novo salto de 6 pontos percentuais. Esta estatística dá assim conta da verdadeira dimensão da crise social que enfrentamos. Isto, sem olhar para os dados tenebrosos, de quase um terço das famílias sem capacidade de aquecer devidamente a sua casa, ou de quase metade das famílias não conseguir enfrentar uma despesa inesperada de 400 euros sem recorrer ao crédito.

O outro dado preocupante diz respeito à desigualdade. Se tivermos em conta o índice de Gini, a desigualdade recuou ligeiramente para os níveis de 2010 (34,2). No entanto, a diferença entre o rendimento dos 10% mais ricos e os 10% mais pobres disparou de 10 para 10,7 vezes, tendo sido o seu valor em 2009 de 9,2. Como explicar esta aparente contradição? É razoavelmente fácil. A diferença entre os muito pobres e os remediados diminuiu, já que os últimos tiveram maiores perdas relativas de rendimento, dado o baixíssimo rendimento dos primeiros. Contudo, o rendimento dos mais ricos  resistiu melhor à crise, aumentando assim a diferença. Conclusão, a crise não é certamente igual para todos. 

Lágrimas de crocodilo, em tempo de eleições


«Gostaria que os credores tivessem sido mais bondosos nas metas», diz Nuno Melo, o eurodeputado do partido de um governo que fez questão em ir irrevogavelmente «além da troika», duplicando a austeridade inscrita na versão inicial do memorando (com as consequências que estão hoje à vista de todos).

sábado, 22 de março de 2014

O equívoco de Daniel Bessa e dos discursos oficiais sobre inovação em Portugal

O Expresso desta semana dá conta do mais recente Barómetro de Inovação da COTEC, uma associação empresarial que reúne as empresas mais inovadoras do país e que é dirigida há vários anos por Daniel Bessa.

O Barómetro da COTEC consiste num indicador compósito construído a partir de vários indicadores individuais, o qual serve de base à elaboração de um ranking dos países. Existem vários rankings de natureza semelhante - o mais influente dos quais é o Innovation Union Scoreboard da Comissão Europeia - e todos chegam mais ou menos à mesma conclusão: Portugal é um país moderadamente inovador, apresentando desempenhos muito melhores no que respeita à quantidade de recursos mobilizados para a ciência e tecnologia e aos resultados científicos do que nos resultados económicos das inovações. É isto que leva Daniel Bessa a afirmar que "Portugal continua a ser 'cigarra' na inovação". E é também isto que está na base da opção do actual governo em desinvestir na ciência e dar mais dinheiro às empresas para actividades de I&D em contexto empresarial.

Acontece que esta conclusão, que se tornou verdade incontestada nos círculos políticos de Lisboa a Bruxelas, resulta de um equívoco. O problema é o seguinte: quase todos os indicadores individuais utilizados para construir o Barómetro da COTEC, o Innovation Union Scoreboard e rankings semelhantes, estão fortemente correlacionados com a estrutura produtiva de cada país. Nesse sentido, o que estes rankings nos dizem não é tanto se um país faz bom uso dos seus recursos para a inovação, mas se o país tem uma estrutura económica muito ou pouco assente em actividades intensivas em conhecimento e tecnologia.

Num estudo recente (que aguarda publicação), analisei os níveis de correlação entre os vários indicadores de inovação utilizados no Innovation Union Scoreboard e o peso no emprego de sectores de indústria e serviços intensivos em conhecimento e tecnologia nos países da UE. O resultado é o que se apresenta no gráfico abaixo e confirma a ideia de que a estrutura produtiva afecta fortemente o desempenho dos países nos vários indicadores de inovação.

Correlações entre estrutura produtiva e indicadores de inovação nos países da UE

De seguida comparei o desempenho de Portugal nos vários indicadores do Innovation Union Scoreboard (ver coluna do meio do gráfico abaixo) com o desempenho nesses mesmos indicadores quando se tem em conta o padrão de especialização do país (coluna da direita).



A conclusão é a seguinte: para a estrutura de especialização produtiva que temos, Portugal apresenta um desempenho inovador superior ao que seria expectável, incluindo em vários indicadores relativos ao resultado económico da inovação.

Ou seja, ao contrário do que sugere Daniel Bessa (e, de resto, quase toda a gente que fala sobre inovação em Portugal), o problema não é sermos a 'cigarra' na inovação. O problema da economia portuguesa é o mesmo já referido aqui e que está na base da chamada 'crise das dívidas soberanas' na periferia da UE: Portugal está sobreespecializado em sectores de baixo valor acrescentado e muito expostos à concorrência internacional. Não é desviando os recursos da ciência para as empresas, nem incentivando a expansão de sectores desqualificados por via dos baixos salários e do despedimento 'simplex', que este problema se resolve.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Um jornal que desarmadilha

[O] salto em frente do comércio livre e do atlantismo pode obrigar os europeus a importar carne com hormonas, milho geneticamente modificado ou frangos lavados com cloro. E pode impedir os americanos de favorecerem os seus produtores locais (Buy American Act) quando afectam despesas públicas à luta contra o desemprego. 

 Encorajados por «estudos» muitas vezes financiados pelos lóbis, os defensores do APT [Acordo de Parceria Transatlântica] são no entanto mais loquazes sobre os postos de trabalho que serão criados graças às exportações do que sobre os que serão perdidos por causa das importações (ou de um euro sobrevalorizado…). O economista Jean-Luc Gréau recorda, contudo, que, de há vinte e cinco anos para cá, cada nova investida liberal – mercado único, moeda única, mercado transatlântico – foi defendido com o pretexto de que iria reabsorver o desemprego. Um relatório de 1988, intitulado «Desafio 1992», anunciava que «devemos conseguir cinco ou seis milhões de empregos graças ao mercado único. Contudo, a partir do momento em que este foi instaurado, a Europa, vítima da recessão, perdeu entre três e quatro milhões de empregos»… 

 Em 1998, um Acordo Multilateral sobre o Investimento (AMI), já então concebido por e para as multinacionais, foi destruído pela mobilização popular. O ATP, que retoma algumas das ideias mais nocivas do AMI, precisa de ter o mesmo destino. 

Excerto, com referências omitidas, do artigo mensal de Serge Halimi no Le Monde diplomatique deste mês. O comércio e o investimento ditos livres são apenas o proteccionismo das fracções mais fortes do capital, o reforço da sua capacidade para gerar e transferir custos sociais para terceiros. Os povos, em especial os periféricos europeus, serão as principais vítimas deste reforço do colete-de forças da globalização, de que a UE realmente existente sempre foi a expressão no continente. Portugal tem beneficiado imenso destes processos de abertura incessante, como se viu, vê e verá, sobretudo quando não tem qualquer voz, nem instrumentos de política para os gerir. Sandra Monteiro, por sua vez, fala-nos de “neoliberalismo eleitoral” na edição portuguesa. Não deixem de ler.

Partisans

Anna Marly -


Leonard Cohen -

Electrelane -









quinta-feira, 20 de março de 2014

Debater o livro da troika em Abrantes


Amanhã, dia 21 de Março, a partir das 21h30, estaremos em Abrantes à conversa sobre «A crise, a troika e as alternativas urgentes», o livro editado pela Tinta da China e pelo Congresso Democrático das Alternativas (já na sua segunda edição). A sessão é promovida pela Palha de Abrantes (Associação de Desenvolvimento Cultural) e decorrerá no Sr. Chiado (Praça Raimundo Soares, n.º 20).

Um manifesto revelador


O chamado manifesto dos 70, intitulado "Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente", tem sido muito discutido. Ainda bem, porque imagino que era mesmo esse o seu objectivo central. Que os fiéis do pensamento único, do "não há alternativa" thatcheriano digam que o momento é inoportuno e que o documento contém "opiniões líricas e apresentadas de forma leviana", diz tudo sobre a qualidade da democracia que desejam para o país. A sociedade portuguesa não esquecerá quem se pôs do lado dos credores.

Há quem diga que a insustentabilidade da dívida pública não é óbvia e invoque as contas apresentadas pelo FMI, ou o facto de haver operadores privados que continuam a comprar dívida pública portuguesa a dez anos. São argumentos falsos. O irrealismo, ou mesmo a manipulação, dos pressupostos usados nas simulações do FMI, designadamente quanto às taxas de crescimento real do produto, à evolução dos preços na produção, ao crescimento da procura interna e ao excedente primário orçamental, foi muito bem escalpelizado por Ricardo Paes Mamede no Ladrões de Bicicletas ("Irrealismo ou barbárie").

De facto, para quem apenas vê folhas de cálculo, tudo é sustentável. Há um respeitável economista que diz não perceber porque é que elevados excedentes orçamentais primários não podem ser assumidos por muitos anos. Deve valorizar pouco o sofrimento que hoje esmaga muitos portugueses. Contudo, talvez consiga perceber se lhe lembrar o motim na armada britânica, em 1931, na sequência de uma brutal política de austeridade destinada a acalmar a finança internacional, o que implicou grandes cortes nos salários da função pública. Dias depois, a Grã-Bretanha abandonou o padrão-ouro e desvalorizou a moeda, logo começando a criar emprego. Estes economistas "sérios" têm grande dificuldade em perceber que a insustentabilidade da dívida pública e privada é uma matéria de escolha política, portanto, também de escolha moral, não é uma escolha técnica no quadro de uma restrição orçamental europeia inamovível.

Mesmo sendo insustentável, os operadores do mercado de capitais continuarão a comprar dívida portuguesa até ao dia em que perceberem que o BCE não vai poder comprar dívida pública sem limites. No dia em que, por razões de constitucionalidade alemã, os mercados não tiverem um comprador de último recurso, e esse dia vai chegar, ficará à vista o irrealismo do pressuposto do FMI sobre a taxa de juro. A menos que a actual maioria política alemã altere a Constituição para a tornar compatível com as intervenções do BCE, hipótese muito pouco provável, o que nos espera após a dita "saída limpa" é um teste dos mercados à capacidade de intervenção do BCE. Com a actual instabilidade financeira internacional, não me parece que tenhamos de esperar muito.

Há também quem sugira que a Alemanha e seus satélites já estão disponíveis para melhorar substancialmente as condições de juro e prazo, após as eleições europeias e um terceiro resgate à Grécia. É a conversa do costume sobre os amanhãs que cantam na zona euro. Infelizmente, desse espírito também enferma o manifesto ao dizer que uma nova Comissão Europeia vai desencadear um processo institucional que nos permitirá beneficiar de uma mutualização da dívida pública acima de 60% do produto. Toma o desejo pela realidade (ver Jörg Bibow, "Euro Delusion and Denial Keep Authorities Entranced").

Sendo o manifesto subscrito por europeístas de várias correntes ideológicas, a sua proposta assenta em dois pilares muito frágeis: (1) a viabilidade política da renegociação das dívidas na UE; (2) a capacidade de crescimento da economia portuguesa com os instrumentos de política de uma região autónoma, sob tutela do Tratado Orçamental. Ainda assim, é um mérito do manifesto ter dito a verdade aos portugueses: não há futuro no presente quadro institucional europeu. O PS já declarou que nunca porá em causa o statu quo e, por isso mesmo, já recebeu a bênção da chanceler Merkel. À esquerda, ainda não há alternativa credível.

 (O meu artigo no jornal i)

Um amigo de Gaspar?


Vítor Gaspar invocou ontem a autoridade de um “pai fundador” dos EUA, Alexander Hamilton, para defender os inconvenientes do incumprimento da dívida. Os seus aduladores na imprensa, os que confundem jornalismo com opinião,  trataram logo de dizer que “Vítor Gaspar demonstrou que tem estudado a matéria”. O primeiro Secretário do Tesouro era de facto contra tal prática em princípio, estávamos no contexto de formação de um novo Estado, mas na realidade Hamilton procedeu a uma significativa reestruturação da dívida no processo da sua assunção pelo governo federal, como está relatado neste artigo do NBER que a compara com a reestruturação mexicana dos anos oitenta/noventa. A história é sempre mais complicada: dessa vez também não foi diferente.

De resto, é curioso que Gaspar invoque Hamilton, dado que este foi um construtor nacional (não, a UE não será um Estado, que os povos dos Estados-nação já existentes não deixam), um dos que forjou os principais argumentos para o proteccionismo, quer por razões de financiamento, quer sobretudo enquanto política de educação para o desenvolvimento das capacidades industriais da nova nação face aos seus competidores. O realismo, com preocupações de segurança e de poder nacionais, de Hamilton está muito longe dos delírios pós-nacionais dos nossos neoliberais capturados pela imaginação do centro. O seu famoso relatório sobre as indústrias é economia política nacional no seu melhor: todos os argumentos proteccionistas posteriores vão ter aos EUA no final do século XVIII e no século XIX, incluindo os do alemão Friedrich List. É a chamada história secreta do capitalismo que se repete: do proteccionismo às reestruturações. Precisamos mesmo dela contra a economia política neoliberal de Gaspar.

Hoje: Faculdade de Direito de Lisboa e Culturgest


A partir das 17h00, no Auditório da Faculdade de Direito de Lisboa, realiza-se a conferência «A Anatomia da Crise: Identificar os problemas para construir as alternativas», em que se apresentará e discutirá o Relatório anual do Observatório sobre Crises e Alternativas, numa sessão que é organizada pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra e pelo Centro de Investigação em Direito Europeu, Económico, Financeiro e Fiscal (CIDEEFF).
A entrada é livre, devendo contudo ser efectuada inscrição prévia (sujeita à capacidade da sala) através dos endereços: ideff@fd.ul.pt ou institutoeuropeu@fd.ul.pt.



A partir das 18h30, no Pequeno Auditório da Culturgest (Rua Arco do Cego, Piso 1), o João Rodrigues profere a terceira conferência do ciclo «O neoliberalismo não é um slogan - histórias de uma ideia perigosa», subordinada ao tema «A hegemonia neoliberal: do Chile aos Consensos de Washington e de Bruxelas».
A entrada é gratuita (devendo as senhas de acesso ser levantadas 30 minutos antes) e a conferência será transmitida em directo aqui (já se encontrando disponíveis, também nesta página, os vídeos das duas primeiras sessões).

quarta-feira, 19 de março de 2014

A insustentável ligeireza da ministra das Finanças


«Houve um manifesto em defesa da reestruturação da dívida pública. O Partido Socialista tem defendido que esta dívida, como está, é insustentável (...) e era importante saber qual a posição do governo português em relação a esta matéria. Este é um debate em curso, no qual se espera que o governo português participe, dê um contributo e, já agora, que defenda os interesses dos portugueses, [que] não são claramente servidos nem pelo cenário apresentado pelo senhor primeiro ministro, nem pelo cenário apresentado pelo FMI e pelo senhor Presidente da República, nem pela senhora ministra das Finanças. Porquê? Porque feitas as contas nós verificamos que, mesmo no melhor cenário de todos, houve apenas quatro países, nos últimos dezassete anos, que - num ano - conseguiram cumulativamente essas condições. Quatro países, um ano cada um. De nós espera-se que seja durante trinta anos seguidos, sem desvios. Senhora ministra das Finanças isto não é credível, não é sustentável e espera-se uma resposta do seu ministério e da sua equipa.»



«A senhora ministra disse aqui que era preciso acreditar, que não conseguimos nos últimos quarenta, mas que é preciso acreditar... Senhora ministra, isto não é uma questão de atitude... Importa perceber se é ou não credível, se é ou não sustentável. O quadro que o primeiro ministro apresentou (...) não só viola o Tratado Orçamental como é optimista e irrealizável. (...) Não há nenhum país no mundo que tenha conseguido concretizar o cenário que a senhora ministra das Finanças diz que é credível. A sua resposta não pode ser "temos que acreditar, temos que acreditar que é possível". (...) Cabe ao governo português defender os portugueses, em cada um destes debates [valor do défice estrutural, impacto da deflação no volume da dívida e sua relação com as quebras salariais, ou mutualização da dívida à escala europeia]. E as respostas da senhora ministra das Finanças, o que nos demonstram aqui, é preocupante: é que o governo português não se importa com estes debates. Talvez por isso, na entrevista que o relator do relatório do Parlamento Europeu sobre a troika, em Portugal, tenha dito que, em conversa com a senhora ministra das Finanças, a senhora ministra das Finanças não pareceu muito preocupada com os cortes salariais, não pareceu muito preocupada com o facto de termos tido uma intervenção externa. Até considerou positivo, porque lhe permitiria implementar a sua agenda política.»

A ver, na íntegra, as intervenções de João Galamba na audição à ministra das Finanças. Um debate ilustrativo da incapacidade do governo em apresentar um cenário que responda, de forma credível, às contas do manifesto pela reestruturação da dívida, bem como do alheamento irresponsável do executivo face a importantes questões que estão na mesa da discussão, à escala europeia.

Maturidades vs. capital

Renegociar significa “negociar novamente” e reestruturar significa “estruturar novamente”. No que diz respeito à dívida pública, quando se defende a renegociação da dívida (termo usado pelo PS e pelo PCP) está-se a querer dizer que se quer negociar com os credores uma nova estruturação da dívida pública, por outras palavras, quer-se renegociar com vista a reestruturar (termo usado pelo manifesto dos 70 e pelo BE). Embora, em tese, possa haver uma reestruturação sem negociação, não é isso que o manifesto dos 70 propõe – os subscritores defendem uma reestruturação no quadro das instituições europeias, logo negociada.

O motivo do uso da semântica prende-se com a necessidade de alguns distinguirem uma suposta reestruturação benévola, que só alteraria taxas de juro e maturidades, de uma reestruturação má, que implicaria, igualmente, cortes no capital. Independentemente da semântica utilizada, uma reestruturação de dívida implicará sempre perdas para os credores, pois de outra forma não haveria nenhuma vantagem para o devedor; e o credor conhece as “regras do jogo”, portanto, além de ser fútil o exercício de distinção de palavras, é errado afirmar-se que existe uma versão da renegociação que implica pagar tudo.

Obviamente, seja através de alterações das taxas de juro, seja dos prazos ou dos montantes, estará sempre implícito um “haircut” – achar que alargar maturidades ou reduzir juros é mais facilmente aceite pelos credores do que um corte no principal é ingenuidade ou ignorância. Na realidade, um credor pode preferir receber, na data acordada, 80% do que tem a haver do que receber a totalidade 30 anos depois da data inicialmente prevista, e é também por essa razão que não faz qualquer sentido excluir de uma renegociação a discussão sobre os montantes. Num processo negocial deve-se ter sempre em cima da mesa os juros, os prazos e os montantes, para que assim se possa chegar à modulação que melhor serve os interesses de devedores e credores. Excluir à partida uma variável da negociação é um erro político e económico que não beneficia nenhuma das partes e só serve para criar ruído.

(cronica publicada às quartas-feiras no jornal i)

Ligações

Como vimos, Paulo Rangel defende que já existe uma constituição europeia informal, enquanto Vital Moreira defende que esta já está escrita e tudo. Rangel defende que o manifesto sobre a reestruturação da dívida é “inoportuno”, enquanto Vital defende que é “infundado e intempestivo”. Isto está tudo ligado.

Como disse ontem o banqueiro, “líder do Finantia”, António Guerreiro ao Negócios, com toda a confiança dos que se vêem estruturalmente no poder cá dentro, graças às forças lá de fora: “Qualquer governante no poder seja ele socialista ou da força existente, rapidamente, com duas ou três viagens a Bruxelas, a Frankfurt ou a Berlim será relembrado do que tem de ser feito.” Passos foi ontem a Berlim receber a enésima consideração pelo que está a fazer a Portugal. Tudo mesmo ligado.

A questão é clara (e as ideias e os interesses que respondem de uma forma ou de outra também): obedecer ou desobedecer? No fundo, as futuras eleições serão só sobre isto. Apesar de toda a ofuscação, as respostas começam, lentamente, demasiado lentamente, a clarificar-se. E as suas implicações também.

terça-feira, 18 de março de 2014

José Medeiros Ferreira

Morreu José Medeiros Ferreira. Já aqui o escrevi há uns anos e repito-o agora: um dos mais argutos intelectuais públicos nacionais. Na altura, em 2008, Medeiros Ferreira resumia a crise numa penada e poucos sabiam resumir as coisas em tão poucas palavras, como deixou claro no Córtex Frontal: "Esta crise do capitalismo em nada se deve à luta de classes. Pelo menos do lado do proletariado". A formulação é muito boa e de múltiplas formas e nunca mais a esqueci. É apenas um exemplo da forma como usava a ironia, uma das armas da sua razão crítica. Medeiros Ferreira acreditava numa coisa simples e complexa ao mesmo tempo e que resumiu lapidarmente numa das suas últimas entrevistas: "Portugal tem condições". Acreditava na diplomacia, prática política de que carecemos. No seu último livro, tinha indicado precisamente a importância da diplomacia financeira na história do país e da Europa. Uma história que também está à nossa frente e que vai exigir muita determinação colectiva para criar condições para que isto possa ser um país decente. Medeiros Ferreira vai fazer falta. À sua família e aos seus amigos, este blogue envia sentidas condolências.

Leituras: Manifesto dos 70 (I)


«O Presidente da República disse há tempos que só quem é masoquista fala na reestruturação da dívida. (...) Eu confesso que vejo com alguma dificuldade que Adriano Moreira seja masoquista. Ou Bagão Félix. Ou Alberto Ramalheira. Ou António Saraiva. Ou Diogo Freitas do Amaral. Ou Fausto Quadros. Ou João Vieira Lopes. Ou José Silva Lopes. Ou Luís Braga da Cruz. Ou Manuel Porto. Ou Manuela Ferreira Leite. Ou Miguel Cadilhe, que não assinou mas publicou um artigo concordando no essencial com ele e lembrando que há mais de dois anos defende uma renegociação "honrada" da dívida. Ou Vítor Martins e Sevinate Pinto. (...) Falar sobre a reestruturação da dívida é masoquismo. Cortar salários e pensões de forma definitiva, aumentar brutalmente impostos, assistir a enormes cortes nos apoios sociais do Estado - e fazê-lo de formam sistemática e continuada desde há três anos é refresco. Para os outros, claro.»

Nicolau Santos, Reestruturação: eu, masoquista, me confesso

«Os jornalistas económicos e colunistas que ou são da área do governo ou têm defendido as suas posições não conseguiram disfarçar o incómodo. O nervoso foi tal que se transformou em excitação. O manifesto é, acusação costumeira quando se quer substituir o sentido crítico pelo medo, "irresponsável". (...) A coisa mais interessante da reação a este manifesto foi a forma como se revelaram, com uma agressividade deslocada, muitos dos protagonistas do discurso dominante. Esta proposta não se deve apresentar, apesar de ser a óbvia, porque assusta a troika mas, acima de tudo, porque cria a ideia de que não há apenas um caminho possível. Porque esta proposta, que não sendo a solução faz parte dela, e que ainda por cima agrega um consenso razoável na sociedade, desarma o único discurso que dominou o debate político nos últimos três anos: o da inevitabilidade. De repente há pessoas que propõem coisas diferentes. Imaginem o mal que isto pode fazer ao País.»

Daniel Oliveira, O manifesto que perturbou o «inevitável»

«Setenta personalidades vieram dizer o que estava à vista de todos mas não podia ser dito: a dívida tem que ser reestruturada nos seus prazos, juros e montantes. Passos apressou-se a reafirmar a fantasia oficial (...). Considera que a despesa pode ser ilimitadamente comprimida, ano após ano, para se ajustar às metas fixadas. Acredita que novas medidas, novas falácias, novas mentiras, inimagináveis sacrifícios pseudo-temporários, poderão submeter continuamente o país, aterrorizado, a um destino de austeridade eterna. Acha que a chave do problema é a despesa, ou seja, os velhos, a saúde, a educação, os funcionários. Agora uns, depois outros, no fim todos. Com o despedimento a gosto e um exército de desempregados e emigrados, Passos vai converter Portugal num novo Chile. Passos não o diz (se calhar não o compreende) mas ele representa o fim do projecto nacional iniciado com o 25 de Abril. Com ele ou sem ele, a revolução reaccionária que planeia e executa só será possível em ditadura.»

Sérgio Sousa Pinto (via facebook)

«É difícil imaginar tanta raiva, tanta vontade de calar, tanto desejo de pura exterminação do outro, como aquele que se abateu sobre o manifesto dos 70 signatários a pretexto da reestruturação da dívida, uma posição expressa em termos prudentes e moderados por um vasto grupo de pessoas qualificadas, quase todas também prudentes e moderadas. (...) Veio ao de cima tudo, a começar pelo primeiro-ministro, que os tratou de essa "gente", ou porque tinham uma "agenda política" ou porque eram "cépticos" por natureza, inúteis para o glorioso esforço nacional de empobrecer como programa de vida. O manifesto era "antipatriótico", com um timing inaceitável, a dois meses da "libertação" de 1640, feito pelos "culpados" do esbanjamento, pelos "velhos" a defenderem os seus privilégios, pelos defensores do statu quo dos interesses instalados, pelos "jarretas", pela "geração errada". O seu objectivo escondido, ao assinarem o manifesto, é outro, é "manter o modelo de negócio que temos, o Estado que temos, e atirar a dívida para trás das costas", escreve António Costa em editorial do Diário Económico. José Gomes Ferreira é mais claro: "Estará a vossa iniciativa relacionada com alguns cortes nas vossas generosas pensões?"»

José Pacheco Pereira, A raiva que o manifesto dos 70 provocou

«Este manifesto limita-se a olhar a realidade de frente: o País caminha para o suicídio, e é preciso mudar o rumo. No quadro europeu. Pesando o interesse de Portugal, mas também o interesse comum do projecto europeu, de que muita gente, em Bruxelas e Berlim, parece ter-se esquecido. Perante isso, o primeiro-ministro, e uma escassa legião de escribas auxiliares, acusam os subscritores do manifesto de "pôr em causa o financiamento do país", de "inoportunidade", e, até, de falta de patriotismo. (...) A verdade dói, mas a mentira mata. Tenho muito orgulho em ter assinado este manifesto ao lado de Manuela Ferreira Leite, ou Bagão Félix, pois a diferença crucial não é entre esquerda e direita, mas entre a verdade e a mentira. O que une este governo, e o atual diretório europeu, é a ligação umbilical entre o seu poder e a mentira organizada.»

Viriato Soromenho Marques, Os homens não são todos iguais

segunda-feira, 17 de março de 2014

What have the romans ever done for us?



Paulo Baldaia, director da TSF, teve o seu momento Monty Python, quando, no programa Bloco Central, criticou o manifesto dos 70 por, e cito (de memória), Portugal ousar defender a reestruturação sem dar nada em troca aos seus credores.

Num remake do what have the romans ever done for us, podemos reformular o que disse Paulo Baldaia do seguinte modo:
● Tirando não ter entrado em incumprimento desordenado, o que evitou o colapso do sistema financeiro dos países credores;
● Tirando ter assinado o two pack, o six pack, o Tratado Orçamental - um conjunto de reformas que a Alemanha e os países credores exigiram - e estar comprometido com um projecto que, na sua essência, beneficia estruturalmente os países credores em desfavor das economias mais fragilizadas do sul...
... o que é que Portugal (e a chamada periferia) já fez pelos países credores?

Paulo Baldaia tem toda a razão: tirando isso tudo, o manifesto não dá (mais) nada aos credores, apenas ousa pedir que nos dêem condições para sair do atoleiro em que estamos metidos.

domingo, 16 de março de 2014

O timing, a catástrofe, o irrealismo e o tabu

Diz a dr.ª Teodora Cardoso: "Uma reestruturação só se justifica numa situação de catástrofe, como a grega". Então esse é que seria o timing apropriado? Esperar que chegue a catástrofe para reconhecer que a dívida não é pagável?

Diz Passos Coelho que reestruturar é irrealista. Mas, depois do agitar do pântano, o significado de irrealismo alterou-se. Quem pensa ser possível pagar a dívida até o último cêntimo, com estes juros e estes prazos, está obrigado a explicar, tintim por tintim, como é que isso pode ser feito e as implicações de o fazer. Veremos então o que é irrealista.

"Todos sabemos que a dívida não pode ser paga até o último tostão" - dizem em privado os mesmos que mandam calar quem o reconhece abertamente -, "há verdades que não podem ser ditas porque os mercados se zangam". (...) O tabu repugna porque sugere que quem não se cala é mau português. Sugere também que quem não se cala a bem tem de ser calado de outra maneira qualquer. Sugere, ainda, que a verdade pouco importa e que o debate público é irrelevante; que a democracia já não conta e que nos resta aceitar a vontade e o interesse dos "mercados". Por aqui passa uma linha vermelha. Os que gritam "calem--se" estão a pisá-la.

Manuel Carvalho da Silva, Jornal de Notícias

Vergonha e crueldade

«Deste infeliz clube dos europeus que permitem a co-adopção por casais heterossexuais mas não por casais gay fazem parte, além de nós, a Rússia, a Ucrânia e a Roménia. Não seria necessário dizer mais nada para demonstrar a incredulidade face à votação do Parlamento português. A co-adopção por casais gay não é um conceito estranho que uma deputada socialista inventou para chatear o governo.
O mundo mudou e metade dos deputados portugueses ainda não se aperceberam disso. Na Alemanha já não há apenas dois sexos possíveis à nascença. Há três hipóteses. A terceira é para quando não há certeza sobre a fisiologia do bebé. A Áustria foi condenada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por impedir a co-adopção por casais do mesmo sexo. Em África, de facto, há cada vez mais países que criminalizam a homossexualidade.
A co-adopção é outra coisa, claro. É mais simples. É apenas garantir que uma criança criada por um casal gay não fica órfã, não é forçada a ir viver com os avós ou não é entregue por um tribunal a um lar caso o pai ou a mãe biológicos morram. É apenas isso. É garantir que o cônjuge sobrevivente continua a cuidar da criança a quem chama filho.
Mas não vale a pena esconder que por detrás do chumbo de ontem está uma incapacidade de aceitar a homossexualidade como uma coisa natural da vida. O PS, que promoveu a iniciativa, e todos os que a defenderam, não quiseram incendiar as emoções. Trataram o tema, e bem, como uma questão jurídica e de direitos básicos. Mas agora que está chumbada, essa vergonha não fica escondida.»

Editorial do Público de ontem

Entre a ficção e a realidade


Na notícia de sexta-feira passada, «Ministra das Finanças jura que a dívida portuguesa é sustentável», o Inimigo Público «cita» Maria Luís Albuquerque: «"Basta não pagar salários e pensões durante um ano"». Nada de novo, pois em Novembro do ano passado - para justificar a austeridade inscrita no Orçamento de 2014 - Nuno Crato havia já dado a entender que os portugueses precisariam de «trabalhar mais de um ano sem comer e sem utilizar transportes só para pagar a dívida».

sábado, 15 de março de 2014

Uma certa constituição para um certo capital?


Rangel disse esta semana que há uma Constituição Europeia informal que os Tribunais Constitucionais têm de reconhecer. O eurodeputado Vital Moreira mobilizou a sua autoridade para ir mais longe: há mesmo uma constituição europeia escrita e tudo pelos juízes do Tribunal Justiça da União Europeia, tendo de resto a nossa constituição já reconhecido internamente o primado do direito da União. Creio não ser muito ousado defender que a mensagem política subjacente, com mais ou menos subtilezas jurídicas, é a seguinte: nada de barrar, parcialmente que seja, a austeridade que o euro e restante tralha monetária e financeira impõem para todo o sempre; os Estados sociais, os direitos laborais, conquistados por aqui, são as variáveis de ajustamento em regiões apodadas de países já só por convenção. Qualquer resistência, intencional ou não, a esta ordem, por mais moderada que seja, é, como disse Rangel, inoportuna.

Pelo menos desde o final da década de noventa que, partindo da economia política internacional crítica, Stephen Gill chama a estes objectos político-legais de muito mais difícil escrutínio popular o “novo constitucionalismo”, associando-o ao “neoliberalismo disciplinar” de natureza supranacional, feito para consolidar nessa escala as liberdades das fracções mais extrovertidas do capital, considerando a União Europeia, de facto, como o mais potente exemplo institucional deste constitucionalismo, em especial no quadro da UEM.

Que os povos, os que se puderam pronunciar em referendo, tenham enviado o visível projecto de Constituição Europeia que não foi feito às escondidas para um lugar merecido – o caixote do lixo da história – foi um detalhe logo ultrapassado pelo Tratado de Lisboa e pelo sempre tão invisível quanto elitista trabalho político das instituições europeias. Aí inclui-se, de facto, um Tribunal de Justiça que tem sido, segundo várias análises económico-legais, um poderoso factor de neoliberalização das economias políticas nacionais desde há muito, dando prioridade aos direitos do capital, em linha com o primado das suas liberdades, com uns floreados sociais só para cooptar social-democratas distraídos ou ideologicamente colonizados, em linha com a lógica dos tratados. A integração também guiada por juízes europeus tende a favorecer a expansão das forças de mercado ou políticas que lhe são conformes. Mas, felizmente, pode ser que Rangel e Vital ainda tenham muitas e amargas desilusões, de Frankfurt a Lisboa. Os povos europeus, nos vários Estados que são os seus, o melhor solo das tradições democráticas, sociais e laborais, das repúblicas que se querem soberanas, não deixarão de dar combate a este processo, sobretudo se e quando este andar à superfície.

A melhor hipótese de perpetuação do sucesso deste novo constitucionalismo, o que não o torna menos perigoso, antes pelo contrário, continua a estar na sua natureza subterrânea e furtiva. Pode mesmo assim vir a ser derrotado quando a relação entre a perda, visível e invisível, de soberania democrática na escala onde esta pôde florescer e o desmantelamento de tudo o que há de civilizado por aqui e por ali ficar clara para povos decididos a confrontar uma elite dos mercados periféricos e centrais e o projecto supranacional de que são actores ou correias de transmissão, recuperando a soberania nacional perdida, condição da democracia realmente existente, e recuperando a ideia de um projecto de cooperação razoável entre Estados soberanos.

Hoje


sexta-feira, 14 de março de 2014

O Ritz foi mesmo todo um programa

A história de como o ‘manifesto anti-70’ pôs o Ritz a aplaudir o primeiro-ministro. Apetece-me voltar ao Ritz, sendo que o Pedro Santos já disse o essencial sobre a irresponsabilidade de uma linha editorial que, sejamos optimistas, transformou temporariamente o Negócios num instrumento de combate ideológico. Mas mais importante do que o alinhamento de grande parte da imprensa é a enésima confirmação de que parte da força deste governo ao serviço das fracções mais financeirizadas do capital está hoje lá fora, nos representantes políticos dos credores, os que não querem ouvir falar de reestruturação por iniciativa dos países devedores. É por esta e por outras que a desobediência nacional é essencial. O resto é a tropa-fandanga de sempre – de Teodora Cardoso do grupo do façam força que eu gemo, agora num Conselho das Finanças Públicas absolutamente desnecessário, estando para lá de toda a realidade dos efeitos recessivos da austeridade e dos efeitos positivos pelo menos da sua contenção, “Portugal precisa de fazer mais do que a Europa pede”, a Catroga, à sua sinecura na EDP e às suas boçalidades económicas. As forças sociais e ideológicas, com várias escalas, que suportam o governo são transparentes e têm ainda demasiada força política. É preciso insistir: esta alquimia entre força interna e dependência externa é o melhor que esta gente alguma vez arranjou.

quinta-feira, 13 de março de 2014

As 9 falácias (e uma petição de princípio) de João Vieira Pereira

João Vieira Pereira, sub-director do Expresso, escreveu um artigo a criticar o manifesto dos 70. A minha resposta, publicada no Expresso online, foi a seguinte:

1. O uso da palavra reestruturação só é um erro presumindo que os investidores são tolos. Ficamos sem perceber se João Vieira Pereira prefere outra palavra ou - o que é o mais provável - prefere que nem se fale do tema. Se for a segunda, a posição de JVP deve ser reformulada, passando a ser "aceitemos, de forma resignada, a nossa servidão", não ousando nunca pô-la em causa. Pelo menos ficava mais claro e sempre se percebia que o problema de JVP não é com um alegado erro deste manifesto, mas sim com toda e qualquer iniciativa que vise a reestruturação da dívida. Quanto ao facto de uma reestruturação ser "suja e traumática", importa perceber se será menos suja e traumática do que a estratégia alternativa, que é a que temos hoje e que não consta que seja limpa e regeneradora;

2. O problema dos saldos primários positivos é saber qual o seu impacto económico e o que precisamos de fazer para lá chegar, realidade que JVP parece desconhecer ou, pior, desvalorizar, assumindo, sem argumentar, que saldos primários positivos são naturalmente desejáveis e indolores. Reduzir o défice público por via da austeridade retira recursos da economia (mau para a economia), corta salários dos FP (mau para os FP e para a economia), corta pensões (mau para pensionistas e para a economia), corta prestações sociais (mau para quem delas precisa ou tem direito e mau para a economia), corta no investimento público (mau para a economia presente e futura), diminui a capacidade de desalavancagem do sector privado (empresas e famílias têm menos rendimento, logo têm mais dificuldade em poupar), etc. A austeridade é um erro económico, um erro financeiro, um erro social e, sim, um enorme erro político. Que JVP, depois da experiência dos últimos anos (em Portugal e não só), não perceba isto diz mais sobre JVP do que sobre qualquer dos subscritores do manifesto;

3. Os últimos dados do PIB não desmentem a afirmação de que sem reestruturar a dívida não será possível canalizar recursos para a economia; na verdade, confirmam-na. Basta ver o que nos dizem os dados do INE: a procura interna cai menos do que o previsto porque houve menos austeridade do que o previsto, pelo que mais austeridade, como defende JVP, prejudica a retoma, nunca o inverso. O manifesto não defende que o Estado é o motor da economia, limita-se a constatar verdades elementares de macroeconomia que qualquer estudante do primeiro ano de licenciatura tem o dever de conhecer;

4. Quem diz que "sem reestruturação a única via é a da austeridade" limita-se a constatar que se cerca de 8 mil milhões de juros forem intocáveis, então, para baixar o défice como está previsto nas regras europeias, temos de cortar salários, pensões, saúde, educação, prestações sociais e investimento público, o que prejudica o crescimento;

5. A reestruturação da dívida não tem um impacto menor nos balanços dos bancos do que a austeridade que está prevista, como se constata pelos valores do crédito mal-parado, que, em Janeiro, atingiram um novo máximo histórico. Mais, como dizem todos os estudos, o principal bloqueio à retoma do investimento é a falta de procura (ver, por exemplo, o inquérito de conjuntura publicado pelo INE), problema que é agravado pela insistência nas políticas de austeridade;

6. Entre os subscritores do manifesto, há quem sempre tenha dito que a entrada no euro foi um erro, outros que chegaram à conclusão que foi um erro, outros que acham que, não tendo sido um erro, o euro, na sua actual configuração, é insustentável, etc. Enfim, esta parece-me uma questão certamente fascinante, mas absolutamente irrelevante para avaliar o manifesto e o que lá está proposto;

7. As taxas de juro são baixas ou altas consoante o contexto. Taxas de 3.9% não têm de ser mais sustentáveis do que 5.6%, tudo depende da taxa de crescimento do PIB nominal. Ora, com crescimentos reais previstos não muito diferentes dos da (alegada) década perdida, mas num cenário de deflação, estas taxas não são mais sustentáveis. Aliás, basta ver o quadro que consta da página 36 do relatório do OE2014 para se perceber que, mesmo num contexto de taxas nominais historicamente reduzidas, o efeito bola-de-neve (diferença entre taxa de juro nominal e taxa de crescimento nominal do PIB) é a principal causa para o aumento da dívida pública;

8. A dívida ao sector oficial também inclui a dívida detida pelo BCE. Mesmo excluindo a dívida ao FMI, estamos a falar de mais de 70 mil milhões de euros, mais de um terço do total. É pouco? Quem se assusta tanto com a reacção dos investidores, devia apoiar esta posição: é a garantia de que os investidores não se assustavam tanto; isto até podia fazer baixar os juros nos mercados da dívida;

9. JVP acha que a crise que vivemos é da responsabilidade de políticas orçamentais do passado. Haverá certamente subscritores do manifesto que partilham dessa posição, mas será assim tão difícil de perceber que há muitos que olham para esta crise de uma forma radicalmente diferente de JVP. Eu, por exemplo, acho que esta não é uma crise de finanças públicas, mas sim uma crise de balança de pagamentos numa moeda que foi criada no pressuposto de que esse tipo de crise era uma impossibilidade. Esta minha posição não é uma excentricidade socialista, basta estar atento ao que muitos (em Portugal e, sobretudo, "lá fora") têm dito e escrito sobre os tempos que vivemos. A proposta de encontrar uma solução num quadro europeu abandona a interpretação moralista e comportamental da crise e coloca o problema da esfera de onde nunca devia ter saído, a da dimensão sistémica, e portanto, europeia desta crise;

JVP acha que este manifesto vem perturbar uma trajectória que, primeiro, até está a correr bem e, segundo, tem todas as condições para ser bem sucedida. Como este é o ponto que os subscritores do manifesto rejeitam, a argumentação de JVP incorre numa petição de princípio. Como manda a lógica, não se pode invocar um pressuposto contestado pelo manifesto para criticar o manifesto. É como alguém dizer que as regras do euro têm de ser revistas porque são insustentáveis e, depois, vir alguém criticar essa posição dizendo que ela viola as regras do euro. Tenho a certeza que JVP concordará que isso seria um absurdo argumentativo.